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Leituras do
Seminário 18 de Jacques Lacan
DE UM DISCURSO QUE NÃO SERIA DO SEMBLANT
1971

Início: 04 de agosto 2020


Horário: terças-feiras, das 17:30 às 18:10h.
Funcionamento: 10 encontro quinzenais, via plataforma MEET.
Inscrições: para participar, os interessados devem enviar uma solicitação para o e-mail: bs.freud@uol.com.br,
com seu nome, escolaridade, profissão, motivação e instituição da qual faz parte.
Consideraremos as solicitações recebidas até 5 horas de antecedência do horário do encontro
para enviar a senha do ingresso.
Os participantes serão admitidos na reunião, 5 minutos antes do horário. Os ingressos encerram no início da atividade.
Coordenação:
M.Glória Telles da Silva,
Maristela Leivas e
Luiz-Olyntho Telles da Silva.

Leia aqui algumas das contribuições à discussão:

SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
13 de janeiro de 1971
Capítulo I. Introdução ao título desse Seminário

Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
04.08.2020 04.08.2020
É, pois, da impossibilidade de o sujeito analisante expressar-
se na língua que está à sua disposição para dar conta do que
• Esse Seminário se constitui de 10 conferência (janeiro a o atormenta, que ele busca, na relação de alteridade que
junho de 1971) pronunciadas na Faculdade de Direito. O estabelece com o analista, condições nas quais venha a criar,
fazer com a língua, por meio do erro, das falhas de seu
mais breve de Lacan, até então, exceto pela uma só aula do próprio dizer. Nessa condição do erro, do equívoco na fala –
que seria o Seminário dedicado aos Nomes-do-Pai, em 1964. embora não intencional, ainda que não ocorra sem uma causa
• Durante este Seminário, Lacan viaja ao Japão. –, é nesse ato, pois, bem sucedido, como dizemos, que vai
• Lacan está interessado em explorar a relação entre a irromper o sujeito, que ele cria na língua, por meio da
palavra e o escrito, ou seja, entre a letra e a palavra. simbolização de um Real que insiste.
MARIA TEODORA DE BARROS OLIVEIRA, rodopiano, pp.61-2
• Inicia escrevendo no quadro negro o título do Seminário:
De um discurso que não fosse do semblante.
• Depois retoma o que havia desenvolvido no Seminário
anterior (O avesso da psicanálise): Os discursos são 4.
• O discurso do mestre não é o avesso do discurso da O título desse primeiro capítulo indica o reconhecimento,
psicanálise; o avesso seria como dois lados separados; por parte de Lacan, de uma certa ambiguidade concernente
direito e avesso; ao título do Seminário: D’un discours qui ne serait pas du
• Retoma o texto O Inconsciente, de Freud, onde falou de semblant, traduzido por Vera Ribeiro por De um discurso que
dupla inscrição: Formulou duas hipóteses. Primeiro a não fosse semblante. Pois essa ambiguidade deixa seus
topológica e depois a hipótese funcional: na primeira há primeiros traços nessa tradução, que a leva a trocar o tempo
uma inscrição da percepção no inconsciente que representa e o modo do verbo, a suprimir a contração da preposição de
a ideia e há uma inscrição de uma representação desse junto ao artigo definido o, e a confundir semblant com
elemento que será o seu pensamento no pré-consciente. Aí semblante.
estaríamos no modo direito e avesso; na hipótese funcional, A diferença entre os tempos é sutil, mas existe. Na frase
Freud atribuiu a uma mesma inscrição que seria a de Lacan temos o présent du conditionnel, formado com o
representação coisa no inconsciente e busca acesso através mesmo radical do futuro simples e a desinência modo-
de um representante da representação pela palavra para a temporal do imperfeito, serait, que em português
consciência. Considerando isto, Lacan elaborou a corresponde ao futuro do pretérito simples, seria. A
formalização dos discursos como torção. Não são dois tradução, não identificando a função do qui francês – o
discursos contrários, mas um que pode passar para o outro pronome relativo que –, confundiu o tempo e o modo do
se há uma torção. verbo do qual se serviu Lacan e usou, nesse lugar, o
• Daí que Lacan vai usar da estrutura da banda de Moebius pretérito imperfeito do subjuntivo, fosse, que tem por função
para sustentar que esses dois discursos, mesmo estando expressar dúvida ou desejo, nunca uma certeza, enquanto o
em dois lados opostos, um tem continuidade no outro, futuro do pretérito expressa uma incerteza e também uma
passando por esse meio giro da torção; surpresa e uma indignação em relação a algo que poderia
• Um discurso não tem por referência um sujeito. O ter acontecido posteriormente a um determinado passado.
discurso não é do sujeito, mas o determina. Minha opção pelo futuro do pretérito apoia-se, como se
• Salienta que num discurso, o sujeito está ausente; por vê, em outra desinência. Ao longo do seminário aparecerão
isso não se trata do seu discurso; as consequências de uma e de outra opção.
• Daí o equívoco de pensar que há em falar de A preocupação de Lacan, contudo, mais que com o
intersubjetividade; só se pode falar em intersignificação; predicado, parece-me ser com o substantivo – discurso –
• E afirma que um discurso é o que se articula a partir de acompanhado de seu complemento nominal – do semblant.
uma estrutura; E para dizer o que entende por discurso, começa glosando
• Lacan pretende a subtração da presença, pois nisso não ser o dele. Pois eu posso afirmar que também não é o
consiste a vacilação do sujeito que só está quando um meu em questão.
discurso se realiza; Ora, Lacan dedicara seu Seminário anterior justamente
• Menciona a revista Scilicet 2/3, destacando dela dois aos discursos que, de forma reduzida, ele faz questão de
traços: 1) ausência da presença, sendo esta o que faz dizer, enumera quatro, marcando, para todos eles, uma
marcar o mais-de-gozar. Lacan pretende ir mais além do estrutura tetraédrica e constante, por cujo quadrípodos
que chama o incômodo das aparências, e isto está na base giram os diferentes discursos, a começar pelo do mestre,
de pensar um discurso que não fosse do semblant. E sempre na mesma ordem, seguindo o da universidade, o do
destaca que a originalidade de seu ensino é o fato de que analista e o da histérica, salientando o que dissera no
ele, a partir do discurso analítico, coloca-se, em relação ao Seminário anterior, que o discurso do mestre não é o avesso
público, em posição de analisante; 2) o segundo traço refere do da psicanálise. Trata-se antes de torções, as quais
a escrita sem assinar, aposta que está no propósito da buscam possibilitar o que Freud chamava de dupla inscrição,
revista Scilicet, onde não havia assinatura do semblant. E como fica claro em seu estudo sobre a negação: ao dizer
diz da sua aposta: nenhum discurso pode ser autoral; ali isso esta não é minha mãe, a inscrição inconsciente inscreve-se
fala. também na consciência. Lacan, utilizando-se da cinta de
• Repete, ao longo da primeira aula, oito vezes o título do Möebius mostrou a possibilidade disso sem a transposição
Seminário De um discurso que não fosse (do) semblant para: de uma borda.
1) Dizer que esse é o discurso que dá posição ao analista; O título do Seminário, ao ocultar o sujeito, diz, de per se,
2) Dar nome aquele discurso que vai mais além do que o discurso não tem por referência um sujeito, mas sim
incômodo da aparência (Um discurso só existe se o que o determina. Partindo da intersubjetividade, Lacan joga
denominamos e aí podemos interrogar-nos) com a presença do outro: em francês, a palavra presse serve
3) Dizer que ao enunciar de uma forma hipotética, lembra bem para seu desígnio: é também a pressão do plus-de-
a Freud no texto A denegação, quando examina os juízos de gozar. E o radical inter, de intersubjetividade, de entre um e
atribuição e de existência; alí diz que ao negar, estamos outro é expresso pelos símbolos S1 – S2, os significantes
afirmando a existência e Lacan desliza para dizer que na
que dizem do sujeito na sua ausência, marcas do
sua formulação, espera dar existência a um discurso onde
inconsciente.
isso não fosse semblante, um discurso que possa portar A passagem pelo discurso da universidade leva a marca
um outro saber que não o do semblante de discurso que do incômodo, por sua neutralidade, provocada pela busca
está para a lógica-positivista da pureza da inter significação. Uma pureza que esconde o
4) E que esse semblante não pode ser completado de uso da língua como artefato, um recurso de Lacan para dizer
nenhuma maneira por algum discurso; que o fato só existe pelo fato de dizê-lo. E, uma vez tornado
• Para o discurso, na psicanálise, não existe nada de fato. fato de discurso, pode-se fazer com ele qualquer coisa, de
O fato que existe é o de dizê-lo; vale dizer que o discurso só uma obra de arte a uma mentira, às vezes como expressão
existe no momento em que é enunciado; esse é o fato (a de verdade, embora os exemplos do último caso, desde
isso chama artefato); Entendo que Lacan chama a atenção Epimeteu, não abundem.
aí para o que reúne seu público a escutá-lo, não importando Para dizer do semblant, galicismo já incorporado pelo
o que será dito, mas por saberem que algo será dito. Um dicionário Houaiss, com a conotação de exterioridade
discurso vale não por ser discurso, mas por ser dito; enganosa, Lacan contrapõe-se ao positivismo lógico,
• Esclarece que não se trata de semblante de discurso, já requerente, para sua comprovação, de uma verificação. Na
que isto está para sustentar uma posição lógico-positivista, psicanálise, nascida sob o signo de Édipo, de modo
que submete um significado a prova do sim ou não, e isto diferente, sabemos da verdade de uma interpretação por
não tem sustentação desde a experiência analítica, onde a suas consequências. Na psicanálise, a interpretação
verdade da interpretação só sabemos pela consequência desencadeia a verdade. É o que nos permite dizer,
que desencadeia (só se é verdadeiramente seguida. parafraseando um título dos Escritos, que o desejo é a sua
Entendo que Lacan aponta aí que o efeito de verdade toca interpretação. E o efeito dessa verdade, se não é semblant, e
ao real (relacionado ao Édipo) e por isso não é semblante; é sim sangue vivo, sangue de Édipo, ele não refuta o semblant.
sangue vivo. O discurso como artefato é o nosso dia-a-dia, enquanto o
• Lembra que no pensamento científico partiu do que a sustentável é o da ciência, o qual começa pela aparência
natureza oferece de mais aparente, que se sustenta no dos astros. Ocupa-se dos meteoros: o vento, a chuva e o
semblante, a observação dos astros (Descarte, Teoria dos arco-íris. O trovão – indicador do raio, do dardo de Zeus –, é
meteoros, 1637). E toma o trovão como a própria imagem signo do nome do pai, muito bem representado no
do semblante. E diz: O trovão é um sinal, mesmo não Finnegans Wake com palavras de uma centena de letras,
sabendo sinal do quê (essa inscrição do Trovão indicando sempre novos inícios. O trovão é a imagem do
encontramos de forma brilhante no Finnegans Wake, de semblant e o que importa mesmo é que o significante é
James Joyce). Daí que todo discurso é semblante. E lembra igual ao status do semblant. Trata-se, enfim, da relação com
que os significantes também estão na natureza, estão aí e o real genesíaco, desse real que sempre está.
não são uma coisa individual (lembra que a letra A é uma É nessa medida que não há semblant de discurso.
cabeça de touro invertida); Discurso é semblant na natureza (porque está na natureza)
• Termina essa primeira aula falando do ponto mortal, o e um sujeito só pode ser produto da articulação significante.
gozo, aludido por Freud no seu texto Mais além do princípio Sua forma genitiva objetiva – por sua atuação passiva – o
do prazer. O gozo é efeito de discurso. E o discurso do determina, diferente do genitivo subjetivo, cujo princípio é
inconsciente é a emergência de uma certa função do ativo. Assim, o sujeito não determina a articulação
significante e, Um discurso que não fosse (do) semblante significante, antes é por ela determinado.
teria de escrever as consequências desse impossível de se O reconhecimento da emergência do discurso do
inscrever. inconsciente, desde um real impossível, enquanto expressão
do que não cessa de não se escrever é o que teria alguma
Fica a questão: o que pode possibilitar essa torção? chance de ser um discurso que não seria falso, para dar
uma outra tradução possível às palavras de Lacan.

SEMINÁRIO XVIII, de Jacques Lacan :


De um discurso que não seria do semblant
20 de janeiro de 1971
Cap. II: O homem e a mulher
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
18.08.2020 18 de agosto/2020
• Inicia esta aula retomando uma questão colocada na Quando alguém se prepara para um discurso, é costume
aula anterior: aonde quero chegar? Lacan faz uma torção e tomar precauções com o objetivo de melhor comunicar-se
prefere explorar essa questão pelo seu avesso: de onde eu com o público. Nesta aula de Lacan, não é diferente.
parto? ou, de onde quer fazer seu público partir. E explora Reparem em sua abertura com uma denegação: - Não foi
dois sentidos: partir para ir a algum lugar com ele e também,
para me garantir. Um recurso nada frequente em seu
saírem de onde estão. Seminário. Pois então, suponho que sua intranquilidade
deriva do tema a que se propõe. Eu, pelo menos, fico muito
• Relaciona este aonde eu quero chegar com pergunta Che intranquilo!
voui? e da importância que tem numa análise manter essa
pergunta em suspenso, pois respondê-la de imediato produz Falar sobre o homem e a mulher, um tema tão comum,
uma inércia, o mesmo que dizer que não leva a lugar nunca é fácil para quem não quer ser um mero charlatão.
nenhum. Mas, como alí não fala desde o lugar de analista, Vejam que também se preocupa com os que ouvem mal, no
diz que vai responder essa questão (de onde eu parto?). fundo da sala. Está bem, existem os fatores objetivos de
acústica, mas também existem os subjetivos: não é raro os
• Vou destacar três pontos que considerei essenciais alunos pouco confiantes buscarem o fundo da sala. O
dessa aula: entendimento requer conhecimento e referências anteriores,
e o mestre quer seus alunos mais próximos de si.
1º - Lacan disse no Seminário anterior, O avesso da
psicanálise, onde trabalhou e apresentou seus quatro Aonde quero chegar? é uma pergunta pelo desejo do Outro,
discursos, que havia deixado um lugar sem nomear (o do equivalente ao Che vuoi?, de Cazzotte. E, justamente por ser
agente do discurso), justo o lugar que dá nome ao discurso, uma pergunta importante, é preciso deixá-la em suspenso,
dependendo de qual elemento ocupa esse lugar. Ele vai tal como ele argumentará, ao final da aula, com Baltazar
então dizer, nesta aula, que este é o lugar do semblant. O Gracián, ressaltando a importância do silêncio. Mas, enfim,
semblant (seguindo a indicação de Luiz-Olyntho para o uso o que Lacan quer é que todos passem para a frente, para
dessa palavra que há em português e é mais adequada que junto dele.
semblante) vem a ser a função primária da verdade de um
1.
discurso: aquele que fala diz a verdade; destacando
Na aula passada, falara do semblant, e agora o retoma
justamente que a revolução de Freud foi mostrar que o que
como função primária da verdade, essencial para designar
faz sintoma, a dimensão do sintoma, no dizer de Lacan, é
essa função, sem a qual é impossível qualificar o que se
que isso (o inconsciente) fala; Por isso, a promoção do
passa no discurso. Quando traduzimos ao português a fala
sintoma é tão importante, dirá que é mesmo decisivo. Só
da Verdade, o je parle, transparece aí, mormente, o falo. E é
quando há um sintoma, há demanda para análise.
na fala que se pode reconhecer o movimento revolucionário
de Freud ao colocar em primeiro plano a função dos
Vai também nos lembrar que a força que tem um discurso, é
sintomas, tal como sugerira Marx, de quem foi
justo porque está marcado pelo elemento que ocupa este
contemporâneo (quando Marx morreu, Freud já contava 27
lugar. E ressalta que, especialmente no discurso do mestre,
anos). E trata-se do sintoma como o que não funciona no
em torno do qual se organizam diversas civilizações, este
Real. E o interessante é que o sintoma fala até com os que
tem sua força, não tanto pela violência - como poderia se
não sabem ouvir, mas não diz tudo, nem para os que sabem.
presumir que ocorreram mas assim ditas sociedades
primitivas -, mas por ter seu motor em um significante Interessante também que a função dos sintomas não é uma
fundamental: é dali que o significante fala. Dito de outro invenção, nem de um, nem de outro, mas algo que vem
modo, se um homem tem tanto valor quanto outro, o que ronronando, há séculos. Quando Lacan usa esse verbo,
eleva o seu discurso a um lugar de mestre é a força de seu ronroner, ele pode fazê-lo tranquilamente porque seu
dizer. sentido primeiro, em francês, é uma referência ao ruído
contínuo de qualquer geringonça, e depois vem a respiração
E nos diz que o fato da verdade ocupar o lugar que fica do gato. Em português, a respiração do felino vem em
abaixo da barra do lugar do semblant, não significa ser o primeiro. E quando fala no discurso, destaca o lugar do
contrário do semblant. Simplesmente indica que a verdade é agente como definidor. Assim, podemos dizer que a função
a dimensão, diz-mansão (mansão do dizer, que fica melhor primária da verdade é sustentar o semblant.
em francês, dit-mansion) e que essa diz-mansão da verdade
é o que sustenta o semblant. Ou seja, na posição daquele S1
que emite um discurso, há uma dimensão da verdade. Isso é _____
o que faz a força de cada elemento que nomeia um
discurso. Daí que, o que fala do lugar do semblant, aparenta $
uma verdade, já que a verdade suporta o semblant.
Aqui fala o Lacan-analista-chinês: é desde sua cultura
• Retoma ainda dois pontos da primeira aula: 1) que chinesa que ele reconhece a importância do mestre, um
discurso é o (arte)fato, e 2) que semblant é o contrário do mestre que não foi formado pela Sorbonne nem por Oxford,
artefato. Aonde vai com isso? Nos indicar que as Ideias, nem por Salamanca, mas de um mestre que aprendeu da
como propôs Platão, compõem uma realidade que emana vida, no silêncio das meditações. É nesse sentido que o
do discurso que dela construímos e isso graças ao discurso do mestre não vinga pela força; é diferente da
significante que, mesmo sendo buscado na natureza, tem violência, algo muito distante, porém, da cultura ocidental
um valor de função e não de signo. Preserva o que não é que primeiro dava bolos nos alunos distraídos e que, depois,
dizível, ou seja, o real. se desinteressou deles. Agora, se isso era assim por tratar-
se de uma cultura primitiva, não temos como saber. Lacan
• O discurso científico, o discurso articulado, tem sua diz arcaica, e toma a raiz grega, ἀρχή. Contudo, a denotação
referência no impossível, que é o real; já que é o real que faz primeira de arché é origem, princípio. E, então, leio assim: no
furo no semblant, e por isso está sempre estimulando sua princípio tem que estar o discurso do mestre. Os outros
produção. O limite do discurso científico, do discurso, é o seguirão o estilo.
que não pode ser dito.
O interesse primeiro pelos outros discursos será uma forma
2º - Lacan dirá que o que nos concerne na psicanálise é o de, como ele diz, de noyer le poisson, de afogar o peixe, uma
campo da verdade, que resiste e não é permeável a todos os forma de tapeação.
sentidos, pois lidamos com o fantasma que é consequência
do discurso; ou seja, o sujeito ($) quando interrogado pelo Então sua fórmula: o que chamamos de revolucionário
pequeno a, o mais-de-gozar, só pode produzir como efeito consiste no deslocamento do discurso. E o discurso gira
seu fantasma (essa é a formula do fantasma $<>a);essa é a sobre suas quatro patas, aqui chamadas de godets. Está
verdade do sujeito, logo, impossível de ser toda dito, pois o bem, godés são as forminhas onde o pintor mistura suas
que nos interroga é da ordem do Real. tintas, e Lacan as usa, muito provavelmente, para destacar o
diferente colorido de cada discurso. Mas godets são
3º - O mais importante desta aula, ao meu entender, está na também as pregas das saias plissadas usadas pelas
parte 3 onde Lacan trabalha a diferença entre sexualidade e meninas para ir ao colégio e que os homens elegantes
as relações entre o homem e a mulher, reportando-se a seguem usando nas camisas próprias para os momentos
Freud. Deixa claro que sexualidade está para o universo do de gala, e que servem para dizer dos desdobramentos do
biológico e isso nada tem a ver com o que Freud descobriu discurso, cujo semblant é sempre sustentado por uma
como sendo o que move as relações entre o homem e a verdade.
mulher, que é outra coisa; daí sua enunciação polêmica para
Aproveitando-se de outra pergunta indireta – Será Lacan um
dizer que entre humanos não há relação sexual.
idealista pernicioso? –, reforça a importância do semblant.
Primeiro porque o discurso é o artefato, aquilo possível de
Para explorar esse tema, toma como contraponto (e
tomar a forma que se queira, e o semblant é o contrário do
recomenta a leitura) o livro de Robert Stoller Sexo e gênero
artefato. Depois, porque o conhecimento já não deriva da
(1968), um livro de um psiquiatra e psicanalista americano
percepção direta, como propunha Berkeley, para quem ser
que dedicou-se a estudar o tema do transexualismo (na
est percipi, e sim de um discurso. E do discurso de
revista Scilicet 4 há um artigo, Contribuição da psicanálise ao
Aristóteles ele vai dizer que se comporta como um místico
transexualismo, que toma como referência este livro de
por destacar a importância da ousia, i.e., do Real. Acredito
Stoller), onde, para Lacan, está colocado o desejo, a
que se possa aproximar isso da arché, pois a ousia conota
qualquer custo de mudança de sexo. O interessante é que
einai, a essência, a substância (de substare). Trata-se de
Lacan toma aí uma posição, apontando para a
algo da ordem do indizível – isto é o místico –, mas de algo
desconsideração, nestes estudos de casos, da face
que se busca argumentar.
psicótica, dessas estruturas, uma vez que o autor
desconhecia o conceito de forclusão. E agrega: É próprio do Será, então, idealista? Não, porque para o idealismo o
destino do seres falantes distribuírem-se entre homens e mundo só pode ser compreendido a partir de sua verdade
mulheres e que o que define o homem é sua relação com a espiritual. E também não é nominalista, pois seria um
mulher e vice-versa. Pode-se dizer que, para Lacan, a absurdo para ele não acreditar nos universais e teria de
definição de gênero homem ou mulher se dá sempre na renunciar ao materialismo dialético, i.e., teria de renunciar à
presença de uma diferença que se instala na relação entre compreensão de que a matéria está em uma relação
uma e outra posição. Jamais como definição intrínseca. dialética com o social e com o psicológico, mas o
• Portanto, a relação sexual está fundamentalmente para a importante é assinalar que o discurso científico só encontra
ordem do semblant, na medida em que o que move a o Real na medida em que depende do semblant. A
identidade de gênero, homem e mulher, situa-se, desde articulação algébrica do semblant é o único aparelho por
muito cedo, em identificar-se com um dos sexos. Lacan diz: meio do qual designamos o Real, na medida em que o Real
Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem, e é o que faz furo nesse semblant articulado que é o discurso
que esse semblant sexual é veiculado por um discurso, para científico que só tem como referência a impossibilidade a
os seres de fala, o que faz com que as vezes, ao invés de que conduzem suas deduções.
cortejar uma mulher, o homem possa violar a mulher; ou 2.
seja, nem sempre o homem ou a mulher conseguem Os prolegômenos acima são para diferençar a psicanálise
sustentar o semblant todo o tempo. E, afirma, que no limite da ciência, pois o que do Real nos concerne, difere de sua
do discurso está o real e aí pode se apresentar a passagem posição na física. Trata-se de algo que resiste e que se
ao ato, o sair da cena, quando ocorre o rompimento do laço chama o fantasma, relação que é rompida no discurso do
discursivo com o objeto plus-de-gozar, fazendo diferença mestre por uma impossibilidade a ser resolvida no discurso
com o acting, que é trazer à cena o semblant. do analista,

• Destaca então que o mito do Édipo designa o impossível


do gozo, por isso mítico, de gozar de todas as mulheres, e
só pode ser apreendido desde sua contingência orgânica
que conecta-se com os objetos pequeno a: seio, excremento,
olhar e voz, sendo o falo, enquanto significante, o que
normatiza esse gozo e que está, por isso, solidário a um
semblant. Vemos aí Lacan nomear quatro objetos e um
significante e que esse conjunto é o que organiza a relação quando o $ estará em frente ao semblant do plus-de gozar.
gozo e semblant entre homem e mulher. Vai dizer assim: A Então aparece aonde Lacan quer chegar: ao plus-de-gozar
identificação sexual não consiste em alguém se acreditar pressionado, uma espécie de passer au caviar, um método
homem ou mulher, mas em levar em conta que existem de censura usado na Rússia de Nicolau 1º, com o sentido de
mulheres, para o menino, e existem homens, para a menina. denegrir, algo que não tem nada a ver com o que Freud
Para os homens a menina é o falo, e isso os castra. Para as chamou de discurso do líder, mas que, sem dúvidas, o
mulheres menino é o falo, e isso o que as castra. destaca. E aqui ele recorre, por engano, ao final do capítulo
VII, A identificação, de Psicologia das massas e análise do eu,
• A tudo isso chamou de operação semblant, onde a de Freud, quando se trata do final do capítulo VIII, Estar
mulher é para o homem a hora da verdade. Para o homem, amando e hipnose, para resgatar daí o esquema da
gozo é semblant. Para a mulher, ela sabe que gozo e introjeção do líder no lugar do Ideal do eu e o exemplo que
semblant são disjuntivos. Gozo e semblant podem se dá é o do bigode de Hitler, tomado como modelo do traço
equivaler na dimensão do discurso, mas são distintos. unário, do einziegerzug, para a identificação, compreendido
• E termina esse ponto falando do provérbio Cherchez la aqui como
famme, procurem a mulher. E agrega: para ter a verdade de
um homem, seria bom saber quem é sua mulher, ou, para
pesar uma pessoa, não há nada como pesar sua mulher. Já
para a mulher...bem, não é a mesma coisa, visto sua enorme
liberdade com o semblant.
• Termina a aula com um dito no mínimo surpreendente.
Diz que talvez só seja lacaniano por ter estudado chinês no
passado. Refere-se a Mêncio (Meng Tzu, mestre Mêncio,
370 a.C – 289 a.C. Foi discípulo de Confúncio), cujo
discípulo diz: se não encontrardes algo do lado do discurso
(yen) não o procureis do lado do vosso espírito (ou coração, plus-de-gozar, vale dizer como a faceta de gozo do traço
hsin). E se não encontrardes do lado de vosso espírito, não o unário, sua subjacência sexual. É o que acontece com o
procureis do lado de vossa sensibilidade (tchi). discurso.

3.
Para Lacan, a sexualidade é importante desde o ponto de
vista do que ele chama de rapport sexuel, onde rapport tem
três sentidos: o mais antigo é o de relato, depois vem o de
proporção e, finalmente, o de relação. É nesses sentidos que
o rapport não existe, quer dizer, que não existe de forma
definitiva. Os infindáveis romances de amor estão aí para
provar que o relato definitivo nunca foi escrito; as
proporções entre o homem e a mulher são desequilibradas
e não existe a relação absolutamente satisfatória: nem bem
se termina uma e já se pensa na seguinte.

E, para examinar a diferença dos sexos, conforme ao seu


estilo de ir aos estremos, parte das posições transexuais,
lembrando que Robert Jesse Stoller, em suas Pesquisas
sobre a identidade sexual a partir do transexualismo, de
1979 (o Seminário é de 1971, mas a indicação... o original é
de 1968), deixa de fora, completamente, a face psicótica
desses casos. Ele não toma em consideração a forclusão
lacaniana.

No final, o que importa, é isso: o que define o homem é sua


relação com a mulher, e vice-versa. Para o menino, na idade
adulta, trata-se de parecer homem para a mulher; trata-se da
dimensão do semblant, uma dimensão comum, lembra
Lacan, aos vertebrados tetrápodes (os que tem quatro
membros), nos quais, na maioria dos casos, o macho é o
agente da exibição. A mulher é o alvo dessa exibição: ela
depende dessa exibição para sua excitação. Essa exibição
pode surgir também no discurso e é nesse nível que, para ela,
tratar-se-ia de um discurso que não seria do semblant. Então,
sem a cortesia animal, acontece o rapto, a violação, que
está tanto para o homem como para a mulher. – No acting-
out, é o semblant que passa à cena.

O discurso é o que permite o plus-de-gozar, tomado aqui


como o que está interdito no discurso sexual. E então ele
solta uma de suas invectivas picantes: Não há ato sexual. E,
quanto a mim, só posso entender que esteja se referindo ao
ato como sendo definitivo, porque os outros existem, e
fazem a fortuna dos motéis.

O mito de Édipo, o hipermito, como enuncia Lacan, mostra


como o Real se encarna no gozo sexual como impossível,
quer dizer, como algo que não sessa de não se escrever. É
assim que o Édipo designa o ser mítico, cujo gozo seria o de
todas as mulheres.
Então, para haver identificação sexual, não basta se
acreditar homem ou mulher, é preciso levar em conta que
existem mulheres para o menino, e que existem homens,
para a menina. Em outras palavras, o homem precisa
acreditar-se junto à mulher, e a mulher precisa acreditar-se
junto ao homem. E o importante é que, para os homens, a
menina é o falo, e é isso que os castra; para as mulheres, o
menino é o falo, e isso é o que as castra.

E esse falo, ele é o Real do gozo sexual, equivalente ao


nome-do-pai.

É depois de todas essas premissas que Lacan perguntará


pelo lugar fundador do semblant. Como resposta, dirá que a
mulher é a hora da verdade para o homem. O homem se
prepara por toda a vida para esse enfrentamento, muito
mais difícil do que enfrentar um rival. Lembrei de Acteon
morto por seus próprios cães quando quis alcançar
Ártemis/Diana.
É que enquanto, para o homem, semblant equivale a gozo,
para a mulher há uma disjunção entre esses dois
elementos; ela sabe que é semblant. E quando queremos
saber do homem, Lacan recomenda: - Cherchez la famme;
ela é a verdade do homem, embora, aqui, contudo, a
recíproca não seja verdadeira, porque a mulher tem uma
enorme liberdade com relação ao semblant. E como, neste
momento do seminário, há muitos risos, Lacan acrescenta: -
A mulher consegue dar peso até a um homem que não tem
nenhum.
4.
Essas são verdades de sempre, faladas boca a boca.
Quando surgem na literatura, ditas por alguém que sabe o
que diz, é preciso prestar atenção, como por exemplo
Baltazar Gracián, no seu L’homme de cour, de 1646, no qual
destaca a importância da prudência e da dissimulação (uma
variação do proposto por seu contemporâneo, o Cardeal
Mazarino: contém-te e abstém-te, equivalentes a simula e
dissimula, estando a simulação no lugar da prudência, com
o sentido de conhecer-se a si mesmo e a dissimulação no
sentido de conhecer ao outro.) Para tanto, diz Gracián, o
silêncio é o santuário da prudência, recomendando a
imitação de Deus, esse Deus que mantém todos os homens
em suspenso, e assim ser um santo, palavra que para ele
tem o mesmo sentido do ideograma chinês shénshèng, 神
聖 [神, Deus e 聖, santo], que quer dizer sagrado.

SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
10 de feveiro de 1971
III. [O] Contra [d]os linguistas
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
1º de setembro de 2020 1º de setembro/2020

• Lacan começa esta aula comentando sobre a greve1 que Lacan não tinha o costume de batizar cada uma das aulas
ocorria em Paris neste dia e diz: Não faltarei à presença de de seu seminário com um título. Deduzo então que cada um
vocês. Lacan fala de seu compromisso com seu público, e dos títulos das aulas constituintes de seus Seminários seja
que o que o leva a manter sua aula é a cortesia ou o yi, em coisa de seus editores. Não é má ideia! Ajuda o leitor a
chinês, ou seja, responder com imparcialidade; é uma das situar-se no tema a ser desenvolvido.
quatro virtudes fundamentais.2
Neste 3º capitulo pareceu-me conveniente modificá-lo,
• Lacan propõe ao seu público uma conversa familiar, justamente para dar uma noção mais precisa do tema a
diferente do que havia pensado em falar, em função de um seguir, pois, nele, Lacan, para os linguistas, é quase só
artigo saído no jornal que tratava sobre os investimentos na elogios. Então, o que proponho é substituir o proposto
Universidade, sobre o qual não parece muito de acordo. Diz "Contra os Linguístas", por O contra dos linguistas. O que
que sua guinada é o modo de levar em conta a greve. Lacan faz, neste momento, é valer-se da crítica que lhe
fazem os linguistas para dizer o que pretende: a importância
• Refere então que sua relação com a Universidade é da metáfora na construção da linguagem.
marginal, embora lhe deva respeito por ter sido acolhido por
ela. Menciona então os muitos ruídos incidentais, ecos e A crítica dos linguistas, na verdade, de alguns linguistas, é
murmúrios que têm chegado a ele desde o campo que Lacan, da linguística fazia um uso apenas metafórico.
universitário da linguística. E faz referência especialmente a
Uma das justificativas para tal, está na diferença entre sei a
um artigo de um linguista, que havia saído há 2 anos na
que me ater e sei onde me posicionar. Parece-me como se o
revista La nouvelle revue française (nº 163 de 10 de janeiro
importante fosse o objeto da observação, mais do que a
de 1969) [o linguista é Georges Mounin, e o artigo chama
posição do observador. O discurso da ciência, diz ele,
Quelques traits du style de Jacques Lacan], onde ele faz
repudia esse onde me posiciono. É porque a hipótese não
muitas críticas ao modo como Lacan empregou a linguística
se comprova que Newton teria criado a expressão
no campo da psicanálise. Mounin chamou o uso feito por
hypotheses non fingo; ele não a simula porque, enfim, como
Lacan dos conceitos lingüísticos de coloração estilística,
diziam os escolásticos, ex falso sequitur quodlibet, de uma
eque só é justificada pelo contexto intelectual da época. 3
premissa falsa podemos concluir uma apódose verdadeira.
O cientista precisa ter a coragem de abrir mão da hipótese
• Lacan lê neste artigo a sineta que teve que ouvir, embora
quando se comprova errada.
seja surdo, indicativo de que seu lugar não é sob a marquise
da universidade. Por outro lado, o importante é ater-se ao objeto em questão.
No caso, ao inconsciente. Daí sua formulação de saber que
• Daí passa a questão que considera relevante colocar o que se diz é o que não se pode dizer. Lacan é socrático no
neste momento: Será que se é estruturalista ou não quando seu só sei que não sei. Para compreender o inconsciente há
se é lingüista? E, daí, se diz funcionalista, referindo que o que valorizar o significante na construção da linguagem,
estruturalismo é uma coisa que serve de rótulo para dizer da pois não há metalinguagem, e é pelo referente nunca ser o
seriedade daqueles que se reservam o direito de falar sobre certo que se constrói a linguagem.
a linguagem. E busca examinar a relação da linguística com
o que ele ensina. Diz que é em torno do desenvolvimento Estamos todos lembrados de Lacan tomar suas bases na
lingüístico que sustenta o eixo do seu ensino e se faz um linguística de Saussure, invertendo seu signo linguístico,
uso metafórico da linguística, acusação desdenhosa de mas mantendo, porém, o valor da imagem acústica do
Mounin, é por reconhecer que só existe linguagem significante e identificando esta imagem com o Real
metafórica. Coisa que os linguístas parecem ignorar. Daí impossível de designar. É na busca de tornar possível esse
considerar abusivo reservar aos linguístas o direito de falar
impossível que se forma e desenvolve a linguagem, mesmo
da linguagem. E mais adiante, em dois momentos, diz: embora essa linguagem esteja prenhe de enganos. E são
justamente esses enganos que o levam a buscar apoio na
A linguística só pode ser uma metáfora que se fabrica de Teoria das Descrições, de Russel: é porque as descrições do
propósito para não funcionar e que a psicanálise desloca-se objeto são sempre enganosas, como mostra a lógica da
com todas as velas desfraldadas por essa mesma metáfora. linguagem-objeto, que nunca estamos certos sobre o
[pg.44 e 50] referente.

• Sustenta que, fala como psicanalista e se tem um É então que Lacan lembra de suas aulas de chinês, da
público que o escuta é porque algo ele sabe. E aí coloca nos função metafórica dos ideogramas. Pois bem, como eu não
seguintes termos o seu saber: Digamos que...Eu sei a que sei chinês, e meu conhecimento dessa língua é apenas
me ater, e faz diferença do enunciado, Sei onde me enciclopédico, minha crítica fica sempre com uma dúvida.
posiciono [pg. 40]. Quando ele está falando da ação, na parte 2, falando da

• Argumenta que ninguém sabe o que diz ao dizê-lo,


inação, do wúwéi,無為 [onde無 為
quer dizer não e traduz-
se por para], diz que todas as palavras [em chinês] são
ninguém tem o mapa, mapping, para dizer onde estamos.
monossilábicas, enquanto a enciclopédia diz que sim, que o
Entendo que aí Lacan aponta a duas vertentes. A primeira
chinês é considerado uma língua monossilábica, porque
ao fato de que não somos donos de nosso dizer e nunca
cada sílaba tem um sentido, mas as palavras, em geral, ela
podemos afirmar uma posição definitiva, na medida em que
acrescenta, são dissilábicas, aliás como vemos em seu
só sabemos do resultado ao final, seja de uma frase, de uma
próprio exemplo. Quando a escrita foi estabelecida, na
cura, de uma vida. Aí saberemos onde chegamos, logo, onde
China, por imposição do imperador Qin Shi Huangdi, no
estamos. Do contrário, estamos sempre no caminho, sem
terceiro século a.C., os dialetos permaneceram e, para um
saber bem aonde vamos chegar. A outra vertente, é o fato
mesmo signo, ideias, sentido e pronúncias diferentes foram
de que é só pela relação com o Outro que podemos situar
mantidas, e o valor final para sua compreensão vem dado
onde estamos.
pelo sentido do tema da conversação. É a isso que é preciso
ater-se.
• Aí se detém no discurso da ciência, que repudia esse
onde estamos, o incerto desse lugar, já que a toda hipótese
formulada busca a verificação da sua verdade, mas, alerta Em português, também acontece algo assim. A mesma
Lacan, isso nada prova a verdade da hipótese, pois na palavra, com a mesma pronúncia, pode ter sentidos
lógica, se pode tirar uma conclusão verdadeira de uma opostos, dependendo da entonação e do contexto.
premissa falsa. Formidável é um exemplo: pode significar tanto algo
maravilhoso, como algo desprezível, dependendo do que ela
• Ninguém pode afirmar: Sei o que digo. Isso foi o que a é for mi, como canta Charles Aznavour. Com a palavra
descoberta freudiana nos ensinou. Nenhum discurso é dono bárbaro acontece o mesmo, assim como com tantas outras.
da verdade. Ninguém sabe ao certo o que diz. Só sei que E sobre a importância do valor silábico, lembrei de um
nada sei, já dizia Sócrates E a causa disso está na própria exemplo de Freud, quando quer lembrar do nome da capital
estrutura da linguagem. de Monte Carlo e a palavra não lhe vem à consciência,
ficando retida na memória. Em seu esforço para lembra
• Diz que para a linguística ele está se lixando, o que lhe desse termo, lembrou-se do Rei Alberto, de suas façanhas,
importa é a linguagem, já que é com ela que lida quando faz de seu grande amor pelo mar que resultou naquele
uma psicanálise. [pg.43] importante museu oceanográfico, construído sobre o
penhasco, e de cujas janelas sempre se vê o mar. Lembrou
• O referente de um discurso é sempre real, por isso também, junto de Monte Carlo, de Piemonte, Albânia (logo
impossível de designar, e toda designação é metafórica. O substituída por Montenegro), mais Montevidéu e Cólico.
significante evoca um referente, mas nunca o certo e assim Reparou então que quatro das cinco palavras continham a
construímos uma linguagem. sílaba mon, sem nenhum significado, mas cujo
reconhecimento foi o suficiente para lembrar o nome da
• Lacan então trabalha o ideograma japonês wei, dizendo capital: Mônaco. A sílaba final estava em Cólico. Mas
que pode significar tanto agir ou ter a acepção de como, lembrou também que Mônaco é a palavra italiana para
servindo de conjunção para construir metáforas, ou seja, Munich, que em português dizemos Munique, cidade que
para referir-se a outra coisa. O verbo transforma-se numa estava ligada a um episódio de sua vida ao qual atribuiu a
conjunção. Diz Lacan: Quando uma coisa se refere a outra, função inibitória da lembrança.
da-se a maior amplitude, a maior flexibilidade ao uso eventual
desse termo, wei, o qual, no entanto, significa agir [pg. 44/45]. Na parte três, Lacan trata do discurso do capitalista, no qual,
E diz que isso lhe ajudou a generalizar a função do a partir do discurso do mestre, há uma inversão entre os
significante. E lembra a frase de Fausto, de Goethe: no lugares do semblante e da verdade.
princípio está a ação, dizendo que é o mesmo que diz São
João: no começo era o verbo; para dizer da força que está
contida no ato inaugural da palavra.

• Fala, então, da articulação dupla, (conceito que o


linguista Andrés Martinez formulou e que fala dos dois
níveis – morfemas e fonemas – que se articulam nas
palavras) e faz uma crítica a que numa língua como o
chinês, essa articulação é bem mais bizarra, já que os
fonemas, sozinhos, já tem significação e quando se juntam As consequências têm a ver com a relação do sujeito, $,
para formar uma palavra, esta não tem nenhuma relação com o gozo, a, o que, a bem dizer, interfere no propósito
com o que os fonemas significam. primeiro de um discurso que é o de fazer laço social, pelo
menos o laço social que se espera de uma análise, na qual o
• Menciona também dois conceitos criados pela reconhecimento do outro esteja em primeiro plano. O
linguística: competência e performance.4 exemplo que aí nos dá é o de Nixon, uma espécie de
máscara do verdadeiro Houphouët-Boigny, esse político,
• Discorre sobre o discurso do capitalista5, onde há uma presidente da Costa do Marfim, que construiu uma fortuna
troca de lugar dos elementos do semblant e da verdade. O de algo entre sete e onze bilhões de dólares às custas da
sujeito, colocado no lugar da verdade no discurso do mestre, miséria de seu país. Richard Nixon, em todo o caso, diz-se,
ocupa o lugar do semblante no discurso do capitalista, onde foi analisado, o que bem mostra os efeitos de uma análise
o S1, significante mestre, fica sob a barra, no lugar da levada a efeito sob o signo da perversão; e estou dizendo
verdade. perversão onde Lacan diz tratar-se de algo da ordem do
incurável.
(ver ao lado)

• Essa inversão, indicativa da relação do mestre moderno


(o capitalista), leva a uma ligação cruzada do sujeito com o
produto, mais-de-gozar, fazendo nascer o sujeito sem
limites, por estar nessa ligação cruzada em que o gozo não
cessa de se inscrever, o que levaria ao consumir-se na
busca incessante de produzir o gozo, onde o suporte do
mais-de-gozar é a metonímia. Na conferência de Milão,
Lacan dirá que o discurso capitalista é loucamente
astucioso e destinado a explodir.

• Isso se desprende de um discurso desenvolvido (o


discurso do capitalista). Mas o que é um discurso
desenvolvido para Lacan? Depois vai falar em lógica
subdesenvolvida. Outra interrogação para muitos.
• Diz: quando um discurso está suficientemente
desenvolvido, alguma coisa, da qual nada se sabe, e que
tem relação com o que chamou do hsing, da natureza, e
ming, decreto do céu, causa interesse. Em nosso campo,
isso é o sintoma:

O sintoma: é por ele que vocês se orientam, todos vocês. A


única coisa que lhes interessa e que não e um completo
fiasco, que não e simplesmente inepta como informação, e
aquilo que tem o semblante de sintoma, isto é, em principio,
coisas que nos dão sinal, mas das quais não
compreendemos nada. É só isso que há de seguro: há
coisas que nos dão sinal e das quais não compreendemos
nada [pg. 49].

• Por fim, nisso da natureza, no sintoma que não funciona,


tem algo de insatisfatório.

Notas:
1. Greve, vem do francês grève, terreno de areia ou cascalho a
beira do mar ou beira-rio. Era na Place de Grève (hoje Place de
l'Hôtel-de-Ville), na margem do rio Sena, e Paris, onde se reuniam
os trabalhadores sem emprego ou insatisfeitos com seu trabalho,
deu origem a palavra greve.
2. Na minha pesquisa, encontrei que Yi é justiça, e faz parte de dois
conjuntos de conceitos fundamentais: o Sizi, com quatro elementos:
忠 孝 节
(Zhong ( , lealdade), Xiao ( , a piedade filial), Jie ( , continência)
e o Yi, e também do Wuchang, com cinco elementos: Ren (a
Humanidade), Li (ritual), Zhi, (conhecimento) e Xin (integridade) e
Yi (justiça). Podemos equivaler o responder com imparcialidade, de
Lacan a justiça
3. Cardoso, Maurício José d’Escragnolle. Retorno sobre a influência
de Saussure sobre Lacan. Artigo publicado na revista Analytica
(São João del Rey), v.1, n.1, de junho/dezembro de 2012,
4. Na obra Aspectos da Teoria da Sintaxe, publicada em 1965,
Chomsky define como competência o conhecimento que o falante-
ouvinte possui da estrutura da língua e desempenho como o uso
concreto que ele faz da língua, mas o considera uma realização
imperfeita oriunda de fatores físicos e psicológicos.
5. O matema deste discurso foi apesentado na conferência de
Milão, em 1972: http://espace.freud.pagesperso-
orange.fr/topos/psycha/psysem/italie.htm

SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
17 de feveiro de 1971
IV. O Escrito e a Verdade
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
15 de setembro/2020 15 de setembro/2020

• Lacan inicia essa aula apresentando uma formulação Lacan continua, neste capítulo, o relato de seus amores
de Meng-Tzu (Mêncio) escrita no quadro-negro. com o chinês. Ajuda-lhe a ressaltar a importância do
• Ele segue ocupado com a questão: qual é a função da escrito frente a sua interpretação particular da
escrita?(pg. 52)1. Sobre a inscrição, dirá que ela designa linguagem. Digo particular porque, da langage, o Petit
o seguinte: Robert diz ser um sistema de signos vocais (parole) e,
eventualmente, de signos gráficos (écriture). Sim, os
signos gráficos são eventuais, mas não excluem o escrito
Tudo o que está sob o céu [T’ien hsia], não é da linguagem. O registro disso me parece importante
outra coisa que a designação da fala, [yen, que justamente para reforçar a importância da escrita.
pode ser entendida como a natureza], a
natureza do ser falante (pg.54), que se identifica No segundo logograma da primeira frase do mestre
pela linguagem, e que em relação à natureza do
animal, tem uma diferença infinita. Quanto aos
Meng, 下 , tiān, Lacan traduz esse ideograma como
parole, a fala, mas também, como ele mesmo diz mais
efeitos do discurso que está sob o céu, destaca a adiante, pode ser traduzida como linguagem. Aliás, toda
função da causa, que é o mais-de-gozar. E os a frase da primeira coluna da direita
ideogramas tse ku, refere-se a em consequência
da causa.

• Nesta aula, sua preocupação é com a causa.


• Aí, Lacan novamente afirma que a linguagem adquire
sua importância, na medida em que tudo a que se refere
é sempre de modo indireto, ou seja, o mesmo que disse pode ser lida como A linguagem do mundo também é.
na aula anterior a respeito do uso metafórico da
linguagem. Em todo o caso, o importante é que o escrito serve como
• Faz uma critica ao livro The Meaning of Meaning2, O uma referência estável, tal como reza o ditado
sentido do sentido (1923), do educador Ivo Armstrong medieval, verba volant, scripta manent. E uma variante
Richards e do lingüista Charles Kay Ogden, ambos desse mesmo brocardo é muito exemplificadora:
ingleses, que, sustenta o princípio, a partir do Sit verbum vox viva licet, vox mortum scriptum,
positivismo-lógico, de que o texto tenha um sentido scripta diu vivunt, non ita verba diu.
apreensível (pg.54) e que uma coisa que não tem sentido, (É verdade que a palavra é viva voz e que o escrito é voz
não pode ser essencial no desenvolvimento de um morta,
discurso (pg. 55), logo, não podemos tirar proveito do Mas o que é escrito vive muito e o que é dito, nem tanto.)
que, a priori, não tem sentido. Ora, Lacan mostra que se
assim fosse, primeiro que não mais poderíamos nos A importância da linguagem é que tudo o que se refere
valer do discurso matemático, que, de todos, é o a ela, vem de um modo indireto. Haja visto a dificuldade
desenvolvido com maior rigor. E, lógico, em nosso com as traduções: o que na tradução brasileira, e ao
campo, se déssemos valor a esse princípio perdemos fio
da meada [pg.55].
espanhol também, 則故 , aparece como Tse ku, na
versão francesa, de Staferla, aparece como Zé gù, uma
• Daí dirá que o essencial é atentar à função do escrito. versão mais próxima da pronúncia atual.
• Situa, então, o discurso do analista como sendo a
lógica da ação, da ação do analista, logicamente, e diz Então, como parece impossível dizer exatamente o
que o fato de ter escrito o discurso é o que fez muitos pretendido, o escrito fica como uma referência fixa
não entenderem o que estava ali. Aí faz uma diferença sobre a qual se pode discutir. Para Lacan, em Zé gù
entre o escrito e a fala. Esta, a fala, abre caminho ao
escrito, e o escrito exigirá inserir nele uma fala para que trata-se da consequência [ 則
] da causa [ 故
]. Mas gù
possamos entendê-lo. também pode ser traduzido por portanto, o que deixa o
conjunto sem sentido, enquanto para causa, motivo, o
原因 ,Yuányῑn, formado por
• Lacan parece estar de acordo ao provérbio em latim
Verba volant, scripta manent, e diz que mesmo que se chinês usa os ideogramas
escreva uma porção de coisas que ninguém entenda,
está escrito. E justifica assim o nome que deu ao seu
原 ,Yuán, original, e por 因 , Yῑn, porque. Daí que a
Escritos. Escritos que levam a grafos, a esquemas, que segunda
só podem ser compreendidos com um discurso que tem
seu estilo, sempre particular, qual seja, fale, fale e
combine coisas, pois é a fala que abre a trilha desses
grafos. Só o tagarelar abre a Caixa de Pandora, de onde
saem todos os dons da linguagem (pg. 58), dirá Lacan. E
agrega que, como a função definida pelo discurso
analítico não é livre, mas ligada por condições que são Coluna também pode ser traduzida como então acabou.
as do consultório analítico, cujo motor está ligado ao
Sujeito suposto Saber, que define, não só a transferência, 2.
mas o fato de supor que o psicanalista sabe o que faz. Na parte dois começa dizendo que o discurso do analista
• No seguimento de diferenciar o escrito da linguagem, é a lógica da ação e
Lacan lembra que o escrito é segundo, vem depois da
linguagem falada, mas que só se constitui a lógica a
partir do escrito. Daí que pensar a relação3, só é
possível com a escrita. a b
que é difícil de entender justamente por estar escrito,
• Nesse modelo de escrita, predomina a lógica da afirmando que a fala abre o caminho para o escrito. Pois
dualidade, e Lacan dirá que isso vem do modelo dos foi buscando um exemplo disso que lembrei da
signos chineses yin e yang (os princípios femino e construção da Torá: Quando Moisés a recebeu no monte
masculino). Com o discurso analítico, mais Sinai, uma parte chegou por escrito e outra por via oral,
especificamente, a função do falo, torna insustentável a que não se podia escrever, sendo repetida, de geração
bipolaridade sexual. O falo não se refere tanto a em geração, por 400 anos, até ser compilada na mesma
representar a falta de significante (como alguns língua em que a Torá foi escrita, a hebraica,
acreditam, diz Lacan), mas a sua função de fazer constituindo a parte do Talmude conhecido como
obstáculo a uma relação, e esse obstáculo se refere a sua Mishná, que contém a lei fundamental. As discussões
relação com o gozo, que nada tem a ver com a função sobre esta geram a Guemará, que são as opiniões e os
fisiológica sexual, mas desse gozo que tem relação com ensinamentos dos antigos sábios. Neste exemplo,
o real: o gozo feminino. Volto ao que Lacan disse na também usado por Lacan alguns anos após este
segunda aula: para os homens, a menina é o falo, e é isso Seminário, em 1978, parte-se de um escrito. Nós, aqui,
que os castra. Para as mulheres, o menino é a mesma também estamos partindo de um escrito; melhor,
coisa, o falo, e ele é também o que as castra [pg.33]. estamos partindo de uma fala, sobre um escrito, que
• A inscrição do falo está diretamente associada a gerou outro escrito, e outra fala.
passagem do SER ao TER, sendo essa passagem
condicionada à castração, que é o instaura a lei sexual, Tempos atrás, quando me detive neste tema das origens,
substituta de tudo que está no campo da relação sexual. imaginei também que se partia de um escrito: imerso
Esta lei, diz Lacan, é coerente em todo o registro do que na natureza, o homem começou a construir sua cultura
se chama desejo e do que se chama proibição. O lendo os rastros deixados pelos animais e mesmo pelas
proibido é o que aciona o desejo. intempéries. Membro da espécie animal que é, quis
• Da questão falo, desejo, lei sexual, Lacan desliza para deixar rastros também, ou, quiçá, escondê-los atrás de
mito freudiano do Totem e tabu, e vai valer-se do outros mais sofisticados, e para isso inventou a escrita.
esquema das proposições universais e particulares, Daí, à Babel, um passo.
afirmativas e negativas de Chalrles Sanders Pierce para
abordar, de forma lógica, a questão de não há um A psicanálise propõe um caminho inverso: com a regra
universal da mulher, logo, o [pg.64]. Logo, o mito Totem analítica busca-se os rastros escondidos. E isso é
e tabu, de um pai da horda que goza de todas as possível graças a livre associação. Lacan a toma como
mulheres, está fundado sob a estrutura da ficção. Como, falácia, porque sabe que ela não é livre, mas não
segundo J. Bentham4, a verdade tem estrutura de ficção, podemos esquecer que quando Freud a propôs, ela veio
temos ai uma verdade. no sentido de ser livre de uma imposição, não era mais
• Encaminhando para o final da aula, traz a questão da a hipnose. O analista não proporia nenhum estímulo.
verdade: de onde se interroga a verdade? É que a verdade Antes, atenderia a indicação de Anna O.: - Deixe-me
pode dizer tudo o que quiser. É o oráculo. [pg.66] Lembra falar! Esse é o sentido freudiano da livre associação.
o seu escrito A coisa freudiana, onde já havia enunciado Mas Lacan, leitor de Freud, lembra que as associações
que a verdade fala eu.[pg.66] No referido texto, Lacan são ligadas. É interessante que, para chegar a isso, ele
formula um pouco diferente. Lá escreve: eu, a verdade, tome os termos freudianos de energia livre, própria do
falo.5 Isso tudo é para chamar a atenção de que só temos sistema ics, e de energia ligada, própria do sistema
acesso a verdade, ou melhor, só podemos dizer que algo cs/pcs.
é mentira ou verdade, a parir do escrito, pois quando se
fala, é muito difícil apontar a contradição. Na fala, a Quanto à transferência possibilitadora dessas
verdade só irá aparecer desencadeada, ou seja, no associações, Lacan menciona uma suspeita de que o SSS
momento em que ela irrompe da cadeia discursiva seria uma base insustentável para ela. Pois estou de
como, por exemplo, via lapsos, ou atos falhos. acordo com ele. Também acredito que o SSS seja uma
• E vai concluir com uma pontuação interessantíssima. boa base para a transferência, embora minha
A liberdade só existe e se justifica pela inexistência da argumentação seja um tanto diferente da dele: entendo
relação sexual. O desejo insatisfeito está sempre a que, para o analisante, a suposição seja de que o
impossibilitar a conjunção perfeita do homem com a analista sabe dele (e muitos acreditam que devam
mulher. Diz assim: Se houvesse um homem para quem A corresponder a esta expectativa), enquanto que o saber
mulher existisse, seria uma maravilha, teríamos certeza do analista é, ou deveria ser, da teoria analítica que lhe
de seu desejo. [pg.70] À essa elucubração feminina, serve, não para reencontrá-la no discurso do analisante,
responde-se com a formulação romântica Era fatal, mas sim para possibilitar ao analisante suas próprias
estava escrito! Ou seja, isto só existe no escrito. descobertas concorrentes ao desser, ao desêtre.
_____________
Notas: 3.
1. Por isso o interesse de Lacan nos ideogramas chineses, pois eles Neste caminho, há como que um tropeço na questão da
são sinais gráficos que representam palavras ou conceitos. Não é sexuação. As diferenças em torno ao falo não terminam
uma leitura direta.
2. O significado do significado: um estudo da influência da
de gerar novas questões. Como diz Lacan, não por acaso
linguagem sobre o pensamento e da ciência do simbolismo (1923), justamente na parte três, a linguagem tem seu campo
livro de CK Ogden e IA Richards. Richards apresenta uma teoria reservado na hiâncias [na abertura] da relação sexual,
contextual de Signos: que Palavras e Coisas estão conectadas por tal como o falo a deixa aberta. E a continuação de sua
meio de sua ocorrência junto com as coisas, sua ligação com elas em
frase é surpreendente: o que ele [o falo] introduz não são
um 'contexto' em que os Símbolos passam a desempenhar um papel
importante em nossa vida [até] a fonte de todo nosso poder sobre o dois termos que se definem pelo masculino e pelo
mundo externo(47). Neste sistema de contexto, Richards desenvolve feminino, mas a escolha que há entre termos de natureza
uma semiótica tripartida - símbolo, pensamento e referente com e função muito diferentes que se chamam ser e ter. É por
três relações entre eles (pensamento para símbolo = correto, aí que passa a castração simbólica.
pensamento – referente = adequado, símbolo– referência=
verdadeiro) (11). Símbolos são aqueles signos que os homens usam
para se comunicarem e como instrumentos de pensamento, ocupam
um lugar peculiar (23). Toda simbolização discursiva envolve [...]
entrelaçar contextos em contextos mais elevados (220). Portanto,
para que uma palavra seja entendida é necessário que forme um
contexto com outras experiências.
3. Uma relação é um vínculo ou uma correspondência. No caso da
relação matemática, trata-se da correspondência que existe entre
dois conjuntos: a cada elemento do primeiro conjunto corresponde
pelo menos um elemento do segundo conjunto. Quando a cada
elemento de um conjunto corresponde unicamente um ou outro,
fala-se de função. Isto significa que as funções matemáticas são
sempre, por sua vez, relações matemáticas, mas que as relações
nem sempre são funções.
4. Filósofo e jurista inglês (1748 – 1832),
5. Lacan, J. La cosa freudiana . In: Escritos. Siglo Veintiuno Editores,
Argentina,1987.

SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
10 de março de 1971
V. O Escrito e a Fala
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
29 de setembro de 2020 29 de setembro de 2020

• Não é por acaso que no título dessa aula, o escrito Introdução


está colocado antes da fala. Lacan já havia dito que a
fala é primeira e depois vem o escrito. Nessa aula, Lacan sabe mesmo como épater le bourgeois. Ora,
Lacan parece apontar que essa relação é um pouco mais perguntar se está presente quando fala em seu
complexa do que parece. Estamos sempre as voltas da Seminário? Verdade que 12 anos depois, em 1983, no
questão: o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? filme Flashdance, de Adrian Lyne, a personagem
Alexandra Owens, interpretada por Jennifer Beals, uma
• Como se relacionam essas duas ordens de operária da indústria do aço que à noite vai dançar em
representação? Essa parece ser o eixo dessa aula. Vai uma boate, sobre seu momento bailarina diz que é
examinar a questão de como a leitura de um escrito tem como se ela não estivesse ali, como se não fosse ela. Um
influência na criação de uma língua. Para tanto, momento de despersonalização? Não! Como diz Lacan,
examina a relação da língua japonesa, e seus trata-se da interpretação de uma ausência, trata-se da
ideogramas, com a língua chinesa. O diferente modo de abrangência da achose, cuja representação é sempre
escrita leva a diferente pronuncias, logo, gera uma fala difícil. Lembrou-me da representação do zero: embora
diferente. Afirma que nunca falamos senão a partir da intuído ainda antes da era cristã, por babilônios e
escrita [pg.86] e, indo ao grão da questão, aponta a uma astecas, que o representavam ou por um espaço vazio
relação dialética entre fala e escrito, onde é possível que ou por um desenho de um homem com a cabeça para
seja na leitura do que está escrito – lembrem que Lacan trás, a representação atual só apareceu, na Europa, no
diz que o significante está na natureza – que se geram século X. A dificuldade para sua aceitação devia-se ao
palavras, ou seja, se gera mais fala. Assim disse: fato de abrir caminho para os números negativos,
resultantes das subtrações. Na achose, o que é subtraído
Por ser a representação da fala, (...) a escrita é é o petit a. E, se ele não está, o que resta no lugar é o ato
algo que se constata não ser uma simples sexual visto como castração. Alguns anos atrás, 40 anos
representação. Representação também significa atrás, ao criticar um artigo de um analista didata, da
repercussão, porque não é nada certo que, sem a IPA, no qual comparava os efeitos da análise, como os
escrita, houvesse palavras. Talvez seja a efeitos de ficar da fila, esperando por atendimento, e
representação como tal que cria essas palavras. que os resultados eram os mesmos, disse de seu
[pg.84] reconhecimento de que em sua análise não havia lyse,
não havia a lisina propiciadora da cura. Lacan o diz
• Lacan inicia essa aula examinando a relação da fala aqui de uma maneira mais arguta: Anagramaticamente,
com o que chamou acoisa. Alerta que o ato de falar é ele diz que n’a lyse, a menos que concerna à castração.
indicativo de que a coisa (em si) da qual eu falo esteja
ausente, ou seja, desde o efeito da castração quando, E o lero lero filosófico, se não serve para muita coisa, diz
perdido a coisa, o objeto pequeno a, fica a marca dessa ele, acabou produzindo o Dasein, a clareira do ser, que
ausência que Lacan escreve como acoisa, tudo junto. ele diz traduzir-se ao francês por présence, a presença.
Então Lacan lembra que, ao tratar da Carta Roubada, de
• Questiona o Dasein heiddegeriano, como presença do Poe – antes de tudo um escrito –, ele termina por jacular
Ser, já que, para Lacan, a única maneira de ser aí é Mange ton Dasein, o que deixou o Ministro em má
colocar-se entre parênteses. [pg.72] situação. E esse ser-aí, essa presença, ele o desencarna
por meio da epoché, que, para ele, é o equivalente a
• Leio nesses comentários de Lacan sua a aproximação colocar entre parênteses. Está bem, mas temos de
a esse conceito hegeliano da Aufhebung, a superação lembrar que a epoché, é antes de tudo, uma suspensão
conservadora, que aponta que a essência da coisa está do juízo, um repouso mental que pode chegar até a
ali, mesmo na sua ausência. Mas, só se há ausência, ataraxia. Mas que esse, enfim, é o jeito de ser-aí. Persiste
outra coisa, a palavra, pode surgir. Nunca falamos senão o recurso metafórico para dizer como são as coisas e
de outra coisa para falar da acoisa. [pg.72] Diz Lacan. E mais ainda as achose.
afirma: a fala sempre ultrapassa o falante, o falante é um
falado 1.
[pg.73] Lacan diz aqui que, de certo modo, a escrita mais
precisa é a do grafo.
• Tudo gira em torno de como representar esse furo
que está no nível da acoisa, já que nunca podemos falar
da acoisa de modo direto.

• E, conclui a parte 1 da aula dizendo que a acoisa,


justamente não se mostra, se demonstra. [pg. 73] Daí seu
valor a escritura.

• Lembra, então, o grafo da Subversão do Sujeito para


dizer que se a escrita serve para alguma coisa, é
justamente na medida em que é diferente da fala.
Escrita e representação de palavras, [pg,79] e lembra E isso é assim pq a fala pode apoiar-se nela. O grafo
que já Freud havia indicado algo disso com sua permite que tenhamos uma percepção sincrônica do
Wortvostellung (representação de palavra), porém, todo do qual falamos diacronicamente. Quando falamos
Lacan diz que há uma diferença em relação a Freud, na do significante da falta no Outro [S(A/)], por sobre o
medida em que para Lacan a representação de palavras grafo, vemos que ele não é sem sem a fórmula da
é a escrita. [pg.80]1 demanda [$<>D], por exemplo.

• A escrita tem a capacidade de, numa única Para dizer da importância do escrito, Lacan lembra de
demonstração, conter diversos elementos que James Février e seus estudos sobre Palmyra, uma cidade
compõem, que presentificam, pelas letras – que ele diz situada no centro da Síria, desde 2000 anos antes de
que é o cumulo do escrito [pg.76] –, a lógica da nossa era, onde foram encontrados textos de Armoritas,
existência do ser. Mas a escrita, necessariamente, vai Arameus e Árabes, além de Palmyreano, os quais
repercutir na fala, que só pode, diacronicamente, permitiram ao historiador1 muitas leituras. Mal sabia
interpretar o escrito. Mas nem tudo não se pode Lacan que, nesse presente século, as maravilhas dessa
escrever. Daí sua afirmativa de Lacan de que não há cidade foram quase todas destruídas, entre os anos 15 e
relação sexual, já que esta é a própria fala, mas não há 17. E, claro, também lembra da importância, para tudo
nenhum modo de escrevê-la. [pg.77] isso, da geometria euclidiana.

• E por quê demonstrar? Muitas vezes se mostram 2.


coisas que as pessoas não vêem. Daí que vai, no final da Se há pouco Lacan equivalia o verbo e a ação, aqui,
aula, remeter ao texto da Carta roubada, de Poe (que ele agora, ficará com São João. Afinal, a presença, na qual
prefere chamar de a carta não reclamada). Há coisas está interessado, é logocêntrica.
que estão aí, mas não podemos vê-las. A carta, recebida
pela rainha, é tomada como sinônimo do falo que E essa fala, à qual se refere, é como se tivesse a força
circula, do seu conteúdo nada sabemos. mágica de um abracadabra, não fosse o tempo medido
para tal em éons. Então, se existe relação sexual, tem de
• Para dizer do quanto nada sabemos de como ser na própria fala, porque, para escrevê-la, ainda não
escrever a relação sexual, Lacan faz um paralelo com a se encontrou forma, uma esperança, contudo, não
escrita do campo gravitacional de Newton. É algo que abandonada por Lacan. Por isso cita François Jacob2, um
sabemos que existe, mas não vemos. Diferente do médico geneticista que ganhou o Nobel de medicina e
campo eletromagnético que gera imagem. Porém, fisiologia, por seus estudos genéticos, em 1965. Ele
Newton escreveu uma formula para descrever o campo descobriu nas bactérias genes reguladores, capazes de
gravitacional o que permitiu fazer uma série de controlar outros genes, os estruturais. Enfim, tudo é
proposições e cálculos que gerou avanço científico. Com animal!
essa fórmula, foi possível ir à lua.2
3.
Lacan agora insiste com exemplos de escritas geradoras
• Sabemos do falo, esse significante que representa o de fala, e apoia-se nos estudos de Alfred Métraux3 que,
desejo do homem, ou melhor, representa o vestígio da em 1940, publicou o seu A Ilha da Páscoa, com sua
coisa que, como se inscreve como falta e gera, assim, o tentativa de decifração da escrita rongorongo da língua
desejo, na medida que ele vai estar sempre no lugar rapa nui dos pascuenses, enfatizando que não foi por
onde se supõem que completaria a relação sexual e só não ter tido sucesso que não teve importância. Muitos
aparece na própria fala para em seguida desvanecer. estudos seguintes apoiaram-se nos seus.

• Escrever a relação sexual seria, então, algo como


fixá-la em uma fórmula. Assim que esse passo segue
como um desafio para a psicanálise.
_________________
Notas:
1.Uma das escritas que ainda não foram plenamente
decifradas são os glifos da Ilha da Páscoa (Chile). Lacan
cita o estudo de Alfred Métraux. Mais recentemente
(1996), o antropólogo americano Steven Fischer diz ter
decifrado textos dos pascoenses. Segundo Fischer, os
escritos rongorongo são uma espécie de canto
cosmológico utilizado pelos sacerdotes da ilha, no século
18. Durante seis anos, o antropólogo estudou tábuas de
escrita rongorongo guardadas em museus. Foi o texto de
uma tábua de 1,26 m por 6,5 cm, do Museu de História
Natural do Chile, que forneceu a Fischer os elementos
para compreender a escrita. O antropólogo chegou à
conclusão de que cada uma das partes em que se dividia
a tábua, inclusive os ideogramas, estava separada por Um close das inscrições do Tablete Pequeno de Santiago,
um sufixo (parte da palavra que vem depois do radical e mostrando partes das linhas 3 (embaixo) a 7 (acima). Os
que serve para flexioná-la). O sufixo era a glifos das linhas 3, 5 e 7 estão de cabeça para cima,
representação estilizada de um pênis, o que na língua enquanto os das linhas 4 e 6 seguem de cabeça para
baixo.
rongorongo serve como elemento aglutinador dos
ideogramas - isto é, os liga uns aos outros para dar Similarmente, ele também apoiou-se nos estudos de
sentido ao texto. Na primeira frase da tábua, um Freud. Então dizer que Freud não concorda com ele, é
pássaro, seguido de um pênis, de um peixe e de um sol, só uma piada, e de mau gosto. Quando Freud, em seu
pode ser traduzida como: Todos os pássaros copularam estudo sobre o inconsciente usa a expressão
com os peixes e de sua união nasceu o sol. (fonte: Folha representação palavra, é para diferençar da
de São Paulo, 14 de junho de 1996). representação afetiva. Uma diferença importante para
2. A teoria da gravitação de Newton afirma que os dizer sobre o que a repressão tem poder de ação e onde
corpos se atraem mutuamente em razão de sua massa, é inócua.
mesmo que não estejam em contato direto. Foi com essa
ideia de ação a distância que Newton conseguiu dar Depois, quando se refere aos estudos Xu-Shen, autor do
uma explicação para o “sistema do mundo” e a fórmula
é
Shuō wén Jiě zì [ 说⽂解字 – explicar palavras], diz dos
primeiros estudos sobre a estrutura dos caracteres
chineses. Não preciso dizer que a tradução desse
seminário ao português deixa muitas dúvidas. Verdade
que a leitura dos logogramas chineses, por Lacan,
também. Então não sei, se quando ele usa o signo wen

[ ] e o traduz como o signo da civilização, ele está se
referindo ao que é, ou ao que ele pensa que é! Se tivesse
que traduzir esse signo, diria simplesmente texto. Mas
reconheço que com a palavra texto podemos dizer
muitas coisas diferentes.

Em suma, importa o que está escrito. Como se lê, será


sempre uma outra questão. Verdade que Lacan diz da
importância da palavra para poder dizer do escrito: a
palavra também tinha que já estar disponível. Tempos
atrás, escrevendo sobre o assunto, disse que o escrito
podia ser o rastro de um animal, um cheiro, um
desenho de estrelas no céu. Não por nada o mestre
quando fala desses passos, registra-os em éons. Para
exemplificar a questão da leitura, menciona a leitura
japonesa dos ideogramas chineses, pois a língua
japonesa tomou os caracteres chineses (Kanji) para sua
escrita. Por isso, em japonês, há duas maneiras de ler.
Quando a pronúncia repousa estritamente sobre o
fonema do caractere chinês e não evoca em nada o
japonês, uma vez que não significa nada nessa língua,
diz-se On-Yomi. Mas há também uma tradução japonesa
historicamente fixada, na qual buscam dizer o que o
caractere chinês quer dizer. Essas duas escrituras,
chamadas Kun-Yomi (Yomi = leitura), coexistem, lado a
lado em um texto. Os caracteres chineses são
acompanhados, redobrados, da escrita de sua
pronúncia, logo de sua leitura. É por isso que Lacan, em
Lituraterre, escreve que no Japão o sujeito está dividido,
como em todo lugar, pela língua, mas um de seus
registros pode se satisfazer com a referência à escrita, e o
outro à fala. O On-Yomi é a referência à letra, enquanto
que o Kun-Yomi faz referência ao Outro da fala.
Depois dessa diferenciação, Lacan dirá que não há
metalinguagem porque sempre falamos a partir da
escrita.

4.
Por fim, uma breve alusão ao seu texto sobre A carta
roubada, na qual equipara a carta ao corpo da mulher,
ao corpo da Rainha, por que não!
__________________
Notas:
1. James Février: Histoire de l’écriture, Paris, Payot , 1948.
2. François Jacob, O Rato, a Mosca e o Homem. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998, 160p.
3. Alfred Métrux. A Ilha da Páscoa. E. Fermi, 1940 (1ª ed.).

SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
17 de março de 1971
VI. De uma função para não escrever
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
20 de outubro de 2020 20 de outubro de 2020

Introdução
Não existe nenhum caminho A abertura dessa aula é dedicada a chamar a atenção
lógico dos alunos para a importância da leitura de A Carta
Para a descoberta das leis do
Universo;
Roubada, de Poe. Para tanto, ele começa fazendo os
O único caminho é a intuição. estudantes rir. É como se ele seguisse a orientação de
ALBERT EINSTEIN Balthasar Garcian y Morales: Pense como a minoria e
• Nesta aula, Lacan ocupa fale como a maioria.
boa parte dela retomando seu seminário A carta
roubada, de 1966, no caminho de examinar a função do 1.
falo, articulada a um certo discurso [pg.90], buscando Ocupado com a função do falo, a atenção, aqui, está
sua relação com a letra. Segue ocupado em estabelecer a dedicada a um detalhe da descrição – feita pelo Chefe de
relação da fala e do escrito e, mais especificamente, ao Polícia –, do Ministro D: who dares all things, those
que há de especial na função do escrito em relação a unbecoming as well as those becoming a man. Na
qualquer discurso [pg. 93]. tradução de José Paulo Paes, que a tradutora do
Seminário muito teria aproveitado, se a conhecesse, a
• Para o discurso, diz Lacan, uma estrutura de quatro descrição do ladrão está assim: [um tipo] que se atreve a
elementos pode sustentar a possibilidade da sua tudo, tanto ao que é próprio quanto ao que é impróprio
inscrição. Isso é o que ele fez quando escreveu os seus de um homem. Se a formulação deve ser tomada em
quatro discursos. Já a inscrição da letra, que marca a bloco, conforme a recomendação do Mestre, então a
impossibilidade de escrever a relação sexual, parte do tradução de Paes obedece mais ao nosso jeito de falar,
fato que da letra/carta, nada sabemos, a não ser que ela circunstância em que a dignidade sempre vem na
tem um sentido, que é chegar ao seu destino, mesmo frente, como um ideal. Quanto ao verbo To dare,
que, em última instância – e isso serve para qualquer contudo, estou de acordo; ainda que atrever-se esteja
carta – nada se compreenda dela. O importante é o correto, ousar é sua primeira tradução e, no caso, a de
efeito que a carta produz ao passar de mão em mão. maior pertinência. Embora sinônimos, atrever-se deriva
Nada se sabe de seu conteúdo, apenas que a carta de trĭbŭĕre sibi, atribuir-se (a capacidade de fazer algo),
feminiza, ao declarar aquele que a possui, como um ser- enquanto ousar deriva de audērĕ, desejar, querer, como
em-falta. Isso, na medida em que o que a possui nada em audērĕ sapere. A impropriedade apontada tanto pelo
sabe do que ali está escrito, apenas sabe que detê-la lhe Prefect, como por Lacan, não se refere tanto ao ousar as
dá poder. Eis sua função fálica. Esse nada saber da letra, things, mas, sim, antes, a ousar, quer dizer, a desejar all
equivale a condição de alienação a esse significante da tings. O problema, que lhe afeta o caráter, está em
falta, o falo. querer tudo, pois reparamos o destaque dado por Lacan
à importância de poder mirar, o que pressupõe um
• Sobre essa relação entre o nada saber e o como alvo. Depois de roubar a carta, o Ministro prolongou-se
escrever a relação sexual, faz Lacan se aproximar da na sua posse por dezoito meses, findo os quais ele já
interrogação sobre se tudo o que se pensa está fundado nem se lembrava dela. Lembrar-se-ia apenas quando a
na lógica, que gerou o raciocínio matemático, ou se Rainha, agora devolvida à sua posse, mudasse de
resta uma intuição original da qual nada sabemos posição. Uso o verbo prolongar valendo-me da sugestão
dizer? de Lacan ao criticar a tradução de Baudelaire de
purloined por volée, roubada, quando valoriza o prefixo
• Dessa distinção entre intuir e raciocinar, Lacan vai pur que aparece também, por exemplo, em purpose,
aproximar a questão do espaço euclidiano, fundado nas propósito e também do francês antigo loigner, mais o
três dimensões (ALP) para dizer que este pode sustentar prefixo latino pro, que permite dizer, em português,
um discurso, na medida em que podemos tomar até carta prolongada, o que dá a entender a importância do
quatro elementos no espaço e verificar que podem estar en soufrance da carta, mas que certamente leva a perder
a uma distância igual um do outro. Porém, dirá Lacan, o impacto do roubo. É preciso saber no que mirar. Por
se tomamos cinco pontos, a teoria euclidiana não se isso, título é uma coisa, conteúdo é outra. Assim, quando
sustenta mais. Daí, é preciso invocar uma quarta nos defrontamos com um ditado do tipo vive mais quem
dimensão espacial, algo ainda não provado, sendo, até o ousa mais, seria preciso acrescentar o alvo em questão.
momento, apenas intuído. Há também, a propósito, uma certa similaridade
acústica entre ousar e ousia. Embora Lacan não faça
aqui esta transposição, mais adiante, no último
apartado desta aula, ele irá dizer que a importância da
ousia, quer dizer, da essência, está na lógica, na
discriminação lógica.

2.
Examinada no texto de 1956, a tradução do título de
Poe, por Baudelaire, volta a ser discutida, de forma mais
clara, nesta aula de 1971, quatorze anos depois. O que
teria permitido a posse da carta, pelo Ministro D,
prolongada por tanto tempo? Como na física, Lacan, ao
tempo, associa o espaço e os estudos de geometria
Hipercubo, conhecido também como Tesseract, que é
delimitado por figuras tridimiencionais. desenvolvidos desde Euclides, ainda que dissociados dos
conhecimentos filosóficos, até encontrar-se com Luizen
• Para além do tetraedro, a intuição já tem que se Egbertus Jean Brouwer, um matemático holandês que
apoiar na letra [pg. 95], dirá Lacan. O que isso quer valoriza a multiunidade. Há o um, e outro um, e outro
dizer? Suponho que essa letra a que se refere Lacan é um; múltiplos um e não múltiplos de um. Mas Brouwer
justo esse significante que não podemos designar para é também um intuicionista, ainda que valorizando a
definir A mulher. E, faz uma conexão entre a carta de intuição de modo diferente do de Kant. O modo
Poe - com sua função feminizante, já que a carta existe matemático da polícia, preciso, examinando todos os
para uma mulher (a Rainha), tornando impensável dizer pés de mesa, forro dos estofados, cantos e frestas, não
A mulher -, com o mito escrito de Totem e Tabu, que tinham ajudado a encontrar a missiva. Ainda mais que a
também remete a impossibilidade de que o pai possua polícia, pelo fato de o Ministro ter escrito um texto
todas as mulheres. Essas duas impossibilidades, assim sobre matemática, acreditava que ele fosse também um
como a relação sexual que não pode ser escrita, aponta matemático. Mas não, o Ministro D era um poeta. A
a essa estrutura que está para além das dimensões carta purloined, ao contrário de escondida, estava à
espaciais reconhecidas, e que regem a lei que nos vista, ainda que sob disfarce. É por poder ver o espaço
submete a castração, essa que interdita o gozo sexual, desde outro ângulo, que não o matemático, que Dupin, o
produzindo a fala. detetive, consegue perceber imediatamente o
esconderijo, entre as pernas da lareira (e não das
• O gozo sexual só extrai sua estrutura da interdição ombreiras, como quer a tradutora). No lugar
que incide sobre o gozo dirigido para o próprio equivalente aquele que, no corpo da mulher, se chama
corpo...para o corpo do qual saiu o próprio corpo, ou de Castelo do Santo Anjo. É por usar um disfarce
seja, o corpo da mãe[pg.101]. Aí coloca Lacan a relação feminino, caracterizado também pela letra, que o
entre interdição/gozo/estrutura/e o impossível da Ministro se feminiza, e também, por extensão, o detetive
escrita. que aproveita a situação para vingar-se de um
desagravo, sofrido em Viena, com aquele verso do
• Nesse impossível de escrever A mulher, essa que não Atreu, de Crébillon.
existe, temos justamente a letra, que reduzida a sua
condição de operador lógico, é inscritível e pode gerar 3.
uma formulação. Aí Lacan faz toda uma caminhada Então, retomada a posse da carta, Lacan jacula: A
pelas categorias proposicionais de Aristóteles, para Rainha não se dá conta de que é quase fatal que fique
invocar sua função lógica e destacar o não todo x louca por esse ministro, agora que ela o detém, que o
cumpre a função de x. Isso que não se pode escrever da castrou, não é? Para concluir que Isso é amor. Uma
função de x vale para afirmar que existe o inscritível e afirmação só possível porque Lacan está pensando no
que o que se escreve – daí a função essencial na origem Totem e Tabu, de Freud, no seu entender um texto
da escrita – só responde ao não-mais-que-um [pg.100], escrito para provar que não se pode dizer A mulher.
ou seja, só escrevemos e só somamos de um em um. Trata-se, sim, de todas as mulheres, e dizer que o pai
possui todas as mulheres é signo de uma
impossibilidade. Em A carta roubada não se trata de A
• Segue afirmando que a função mulher [p.100], que mulher, mas sim de uma mulher. E Então Lacan faz uma
tem relação com o gozo sexual, é inscritível. Esse é o elo afirmativa, mais uma afirmativa, que leva à pensar: A
que liga o mito do pai da Horda (o pai que goza de todas mulher, essa que não existe, diz ele na p.102, é
as mulheres, o que é impossível) - um mito escrito -, com justamente a letra, a letra como significante de que não
o gozo sexual que não pode ser escrito, apenas interdito. há Outro [S(A)] (as traduções brasileira e espanhola
Daí deriva a importância de interditar esse gozo do registram A barrado). Um ponto que gostaria de discutir
corpo da mãe, instaurando a única lei que institui todo com vocês.
o alcance da fala: a castração.
4.
Na última parte, apoiado nas categorias proposicionais
aristotélicas, Lacan dirá que a discriminação lógica se
dará entre uma afirmação universal, vale dizer uma
essência, uma ousia, e uma proposicão negativa
particular. Usa isso para ensaiar as fórmulas da
sexuação que melhor definirá, dois anos depois, em
Encore.

E é bom esclarecer que a escrita algébrica de universal


afirmativa e de particular afirmativa estão registadas de
forma errada na edição da Zahar, basta ler o texto.

SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
12 de maio de 1971
VII. Lição sôbre Lituraterra
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
03 de novembro de 2020 03 de novembro de 2020

• Lacan começa esta aula justificando o termo Da lama à beira das calçadas,
LITURATERRA1, que a escreve, provavelmente no quadro da água dos esgotos cresciam
negro, e toma como título da aula. Dirá que inventou a pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as
palavra, mas, mesmo que legitimada pelo dicionário de latim telhas cresciam capins
de Ernout e Meillert, o que o inspirou foi o jogo de palavras, mais verdes que a esperança
a aliteração que lhe vem aos lábios e a inversão, ao ouvido (ou o fogo
de teus olhos)
[pg.105]. FERREIRA GOULART, Poema
sujo.
• Menciona, então, a Joyce, que faz esse deslizamento da
O texto desta sétima lição é uma variação do que
letterl2 a litter, da carta ao lixo. Isso me evocou uma
acabara de escrever para a revista Littérature, n°3,
passagem do romance Finnegans Wake, de Joyce, quando a
publicada depois, em outubro de 1971. Trata de sua
galinha Belinda3 encontra no monturo uma carta, todo
preocupação com a contribuição da escrita para o
esburacada, que é justo a carta onde a história de ALP
avanço do conhecimento. A originalidade de seu título
(Anna Lívia Plurabelle), a personagem mãe, será contada.
mostrar-se-á, ao longo do texto, tanto esclarecido como
Penso que não seria equivocado colocar esse escrito de
esclarecedor de suas ideias.
Joyce no que Lacan chamou nesta aula de literatura de
vanguarda, a qual é fato litoral e não se sustenta no
A inspiração de Lacan, para este título – Lituraterra –,
semblante [pg.116]. FW é um texto que não tem significação
um substantivo capaz de predicar, vem de um
em si, mas o efeito dessa escrita é produzir novas escritas.
dicionário etimológico de latim: é a partir destes três
vocábulos – lino, litura e lituriarius – que ele
• Ainda as voltas com a carta, primeiro a de Poe e agora a
lituraterrará. O primeiro traduz-se por besuntar, cobrir
de Joyce. Lacan faz um importante destaque, não só nesta
e apagar; o segundo, que, aliás, passa ao português tal
aula, mas em todo este Seminário, a essa relação carta/letra
qual, tem o sentido de apagar o escrito, i.e., trata-se de
(lettre em francês tem esses dois sentidos). E por que Joyce
uma rasura. Ficarei devendo o terceiro, à espera do
agora? Essa carta/letra esburacada, onde a letra foi
dicionário de Ernout e Meillet que, a esta altura, deve
apagada, leva Lacan a relacionar litura (uma das palavras
estar transitando nos correios. Em todo o caso, importa
contidas no neologismo de Lacan) com litoral.
o efeito de rasura, a escrita como borrão, como rasura.
E, a seguir, quando diz que isso não tem nada a ver com
• Já desde a aula anterior, e isso é uma das marcas desse
littera, a letra, isso só pode ser verdade em referência à
Seminário, Lacan passa a identificar a letra pelo lado do real
letra propriamente dita, pois littera, antes de tudo, tem
e não mais do simbólico, fazendo diferença entre letra e
referência a notas escritas. Trata-se, permitam que me
significante. É pelo apagamento do traço que o sujeito é
repita, da escrita como rasura – quem sabe, uma rasura
designado, nos diz Lacan [pg.113]. Mas como saber do traço
na natureza. No colégio, quando aprendi a fazer
se, apagado, ele não faz parte da cadeia significante? De
redação, a professora pendurava um quadro (versão
fato, a letra é o que apoia o significante, dirá. Apóia, mas não
ocidental de um kakamoto) com alguma figura de
está na cadeia. Precisa ser encontrado, destacado no litoral,
paisagem ou natureza morta na parede e pedia para
nessa linha, que demarca dois territórios distintos, terra e
fazermos, antes, um borrão. Ainda hoje uso o mesmo
mar, simbólico e o real. A letra porta um gozo que, ao
método, e quando tenho a oportunidade de ver a página
mesmo tempo em que algo se expressa via cadeia
manuscrita de algum autor famoso, seu aspecto é o
significante, aprisionada ao semblante, também pertence ao
mesmo, sempre um borrão, repleto de rasuras. Não por
real, e resta inacessível, gerando novas produções. Depende
nada, Lacan joga com a equi-vocação de Joyce, quando
da leitura do analista para que a letra possa ser escrita. A
ele desliza de letter para litter e, logo depois, para
letra é a matéria em suspensão, retida, en suffrance, e que
publicação, Lacan dirá poubellization, que se traduz por
na ruptura do semblante, ao escoar algo do gozo, possibilita
publixação, e argumenta com as palavras de São Tomás
que o analista faça uma leitura dessa letra, fazendo aí sua
de Aquino que, ao final de sua obra, quando lhe
inscrição. Algo como a leitura que fez Lacan de sua visão ao
perguntaram sua opinião sobre a mesma, teria
sobrevoar a planície siberiana.
respondido que tudo não passava de sicut palea, era
como restos.
• Introduz, então a ideia de que escrita é ravinamento, ou
seja, a passagem da letra deixa ravinas, caminho para o Seguindo com sua argumentação, lembra sua
escoamento de gozo. O significante enquanto semblante é o conferência pronunciada em Bordeaux – Meu ensino,
que acolhe o gozo e sua ruptura libera-o. Nesta ravina, sua natureza e seus fins –, em 20 de abril de 1968, um
nestas marcas deixada pelo rasura da letra, e pouco antes do mês de maio, como ele diz, quando
desprendimento do gozo, ali pode se dar uma nova tomou como premissa, sem querer fazer culturalismo e
inscrição. A escrita é, no real, o ravinamento do significado menos ainda criticar a sociedade, que a civilização é o
[pg.114], diz Lacan. esgoto. Aí, ele diz que a diferença do homem, em
relação a todos os níveis do reino animal, é o
• Também, nesta aula, retoma novamente a questão do extraordinário embaraço que lhe causa a evacuação da
traço unário, tomado da leitura freudiana, que já havia merda, e recomenda que se leia, de Aldous Huxley,
trabalhado na aula anterior. Este traço, responsável pela Adônis e o alfabeto, com tradução em português pela Ed.
identificação fundamental do sujeito, refere-se não apenas a Hemus, no qual descreve um grande sistema de esgotos.
um elemento simbólico recalcado, mas, como diz Lacan, é Caso consigam esta edição, com tradução de Edith
um céu estrelado. Este traço identificador do sujeito, porta Carvalho Negraes e Daniel Martins Júnior, recomendo
também elementos do imaginário e do real. E isso é o que especialmente o ensaio intitulado Hyperion a um sátiro.
sustenta Lacan a dizer que nem tudo está escrito por um Nesta conferência de 1968, ele faz ainda uma
discurso estruturado na lógica pura, mas que há um núcleo comparação do homem moderno com o homem
que resta do lado da intuição (aula VI, pag. 93). selvagem: quanto mais moderno, mais esgoto.

• O destaque desta aula está por conta da diferença que Mas agora, nesta aula de 1971, o autor mencionado é
faz Lacan entre fronteia e litoral. A fronteira demarca dos Beckett, o Samuel Beckett de Esperando Godot. Seu
territórios de um mesmo plano. Faz contraponto aos teatro, marcado pelo absurdo, um absurdo que já estava
estudos do biólogo Jacob von Uexküll4, autor da noção do presente em Rabelais, está construído sobre os restos.
Unwelt (ambiente) e Innwelt (mundo interno), que Em Fim de Jogo, cuja análise publiquei em Um elefante
preconizou a ideia de que cada animal tem seu mundo
subjetivo próprio e deve ser compreendido em seu habitat. em Albany Street, os pais moram, litteralmente, em latas
Ao caracterizar que o ambiente é o reflexo do mundo de lixo. Lacan ainda considera, a propósito, a
interior, Lacan entende que há uma ideia de adaptação importância da escrita de Rabelais, licenciosa,
contida entre essas duas realidades, colocando a fronteira sarcástica, mordaz, que, condenada no início do século
como um plano que pode se estender de um território a XVI, inclusive por haver denunciado a absurdidade de
outro, borrando o que demarcaria a separação entre dois seu tempo, estava sendo lida agora, nos seus dias, e, de
territórios distintos. passagem, revela seu método para a escrita de seus
textos: cartas abertas em que problematiza, a cada tanto,
• Apresenta a ideia de litoral, colocando aí a letra. Não é a partes de seu ensino.
letra propriamente o litoral? A borda do furo no saber (...) não
é isso que a letra desenha?[pg.109]. Entre gozo e saber a letra Enfim, seu Escritos abre com a análise de um conto que
constituiria litoral [pg.110). O litoral delineia o espaço de dois gira em torno de uma carta cujo conteúdo ninguém
planos distintos, terra e mar, e sua borda é de um conhece. A importância disso, para Lacan, é a de
movimento constante, não podendo ser fixado, produzindo . mostrar como o escrito, como mágica, por si só faz toda
No bojo dessa formulação Lacan traz uma importante a peripécia – uma palavra, aliás, muito bem escolhida
questão: como o inconsciente, efeito de linguagem, para dizer de sua capacidade de alterar o curso dos
comanda essa função da letra? [pg. 110] acontecimentos de forma inesperada e exercendo sobre
• Ao estudar a escrita chinesa, compreendeu que traço seus detentores um efeito de feminização, justamente
representa um mais além daquilo que ele desenha, incluído pela ilusão que ela propicia. A separação desses efeitos
aí o ato de fazer o traço que inclui o corpo de quem o faz. equivale a distinguir a lettre do significante-amo,
embrulhado com ela. Trata-se de uma forma metafórica
• O mestre de Lacan na escrita chinesa foi o poeta, filólogo de dizer que o S1 vem envelopado na letra, e não de
e semiólogo chinês François Cheng. Com ele, também fazer uma crítica literária, o que teria sido feito por
estudou a pintura chinesa onde se encontra a ideia do Traço Marie Bonaparte sem nenhum resultado. Para Lacan, a
Único do Pincel, do pintor Shitao do século XVII que refere crítica psicanalítica deve apontar ao enigma, ao buraco.
ser o traço a primeira manifestação do ser, sendo uma Para Patrick Valas, a propósito, trata-se do enigma do
unidade básica de sistema de vida.5 Ele diz: O traço não é sintoma, do lapso, do ato falho, mas também do enigma
uma simples linha. Com a ajuda de um pincel embebido de do 4, 2, 3 da Esfinge: τί ἐστιν ὃ μίαν ἔχον φωνὴν
tinta, o artista apõe o traço sobre o papel. Por seu volume e τετράπουν καὶ δίπουν καὶ τρίπουν γίνεται, Qual ser,
sua leveza [...] pela impulsão e ritmo que comporta, o traço é, provido de uma só voz, tem no início quatro patas, depois
potencialmente e ao mesmo tempo, forma e movimento, duas e, em seguida, três? Ou o enigma do ser: Έπάμεροί
volume e vislumbre6; τί δέ τις! τί δ'οῠ τις? σκιᾶς ὄναρ ἄνθρωπος, O que é o
ser,o que é o não ser? Tu não és senão o sonho de uma
• Seu encontro e estudo da língua chinesa, e da sua sombra.
derivação, o japonês, o levou-o ao reconhecimento mais
radical de que o sujeito é divido pela linguagem, mas um dos Lacan também distingue os psicanalistas que exercem a
seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e psicanálise dos que são exercídos por ela, condição esta
o outro com o exercício da fala [pg.117]. Daí a pergunta que que lhes dificulta a compreensão de suas formulações.
atravessa todo o Seminário deste ano aqui colocada assim: Na versão francesa do seminário, conforme às fichas de
Patrick Valas, lembra ainda uma comparação destas
• Será possível, do litoral, construir um discurso tal que se instituições que abrigam estes analistas, com a Igreja
caracterize, como levantei a pergunta este ano, por não ser onde se exerce um oficio, com seus rituais em horas
emitido pelo semblante? Essa é, evidentemente, a pergunta fixas (a referência é às missas), onde se trata de textos
que só se propõe pela chamada literatura de vanguarda, a sagrados cujo sentido é autorizado pelos Doutores da
qual, por sua vez, é fato de litoral, e portanto, não se sustenta Igreja, e onde se deve obedecer cegamente à doutrina. E
no semblante, mas nem por isso prova nada, a não ser para Inácio de Loyola ainda acrescentou que isso deveria ser
mostrar a quebra que somente um discurso pode produzir. feito pĕrīndĕ cadaver, como um cadáver.
Digo produzir, expor como efeito de produção; esse é o
esquema de meus quadrípodos do ano passado [pg. 116]. Contrastando saber e verdade, os analistas religiosos
reconhecem seu ofício na verdade, enquanto, do ponto
Notas: de vista de Lacan, é o saber que deve ser posto sempre
em cheque, como na figura heráldica de mis en abyme,
1. A base da aula deste Seminário é um texto que foi cuja imagem tem sempre outra que a repete dentro de
publicado na Revista Littèrature, nº 3, em outubro de si, o que entendo como um conhecimento
1971, um número dedicado à literatura e psicanálise. É profundamente enraizado. No entanto, Lacan diz, a
também o texto de abertura do livro Outros Escritos, seguir, ter ficado sabendo que as pessoas acreditam estar
que contém diversos textos de Lacan, publicado em dispensadas de demonstrar qualquer conhecimento ... e,
português pela Zahar Editora, em 2003. Esta palavra,, em seguida, coloca uma questão que, para ser
inventada por Lacan, é um jogo com as palavras latinas compreendida (na leitura da versão Miller, traduzida
lino e litura (aquilo que num escrito se apagou ou riscou para a Zahar), requer a mudança de posição de uma
para ficar sem efeito ou ilegível; rasura. Igual ao virgula: Será esta letra morta que coloquei no título de
português) e liturarius. uma daqueles textos que chamei de Escritos, da letra, a
instância como razão do inconsciente?
2. Em inglês, letter é carta e litter, lixo.
À guisa de resposta, Lacan lembra do aspecto bífido,
3. Essa referência encontra-se no capítulos 5, 6, 7 e 8, os elaborado por Freud, a propósito das inscrições no
quais encerram o livro I de um total de IV, deste inconsciente. As pulsões inscrevem-se no ics, de modo
Romance, traduzido no Brasil por Donaldo Schüler sob o bífido, pelo representante da representação, a
nome de FinniciusRevém e publicado pela Ateliê Editora, Vorstellungsrepräsentanz, e pela representação afetiva.
em 2001. Há ainda a representação coisa e a representação
palavra. Por outro lado, a negação possibilita a uma
4. Jacob Johann von Uexküll (Keblaste, Estônia, 8 de inscrição inconsciente inscrever-se também no
setembro de 1864 — Capri, 25 de julho de 1944) foi um consciente, o que permitiu a Freud ver na negação uma
biólogo e filósofo estoniano de origem alemã. Foi um forma superior de repressão. Verdade que a bifididade
dos pioneiros da etologia antes de Konrad Lorenz. Sua da língua está presente desde o início dos tempos: a
realização mais notável foi a noção de Umwelt (meio cobra da primeira prosopopeia tinha a lingua bífida e,
ambient, o mundo subjetivo da percepção dos assim, enquanto uma ponta seduz, a outra porta a sua
organismos vivos, dos animais e do homem em relação intenção. Isso item sua importância aqui, na medida
ao seu meio ambiente e de como eles o compreendiam. em que Lacan está interessado em ver, na mediação
Postulava que cada animal tem seu mundo próprio e entre os dois planos, uma fronteira, tal como Freud
que cada um deles tem que ser entendido no seu habitat imaginou concernente às instâncias psíquicas. E, claro,
(meio em que vive). No livro UmweltundInnenwelt der está em jogo aqui a relação do sujeito com o objeto,
Tiere (1909), ele introduziu o termo Umwelt para relação conformadora do Umwelt, como um reflexo do
denotar o mundo subjetivo do organismo. Innenwelt, conforme a Jacob Von Uexküll (p.109). Mas o
importante é a fronteira, na medida em que ele a
5. CHENG, F. (2012). “Lacan e o pensamento chinês”. In: contrapõe ao litoral: não será a letra o literal a ser
Lacan, o escrito, a imagem. Belo Horizonte: Editora fundado no litoral? Enquanto o conceito de fronteira,
Autêntica, 2012, p. 176. dessa terra de ninguém, dessa no men’s land, é mais
abstrato, o litoral é mais concreto, e se o pensamos
6. Idem nota 5 como um litoral marinho, tanto mais flutuante será.
Lituraterra, enquanto letra, ambiciona um lugar litoral,
de borda do futuro. Ambiciona um avanço no saber. Se
a apreensão da realidade é feita com os aparelhos do
gozo, entre o gozo e o saber a letra faria o litoral (p.110).
Contudo, isso não autoriza fazer da letra um significante
e muito menos atribuir-lhe uma primazia em relação ao
significante.

Tal confusão teria saido do discurso que lhe importa: o


universitário, em que o saber é usado a partir do
semblant.

Para falar de sua leitura do significante, diferente da de


Freud, Lacan começa criticando, na carta 52 (sempre as
cartas...), a figura do Wunderblock, por não considerar a
escrita uma impressão. Aliás, eu mesmo, quando tomei
conhecimento dessa figura, nunca pensei que o
importante fosse a escrita, mas sim o indelével da
impressão, da marca, e por que não dizer, da inscrição.
De qualquer modo, Lacan não faz disso finca pé; sua
atenção está dirigida, nessa carta, ao traço de memória,
escrito por Freud como WZ, e sua proximidade ao
conceito de significante. E então esboça a suspeita de
que a literatura talvez esteja virando lituraterra. Devo
dizer, contudo, que isso não é recém de seus dias e, para
não ir mais longe, lembro, na obra do Padre Vieira, de
História do Futuro, na qual nos fala da necque instantia,
do futuro imediato. Se todos nós marchamos às
margens do futuro, os escritores, Lacan disse isso ele
mesmo uma vez, marcham na frente! Uma maneira de
ressaltar a importância do escrito. De qualquer modo,
ensaia essa situação com a descrição de sua viajem
sobre a Sibéria, fazendo um trocadilho entre acidental,
acidentado e occire, que ele cita em latim enquanto na
edição da Zahar já aparece traduzido – ainda que
corretamente – como ocisão, com a conotação de
assassinato e, mais especificamente, de morte violenta.
O que lhe interessa, sobremaneira, é a condição litoral, e
a exemplifica com a caligrafia japonesa que deve
acompanhar a pintura. Trata-se, na verdade, de algo
raro. No Ocidente, de modo geral, temos a arte,
entendida como pintura, escultura, e também a escrita,
mas todas separadas, raramente juntas. Uma exceção
são Os profetas, do Aleijadinho, em Conganhas do
Campo. Os pintores, por séculos, antes de Jan van Eyck,
em 1434, nem o próprio nome colocavam no quadro. No
Oriente, contudo, é uma praxe. Lacan refere-se aos
kakemonos [ 掛物 ] – entre os quais escolhi um, de
Hiroshige (1797 - 1858), para ilustrar, no Facebook, o
convite para esse encontro –, onde os logogramas são os
mesmos chineses originários. É daí que ele ressalta a
importância do traço, tanto como WZ, como pelo fato de
ser unário, para o que, a fim de se divertir, grafou
papludum, e não papeludun, como sugere a tradução
brasileira, possivelmente apoiada na tradução ao
espanhol, da Paidós, a qual ajunta o sentido hispânico
de peludo. Se fosse o caso de também traduzi-la ao
português, uma vez que papludun expressa a contração
de pas plus d’un, sugeriria namaqum, como contração de
não mais que um, uma forma de nomear o que não pode
ser nomeado, uma forma de nomear a Achose.

Ocupado com a caligrafia, Lacan associa-a com o


escoamento, que, em francês, ele diz ruissellement, tal o
da neve que se vai derretendo até formar um grande
lago, como, por exemplo, o lago Baikal, o mais profundo
do mundo, justamente aí, na planície siberiana
sobrevoada por Lacan. O aparecimento dessa imagem
parece ter-lhe chegado como a força de um ϕαινóμενον
heideggeriano, daquilo que se revela, que vem à luz. Ao
escoar-se forma um buquê, que lembra também o
buquê invertido do experimento ótico de Bouasse, no
qual o sujeito, cujo a foi cortado, só pode se sustentar
pelo fantasma. Afinal, é pelo apagamento do traço que o
sujeito é designado (p.113). Daí a importância da rasura,
da litura componente da lituraterra. O corte, por sua
vez, lembra-lhe seu primeiro livro de leitura, com um
conto cujo título era História de uma metade de frango,
conforme nos relatou, durante o seminário anterior, na
lição de 21 de janeiro de 1970. Na história havia uma
figura do perfil do lado bom e do lado mau do frango,
este sem coração, mas não sem o fígado – em francês,
não sem o foie, que também se escuta como fé. O que ele
interpreta como a verdade podendo estar escondida,
mas talvez não ausente. Frege, lembra ele, coloca a
questão como um traço horizontal e distingue o
resultado verdadeiro com um traço vertical, colocado à
esquerda. Daí, para Lacan, a importância da diferença
do makemono [ 巻物 ], sempre horizontal, do kakemono,
sempre vertical.

Sobre a Ponte Mirabeau, do poema de Apolinaire, é uma


referência à sua revista La Psychanalyse, editada por
P.U.F. do nº 1, de 1956, ao nº 8, de 1964, que havia
ilustrado com a ponte encimada por uma orelha, a sua
possivelmente.
É preciso valorizar as homofonias e, se Lacan toma em
conta a literatura de James Joyce, é porque as palavras
se valem desse efeito para encontrar novos sentidos.
Aliás, são propriedades como essa que mantém a língua
viva. Mas uma vida que não é sem o que ele chama de
ravinement, que não é sem a erosão. Uma erosão que
pode servir de base a uma construção. Assim como a
engenharia perfura a montanha para dar lugar ao seu
anseio de passagem, a política serve-se dela no
fenômeno conhecido como globalização. O exemplo de
Lacan ao dizer do efeito do chinês no japonês é desta
ordem, como é o do inglês em outras línguas e como já
foi o do português em tantos lugares. O invasor fura a
língua do invadido com a sua. Sustentando isso, está
sempre a força da metáfora, constituinte da essência da
linguagem.

SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
19 de maio de 1971
VIII. Lição sobre O homem e a mulher e a lógica.
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
17 de novembro de 2020 17 de novembro de 2020

• Nesta aula, Lacan retoma sua evocação à lógica matemática dos O QUE SEMPRE SE SOUBE E AINDA NÃO SABEMOS
quantificadores universais, no caminho de sua determinação em
buscar escrever a relação sexual, dizendo que as funções só são O homem e a mulher sempre foram misteriosos. Talvez
determinadas a partir de um certo discurso [pg. 120]. devesse referir-me explicitamente, à figura do homem e
• E, sem muito deixar claro, dirá que é nesse nível (das funções) da mulher, como enigmáticos. Cada um é um
que pode dizer que o escrito é o gozo [pg. 120]. Considera que no desconhecido para si mesmo, embora o mais comum
nível do discurso do analista, há alguma coisa que cria obstáculo a seja o reconhecimento do enigma no outro. O
um certo tipo de inscrição [pg.120]. Essa coisa é o gozo, e isso é o reconhecimento da ignorância sobre si mesmo é de
que traz problema para poder inscrever a relação sexual. segundo grau, ao nível de doutorado, ao nível da docta
ignorantia. Enfocado o tema, pelo ângulo da
• Segue interessado em formalizar os efeitos dessa transmissão
que uma carta/letra produz na realização de um discurso, ou seja, sexualidade, a complexidade só aumenta. Na literatura,
efeito feminizante que tem relação com o gozo. desde que temos notícia, um intermédio trágico nas
relações amorosas esteve incluído desde sempre como
• Nos conduz, então, a pensar na função da necessidade. A fruto da incompreensão. Na pintura renascentista, com
necessidade, diz, é uma ordem fundamentada no artifício para
a retomada de temas clássicos e religiosos, as cenas de
evidenciar esse elemento irredutível no real. Reserva-se à
necessidade sexual uma parcela mínima do gozo sexual que não Adão e Eva, nus, tem sempre um traço comum. Seja em
pode ser sublimado. Essa necessidade, esse traço irredutível na Dürer, Ticiano, Lucas Cranach, ou em Jan Grossaert,
relação sexual, é claro que podemos admitir que ele sempre existe. com cujo Adão e Eva ilustrei o convite para este
Contudo, ele não é mensurável [pg. 122]. Por isso a relação sexual encontro, em todos aparecem os genitais cobertos por
não é inscritível, fundável [fondable] como relação1 [pg. 122].
algum tipo de folhagem. E o interessante é que a espécie
• O que a descoberta freudiana demonstra é que, por intermédio de folha que cobre um também cobre o outro. Em Lucas
do inconsciente, vislumbramos que tudo o que é da linguagem que Cranach, o velho, são as folhas do mesmo galho que
nos habita mantém uma certa relação com o sexo, mas há um cobre Adão a cobrir Eva (ver figura a baixo).
resto, um irredutível dessa relação, que é o gozo, que não alcança
ser escrita pela linguagem.
Se tivesse de dizer isso algebricamente, teria de dizer
• Para ser inscritível, essa relação precisa ser escrita. Assim diz que ambos estão cobertos pela mesma F, ou, se
Lacan: se digo inscritível, é porque o exigível para que haja função é quiserem, pela mesma Fi. Para Lacan, trata-se da
que, pela linguagem, possa produzir-se algo que seja expressamente inscrição de uma letra.
a escrita, com tal da função. [pg.123.]

• Todo o problema é que a função sexual, via linguagem, não dá


Para o reconhecimento dos sexos, os assim chamados
caracteres
conta da relação sexual; e como escrever essa parcela de gozo que secundários sempre foram muito
resiste a inscrever-se na linguagem? importantes, mas nunca definitivos pois costumam ser
os primeiros a serem falseados. Ah! Diadorin... para
• Por isso, Lacan se dirige ao discurso da matemática, mais explorar o sertão tem que se travestir. E a alma de
especificamente na linguagem matemática dos quantificadores
universais, para buscar os elementos e elaborar uma fórmula que Riobaldo se transtorna.
permita a inscrição dessa função do sexual que não pode se
escrever, essa F(x), impossível de escrever. E por ser da ordem do Lacan quer saber como a transmissão da letra se
impossível, não cessa de não se escrever. relaciona com o gozo. Nas lições anteriores, a letra era,
para ele, a lettre. Gostou da ideia de tomá-la como carta
• E isso, ao que tudo indica, é por haver dois termos, homem e
mulher, que se inscrevem de forma diferente na lei da linguagem, na medida em que o significante vinha, aí, envelopada
que parece recolocar na ordem do dia a questão feita a Tirésias por na letra da carta, na lettre de la lettre. E isso
ocasião de uma discussão dentre Zeus e Hera: quem goza mais, o proporcionava um efeito feminizante ao portador da
homem ou a mulher? carta, fosse quem fosse. Como a carta estava endereçada
• Como saber a verdade? O mito sempre foi um dos caminhos
a uma mulher e, pelo que se deduz, pelo fato de ser
buscado para se formular um saber sobre a verdade na sua origem. mulher, aquele que por ela se interessa,
No seminário anterior, o XVII, O avesso da psicanálise, Lacan havia independentemente de seu particular motivo, se
dito que o mito é um saber que tem função de verdade e, que o mito feminiliza, vítima do efeito da sombra. E trata-se de
é um enunciado do impossível [pg.118]. Ambas as afirmações, uma sombra que não é sem as luzes. Daí a importância
colocam a verdade como uma interpretação, uma construção. O
mito tem a função de nos fazer não esquecer da verdade da qual
da filosofia das luzes, da Aufklärung e da estrutura de
nada sabemos, já que o saber como verdade, na psicanálise, é um ficção que lhe acompanha. Quando a luz é projetada
saber que não se sabe. Tal qual o conteúdo da carta, do conto de aparece também a sombra e, nela, o sujeito que no
Poe. fantasma está dividido. E será por meio desta lógica do
fantasma que poderemos vislumbrar a relação do
• Daí também a afirmação, mais uma vez evocada por Lacan
nessa aula, de que a verdade só progride por uma estrutura de homem e da mulher, e concluir que a relação sexual
ficção [pg.124]. não pode ser escrita. Entende-se que não pode ser
escrita de forma definitiva e de modo lógico.
• Lacan nos remete, então, aos Primeiros Analíticos, de Aristóteles
(384 a.C.-322 a.C.), para recorrer ao silogismo. Um silogismo2 é uma
Para chegar a isso, Lacan propõe seguir um raciocínio
forma de raciocínio lógico, na qual há duas premissas e uma
lógico, conforme proposto por Aristóteles nos seus
conclusão distinta destas premissas, sendo todas proposições
Analíticos Anteriores, também conhecidos como
categóricas ou singulares. Fala mais especificamente do silogismo
Primeiros Analíticos. O primeiro raciocínio é o
de darii, onde há uma universal afirmativa e duas particulares.
silogismo. Nada mais lógico: em grego, para raciocínio,
Note-se que todo silogismo contém somente três termos: maior,
médio e menor. diz-se συλλογισμóς. Trata-se de um raciocínio dedutivo
• O exemplo que Lacan apresenta é:
formado por duas proposições e uma conclusão: Todos
Todo homem (termo médio) é bom (termo maior), sendo todo os homens são mortais, os gregos são homens, logo todos
homem a universal. os gregos são mortais.
A segunda afirmativa particular é Alguns animais (termo menor)
são homens e a terceira afirmativa particular é a conclusão Logo, Entre os silogismos, Lacan toma o conhecido como
alguns animais são bons.
A validade de um silogismo depende do respeito às regras de Darii, no qual o termo médio ocupa a posição de sujeito
estruturação. Tais regras, em número de oito, permitem verificar a na premissa maior e predicado na premissa menor.
correção ou incorreção do silogismo. As quatro primeiras regras
são referentes aos termos e as quatro últimas são referentes às ∀ B → A: Todo homem é bom
premissas.
Ǝ C → B: Alguns animais são homens
• Lacan faz todo um raciocínio a partir dessas proposições lógicas … Ǝ C → A: Logo, alguns animais são bons.
que não são fáceis de acompanhar quando não se domina esse
conhecimento da matemática. Mas, suas construções nos Trata-se de um raciocínio que só se sustenta pelo uso da
conduzem à relação dessas proposições com o discurso, apontando letra. Mas isso vem desde Platão, antes de Aristóteles,
para o fato de que a linguagem possibilita apenas um número quando partiu da ideia do bem. Mas quando se diz bom,
determinado de discursos. [pg.128]
com isso pode-se dizer qualquer coisa, inclusive que se
• E com isso, chega, via discurso da lógica, as fórmulas dos trata de uma boa porcaria. Se algo pode introduzir
quantificadores, tomando as leis de Morgan que simplificou as alguma diferença, por um lado, será o significante e, por
expressões de Boole.3 outro os quantificadores, o que está para todos e o que
• Essas leis e expressões permitem Lacan de escreve afirmações e
está para alguns. Trata-se de saber se para todo x se
negações a partir dos quantificadores Todos e Alguns, ao lado da
incógnita x, e escreve duas negações possíveis relativas à função cumpre a função de x [∀x.Φx]. Então, o x de ∀x é uma
fálica, sendo o x para os termos homem/mulher. incógnita e para saber o valor dela, Laca se vale de uma
1) Não é com todo o x que a função Фx pode se inscrever. equação de segundo grau, esta que só tem uma
___
incógnita e cuja raiz será o resultado da equação, para
∀x.Фx
2) Não é com a existência de um x que a função Fi de x pode se
perguntar se a raiz dessa equação pode inscrever-se na
escrever. função F que define o x como variável. E a resposta é
___ não! [p.130] Não pode inscrever-se porque existem [Ǝ]
Ǝx.Фx raízes da equação de segundo grau que são números
imaginários, i.e., números complexos cuja parte real é
• Essas equações colocam no cerne a impossibilidade de escrever
o que acontece com a relação sexual. Mas há todo um raciocínio de igual a zero. Quer dizer, existem raízes que satisfazem a
Lacan, ainda um tanto obscuro para mim, que busca articular a função do número real e outras que não satisfazem. É
função fálica aos termos homem e mulher, de modo a afirmar ou isto que diz da impossibilidade de escrever o que sucede
negar esta função para cada um. E, acaba por dizer o seguinte: O com a relação sexual.
homem é uma função fálica na qualidade de todo homem. [pg. 132].

• Em seguida, coloca dúvida sobre se todo homem existe, tal como


já tinha feito sobre a questão de todas as mulheres, no caso do mito
da Horda, para dizer que o homem só pode ser todo homem, na
qualidade de um significante, ao que escreve como touthomme,
todohomem.

• E seguindo essa lógica de que não existe toda mulher, dirá que
para a mulher só será possível inscrever-se na equação como uma
mulher.

• A lógica porta a marca do impasse sexual [pg.133].

• E para articular esses dois termos, todohomem e uma mulher, o


falo é o terceiro elemento, que a mulher terá de buscá-lo em ao
menos um, uma vez que todo homem não existe. Este
ahomenoszum é a função essencial da relação sexual.

Notas:
1. Em matemática, uma relação é uma correspondência (ou
associação) entre elementos de dois conjuntos não vazios.
2. No grego significa conclusão ou inferência.
3. Augustus De Morgan (Madura, Índia, 27 de junho de 1806 —
Londres, 18 de março de 1871) foi um matemático e lógico
britânico. Formulou as Leis de Morgan. A primeira lei de Morgan
propõe a negação de duas proposições afirmativas unidas por ‘e’ ou
‘ou’. A Segunda Leis de Morgan permitem-nos efetuar a negação de
proposições com quantificadores (universais e existenciais).
George Boole nasceu em Lincoln - Inglaterra em 2 de Novembro de
1815.Autodidata, fundou aos 20 anos de idade a sua própria escola
e dedicou-se ao estudo da Matemática. Na Álgebra de Boole existem
apenas três operadores E, OU e NÃO (AND, OR, NOT).Atualmente
todos os computadores usam a Álgebra de Boole materializada em
microchips que contêm milhares de interruptores miniaturizados
combinados em portas (gates) que produzem os resultados das
operações utilizando uma linguagem binária.

Para Lacan, é muito difícil mostrar em imagens que há


algo de desconhecido que está aí, o homem, que é algo
desconhecido que está aí, ele repete, como para
sublinhar que o desconhecido da mulher não é o mesmo
desconhecido do homem, e há um terceiro termo que
ele chama de médium.

O problema, aponta Lacan, é que se ligarmos o termo


homem, ou o termo mulher a esse médium, esse médium
não se comunicará com o outro termo. Então não existe
isto de que todo homem é fálico e toda mulher não o é,
mesmo porque o todo da mulher não existe e também
porque existem sérias dúvidas se o todo homem existe.
Se existisse esse touthomme, diz Lacan, não seria mais
do que um significante, seria o mítico pai da horda
primeva imaginado por Freud. Mas é como algum que o
homem pode ser fálico. E as histéricas, essas que
permitiram a Freud criar a psicanálise, se se tratasse de
bancar o touthomme, ela seria tão capaz de fazê-lo como
o próprio touthomme.

SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
9 de junho de 1971
IX. Lição sobre Um homem e uma mulher e a psicanálise.
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
1º de dezembro de 2020 1º de dezembro de 2020

• Seguindo seu caminho, Lacan se ocupará nesta aula Pois, enfim, que é o homem na natureza?
de situar como um homem e uma mulher se encontram Um nada ante o infinito, um tudo ante o
em relação a este impossível de se escrever da relação nada, um intermediário entre nada e tudo.
Infinitamente distante da compreensão dos
sexual. extremos, o fim das coisas e seu princípio
estão para ele infinitamente escondidos em
• Começa invocando seus Escritos. Tomando a um segredo impenetrável, igualmente
homofonia dos Escritos, (Écrits, em francês), com a incapaz de ver o nada de onde ele foi
palavra grito, crí, Lacan dirá que, um homem e uma arrancado, e o infinito no qual ele é
engolido.
mulher, não podendo se entender de outra maneira,
PASCAL, Pensamentos. Fragmento 72.
podem ouvir-se gritar [pg.135]. A outra maneira de se
entender, dirá ele, é na cama, onde não tem nenhuma DO HOMO SAPIENS
necessidade de falar. E eis que, ante a infinita criação,
O próprio Deus parou,
• Mas, sendo o homem e a mulher, fatos de discurso desconcertado e mudo!
Num sorriso, inventou o homo sapiens,
[pg.136] e discurso é semblante, como se posicionam um
então,
e outro nesse discurso? Para que lhe explicasse aquilo tudo...
A trilha sonora MARIO QUINTANA, Espelho Mágico.
• O semblante só se enuncia a partir da verdade para essa lição de
[pg.136]. E onde está a verdade? Já sabemos que a Lacan bem poderia ser a mesma que Francis Lai
verdade só aparece as meias, e que só pode expressar-se compôs para o filme de Claude Lelouch, Um homem,
como semblante do gozo. uma mulher, de 1966. Desse filme, aliás, dizem que as
partes em preto e branco deveram-se à falta de dinheiro
• Retoma daí suas formulações da mulher e do para comprar filmes coloridos. Mas ficaram tão bem,
homem, elaborado nas aulas anteriores, para dizer, da com tanta harmonia na apresentação do romance, que
mulher, que não é de todo x que se pode postular a acabaram sendo responsáveis pelos prêmios recebidos,
função Φ de x. E por esse não é de todo x que se postula a como o Oscar de melhor filme estrangeiro e o Palma de
mulher. E, para o homem, não existe um x tal que Ouro, de Cannes. Em preto e branco, como uma
satisfaça a função pela qual se define a variável, por ser a escritura, estavam as reminiscências dos personagens.
função de Φx. E a partir de ele não existir que se formula E, para o final, Lelouch filmou duas cenas: uma, em que
o que acontece com o homem, com o macho [pg.137]. o casal fica junto, e outra, em que fica separado. Por
pena de ver os dois separados, Lelouch deixou-os
• Lacan nos lembrará que o semblante, que faz
ficarem juntos. A verdade é que, quando nos lembramos
circular a verdade, é assez phalle [pg.138], jogando com
da história, os dois finais estão sempre presentes.
a homofonia, em francês, de falo e acéfalo, sem cabeça,
Separados e juntos!
ou seja, a verdade não tem um dono.
Esta nona lição trata disso, da impossível relação sexual
• Mas Lacan enfatizará que é todo esse gozo sexual,
interdito, nos põe a falar, e falar é essa divisão do homem e da mulher. Para chegar à constatação desse
irremediável entre o gozo e o semblante, ou seja, o impossível, Lacan, com outro valor à pena, recorre à
discurso [pg.141]. É nesse deslizamento moebiano do lógica. Tudo depende de uma significação. Trata-se de
gozo e do semblante que a verdade se expressa. uma questão de Bedeutung, ou, como diz Lacan, de
Bedeutung des Phallus, tal qual o título de sua exposição
• Volta a lembrar que a condição do inconsciente é a berlinense. Esse é o ponto central de sua lição, e ele
linguagem. Daí dizer que ele sabe coisas. E o que o chega a dizer que a Bedeutung des Phallus é, na verdade,
inconsciente sabe tem relação com a significação do um pleonasmo, porque, enfim, na linguagem, o falo é a
falo, que emerge como semblante dessa falta que não única Bedeutung (p.139). Lembram quando era voz
podemos inscrever: a relação sexual. corrente que, para a psicanálise, tudo é sexo? E a
linguagem é, antes de tudo, sim, o habitat dos seres que
• Tal obstáculo impulsionou Lacan a buscar na figura sustentam a fala. Falar significa a divisão irremediável
topológica da garrafa Klein, um modelo de referência entre o gozo e o semblant. Essa Bedeutung, longe do
do discurso da histérica, que conjuga a verdade do seu conceito de interpretação de Paul Ricoeur, cuja
gozo com seu saber implacável de que Outro apropriado hermenêutica levou a um exame da riqueza da
para causa-lo é o falo, o seja, um semblante [pg.143]. linguagem, tem a ver com a falta inerente à linguagem
que nos serve, no final das contas, apenas para a
• E porque a garrafa de Klein?1
construção de metáforas e metonímias. A verdade é
(https://youtu.be/mF4x8svpSgA)
gozar de fazer semblant (p.141). É das metáforas que
surgem todas as criações e, diz o mestre, também todas
as insanidades míticas (nem por isso menos
importantes!), incluídas aí tanto o Édipo como o Totem e
Tabu, enquanto da metonímia os habitantes da
linguagem podem extrair o pouco de realidade que lhes
resta. Esse pouco de realidade provavelmente Lacan o
tenha aproveitado do manifesto surrealista, de André
Brenton, que o publicou como uma Introdução ao
discurso sobre o pouco de realidade. A vida é um teatro
eterno e toda máscara fracassa no papel de representar
o eu; contudo, há que escolher uma para assegurar esse
pouco de realidade necessário à presença no mundo1 e
esse pouco nos aparece sob a forma de plus-de-gozar.
Garrafa de Klein
Lacan registra também a importância da escrita para o
• Essa figura topológica tem como característica ser registro da história, e não parece demais lembrá-la
não orientável, ou seja, não é possível definir um como registro da linguagem, sem a qual não há
interior e um exterior. Ao se tomar um ponto isolado, memória. Veja-se a falta de memória dos períodos
leva a pensar em uma estrutura bidimensional com um anteriores à aquisição da linguagem e daí Vitor, o
dentro e um fora. Como um todo, o dentro e o fora se menino que foi criado por lobos: como não teve acesso à
comunicam de modo contínuo. Lacan a tomará para linguagem, não se lembrava de nada. A escrita nunca
caracterizar a estrutura do desejo insatisfeito, marca do passa de algo que se articula como ossos, cuja carne seria
discurso histérico, que ao destacar ao menos um ponto a linguagem. Concernente a isso, lembro de um chiste
dessa estrutura, ao projetar no Campo do Outro esse que muito ouvia dos hermanos argentinos: a língua
objeto que faz semblante de completude, o falo. Do espanhola e a portuguesa são feitas da mesma carne, só
ponto que vista da histérica, seu discurso, para suportar que a primeira é com osso. Pois uma vez, então,
essa castração, vive a exaltar e depreciar esse elemento perguntei-lhes: - Se o português não tem osso, como será
terceiro, o falo, enquanto semblante que marca a que fica em pé? – E nunca mais ouvi o tal dito! Quando
completude imaginária, e que a coloca na direção de Lacan diz que o gozo sexual não tem osso (p.139), algo
ahomenozum como via de obtenção do falo. dessa história passa por aí.

• Disse Lacan: A histérica se situa por introduzir o O destaque para a escrita é por sua capacidade de
nãomaiskium com que se institui cada uma das prover de ossos todos os gozos, o que lhe possibilita
mulheres, por intermédio do não é toda mulher que se sublinhar que a relação sexual falta no campo da
pode dizer que ela é função do falo. Que seja de toda verdade (p.139). Causa disso é ter sua fonte apenas no
mulher é o que compõe seu desejo, e é por isso que esse semblant. Desse modo, a verdade só abre caminho para
desejo se sustenta por ficar insatisfeito, porque dele gozos que parodiam o gozo efetivo, enquanto este lhe
resulta uma mulher [pg.146]. permanece alheio.

• E Lacan encaminha o final dessa aula questionando Com outra pontuação, Lacan dirá: Assim é o Outro do
o quanto o mito fundamental da psicanálise, o Édipo, dá gozo: é para sempre interdito àquele cuja habitação a
conta de responder à genealogia do desejo. Ele diz: a linguagem só permite ao lhe fornecer escafandros. Seu
genealogia do desejo decorre de uma combinatória mais titubeio, ao usar essa figura (p.139), faz-me pensar que
complexa que a do mito [pg.147]. Os mitos são estruturas esteja se referindo ao solicitado por Dali quando foi
que buscam responder ao enigma da origem. E nisso convidado a fazer uma conferência sobre o surrealismo,
seu valor foi marcadamente validado pelos estudos de em Londres. Para tal, o artista encomendou, de uma
Levis-Strauss. Mas Lacan quer ir além do fato de empresa especializada, um escafandro. E quando lhe
estrutura. Busca um discurso que responda a perguntaram para que profundidade iria precisá-lo,
impossibilidade de escreve a relação sexual desse gozo respondeu: - Um escafandro que me permita descer às
que precisa ser castrado. profundezas do inconsciente.

• O Édipo tem a vantagem de mostrarem que o homem E da Verdade, chamada por Lacan de sua companheira e
pode corresponder à exigência do nãomaisqueum que cuja prosopopeia ele desenvolve na conferência A coisa
está no ser de uma mulher. Ele mesmo amaria freudiana, ele diz tê-la extraído de um poço, de um puits,
nãomaisqueuma, nos diz Lacan. [pg.148] Mas nessa embora a tradução não tenha visto necessidade de
fábula edipiana o homem só se sustenta por ser um incluí-lo (p.141). É que esse poço, muito provavelmente,
garotinho: que no frigir dos ovos, seu desejo é gozar era aquele de águas tão claras e frescas que a Mentira
com a mãe. convenceu a Verdade de aí mergulhar em uma tarde de
verão e, enquanto a Verdade nua aí se refrescava, vestiu
• Isso leva Lacan a comparar o mito do Édipo e o de suas roupas e foi-se, como se fosse ela a própria
Totem e Tabu, o mito do pai da Horda. Dirá que o Verdade.
primeiro foi ditado a Freud pela insatisfação das
histéricas, e o segundo pelos próprios impasses de As máscaras, como se vê, não são coisas de agora. Lacan
Freud. As questões presentes no primeiro mito, a marca menciona a história de Ashikaga Yashimasa (1435-1490)
do trágico na passagem do falo do pai para o filho, que – cujo nome não enuncia –, o oitavo shogun do período
condensa numa única revelação o assassinato do pai e o Muromachi da história do Japão, que teria construído,
desejo do filho pela mãe, tais elementos não estão em Kyoto, o templo conhecido como Pavilhão de Prata,
presentes no mito do pai da Horda. Ali a questão é que o onde guardam, ainda hoje, sua máscara, sua persona de
assassinato surge com vingança. No Édipo o assassinato apaixonado pela lua. E quem não é apaixonado por
do pai é um fato desconhecido a priori. Selene? No Carnaval, cantávamos que, se ela não fosse
casada, faríamos uma escada para ir ao céu beijá-la.
• Lacan parece preocupado em reconhecer os efeitos Mas, depois, como na obra de Alfonse Allais, Um drama
da lei que interdita o gozo e produz, como efeito, essa bem parisiense, quando tiram as máscaras, não era ele,
impossibilidade de escrever a relação sexual. não era ela.
• No mito do Édipo, esse gozo do filho com a mãe é O texto de Lacan tem um pouco dessa mascarada.
velado ao casal real, mas está ali e no momento em que Impenetrável nas primeiras leituras, vai se abrindo
é revelado faz todo um estrago. Essa revelação e seu como um corpo de mulher e, depois, o leitor não sabe se
exílio como castração simbólica só são necessárias para o captou exatamente como gostaria, ou como deveria. É
restabelecer a garantia do gozo do povo. Édipo, assim, desde a frase de abertura:
representante do falo de seu povo, e não de Jocasta, diz
Lacan, então, bem podemos reconhecer que, ao punir-se Um homem e uma mulher podem se ouvir, não digo
pela sua desmedida, sua hybris (ὕϐρις), em relação ao que não.
gozo, foi o modo de expressar que o valor da lei é para Podem, como tais, ouvir-se gritar.
todos.
Lacan usa o verbo entendre, que pode ser traduzido
• Em Totem e Tabu, esse gozo está explícito e é o que tanto como ouvir como entender. Como ele está ocupado
motiva o assassinato do pai. Não só assassinado, as com o escrito, tendo mesmo redigido algumas notas
devorado pelos filhos, ficando cada um apenas com para essa aula, ele destaca do ecrit o cri, o grito, tema do
uma parte. O pai como um todo, só se constitui numa qual diz que, pelo menos naquele momento, não voltará
comunhão. Os efeitos são outros. Se estabelece um a falar. Mas como Lacan não costuma dizer coisas por
contrato social onde se instaura a interdição da mãe, dizer, temos de prestar atenção em tudo, como se fosse
primordialmente enquanto mulheres do pai. um Heiligue text, o texto sagrado de um sonho. Lembro,
então, dois momentos em que fala do grito. Primeiro, no
• E Lacan finaliza apontando as diferenças em suas seminário da Angústia, quando se ocupa da pintura de
funções, entre os dois mitos, e o que tem de comum: Munch, intitulada justamente de O Grito. Edvard está
sobre uma ponte com os amigos, de repente vê aquele
§ No Édipo a lei está desde o princípio e é a céu com línguas vermelhas, os amigos seguem e ele
saída da profusão do gozo. Ali, o lugar do pai para, paralisado pelo medo, e sente um grito infindável a
precisa ser assegurado pela lei. atravessar a natureza. Interessante que, desse
Seminário, Miller nos conta que Lacan deixou
§ Em Totem e tabu, primeiro está o gozo e transcrição das aulas, por tê-las relatado cada uma delas
depois a lei. Esta lei é efeito de uma conjuração, à sua filha Judith que, nestes dias, estava em viagem.
ou seja, de um acordo comum que, via Quero dizer que delas também fez um escrito. Depois o
proibição das mulheres do pai, instaura um retoma, no Seminário sobre os Problemas cruciais da
acordo que limita o gozo. O pai só será psicanálise. Está ocupado com o significado do grito da
reconhecido na comunhão dos filhos. criança. Em ambos os momentos, ele diz que o grito não
se dá sobre um fundo de silêncio, como talvez a obra de
• Aliás, esse efeito de conjuração é o que Lacan aponta Munch fizesse pensar, mas que o grito cria o silêncio,
de comum entre os dois mitos e que Totem e Tabu é o este silêncio que também assusta Pascal, ao dar-lhe uma
mito apresentado por Freud como um produto noção de seu tamanho frente à imensidão do universo.
neurótico, recurso usado por ele justo por ser Souberam, a propósito, que dois anos atrás, em 2018, os
impossível de formular no discurso a relação sexual. astrônomos, liderados por Olga Cucciati, descobriram
um superaglomerado ancestral de galáxias, batizado,
Notas:
1. Construída pelo matemático Felix Klein, em 1884, a garrafa de por seu tamanho colossal, como Hyperion, com massa
Klein é um objeto matemático que vive em um espaço de quatro de um milhão de bilhões de vezes a do sol e cuja luz leva
dimensões embora possa ser visualizado em um espaço de três mais de onze bilhões de anos para chegar até nós? E
dimensões. A garrafa de Klein, um conceito da matemática Pascal, o pobre, nem sabia disso... Quando a criança
bastante interessante, trata-se de uma superfície fechada sem grita, cria-se um momento de interpenetração do
margens e não orientável, isto é, uma superfície onde não é interior com o exterior, e é neste momento de
possível definir um “interior” e um “exterior”.
remboursement que Lacan está interessado, nesse
momento de virada, de aproximação dos espaços, cuja
torção ele aponta, mais para o final dessa aula, na
garrafa de Klein, no momento em que acontece a
transformação do fundo, do culier, uma palavra aludida
quando falava do

Clique na figura e assista (via Youtube) a construção


de uma Garrafa deKlein.

orgulho do fundo das garrafas, mas que, nesse


momento, o texto estabelecido não o registra. Lacan está
naquele momento em que, ocupado com a questão da
histérica, critica André Green (que também não cita)
por só se ocupar do teatro, e não ter lido o Ménon, de
Aristóteles, porque, enfim, a histérica não é uma mulher
(p.145). O Ménon trata da virtude e do conhecimento.
Sócrates mostra como o escravo, que não sabia saber,
sabe matemática, o que, para Platão, é prova da
reminiscência. Lacan está interessado aí na distinção
entre verdade e saber. É aí que lhe serve a reversão da
garrafa de Klein, na medida em que o saber se prolonga
revelando-se como saber da verdade (p.145).

Não se trata de amar a verdade, o que, claramente, não


seria mais do que uma festa de caridade (p.144). Neste
claramente, Lacan reconhece a presença da Aufklärung,
representada pela presença do discurso do analista. É
que a histérica conjuga a verdade de seu gozo com seu
saber implacável de que o Outro apropriado para causar
o seu gozo é o falo, vale dizer, um semblant. E isso, antes
de tudo, por sua própria estrutura de sujeito (p.143).
Como o alcance desse gozo, contudo, é da ordem do
impossível, a histérica atribui esse poder de detenção do
semblant ao menos a um, que Lacan chama de
homoinzun, cuja escrita pode ser expressa
algebricamente como a∪-1, para não esquecer que pode
funcionar como um objeto a (p.143) e passar do discurso
da histérica ao discurso do analista, o que equivale a um
xeque-mate no mestre. É assim que ela cumpre seu
destino de relançar o analista ao saber.

Notas:
André Brenton. (1924b/1992) Introduction au discours sur le peu de
réalité, in Point du jour, Oeuvres Complètes II. Bibliothèque de la
Pléiade, Paris, Gallimard, p. 266.
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
16 de junho de 1971
X. Lição "Do mito forjado por Freud".
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
12 de janeiro de 2021 12 de janeiro de 2021

Quando o homem não faz idéia das Que me importa esse Giges,
coisas Potente rei de Sardes?
remotas e desconhecidas, as estima Não quero, nem invejo,
pelas O cetro dos tiranos.
coisas presentes e conhecidas. Se por tais glórias ardes,
GIAMBAPTISTA VICO, Scienza Nuova, Por certo que me vejo
1725. De gostos mais humanos.
• Chegamos à última Prefiro perfumosas
aula desse Seminário. Mas, numa perspectiva Ter a barba e as melenas;
viconiana,1 ela bem poderia ser a primeira, Coroar-me de rosas
E, antes que ele se acabe,
inaugurando um novo ciclo de leitura desse complexo Gozar o dia de hoje.
Seminário, já que os pontos cruciais que Lacan Pois – amanhã – quem sabe?
trabalhou ao longo desse ano estão aí presentes. A ANACREONTE, As
começar pelo título, destacando que o colocou no tempo Anacreônticas. Ed. Campbell,
condicional, como hipótese, o que reforça a colocação Nº 8, 2001. Trad. de Almeida
Cousin)
de Luiz-Olyntho no comentário a primeira lição, de que
a melhor tradução ao português é De um discurso que
não seria do semblant.

• Retoma que os discursos que estabeleceu no seu Chegamos a última aula do 18º Seminário de Lacan. Ele
seminário do ano anterior se dispõem numa certa busca, agora, fixar o sentido de seu título. Antecipa, em
ordem, privilegiando o discurso do analista, na medida sua preocupação, a importância da Bedeutung,
que é o discurso que esclarece a articulação da verdade discriminada por Frege em Sinn e Bedeutung, o sentido e
com o saber, ou seja, o saber que importa e move o a significação, o sentido e a denotação e também o
sujeito vem de uma verdade que não se tem acesso de sentido e o nominatum.
modo direto.
Ressaltando também o tempo condicional da frase, uma
• Daí o valor da descoberta freudiana, através das observação que não parece ter sido registrada pela
histéricas e obsessivos, do sintoma, ou seja, no lugar do
tradução, ele parte dos discursos já trabalhados no
que não pode ser reconhecido como causa do gozo, algo Seminário anterior, frisando a importância de sua
emerge como substituto dessa verdade. ordem, começando pelo discurso do amo, e seguindo
pelo da universidade, da histérica e do analista,
• Daí também Lacan vai precisar da noção de estruturados sempre a partir de um semblant, sendo
semblant, sendo justo isso que pode ser articulado num que o último privilegia a articulação da verdade com o
discurso, valendo-se dos recursos da linguagem, para saber.
fazer emergir a verdade do sujeito de modo a dar
sentido aos efeitos da castração. Isso tudo para 1.
enfrentar a verdade que realmente importa: não existe O saber de que se trata, é o do analista, enquanto
a relação sexual. Ao menos, é o que Lacan passou este suposto pelo neurótico, e a verdade em questão é a dos
ano a nos dizer, do impossível de escrevê-la. histéricos e dos obsessivos, estruturada através da
linguagem, em especial de uma linguagem que se
• E afirma que todo discurso possível só apareceria cristaliza no atravessamento de uma dimansão (Lacan
como semblant (pg.156), fazendo suplência ao que fala. diz demansion) construída no tempo da vida do sujeito,
marcada, sobremaneira, pela religião, da qual diria, não
• Lacan também deixa aberta, na lição final deste se pode perder o sentido de re-ligar. Dizer que uma
Seminário, a questão de saber se é pelo fato de ser linguagem condiciona a verdade é dizer da limitação da
falante que as coisas são assim ou se, ao contrário, é pelo verdade imposta pela linguagem de cada sujeito, e
fato de a origem estar em que a relação (sexual) não é também dizer que o neurótico é aquele que dá mais
falável que é preciso, para todos que habitam a crédito à sua verdade, ignorante que é do que ignora.
linguagem, que se elabore aquilo que possibilita, sob a
forma da castração, a hiância deixada no que é O discurso do neurótico surge com o sintoma. O sujeito
biologicamente essencial à reprodução desses seres como imagina a vida de um jeito e ela lhe sai de outro, e isso a
viventes para que sua raça continue. (pgs. 156/7) ponto de o sujeito não mais reconhecer-se. É nesse
momento que Lacan associa com a operação de
• Parece apostar nessa última hipótese, ao colocar que
subversão marxista. Em parte porque Marx havia
os rituais de iniciação sexual, presentes até hoje em
definido o sintoma como o que não funciona no Real e,
inúmeras culturas, surgem no lugar da impossibilidade
em parte, por sua teoria do conhecimento contrária à
de escrever a relação sexual. É o recurso da cultura
posição idealista de Hegel – advogado da imobilidade
para fazer marca ao órgão que representa o terceiro
das classes sociais –, e que acreditava na possibilidade
elemento necessário para inscrever a castração, ou seja,
subversiva da classe trabalhadora, que ele chamava de
a submissão à lei que instaura o falo como limitador e
proletariado. Em outros termos, trata-se da distância do
ordenador do gozo entre o homem e a mulher.
eu atual ao eu ideal, conforme proposto por Freud.
• Ao que parece, habitar a linguagem nos retira da
condição de responder à natureza e, consequentemente, A importância de Marx, para Lacan, é que a subversão
no que diz respeito ao gozo sexual, coloca uma marxista introduz, pelo engano aí denunciado, a
dificuldade ao não ser possível escrever a relação dimensão do semblant. E o discurso que lhe interessa
sexual. Isto é a castração. não é, então, o do semblant, vale dizer o do engano. O
motor da subversão é o reconhecimento de um valor
• Pela histérica Freud nos conduziu a reconhecer que cujo semblant, por seu peso e medida, é tomado como
sua relação com o falo faz semblant a esse mistério do moeda sonante. E como esta denúncia gira em torno ao
gozo sexual. Pela linguagem, só alcançamos uma dinheiro, ao capital, ela enuncia algo da mais-valia, uma
Bedeutung do falo, uma significação, sem jamais promoção da mais-valia como argumento da subversão.
alcançar seu sentido verdadeiro. Só sabemos da
verdade por um discurso oblíquo, onde jamais teremos Neste sentido, o discurso do capitalista é uma
a = a, onde um termo está sempre a significar a outro determinação do discurso do amo. Agora, o que leva
termo, mesmo quando usamos um mesmo nome, Lacan a chamar determinação, é uma inversão da
fazendo Lacan ai diferença entre nome (name, como posição do semblant com a da verdade: O $ – no lugar
nome próprio, em inglês) e nome (noun, como da verdade do amo – é o ocupante do lugar do agente,
substantivo). do lugar do semblant, e, apoiado na verdade o amo,
explora o saber do outro para obter, como gozo, um
• É no nível do nome próprio que fica claro que sua lucro.
função é fazer falar. O nome é aquilo que chama, diz
Lacan (pg.160), chama a quê? A falar. Já o falo, chame o
quanto quiser, continuará a não dizer nada (pg. 160).

• Eis a importância, da formulação de Lacan, da


metáfora paterna, do Nome-do-Pai como o que vem Disc. do Amo Disc. do Capitalista

para dar nome e encarnar o falo, um significante a dar


sentido ao desejo da mãe, desejo esse que é o x, o Frente a isso, Lacan prefere ver o discurso freudiano
sentido que não se alcança saber. colocando em causa o que se articula como verdade em
oposição a um semblant. E o que se articula como
• Lá na aula 3, de 10 de fevereiro, Lacan havia verdade é a não existência da relação sexual.
explorado a relação do significante como referente do
discurso, e retomo aqui o que lá registrei nos meus Está bem, não há relação sexual. Mas como isso se
comentários: O referente de um discurso é sempre real, apresenta no discurso do neurótico? Lacan responde: -
por isso impossível de designar, e toda designação é Como um fio enrolado em torno ao vazio, e o analista fica
metafórica. O significante evoca um referente, mas nunca a escuta, buscando valorizar o ponto de enigma. A
o certo e assim construímos uma linguagem. detecção desse enigma apoia-se em uma discordância
com o semblant. Algo em torno a uma composição do
• É nesse sentido que o significante mestre do discurso gozo com o semblant, de uma intrusão, nessa
analítico é realmente o Nome-do-Pai, afirma Lacan composição chamada de castração, e que no neurótico
(pg.161). Isso por ser o nome do pai que implica a lei, aparece como temor, como evitação.
segundo Freud, e segundo Lacan, por instaurar o pai
como o que inaugura a castração, o marco zero da Os rituais de iniciação passam todos eles por algum tipo
castração, por assim dizer. de castração, seja real ou simbólica. A observação geral
é de que se, por um lado, sempre inspira temor, por
outro sempre há constância. As marcas dessa operação
• Isso é o que o mito engendrado por Freud em Totem ficam registradas no órgão que, por isso, passa a
e tabu, o mito do pai da Horda, representa. A partir funcionar como símbolo, na medida em que lhe
desse pai castrado, todos os outros deverão ser ultrapassa. Trata-se do falo, representante, tanto para o
numerados. E para nos ilustrar esse feito, Lacan lembra homem, como para a mulher, das dificuldades com o
o valor da nomeação nas dinastias, que inclui uma gozo sexual.
numeração: Geoge I, George II, George III, etc. A
necessidade lógica disto diz da verdade do bem Nesse propósito, Lacan ocupa-se com a coerção à
conhecido ditado latino, Mater semper certa est, pater castração na medida em que ela implica uma lei e a
nunquan: a mãe sempre é certa, quanto ao pai, nunca. submissão à essa lei leva à complacência, em especial
Isso vale para lembrar que o pai está submetido à da histérica, da histérica em pessoa, mas valendo para
castração a ponto de ser apenas um número. A relação todos. A prática da subincisão (p.157) ajudou-me a
da mãe com um filho é um dado da natureza que não compreender todas estas práticas que deixam sua
deixa dúvida, já o pai, como elemento da cultura, marca no pênis. Ela consiste em um aumento da
necessita ser nomeado/numerado (nom/nombre). O pai é abertura da uretra, no pênis, de até dois centímetros,
uma questão de fé. praticada nos meninos, muito precocemente, em
cerimônia pública. E o interessante é que, nessas
• A seguir, Lacan define o neurótico pela evitação da ocasiões, os rapazes mais velhos dessas tribos
castração. Para a histérica, a forma lógica de proceder australianas voluntariam-se, orgulhosamente, para
essa recusa é colocando a castração no outro, como aumentar essa abertura que, em alguns casos, pode ir
princípio da possibilidade do gozo histérico, ao mesmo até o início do escroto, obrigando os homens a urinar
tempo em que o outro deve responder no lugar do falo. abaixados, do mesmo modo que as mulheres.
Se, de acordo a Lacan, o assassinato do pai é o substituto
dessa recusa da castração, e o falo é o que fecunda, 2.
sendo toda criança uma reprodução do falo, vemos o E o que é a histérica em pessoa? Uma máscara!
quanto é complexo para a histérica aceder ao gozo, pois Característica que permitiu a Lacan ver que o gozo,
primeiro precisa recusar a castração como elemento escrito com a variável algébrica x, não se situa por
associado ao todo-gozo do pai, e faz isso colocando-a no relação ao falo, escrito como Φ. Trata-se sempre do
outro, ou seja, o outro é não-todo gozo; só assim pode semblant do falo. Daí seu interesse pela Bedeutung, tanto
tomar o outro como ocupante desse lugar que lhe dá no nível conotativo, subjetivo, como no denotativo, no
acesso ao falo, logo, ao gozo. Uma operação logicamente nível de sua extensão e, principalmente, com a
difícil. Bedeutng, na leitura de Frege, quando se detém no
exemplo de o autor de Waverley, que veiculará um
• Para o obsessivo, alcançar o gozo passa pela dívida de sentido (Sinn) e Sir Walter Scott, seu autor, que veiculará
não existir (pg.165); ele se esquiva do não existir, diz uma designação (Bedeutung). A pergunta de se será
Lacan (pg. 165), onde não existir remete ao gozo possível substituir, sempre, Sir Walter Scott por o autor
original do pai, logo, à castração. Se o pai mítico da de Waverley, justifica-se devido ao fato de a primeira
Horda precisou ser assassinado para que os filhos edição desse primeiro romance histórico (Scott é o pai
pudessem aceder ao gozo, logo, gozar remete ao do romance histórico) ter saído anonimamente, e serviu
assassinato do pai, leia-se ai, à castração do pai. Por isso para ele tornar-se conhecido assim, como o autor de
o Nome-do-Pai opera no filho como herança e é o que Waverley. Então, quando começaram a sair os outros
suporta a função fálica, ao unir o desejo à lei, romances do mesmo gênero, de sua autoria, o público se
lembrando sempre que o gozo absoluto é punido com a referia a ele assim, como o autor de Waverley.1 Seguindo
morte, logo, só resta aceitar a castração, um gozo com suas associações, Lacan percebe que o interesse
limitado. O problema para o obsessivo é que parece que pelo assunto surgiu de uma pergunta do Rei Jorge, o III
ele fica paralisado frente a constatação que afirma: Se ou o IV? Não importa qual, mas sim que o nome do pai
Deus está morto, nada mais é permitido. O efeito da pode ser numerado, enquanto o da mãe não. Escute-se a
marca deixada pelo pai morto é mais imperiosa que sua força da tautologia: Mãe é mãe! Trata-se da diferença
vigência em vida. entre numéro e nombre, quer dizer, do número,
enquanto cifra, e do número, enquanto quantidade, por
• Lacan encaminha o final dessa aula dizendo que,
um lado, e, por outro, da diferença entre name, que será
aquilo que se herda da operação do Édipo, o luto pelo
sempre o nome próprio, e noum, que será o nome
pai morto, é o supereu. Este terá na sua essência um
comum, o substantivo.
apelo a esta reminiscência do gozo puro, a não
castração, sendo seu mandato essa ordem impossível de
São dados que permitem ao autor dizer que a
satisfazer: Goza!(pg.166)
característica do falo não é propriamente ser o
• Amar e gozar é o paradoxo que vive o neurótico e significante da falta, como se diz a três por quatro, mas
que o paralisa ao tomar esse mandato do supereu como sim aquilo de que não sai nenhuma palavra (p.159).
um condicionante moral. E Lacan finaliza a aula
invocando as palavras do Eclesiastes.2 Trago aqui o Sua ocupação com o nome passa por Carnap que
versículo que suponho ser de onde Lacan buscou a traduziu a Bedeutung de Frege por nominatum. O nome é
citação que faz: Goza a vida com a mulher que amas, aquilo que chama, a quê? A falar. E o falo não diz nada.
todos os dias da tua vida vã, os quais Deus te deu debaixo Mas serve para ver a consistência da metáfora paterna,
do sol, todos os dias da tua vaidade; porque esta é a tua escrita, desde A instância da Letra, não como registra a
porção nesta vida, e no teu trabalho, que tu fizeste tradução, mas como
debaixo do sol. (Eclesiastes 9.9)
____________________
Notas: ,
1. Giambaptista Vico (Nápoles, 1668-1744). Filósofo, historiador e e não como x minúsculo, como consta no texto
jurista italiano. Sua principal obra, Scienza Nuova (Ciência Nova), publicado por Zahar, mas sim com o s minúsculo do
de 1725, tornou-se um verdadeiro clássico da teoria da história a
partir do século XIX, Para ele existem verdades humanas que não
significado.
podem ser demonstradas através das evidências racionais. Para
Vico, a história é uma repetição cíclica de três idades: dos deuses, No caso de Schreber o nome do pai, que daí deriva pode
dos heróis e dos homens. dar sentido ao desejo da mãe, mas, no
2. O nome Eclesiastes é uma tradução da palavra hebraica
Koheleth, que significa “aquele que reúne” ou simplesmente um
pregador. No início do livro, este se denomina como filho de Davi,
rei em Jerusalém. Não se sabe ao certo a data em que foi escrito, caso da histérica, o discurso do analista pode produzir o
alguns estimam que foi em 935 a.C, na era do rei Salomão, outros, nome-do-pai. Veja-se o relato da análise de Gérard
que foi escrito aproximadamente em 250 a.C. Este livro é muito
conhecido por dizer que, na vida, tudo é vaidade.
Haddad, com Lacan, no momento em que volta a
interessar-se pela religião dos pais e encontra, nas leis
do Talmud, serventia para seu trabalho. Como diz
Lacan, o nome implica essencialmente a lei (p.161).

3.
Lacan aborda um aspecto menos óbvio do Complexo de
Édipo. Antes que apontar a primazia do pai, destaca sua
numerabilidade. Lembram que o jovem Édipo foge de
Corinto para escapar da previsão oracular. Para não
matar o pai Pólibo termina por matar o pai Laio. O pai é
sempre mais de um, daí sua numerabilidade observada
em reis, faraós e tais, enquanto a mãe é inumerável. Por
outro lado, avós e mesmo bisavós – que é outro modo de
contar –, também podem ser pais. Entre os egípcios, a
pratica do incesto entre os governantes foi bastante
comum. Amenófis III, por exemplo, conforme recentes
estudos genéticos, com uma de suas filhas foi pai de
Tutankamon e, na morte deste, casou com sua esposa a
qual, por sua vez, era sua neta. O pai tem uma história
que pode ser contada, enumerada.

Quanto ao neurótico, um modo de defini-lo é pela


evitação da castração. A histérica faz isso colocando-a
por inteiro no seu parceiro: ele precisa ser castrado. A
expectativa histérica é que desse modo ela possa gozar,
pois, como bem diz Lacan, é a castração que permite a
relação sexual (p.163).

Em seus estudos sobre o Moisés, Freud, de acordo com


Sellin, também aceitou a hipótese histórica de que
teriam havido dois, um que saiu do Egito e outro que,
depois de 40 anos, chegou a terra prometida. Lacan
chama a atenção para a ressalva feita por Freud de que
não criticaria isso, mas ele não nos diz onde. Contudo,
parece uma alusão à Nota Preliminar II, da parte III, do
seu Moisés e o monoteísmo, onde compara seu livro a
uma dançarina que se equilibra na ponta de um dedo
do pé.

A sucessão numérica envolvendo o pai, vista pela lógica


de Peano, postula o zero – um número natural, e neutro
– como necessário à formação da série. É assim que
compreendemos o que significa o assassinato do pai
(p.164).

Lacan reporta-se a uma observação original de outro


escritor: nenhum dramaturgo ousou manifestar o
assassinato deliberado de um pai, na condição de pai,
pelo filho (p.164). Nem no teatro grego. Quando Édipo
mata Laio, não sabia que era seu pai, foi apenas uma
disputa entre dois idiotas pelo poder. Mas o
interessante, e agora a observação é do próprio Lacan, é
Freud, na elaboração do seu mito, ter colocado o
assassinato do pai no centro mesmo de sua formulação.
Esse assassinato aparece como substituto da castração
recusada, conforme a abordagem da histérica.

Nunca está demais lembrar que foram as histéricas a


abrir, para Freud, a possibilidade da psicanálise. Do
ponto de vista dela, é o falo que a fecunda.
Engendrando-se assim o falo a si mesmo, a criança, seu
filho, o reproduz.

Assim como Lacan designa como namaqum (papludun) a


possiblidade logicizada da escolha na relação
insatisfeita da proporção (rapport) sexual, também é
por aí que Freud vai buscar o modelo para seu
monoteísmo em Aquenaton (o horizonte de Aton, o Sol);
afinal, para Freud, Moisés também era egípcio. E a
figura desse faraó, que, antes de mudar seu nome,
chamava-se Amenófis IV (ou Amenothep IV – Amon está
satisfeito) e foi casado com Nefertiti (que não era sua
parente), pareceu-lhe sexualmente ambígua, não
apenas castrada mas francamente femininas, como se
ele e sua mulher fossem duas irmãs.

A castração pode ter uma relação com Φ de x, mas não é


por aí que podemos designá-la, mas sim pela relação do
não todos, ou não todas com o falo (-∀ Φ x ).

A mediação que aí se encontra é efetuada pelo ao menos


um encontrada no n + 1, de Peano, no qual se pressupõe
que o n precedente se reduz a zero, uma redução
possibilitada pelo assassinato do pai. É por esse sentido
oblíquo (Frege diz ungerade) que o assassinato do pai se
relaciona com a Bedeutung, com a significação do falo.

Em Totem e tabu, o gozo original, do pai da horda,


corresponde à evitação da castração, tal como o
obsessivo mostra ao esquivar-se da castração. Para ele
não há x que possa inscrever-se na variável Φ de x. O
obsessivo se esquiva simplesmente do não existir. É daí
que Freud parte para a criação do supereu, cujo
imperativo é: - goza!
_________________
Notas:
1. Relato de uma viagem desde a civilização até a incivilização, ao
selvagem.

Fonte:https://en.wikipedia.org/wiki/The_Meaning_of_Meaning#:~:text=The%20Meaning%20of%20Meaning%3A%20A,Crookshank.

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