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Leituras do
Seminário 18 de Jacques Lacan
DE UM DISCURSO QUE NÃO SERIA DO SEMBLANT
1971
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
13 de janeiro de 1971
Capítulo I. Introdução ao título desse Seminário
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
04.08.2020 04.08.2020
É, pois, da impossibilidade de o sujeito analisante expressar-
se na língua que está à sua disposição para dar conta do que
• Esse Seminário se constitui de 10 conferência (janeiro a o atormenta, que ele busca, na relação de alteridade que
junho de 1971) pronunciadas na Faculdade de Direito. O estabelece com o analista, condições nas quais venha a criar,
fazer com a língua, por meio do erro, das falhas de seu
mais breve de Lacan, até então, exceto pela uma só aula do próprio dizer. Nessa condição do erro, do equívoco na fala –
que seria o Seminário dedicado aos Nomes-do-Pai, em 1964. embora não intencional, ainda que não ocorra sem uma causa
• Durante este Seminário, Lacan viaja ao Japão. –, é nesse ato, pois, bem sucedido, como dizemos, que vai
• Lacan está interessado em explorar a relação entre a irromper o sujeito, que ele cria na língua, por meio da
palavra e o escrito, ou seja, entre a letra e a palavra. simbolização de um Real que insiste.
MARIA TEODORA DE BARROS OLIVEIRA, rodopiano, pp.61-2
• Inicia escrevendo no quadro negro o título do Seminário:
De um discurso que não fosse do semblante.
• Depois retoma o que havia desenvolvido no Seminário
anterior (O avesso da psicanálise): Os discursos são 4.
• O discurso do mestre não é o avesso do discurso da O título desse primeiro capítulo indica o reconhecimento,
psicanálise; o avesso seria como dois lados separados; por parte de Lacan, de uma certa ambiguidade concernente
direito e avesso; ao título do Seminário: D’un discours qui ne serait pas du
• Retoma o texto O Inconsciente, de Freud, onde falou de semblant, traduzido por Vera Ribeiro por De um discurso que
dupla inscrição: Formulou duas hipóteses. Primeiro a não fosse semblante. Pois essa ambiguidade deixa seus
topológica e depois a hipótese funcional: na primeira há primeiros traços nessa tradução, que a leva a trocar o tempo
uma inscrição da percepção no inconsciente que representa e o modo do verbo, a suprimir a contração da preposição de
a ideia e há uma inscrição de uma representação desse junto ao artigo definido o, e a confundir semblant com
elemento que será o seu pensamento no pré-consciente. Aí semblante.
estaríamos no modo direito e avesso; na hipótese funcional, A diferença entre os tempos é sutil, mas existe. Na frase
Freud atribuiu a uma mesma inscrição que seria a de Lacan temos o présent du conditionnel, formado com o
representação coisa no inconsciente e busca acesso através mesmo radical do futuro simples e a desinência modo-
de um representante da representação pela palavra para a temporal do imperfeito, serait, que em português
consciência. Considerando isto, Lacan elaborou a corresponde ao futuro do pretérito simples, seria. A
formalização dos discursos como torção. Não são dois tradução, não identificando a função do qui francês – o
discursos contrários, mas um que pode passar para o outro pronome relativo que –, confundiu o tempo e o modo do
se há uma torção. verbo do qual se serviu Lacan e usou, nesse lugar, o
• Daí que Lacan vai usar da estrutura da banda de Moebius pretérito imperfeito do subjuntivo, fosse, que tem por função
para sustentar que esses dois discursos, mesmo estando expressar dúvida ou desejo, nunca uma certeza, enquanto o
em dois lados opostos, um tem continuidade no outro, futuro do pretérito expressa uma incerteza e também uma
passando por esse meio giro da torção; surpresa e uma indignação em relação a algo que poderia
• Um discurso não tem por referência um sujeito. O ter acontecido posteriormente a um determinado passado.
discurso não é do sujeito, mas o determina. Minha opção pelo futuro do pretérito apoia-se, como se
• Salienta que num discurso, o sujeito está ausente; por vê, em outra desinência. Ao longo do seminário aparecerão
isso não se trata do seu discurso; as consequências de uma e de outra opção.
• Daí o equívoco de pensar que há em falar de A preocupação de Lacan, contudo, mais que com o
intersubjetividade; só se pode falar em intersignificação; predicado, parece-me ser com o substantivo – discurso –
• E afirma que um discurso é o que se articula a partir de acompanhado de seu complemento nominal – do semblant.
uma estrutura; E para dizer o que entende por discurso, começa glosando
• Lacan pretende a subtração da presença, pois nisso não ser o dele. Pois eu posso afirmar que também não é o
consiste a vacilação do sujeito que só está quando um meu em questão.
discurso se realiza; Ora, Lacan dedicara seu Seminário anterior justamente
• Menciona a revista Scilicet 2/3, destacando dela dois aos discursos que, de forma reduzida, ele faz questão de
traços: 1) ausência da presença, sendo esta o que faz dizer, enumera quatro, marcando, para todos eles, uma
marcar o mais-de-gozar. Lacan pretende ir mais além do estrutura tetraédrica e constante, por cujo quadrípodos
que chama o incômodo das aparências, e isto está na base giram os diferentes discursos, a começar pelo do mestre,
de pensar um discurso que não fosse do semblant. E sempre na mesma ordem, seguindo o da universidade, o do
destaca que a originalidade de seu ensino é o fato de que analista e o da histérica, salientando o que dissera no
ele, a partir do discurso analítico, coloca-se, em relação ao Seminário anterior, que o discurso do mestre não é o avesso
público, em posição de analisante; 2) o segundo traço refere do da psicanálise. Trata-se antes de torções, as quais
a escrita sem assinar, aposta que está no propósito da buscam possibilitar o que Freud chamava de dupla inscrição,
revista Scilicet, onde não havia assinatura do semblant. E como fica claro em seu estudo sobre a negação: ao dizer
diz da sua aposta: nenhum discurso pode ser autoral; ali isso esta não é minha mãe, a inscrição inconsciente inscreve-se
fala. também na consciência. Lacan, utilizando-se da cinta de
• Repete, ao longo da primeira aula, oito vezes o título do Möebius mostrou a possibilidade disso sem a transposição
Seminário De um discurso que não fosse (do) semblant para: de uma borda.
1) Dizer que esse é o discurso que dá posição ao analista; O título do Seminário, ao ocultar o sujeito, diz, de per se,
2) Dar nome aquele discurso que vai mais além do que o discurso não tem por referência um sujeito, mas sim
incômodo da aparência (Um discurso só existe se o que o determina. Partindo da intersubjetividade, Lacan joga
denominamos e aí podemos interrogar-nos) com a presença do outro: em francês, a palavra presse serve
3) Dizer que ao enunciar de uma forma hipotética, lembra bem para seu desígnio: é também a pressão do plus-de-
a Freud no texto A denegação, quando examina os juízos de gozar. E o radical inter, de intersubjetividade, de entre um e
atribuição e de existência; alí diz que ao negar, estamos outro é expresso pelos símbolos S1 – S2, os significantes
afirmando a existência e Lacan desliza para dizer que na
que dizem do sujeito na sua ausência, marcas do
sua formulação, espera dar existência a um discurso onde
inconsciente.
isso não fosse semblante, um discurso que possa portar A passagem pelo discurso da universidade leva a marca
um outro saber que não o do semblante de discurso que do incômodo, por sua neutralidade, provocada pela busca
está para a lógica-positivista da pureza da inter significação. Uma pureza que esconde o
4) E que esse semblante não pode ser completado de uso da língua como artefato, um recurso de Lacan para dizer
nenhuma maneira por algum discurso; que o fato só existe pelo fato de dizê-lo. E, uma vez tornado
• Para o discurso, na psicanálise, não existe nada de fato. fato de discurso, pode-se fazer com ele qualquer coisa, de
O fato que existe é o de dizê-lo; vale dizer que o discurso só uma obra de arte a uma mentira, às vezes como expressão
existe no momento em que é enunciado; esse é o fato (a de verdade, embora os exemplos do último caso, desde
isso chama artefato); Entendo que Lacan chama a atenção Epimeteu, não abundem.
aí para o que reúne seu público a escutá-lo, não importando Para dizer do semblant, galicismo já incorporado pelo
o que será dito, mas por saberem que algo será dito. Um dicionário Houaiss, com a conotação de exterioridade
discurso vale não por ser discurso, mas por ser dito; enganosa, Lacan contrapõe-se ao positivismo lógico,
• Esclarece que não se trata de semblante de discurso, já requerente, para sua comprovação, de uma verificação. Na
que isto está para sustentar uma posição lógico-positivista, psicanálise, nascida sob o signo de Édipo, de modo
que submete um significado a prova do sim ou não, e isto diferente, sabemos da verdade de uma interpretação por
não tem sustentação desde a experiência analítica, onde a suas consequências. Na psicanálise, a interpretação
verdade da interpretação só sabemos pela consequência desencadeia a verdade. É o que nos permite dizer,
que desencadeia (só se é verdadeiramente seguida. parafraseando um título dos Escritos, que o desejo é a sua
Entendo que Lacan aponta aí que o efeito de verdade toca interpretação. E o efeito dessa verdade, se não é semblant, e
ao real (relacionado ao Édipo) e por isso não é semblante; é sim sangue vivo, sangue de Édipo, ele não refuta o semblant.
sangue vivo. O discurso como artefato é o nosso dia-a-dia, enquanto o
• Lembra que no pensamento científico partiu do que a sustentável é o da ciência, o qual começa pela aparência
natureza oferece de mais aparente, que se sustenta no dos astros. Ocupa-se dos meteoros: o vento, a chuva e o
semblante, a observação dos astros (Descarte, Teoria dos arco-íris. O trovão – indicador do raio, do dardo de Zeus –, é
meteoros, 1637). E toma o trovão como a própria imagem signo do nome do pai, muito bem representado no
do semblante. E diz: O trovão é um sinal, mesmo não Finnegans Wake com palavras de uma centena de letras,
sabendo sinal do quê (essa inscrição do Trovão indicando sempre novos inícios. O trovão é a imagem do
encontramos de forma brilhante no Finnegans Wake, de semblant e o que importa mesmo é que o significante é
James Joyce). Daí que todo discurso é semblante. E lembra igual ao status do semblant. Trata-se, enfim, da relação com
que os significantes também estão na natureza, estão aí e o real genesíaco, desse real que sempre está.
não são uma coisa individual (lembra que a letra A é uma É nessa medida que não há semblant de discurso.
cabeça de touro invertida); Discurso é semblant na natureza (porque está na natureza)
• Termina essa primeira aula falando do ponto mortal, o e um sujeito só pode ser produto da articulação significante.
gozo, aludido por Freud no seu texto Mais além do princípio Sua forma genitiva objetiva – por sua atuação passiva – o
do prazer. O gozo é efeito de discurso. E o discurso do determina, diferente do genitivo subjetivo, cujo princípio é
inconsciente é a emergência de uma certa função do ativo. Assim, o sujeito não determina a articulação
significante e, Um discurso que não fosse (do) semblante significante, antes é por ela determinado.
teria de escrever as consequências desse impossível de se O reconhecimento da emergência do discurso do
inscrever. inconsciente, desde um real impossível, enquanto expressão
do que não cessa de não se escrever é o que teria alguma
Fica a questão: o que pode possibilitar essa torção? chance de ser um discurso que não seria falso, para dar
uma outra tradução possível às palavras de Lacan.
3.
Para Lacan, a sexualidade é importante desde o ponto de
vista do que ele chama de rapport sexuel, onde rapport tem
três sentidos: o mais antigo é o de relato, depois vem o de
proporção e, finalmente, o de relação. É nesses sentidos que
o rapport não existe, quer dizer, que não existe de forma
definitiva. Os infindáveis romances de amor estão aí para
provar que o relato definitivo nunca foi escrito; as
proporções entre o homem e a mulher são desequilibradas
e não existe a relação absolutamente satisfatória: nem bem
se termina uma e já se pensa na seguinte.
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
10 de feveiro de 1971
III. [O] Contra [d]os linguistas
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
1º de setembro de 2020 1º de setembro/2020
• Lacan começa esta aula comentando sobre a greve1 que Lacan não tinha o costume de batizar cada uma das aulas
ocorria em Paris neste dia e diz: Não faltarei à presença de de seu seminário com um título. Deduzo então que cada um
vocês. Lacan fala de seu compromisso com seu público, e dos títulos das aulas constituintes de seus Seminários seja
que o que o leva a manter sua aula é a cortesia ou o yi, em coisa de seus editores. Não é má ideia! Ajuda o leitor a
chinês, ou seja, responder com imparcialidade; é uma das situar-se no tema a ser desenvolvido.
quatro virtudes fundamentais.2
Neste 3º capitulo pareceu-me conveniente modificá-lo,
• Lacan propõe ao seu público uma conversa familiar, justamente para dar uma noção mais precisa do tema a
diferente do que havia pensado em falar, em função de um seguir, pois, nele, Lacan, para os linguistas, é quase só
artigo saído no jornal que tratava sobre os investimentos na elogios. Então, o que proponho é substituir o proposto
Universidade, sobre o qual não parece muito de acordo. Diz "Contra os Linguístas", por O contra dos linguistas. O que
que sua guinada é o modo de levar em conta a greve. Lacan faz, neste momento, é valer-se da crítica que lhe
fazem os linguistas para dizer o que pretende: a importância
• Refere então que sua relação com a Universidade é da metáfora na construção da linguagem.
marginal, embora lhe deva respeito por ter sido acolhido por
ela. Menciona então os muitos ruídos incidentais, ecos e A crítica dos linguistas, na verdade, de alguns linguistas, é
murmúrios que têm chegado a ele desde o campo que Lacan, da linguística fazia um uso apenas metafórico.
universitário da linguística. E faz referência especialmente a
Uma das justificativas para tal, está na diferença entre sei a
um artigo de um linguista, que havia saído há 2 anos na
que me ater e sei onde me posicionar. Parece-me como se o
revista La nouvelle revue française (nº 163 de 10 de janeiro
importante fosse o objeto da observação, mais do que a
de 1969) [o linguista é Georges Mounin, e o artigo chama
posição do observador. O discurso da ciência, diz ele,
Quelques traits du style de Jacques Lacan], onde ele faz
repudia esse onde me posiciono. É porque a hipótese não
muitas críticas ao modo como Lacan empregou a linguística
se comprova que Newton teria criado a expressão
no campo da psicanálise. Mounin chamou o uso feito por
hypotheses non fingo; ele não a simula porque, enfim, como
Lacan dos conceitos lingüísticos de coloração estilística,
diziam os escolásticos, ex falso sequitur quodlibet, de uma
eque só é justificada pelo contexto intelectual da época. 3
premissa falsa podemos concluir uma apódose verdadeira.
O cientista precisa ter a coragem de abrir mão da hipótese
• Lacan lê neste artigo a sineta que teve que ouvir, embora
quando se comprova errada.
seja surdo, indicativo de que seu lugar não é sob a marquise
da universidade. Por outro lado, o importante é ater-se ao objeto em questão.
No caso, ao inconsciente. Daí sua formulação de saber que
• Daí passa a questão que considera relevante colocar o que se diz é o que não se pode dizer. Lacan é socrático no
neste momento: Será que se é estruturalista ou não quando seu só sei que não sei. Para compreender o inconsciente há
se é lingüista? E, daí, se diz funcionalista, referindo que o que valorizar o significante na construção da linguagem,
estruturalismo é uma coisa que serve de rótulo para dizer da pois não há metalinguagem, e é pelo referente nunca ser o
seriedade daqueles que se reservam o direito de falar sobre certo que se constrói a linguagem.
a linguagem. E busca examinar a relação da linguística com
o que ele ensina. Diz que é em torno do desenvolvimento Estamos todos lembrados de Lacan tomar suas bases na
lingüístico que sustenta o eixo do seu ensino e se faz um linguística de Saussure, invertendo seu signo linguístico,
uso metafórico da linguística, acusação desdenhosa de mas mantendo, porém, o valor da imagem acústica do
Mounin, é por reconhecer que só existe linguagem significante e identificando esta imagem com o Real
metafórica. Coisa que os linguístas parecem ignorar. Daí impossível de designar. É na busca de tornar possível esse
considerar abusivo reservar aos linguístas o direito de falar
impossível que se forma e desenvolve a linguagem, mesmo
da linguagem. E mais adiante, em dois momentos, diz: embora essa linguagem esteja prenhe de enganos. E são
justamente esses enganos que o levam a buscar apoio na
A linguística só pode ser uma metáfora que se fabrica de Teoria das Descrições, de Russel: é porque as descrições do
propósito para não funcionar e que a psicanálise desloca-se objeto são sempre enganosas, como mostra a lógica da
com todas as velas desfraldadas por essa mesma metáfora. linguagem-objeto, que nunca estamos certos sobre o
[pg.44 e 50] referente.
• Sustenta que, fala como psicanalista e se tem um É então que Lacan lembra de suas aulas de chinês, da
público que o escuta é porque algo ele sabe. E aí coloca nos função metafórica dos ideogramas. Pois bem, como eu não
seguintes termos o seu saber: Digamos que...Eu sei a que sei chinês, e meu conhecimento dessa língua é apenas
me ater, e faz diferença do enunciado, Sei onde me enciclopédico, minha crítica fica sempre com uma dúvida.
posiciono [pg. 40]. Quando ele está falando da ação, na parte 2, falando da
Notas:
1. Greve, vem do francês grève, terreno de areia ou cascalho a
beira do mar ou beira-rio. Era na Place de Grève (hoje Place de
l'Hôtel-de-Ville), na margem do rio Sena, e Paris, onde se reuniam
os trabalhadores sem emprego ou insatisfeitos com seu trabalho,
deu origem a palavra greve.
2. Na minha pesquisa, encontrei que Yi é justiça, e faz parte de dois
conjuntos de conceitos fundamentais: o Sizi, com quatro elementos:
忠 孝 节
(Zhong ( , lealdade), Xiao ( , a piedade filial), Jie ( , continência)
e o Yi, e também do Wuchang, com cinco elementos: Ren (a
Humanidade), Li (ritual), Zhi, (conhecimento) e Xin (integridade) e
Yi (justiça). Podemos equivaler o responder com imparcialidade, de
Lacan a justiça
3. Cardoso, Maurício José d’Escragnolle. Retorno sobre a influência
de Saussure sobre Lacan. Artigo publicado na revista Analytica
(São João del Rey), v.1, n.1, de junho/dezembro de 2012,
4. Na obra Aspectos da Teoria da Sintaxe, publicada em 1965,
Chomsky define como competência o conhecimento que o falante-
ouvinte possui da estrutura da língua e desempenho como o uso
concreto que ele faz da língua, mas o considera uma realização
imperfeita oriunda de fatores físicos e psicológicos.
5. O matema deste discurso foi apesentado na conferência de
Milão, em 1972: http://espace.freud.pagesperso-
orange.fr/topos/psycha/psysem/italie.htm
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
17 de feveiro de 1971
IV. O Escrito e a Verdade
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
15 de setembro/2020 15 de setembro/2020
• Lacan inicia essa aula apresentando uma formulação Lacan continua, neste capítulo, o relato de seus amores
de Meng-Tzu (Mêncio) escrita no quadro-negro. com o chinês. Ajuda-lhe a ressaltar a importância do
• Ele segue ocupado com a questão: qual é a função da escrito frente a sua interpretação particular da
escrita?(pg. 52)1. Sobre a inscrição, dirá que ela designa linguagem. Digo particular porque, da langage, o Petit
o seguinte: Robert diz ser um sistema de signos vocais (parole) e,
eventualmente, de signos gráficos (écriture). Sim, os
signos gráficos são eventuais, mas não excluem o escrito
Tudo o que está sob o céu [T’ien hsia], não é da linguagem. O registro disso me parece importante
outra coisa que a designação da fala, [yen, que justamente para reforçar a importância da escrita.
pode ser entendida como a natureza], a
natureza do ser falante (pg.54), que se identifica No segundo logograma da primeira frase do mestre
pela linguagem, e que em relação à natureza do
animal, tem uma diferença infinita. Quanto aos
Meng, 下 , tiān, Lacan traduz esse ideograma como
parole, a fala, mas também, como ele mesmo diz mais
efeitos do discurso que está sob o céu, destaca a adiante, pode ser traduzida como linguagem. Aliás, toda
função da causa, que é o mais-de-gozar. E os a frase da primeira coluna da direita
ideogramas tse ku, refere-se a em consequência
da causa.
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
10 de março de 1971
V. O Escrito e a Fala
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
29 de setembro de 2020 29 de setembro de 2020
• A escrita tem a capacidade de, numa única Para dizer da importância do escrito, Lacan lembra de
demonstração, conter diversos elementos que James Février e seus estudos sobre Palmyra, uma cidade
compõem, que presentificam, pelas letras – que ele diz situada no centro da Síria, desde 2000 anos antes de
que é o cumulo do escrito [pg.76] –, a lógica da nossa era, onde foram encontrados textos de Armoritas,
existência do ser. Mas a escrita, necessariamente, vai Arameus e Árabes, além de Palmyreano, os quais
repercutir na fala, que só pode, diacronicamente, permitiram ao historiador1 muitas leituras. Mal sabia
interpretar o escrito. Mas nem tudo não se pode Lacan que, nesse presente século, as maravilhas dessa
escrever. Daí sua afirmativa de Lacan de que não há cidade foram quase todas destruídas, entre os anos 15 e
relação sexual, já que esta é a própria fala, mas não há 17. E, claro, também lembra da importância, para tudo
nenhum modo de escrevê-la. [pg.77] isso, da geometria euclidiana.
4.
Por fim, uma breve alusão ao seu texto sobre A carta
roubada, na qual equipara a carta ao corpo da mulher,
ao corpo da Rainha, por que não!
__________________
Notas:
1. James Février: Histoire de l’écriture, Paris, Payot , 1948.
2. François Jacob, O Rato, a Mosca e o Homem. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998, 160p.
3. Alfred Métrux. A Ilha da Páscoa. E. Fermi, 1940 (1ª ed.).
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
17 de março de 1971
VI. De uma função para não escrever
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
20 de outubro de 2020 20 de outubro de 2020
Introdução
Não existe nenhum caminho A abertura dessa aula é dedicada a chamar a atenção
lógico dos alunos para a importância da leitura de A Carta
Para a descoberta das leis do
Universo;
Roubada, de Poe. Para tanto, ele começa fazendo os
O único caminho é a intuição. estudantes rir. É como se ele seguisse a orientação de
ALBERT EINSTEIN Balthasar Garcian y Morales: Pense como a minoria e
• Nesta aula, Lacan ocupa fale como a maioria.
boa parte dela retomando seu seminário A carta
roubada, de 1966, no caminho de examinar a função do 1.
falo, articulada a um certo discurso [pg.90], buscando Ocupado com a função do falo, a atenção, aqui, está
sua relação com a letra. Segue ocupado em estabelecer a dedicada a um detalhe da descrição – feita pelo Chefe de
relação da fala e do escrito e, mais especificamente, ao Polícia –, do Ministro D: who dares all things, those
que há de especial na função do escrito em relação a unbecoming as well as those becoming a man. Na
qualquer discurso [pg. 93]. tradução de José Paulo Paes, que a tradutora do
Seminário muito teria aproveitado, se a conhecesse, a
• Para o discurso, diz Lacan, uma estrutura de quatro descrição do ladrão está assim: [um tipo] que se atreve a
elementos pode sustentar a possibilidade da sua tudo, tanto ao que é próprio quanto ao que é impróprio
inscrição. Isso é o que ele fez quando escreveu os seus de um homem. Se a formulação deve ser tomada em
quatro discursos. Já a inscrição da letra, que marca a bloco, conforme a recomendação do Mestre, então a
impossibilidade de escrever a relação sexual, parte do tradução de Paes obedece mais ao nosso jeito de falar,
fato que da letra/carta, nada sabemos, a não ser que ela circunstância em que a dignidade sempre vem na
tem um sentido, que é chegar ao seu destino, mesmo frente, como um ideal. Quanto ao verbo To dare,
que, em última instância – e isso serve para qualquer contudo, estou de acordo; ainda que atrever-se esteja
carta – nada se compreenda dela. O importante é o correto, ousar é sua primeira tradução e, no caso, a de
efeito que a carta produz ao passar de mão em mão. maior pertinência. Embora sinônimos, atrever-se deriva
Nada se sabe de seu conteúdo, apenas que a carta de trĭbŭĕre sibi, atribuir-se (a capacidade de fazer algo),
feminiza, ao declarar aquele que a possui, como um ser- enquanto ousar deriva de audērĕ, desejar, querer, como
em-falta. Isso, na medida em que o que a possui nada em audērĕ sapere. A impropriedade apontada tanto pelo
sabe do que ali está escrito, apenas sabe que detê-la lhe Prefect, como por Lacan, não se refere tanto ao ousar as
dá poder. Eis sua função fálica. Esse nada saber da letra, things, mas, sim, antes, a ousar, quer dizer, a desejar all
equivale a condição de alienação a esse significante da tings. O problema, que lhe afeta o caráter, está em
falta, o falo. querer tudo, pois reparamos o destaque dado por Lacan
à importância de poder mirar, o que pressupõe um
• Sobre essa relação entre o nada saber e o como alvo. Depois de roubar a carta, o Ministro prolongou-se
escrever a relação sexual, faz Lacan se aproximar da na sua posse por dezoito meses, findo os quais ele já
interrogação sobre se tudo o que se pensa está fundado nem se lembrava dela. Lembrar-se-ia apenas quando a
na lógica, que gerou o raciocínio matemático, ou se Rainha, agora devolvida à sua posse, mudasse de
resta uma intuição original da qual nada sabemos posição. Uso o verbo prolongar valendo-me da sugestão
dizer? de Lacan ao criticar a tradução de Baudelaire de
purloined por volée, roubada, quando valoriza o prefixo
• Dessa distinção entre intuir e raciocinar, Lacan vai pur que aparece também, por exemplo, em purpose,
aproximar a questão do espaço euclidiano, fundado nas propósito e também do francês antigo loigner, mais o
três dimensões (ALP) para dizer que este pode sustentar prefixo latino pro, que permite dizer, em português,
um discurso, na medida em que podemos tomar até carta prolongada, o que dá a entender a importância do
quatro elementos no espaço e verificar que podem estar en soufrance da carta, mas que certamente leva a perder
a uma distância igual um do outro. Porém, dirá Lacan, o impacto do roubo. É preciso saber no que mirar. Por
se tomamos cinco pontos, a teoria euclidiana não se isso, título é uma coisa, conteúdo é outra. Assim, quando
sustenta mais. Daí, é preciso invocar uma quarta nos defrontamos com um ditado do tipo vive mais quem
dimensão espacial, algo ainda não provado, sendo, até o ousa mais, seria preciso acrescentar o alvo em questão.
momento, apenas intuído. Há também, a propósito, uma certa similaridade
acústica entre ousar e ousia. Embora Lacan não faça
aqui esta transposição, mais adiante, no último
apartado desta aula, ele irá dizer que a importância da
ousia, quer dizer, da essência, está na lógica, na
discriminação lógica.
2.
Examinada no texto de 1956, a tradução do título de
Poe, por Baudelaire, volta a ser discutida, de forma mais
clara, nesta aula de 1971, quatorze anos depois. O que
teria permitido a posse da carta, pelo Ministro D,
prolongada por tanto tempo? Como na física, Lacan, ao
tempo, associa o espaço e os estudos de geometria
Hipercubo, conhecido também como Tesseract, que é
delimitado por figuras tridimiencionais. desenvolvidos desde Euclides, ainda que dissociados dos
conhecimentos filosóficos, até encontrar-se com Luizen
• Para além do tetraedro, a intuição já tem que se Egbertus Jean Brouwer, um matemático holandês que
apoiar na letra [pg. 95], dirá Lacan. O que isso quer valoriza a multiunidade. Há o um, e outro um, e outro
dizer? Suponho que essa letra a que se refere Lacan é um; múltiplos um e não múltiplos de um. Mas Brouwer
justo esse significante que não podemos designar para é também um intuicionista, ainda que valorizando a
definir A mulher. E, faz uma conexão entre a carta de intuição de modo diferente do de Kant. O modo
Poe - com sua função feminizante, já que a carta existe matemático da polícia, preciso, examinando todos os
para uma mulher (a Rainha), tornando impensável dizer pés de mesa, forro dos estofados, cantos e frestas, não
A mulher -, com o mito escrito de Totem e Tabu, que tinham ajudado a encontrar a missiva. Ainda mais que a
também remete a impossibilidade de que o pai possua polícia, pelo fato de o Ministro ter escrito um texto
todas as mulheres. Essas duas impossibilidades, assim sobre matemática, acreditava que ele fosse também um
como a relação sexual que não pode ser escrita, aponta matemático. Mas não, o Ministro D era um poeta. A
a essa estrutura que está para além das dimensões carta purloined, ao contrário de escondida, estava à
espaciais reconhecidas, e que regem a lei que nos vista, ainda que sob disfarce. É por poder ver o espaço
submete a castração, essa que interdita o gozo sexual, desde outro ângulo, que não o matemático, que Dupin, o
produzindo a fala. detetive, consegue perceber imediatamente o
esconderijo, entre as pernas da lareira (e não das
• O gozo sexual só extrai sua estrutura da interdição ombreiras, como quer a tradutora). No lugar
que incide sobre o gozo dirigido para o próprio equivalente aquele que, no corpo da mulher, se chama
corpo...para o corpo do qual saiu o próprio corpo, ou de Castelo do Santo Anjo. É por usar um disfarce
seja, o corpo da mãe[pg.101]. Aí coloca Lacan a relação feminino, caracterizado também pela letra, que o
entre interdição/gozo/estrutura/e o impossível da Ministro se feminiza, e também, por extensão, o detetive
escrita. que aproveita a situação para vingar-se de um
desagravo, sofrido em Viena, com aquele verso do
• Nesse impossível de escrever A mulher, essa que não Atreu, de Crébillon.
existe, temos justamente a letra, que reduzida a sua
condição de operador lógico, é inscritível e pode gerar 3.
uma formulação. Aí Lacan faz toda uma caminhada Então, retomada a posse da carta, Lacan jacula: A
pelas categorias proposicionais de Aristóteles, para Rainha não se dá conta de que é quase fatal que fique
invocar sua função lógica e destacar o não todo x louca por esse ministro, agora que ela o detém, que o
cumpre a função de x. Isso que não se pode escrever da castrou, não é? Para concluir que Isso é amor. Uma
função de x vale para afirmar que existe o inscritível e afirmação só possível porque Lacan está pensando no
que o que se escreve – daí a função essencial na origem Totem e Tabu, de Freud, no seu entender um texto
da escrita – só responde ao não-mais-que-um [pg.100], escrito para provar que não se pode dizer A mulher.
ou seja, só escrevemos e só somamos de um em um. Trata-se, sim, de todas as mulheres, e dizer que o pai
possui todas as mulheres é signo de uma
impossibilidade. Em A carta roubada não se trata de A
• Segue afirmando que a função mulher [p.100], que mulher, mas sim de uma mulher. E Então Lacan faz uma
tem relação com o gozo sexual, é inscritível. Esse é o elo afirmativa, mais uma afirmativa, que leva à pensar: A
que liga o mito do pai da Horda (o pai que goza de todas mulher, essa que não existe, diz ele na p.102, é
as mulheres, o que é impossível) - um mito escrito -, com justamente a letra, a letra como significante de que não
o gozo sexual que não pode ser escrito, apenas interdito. há Outro [S(A)] (as traduções brasileira e espanhola
Daí deriva a importância de interditar esse gozo do registram A barrado). Um ponto que gostaria de discutir
corpo da mãe, instaurando a única lei que institui todo com vocês.
o alcance da fala: a castração.
4.
Na última parte, apoiado nas categorias proposicionais
aristotélicas, Lacan dirá que a discriminação lógica se
dará entre uma afirmação universal, vale dizer uma
essência, uma ousia, e uma proposicão negativa
particular. Usa isso para ensaiar as fórmulas da
sexuação que melhor definirá, dois anos depois, em
Encore.
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
12 de maio de 1971
VII. Lição sôbre Lituraterra
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
03 de novembro de 2020 03 de novembro de 2020
• Lacan começa esta aula justificando o termo Da lama à beira das calçadas,
LITURATERRA1, que a escreve, provavelmente no quadro da água dos esgotos cresciam
negro, e toma como título da aula. Dirá que inventou a pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as
palavra, mas, mesmo que legitimada pelo dicionário de latim telhas cresciam capins
de Ernout e Meillert, o que o inspirou foi o jogo de palavras, mais verdes que a esperança
a aliteração que lhe vem aos lábios e a inversão, ao ouvido (ou o fogo
de teus olhos)
[pg.105]. FERREIRA GOULART, Poema
sujo.
• Menciona, então, a Joyce, que faz esse deslizamento da
O texto desta sétima lição é uma variação do que
letterl2 a litter, da carta ao lixo. Isso me evocou uma
acabara de escrever para a revista Littérature, n°3,
passagem do romance Finnegans Wake, de Joyce, quando a
publicada depois, em outubro de 1971. Trata de sua
galinha Belinda3 encontra no monturo uma carta, todo
preocupação com a contribuição da escrita para o
esburacada, que é justo a carta onde a história de ALP
avanço do conhecimento. A originalidade de seu título
(Anna Lívia Plurabelle), a personagem mãe, será contada.
mostrar-se-á, ao longo do texto, tanto esclarecido como
Penso que não seria equivocado colocar esse escrito de
esclarecedor de suas ideias.
Joyce no que Lacan chamou nesta aula de literatura de
vanguarda, a qual é fato litoral e não se sustenta no
A inspiração de Lacan, para este título – Lituraterra –,
semblante [pg.116]. FW é um texto que não tem significação
um substantivo capaz de predicar, vem de um
em si, mas o efeito dessa escrita é produzir novas escritas.
dicionário etimológico de latim: é a partir destes três
vocábulos – lino, litura e lituriarius – que ele
• Ainda as voltas com a carta, primeiro a de Poe e agora a
lituraterrará. O primeiro traduz-se por besuntar, cobrir
de Joyce. Lacan faz um importante destaque, não só nesta
e apagar; o segundo, que, aliás, passa ao português tal
aula, mas em todo este Seminário, a essa relação carta/letra
qual, tem o sentido de apagar o escrito, i.e., trata-se de
(lettre em francês tem esses dois sentidos). E por que Joyce
uma rasura. Ficarei devendo o terceiro, à espera do
agora? Essa carta/letra esburacada, onde a letra foi
dicionário de Ernout e Meillet que, a esta altura, deve
apagada, leva Lacan a relacionar litura (uma das palavras
estar transitando nos correios. Em todo o caso, importa
contidas no neologismo de Lacan) com litoral.
o efeito de rasura, a escrita como borrão, como rasura.
E, a seguir, quando diz que isso não tem nada a ver com
• Já desde a aula anterior, e isso é uma das marcas desse
littera, a letra, isso só pode ser verdade em referência à
Seminário, Lacan passa a identificar a letra pelo lado do real
letra propriamente dita, pois littera, antes de tudo, tem
e não mais do simbólico, fazendo diferença entre letra e
referência a notas escritas. Trata-se, permitam que me
significante. É pelo apagamento do traço que o sujeito é
repita, da escrita como rasura – quem sabe, uma rasura
designado, nos diz Lacan [pg.113]. Mas como saber do traço
na natureza. No colégio, quando aprendi a fazer
se, apagado, ele não faz parte da cadeia significante? De
redação, a professora pendurava um quadro (versão
fato, a letra é o que apoia o significante, dirá. Apóia, mas não
ocidental de um kakamoto) com alguma figura de
está na cadeia. Precisa ser encontrado, destacado no litoral,
paisagem ou natureza morta na parede e pedia para
nessa linha, que demarca dois territórios distintos, terra e
fazermos, antes, um borrão. Ainda hoje uso o mesmo
mar, simbólico e o real. A letra porta um gozo que, ao
método, e quando tenho a oportunidade de ver a página
mesmo tempo em que algo se expressa via cadeia
manuscrita de algum autor famoso, seu aspecto é o
significante, aprisionada ao semblante, também pertence ao
mesmo, sempre um borrão, repleto de rasuras. Não por
real, e resta inacessível, gerando novas produções. Depende
nada, Lacan joga com a equi-vocação de Joyce, quando
da leitura do analista para que a letra possa ser escrita. A
ele desliza de letter para litter e, logo depois, para
letra é a matéria em suspensão, retida, en suffrance, e que
publicação, Lacan dirá poubellization, que se traduz por
na ruptura do semblante, ao escoar algo do gozo, possibilita
publixação, e argumenta com as palavras de São Tomás
que o analista faça uma leitura dessa letra, fazendo aí sua
de Aquino que, ao final de sua obra, quando lhe
inscrição. Algo como a leitura que fez Lacan de sua visão ao
perguntaram sua opinião sobre a mesma, teria
sobrevoar a planície siberiana.
respondido que tudo não passava de sicut palea, era
como restos.
• Introduz, então a ideia de que escrita é ravinamento, ou
seja, a passagem da letra deixa ravinas, caminho para o Seguindo com sua argumentação, lembra sua
escoamento de gozo. O significante enquanto semblante é o conferência pronunciada em Bordeaux – Meu ensino,
que acolhe o gozo e sua ruptura libera-o. Nesta ravina, sua natureza e seus fins –, em 20 de abril de 1968, um
nestas marcas deixada pelo rasura da letra, e pouco antes do mês de maio, como ele diz, quando
desprendimento do gozo, ali pode se dar uma nova tomou como premissa, sem querer fazer culturalismo e
inscrição. A escrita é, no real, o ravinamento do significado menos ainda criticar a sociedade, que a civilização é o
[pg.114], diz Lacan. esgoto. Aí, ele diz que a diferença do homem, em
relação a todos os níveis do reino animal, é o
• Também, nesta aula, retoma novamente a questão do extraordinário embaraço que lhe causa a evacuação da
traço unário, tomado da leitura freudiana, que já havia merda, e recomenda que se leia, de Aldous Huxley,
trabalhado na aula anterior. Este traço, responsável pela Adônis e o alfabeto, com tradução em português pela Ed.
identificação fundamental do sujeito, refere-se não apenas a Hemus, no qual descreve um grande sistema de esgotos.
um elemento simbólico recalcado, mas, como diz Lacan, é Caso consigam esta edição, com tradução de Edith
um céu estrelado. Este traço identificador do sujeito, porta Carvalho Negraes e Daniel Martins Júnior, recomendo
também elementos do imaginário e do real. E isso é o que especialmente o ensaio intitulado Hyperion a um sátiro.
sustenta Lacan a dizer que nem tudo está escrito por um Nesta conferência de 1968, ele faz ainda uma
discurso estruturado na lógica pura, mas que há um núcleo comparação do homem moderno com o homem
que resta do lado da intuição (aula VI, pag. 93). selvagem: quanto mais moderno, mais esgoto.
• O destaque desta aula está por conta da diferença que Mas agora, nesta aula de 1971, o autor mencionado é
faz Lacan entre fronteia e litoral. A fronteira demarca dos Beckett, o Samuel Beckett de Esperando Godot. Seu
territórios de um mesmo plano. Faz contraponto aos teatro, marcado pelo absurdo, um absurdo que já estava
estudos do biólogo Jacob von Uexküll4, autor da noção do presente em Rabelais, está construído sobre os restos.
Unwelt (ambiente) e Innwelt (mundo interno), que Em Fim de Jogo, cuja análise publiquei em Um elefante
preconizou a ideia de que cada animal tem seu mundo
subjetivo próprio e deve ser compreendido em seu habitat. em Albany Street, os pais moram, litteralmente, em latas
Ao caracterizar que o ambiente é o reflexo do mundo de lixo. Lacan ainda considera, a propósito, a
interior, Lacan entende que há uma ideia de adaptação importância da escrita de Rabelais, licenciosa,
contida entre essas duas realidades, colocando a fronteira sarcástica, mordaz, que, condenada no início do século
como um plano que pode se estender de um território a XVI, inclusive por haver denunciado a absurdidade de
outro, borrando o que demarcaria a separação entre dois seu tempo, estava sendo lida agora, nos seus dias, e, de
territórios distintos. passagem, revela seu método para a escrita de seus
textos: cartas abertas em que problematiza, a cada tanto,
• Apresenta a ideia de litoral, colocando aí a letra. Não é a partes de seu ensino.
letra propriamente o litoral? A borda do furo no saber (...) não
é isso que a letra desenha?[pg.109]. Entre gozo e saber a letra Enfim, seu Escritos abre com a análise de um conto que
constituiria litoral [pg.110). O litoral delineia o espaço de dois gira em torno de uma carta cujo conteúdo ninguém
planos distintos, terra e mar, e sua borda é de um conhece. A importância disso, para Lacan, é a de
movimento constante, não podendo ser fixado, produzindo . mostrar como o escrito, como mágica, por si só faz toda
No bojo dessa formulação Lacan traz uma importante a peripécia – uma palavra, aliás, muito bem escolhida
questão: como o inconsciente, efeito de linguagem, para dizer de sua capacidade de alterar o curso dos
comanda essa função da letra? [pg. 110] acontecimentos de forma inesperada e exercendo sobre
• Ao estudar a escrita chinesa, compreendeu que traço seus detentores um efeito de feminização, justamente
representa um mais além daquilo que ele desenha, incluído pela ilusão que ela propicia. A separação desses efeitos
aí o ato de fazer o traço que inclui o corpo de quem o faz. equivale a distinguir a lettre do significante-amo,
embrulhado com ela. Trata-se de uma forma metafórica
• O mestre de Lacan na escrita chinesa foi o poeta, filólogo de dizer que o S1 vem envelopado na letra, e não de
e semiólogo chinês François Cheng. Com ele, também fazer uma crítica literária, o que teria sido feito por
estudou a pintura chinesa onde se encontra a ideia do Traço Marie Bonaparte sem nenhum resultado. Para Lacan, a
Único do Pincel, do pintor Shitao do século XVII que refere crítica psicanalítica deve apontar ao enigma, ao buraco.
ser o traço a primeira manifestação do ser, sendo uma Para Patrick Valas, a propósito, trata-se do enigma do
unidade básica de sistema de vida.5 Ele diz: O traço não é sintoma, do lapso, do ato falho, mas também do enigma
uma simples linha. Com a ajuda de um pincel embebido de do 4, 2, 3 da Esfinge: τί ἐστιν ὃ μίαν ἔχον φωνὴν
tinta, o artista apõe o traço sobre o papel. Por seu volume e τετράπουν καὶ δίπουν καὶ τρίπουν γίνεται, Qual ser,
sua leveza [...] pela impulsão e ritmo que comporta, o traço é, provido de uma só voz, tem no início quatro patas, depois
potencialmente e ao mesmo tempo, forma e movimento, duas e, em seguida, três? Ou o enigma do ser: Έπάμεροί
volume e vislumbre6; τί δέ τις! τί δ'οῠ τις? σκιᾶς ὄναρ ἄνθρωπος, O que é o
ser,o que é o não ser? Tu não és senão o sonho de uma
• Seu encontro e estudo da língua chinesa, e da sua sombra.
derivação, o japonês, o levou-o ao reconhecimento mais
radical de que o sujeito é divido pela linguagem, mas um dos Lacan também distingue os psicanalistas que exercem a
seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e psicanálise dos que são exercídos por ela, condição esta
o outro com o exercício da fala [pg.117]. Daí a pergunta que que lhes dificulta a compreensão de suas formulações.
atravessa todo o Seminário deste ano aqui colocada assim: Na versão francesa do seminário, conforme às fichas de
Patrick Valas, lembra ainda uma comparação destas
• Será possível, do litoral, construir um discurso tal que se instituições que abrigam estes analistas, com a Igreja
caracterize, como levantei a pergunta este ano, por não ser onde se exerce um oficio, com seus rituais em horas
emitido pelo semblante? Essa é, evidentemente, a pergunta fixas (a referência é às missas), onde se trata de textos
que só se propõe pela chamada literatura de vanguarda, a sagrados cujo sentido é autorizado pelos Doutores da
qual, por sua vez, é fato de litoral, e portanto, não se sustenta Igreja, e onde se deve obedecer cegamente à doutrina. E
no semblante, mas nem por isso prova nada, a não ser para Inácio de Loyola ainda acrescentou que isso deveria ser
mostrar a quebra que somente um discurso pode produzir. feito pĕrīndĕ cadaver, como um cadáver.
Digo produzir, expor como efeito de produção; esse é o
esquema de meus quadrípodos do ano passado [pg. 116]. Contrastando saber e verdade, os analistas religiosos
reconhecem seu ofício na verdade, enquanto, do ponto
Notas: de vista de Lacan, é o saber que deve ser posto sempre
em cheque, como na figura heráldica de mis en abyme,
1. A base da aula deste Seminário é um texto que foi cuja imagem tem sempre outra que a repete dentro de
publicado na Revista Littèrature, nº 3, em outubro de si, o que entendo como um conhecimento
1971, um número dedicado à literatura e psicanálise. É profundamente enraizado. No entanto, Lacan diz, a
também o texto de abertura do livro Outros Escritos, seguir, ter ficado sabendo que as pessoas acreditam estar
que contém diversos textos de Lacan, publicado em dispensadas de demonstrar qualquer conhecimento ... e,
português pela Zahar Editora, em 2003. Esta palavra,, em seguida, coloca uma questão que, para ser
inventada por Lacan, é um jogo com as palavras latinas compreendida (na leitura da versão Miller, traduzida
lino e litura (aquilo que num escrito se apagou ou riscou para a Zahar), requer a mudança de posição de uma
para ficar sem efeito ou ilegível; rasura. Igual ao virgula: Será esta letra morta que coloquei no título de
português) e liturarius. uma daqueles textos que chamei de Escritos, da letra, a
instância como razão do inconsciente?
2. Em inglês, letter é carta e litter, lixo.
À guisa de resposta, Lacan lembra do aspecto bífido,
3. Essa referência encontra-se no capítulos 5, 6, 7 e 8, os elaborado por Freud, a propósito das inscrições no
quais encerram o livro I de um total de IV, deste inconsciente. As pulsões inscrevem-se no ics, de modo
Romance, traduzido no Brasil por Donaldo Schüler sob o bífido, pelo representante da representação, a
nome de FinniciusRevém e publicado pela Ateliê Editora, Vorstellungsrepräsentanz, e pela representação afetiva.
em 2001. Há ainda a representação coisa e a representação
palavra. Por outro lado, a negação possibilita a uma
4. Jacob Johann von Uexküll (Keblaste, Estônia, 8 de inscrição inconsciente inscrever-se também no
setembro de 1864 — Capri, 25 de julho de 1944) foi um consciente, o que permitiu a Freud ver na negação uma
biólogo e filósofo estoniano de origem alemã. Foi um forma superior de repressão. Verdade que a bifididade
dos pioneiros da etologia antes de Konrad Lorenz. Sua da língua está presente desde o início dos tempos: a
realização mais notável foi a noção de Umwelt (meio cobra da primeira prosopopeia tinha a lingua bífida e,
ambient, o mundo subjetivo da percepção dos assim, enquanto uma ponta seduz, a outra porta a sua
organismos vivos, dos animais e do homem em relação intenção. Isso item sua importância aqui, na medida
ao seu meio ambiente e de como eles o compreendiam. em que Lacan está interessado em ver, na mediação
Postulava que cada animal tem seu mundo próprio e entre os dois planos, uma fronteira, tal como Freud
que cada um deles tem que ser entendido no seu habitat imaginou concernente às instâncias psíquicas. E, claro,
(meio em que vive). No livro UmweltundInnenwelt der está em jogo aqui a relação do sujeito com o objeto,
Tiere (1909), ele introduziu o termo Umwelt para relação conformadora do Umwelt, como um reflexo do
denotar o mundo subjetivo do organismo. Innenwelt, conforme a Jacob Von Uexküll (p.109). Mas o
importante é a fronteira, na medida em que ele a
5. CHENG, F. (2012). “Lacan e o pensamento chinês”. In: contrapõe ao litoral: não será a letra o literal a ser
Lacan, o escrito, a imagem. Belo Horizonte: Editora fundado no litoral? Enquanto o conceito de fronteira,
Autêntica, 2012, p. 176. dessa terra de ninguém, dessa no men’s land, é mais
abstrato, o litoral é mais concreto, e se o pensamos
6. Idem nota 5 como um litoral marinho, tanto mais flutuante será.
Lituraterra, enquanto letra, ambiciona um lugar litoral,
de borda do futuro. Ambiciona um avanço no saber. Se
a apreensão da realidade é feita com os aparelhos do
gozo, entre o gozo e o saber a letra faria o litoral (p.110).
Contudo, isso não autoriza fazer da letra um significante
e muito menos atribuir-lhe uma primazia em relação ao
significante.
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
19 de maio de 1971
VIII. Lição sobre O homem e a mulher e a lógica.
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
17 de novembro de 2020 17 de novembro de 2020
• Nesta aula, Lacan retoma sua evocação à lógica matemática dos O QUE SEMPRE SE SOUBE E AINDA NÃO SABEMOS
quantificadores universais, no caminho de sua determinação em
buscar escrever a relação sexual, dizendo que as funções só são O homem e a mulher sempre foram misteriosos. Talvez
determinadas a partir de um certo discurso [pg. 120]. devesse referir-me explicitamente, à figura do homem e
• E, sem muito deixar claro, dirá que é nesse nível (das funções) da mulher, como enigmáticos. Cada um é um
que pode dizer que o escrito é o gozo [pg. 120]. Considera que no desconhecido para si mesmo, embora o mais comum
nível do discurso do analista, há alguma coisa que cria obstáculo a seja o reconhecimento do enigma no outro. O
um certo tipo de inscrição [pg.120]. Essa coisa é o gozo, e isso é o reconhecimento da ignorância sobre si mesmo é de
que traz problema para poder inscrever a relação sexual. segundo grau, ao nível de doutorado, ao nível da docta
ignorantia. Enfocado o tema, pelo ângulo da
• Segue interessado em formalizar os efeitos dessa transmissão
que uma carta/letra produz na realização de um discurso, ou seja, sexualidade, a complexidade só aumenta. Na literatura,
efeito feminizante que tem relação com o gozo. desde que temos notícia, um intermédio trágico nas
relações amorosas esteve incluído desde sempre como
• Nos conduz, então, a pensar na função da necessidade. A fruto da incompreensão. Na pintura renascentista, com
necessidade, diz, é uma ordem fundamentada no artifício para
a retomada de temas clássicos e religiosos, as cenas de
evidenciar esse elemento irredutível no real. Reserva-se à
necessidade sexual uma parcela mínima do gozo sexual que não Adão e Eva, nus, tem sempre um traço comum. Seja em
pode ser sublimado. Essa necessidade, esse traço irredutível na Dürer, Ticiano, Lucas Cranach, ou em Jan Grossaert,
relação sexual, é claro que podemos admitir que ele sempre existe. com cujo Adão e Eva ilustrei o convite para este
Contudo, ele não é mensurável [pg. 122]. Por isso a relação sexual encontro, em todos aparecem os genitais cobertos por
não é inscritível, fundável [fondable] como relação1 [pg. 122].
algum tipo de folhagem. E o interessante é que a espécie
• O que a descoberta freudiana demonstra é que, por intermédio de folha que cobre um também cobre o outro. Em Lucas
do inconsciente, vislumbramos que tudo o que é da linguagem que Cranach, o velho, são as folhas do mesmo galho que
nos habita mantém uma certa relação com o sexo, mas há um cobre Adão a cobrir Eva (ver figura a baixo).
resto, um irredutível dessa relação, que é o gozo, que não alcança
ser escrita pela linguagem.
Se tivesse de dizer isso algebricamente, teria de dizer
• Para ser inscritível, essa relação precisa ser escrita. Assim diz que ambos estão cobertos pela mesma F, ou, se
Lacan: se digo inscritível, é porque o exigível para que haja função é quiserem, pela mesma Fi. Para Lacan, trata-se da
que, pela linguagem, possa produzir-se algo que seja expressamente inscrição de uma letra.
a escrita, com tal da função. [pg.123.]
• E seguindo essa lógica de que não existe toda mulher, dirá que
para a mulher só será possível inscrever-se na equação como uma
mulher.
Notas:
1. Em matemática, uma relação é uma correspondência (ou
associação) entre elementos de dois conjuntos não vazios.
2. No grego significa conclusão ou inferência.
3. Augustus De Morgan (Madura, Índia, 27 de junho de 1806 —
Londres, 18 de março de 1871) foi um matemático e lógico
britânico. Formulou as Leis de Morgan. A primeira lei de Morgan
propõe a negação de duas proposições afirmativas unidas por ‘e’ ou
‘ou’. A Segunda Leis de Morgan permitem-nos efetuar a negação de
proposições com quantificadores (universais e existenciais).
George Boole nasceu em Lincoln - Inglaterra em 2 de Novembro de
1815.Autodidata, fundou aos 20 anos de idade a sua própria escola
e dedicou-se ao estudo da Matemática. Na Álgebra de Boole existem
apenas três operadores E, OU e NÃO (AND, OR, NOT).Atualmente
todos os computadores usam a Álgebra de Boole materializada em
microchips que contêm milhares de interruptores miniaturizados
combinados em portas (gates) que produzem os resultados das
operações utilizando uma linguagem binária.
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
9 de junho de 1971
IX. Lição sobre Um homem e uma mulher e a psicanálise.
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
1º de dezembro de 2020 1º de dezembro de 2020
• Seguindo seu caminho, Lacan se ocupará nesta aula Pois, enfim, que é o homem na natureza?
de situar como um homem e uma mulher se encontram Um nada ante o infinito, um tudo ante o
em relação a este impossível de se escrever da relação nada, um intermediário entre nada e tudo.
Infinitamente distante da compreensão dos
sexual. extremos, o fim das coisas e seu princípio
estão para ele infinitamente escondidos em
• Começa invocando seus Escritos. Tomando a um segredo impenetrável, igualmente
homofonia dos Escritos, (Écrits, em francês), com a incapaz de ver o nada de onde ele foi
palavra grito, crí, Lacan dirá que, um homem e uma arrancado, e o infinito no qual ele é
engolido.
mulher, não podendo se entender de outra maneira,
PASCAL, Pensamentos. Fragmento 72.
podem ouvir-se gritar [pg.135]. A outra maneira de se
entender, dirá ele, é na cama, onde não tem nenhuma DO HOMO SAPIENS
necessidade de falar. E eis que, ante a infinita criação,
O próprio Deus parou,
• Mas, sendo o homem e a mulher, fatos de discurso desconcertado e mudo!
Num sorriso, inventou o homo sapiens,
[pg.136] e discurso é semblante, como se posicionam um
então,
e outro nesse discurso? Para que lhe explicasse aquilo tudo...
A trilha sonora MARIO QUINTANA, Espelho Mágico.
• O semblante só se enuncia a partir da verdade para essa lição de
[pg.136]. E onde está a verdade? Já sabemos que a Lacan bem poderia ser a mesma que Francis Lai
verdade só aparece as meias, e que só pode expressar-se compôs para o filme de Claude Lelouch, Um homem,
como semblante do gozo. uma mulher, de 1966. Desse filme, aliás, dizem que as
partes em preto e branco deveram-se à falta de dinheiro
• Retoma daí suas formulações da mulher e do para comprar filmes coloridos. Mas ficaram tão bem,
homem, elaborado nas aulas anteriores, para dizer, da com tanta harmonia na apresentação do romance, que
mulher, que não é de todo x que se pode postular a acabaram sendo responsáveis pelos prêmios recebidos,
função Φ de x. E por esse não é de todo x que se postula a como o Oscar de melhor filme estrangeiro e o Palma de
mulher. E, para o homem, não existe um x tal que Ouro, de Cannes. Em preto e branco, como uma
satisfaça a função pela qual se define a variável, por ser a escritura, estavam as reminiscências dos personagens.
função de Φx. E a partir de ele não existir que se formula E, para o final, Lelouch filmou duas cenas: uma, em que
o que acontece com o homem, com o macho [pg.137]. o casal fica junto, e outra, em que fica separado. Por
pena de ver os dois separados, Lelouch deixou-os
• Lacan nos lembrará que o semblante, que faz
ficarem juntos. A verdade é que, quando nos lembramos
circular a verdade, é assez phalle [pg.138], jogando com
da história, os dois finais estão sempre presentes.
a homofonia, em francês, de falo e acéfalo, sem cabeça,
Separados e juntos!
ou seja, a verdade não tem um dono.
Esta nona lição trata disso, da impossível relação sexual
• Mas Lacan enfatizará que é todo esse gozo sexual,
interdito, nos põe a falar, e falar é essa divisão do homem e da mulher. Para chegar à constatação desse
irremediável entre o gozo e o semblante, ou seja, o impossível, Lacan, com outro valor à pena, recorre à
discurso [pg.141]. É nesse deslizamento moebiano do lógica. Tudo depende de uma significação. Trata-se de
gozo e do semblante que a verdade se expressa. uma questão de Bedeutung, ou, como diz Lacan, de
Bedeutung des Phallus, tal qual o título de sua exposição
• Volta a lembrar que a condição do inconsciente é a berlinense. Esse é o ponto central de sua lição, e ele
linguagem. Daí dizer que ele sabe coisas. E o que o chega a dizer que a Bedeutung des Phallus é, na verdade,
inconsciente sabe tem relação com a significação do um pleonasmo, porque, enfim, na linguagem, o falo é a
falo, que emerge como semblante dessa falta que não única Bedeutung (p.139). Lembram quando era voz
podemos inscrever: a relação sexual. corrente que, para a psicanálise, tudo é sexo? E a
linguagem é, antes de tudo, sim, o habitat dos seres que
• Tal obstáculo impulsionou Lacan a buscar na figura sustentam a fala. Falar significa a divisão irremediável
topológica da garrafa Klein, um modelo de referência entre o gozo e o semblant. Essa Bedeutung, longe do
do discurso da histérica, que conjuga a verdade do seu conceito de interpretação de Paul Ricoeur, cuja
gozo com seu saber implacável de que Outro apropriado hermenêutica levou a um exame da riqueza da
para causa-lo é o falo, o seja, um semblante [pg.143]. linguagem, tem a ver com a falta inerente à linguagem
que nos serve, no final das contas, apenas para a
• E porque a garrafa de Klein?1
construção de metáforas e metonímias. A verdade é
(https://youtu.be/mF4x8svpSgA)
gozar de fazer semblant (p.141). É das metáforas que
surgem todas as criações e, diz o mestre, também todas
as insanidades míticas (nem por isso menos
importantes!), incluídas aí tanto o Édipo como o Totem e
Tabu, enquanto da metonímia os habitantes da
linguagem podem extrair o pouco de realidade que lhes
resta. Esse pouco de realidade provavelmente Lacan o
tenha aproveitado do manifesto surrealista, de André
Brenton, que o publicou como uma Introdução ao
discurso sobre o pouco de realidade. A vida é um teatro
eterno e toda máscara fracassa no papel de representar
o eu; contudo, há que escolher uma para assegurar esse
pouco de realidade necessário à presença no mundo1 e
esse pouco nos aparece sob a forma de plus-de-gozar.
Garrafa de Klein
Lacan registra também a importância da escrita para o
• Essa figura topológica tem como característica ser registro da história, e não parece demais lembrá-la
não orientável, ou seja, não é possível definir um como registro da linguagem, sem a qual não há
interior e um exterior. Ao se tomar um ponto isolado, memória. Veja-se a falta de memória dos períodos
leva a pensar em uma estrutura bidimensional com um anteriores à aquisição da linguagem e daí Vitor, o
dentro e um fora. Como um todo, o dentro e o fora se menino que foi criado por lobos: como não teve acesso à
comunicam de modo contínuo. Lacan a tomará para linguagem, não se lembrava de nada. A escrita nunca
caracterizar a estrutura do desejo insatisfeito, marca do passa de algo que se articula como ossos, cuja carne seria
discurso histérico, que ao destacar ao menos um ponto a linguagem. Concernente a isso, lembro de um chiste
dessa estrutura, ao projetar no Campo do Outro esse que muito ouvia dos hermanos argentinos: a língua
objeto que faz semblante de completude, o falo. Do espanhola e a portuguesa são feitas da mesma carne, só
ponto que vista da histérica, seu discurso, para suportar que a primeira é com osso. Pois uma vez, então,
essa castração, vive a exaltar e depreciar esse elemento perguntei-lhes: - Se o português não tem osso, como será
terceiro, o falo, enquanto semblante que marca a que fica em pé? – E nunca mais ouvi o tal dito! Quando
completude imaginária, e que a coloca na direção de Lacan diz que o gozo sexual não tem osso (p.139), algo
ahomenozum como via de obtenção do falo. dessa história passa por aí.
• Disse Lacan: A histérica se situa por introduzir o O destaque para a escrita é por sua capacidade de
nãomaiskium com que se institui cada uma das prover de ossos todos os gozos, o que lhe possibilita
mulheres, por intermédio do não é toda mulher que se sublinhar que a relação sexual falta no campo da
pode dizer que ela é função do falo. Que seja de toda verdade (p.139). Causa disso é ter sua fonte apenas no
mulher é o que compõe seu desejo, e é por isso que esse semblant. Desse modo, a verdade só abre caminho para
desejo se sustenta por ficar insatisfeito, porque dele gozos que parodiam o gozo efetivo, enquanto este lhe
resulta uma mulher [pg.146]. permanece alheio.
• E Lacan encaminha o final dessa aula questionando Com outra pontuação, Lacan dirá: Assim é o Outro do
o quanto o mito fundamental da psicanálise, o Édipo, dá gozo: é para sempre interdito àquele cuja habitação a
conta de responder à genealogia do desejo. Ele diz: a linguagem só permite ao lhe fornecer escafandros. Seu
genealogia do desejo decorre de uma combinatória mais titubeio, ao usar essa figura (p.139), faz-me pensar que
complexa que a do mito [pg.147]. Os mitos são estruturas esteja se referindo ao solicitado por Dali quando foi
que buscam responder ao enigma da origem. E nisso convidado a fazer uma conferência sobre o surrealismo,
seu valor foi marcadamente validado pelos estudos de em Londres. Para tal, o artista encomendou, de uma
Levis-Strauss. Mas Lacan quer ir além do fato de empresa especializada, um escafandro. E quando lhe
estrutura. Busca um discurso que responda a perguntaram para que profundidade iria precisá-lo,
impossibilidade de escreve a relação sexual desse gozo respondeu: - Um escafandro que me permita descer às
que precisa ser castrado. profundezas do inconsciente.
• O Édipo tem a vantagem de mostrarem que o homem E da Verdade, chamada por Lacan de sua companheira e
pode corresponder à exigência do nãomaisqueum que cuja prosopopeia ele desenvolve na conferência A coisa
está no ser de uma mulher. Ele mesmo amaria freudiana, ele diz tê-la extraído de um poço, de um puits,
nãomaisqueuma, nos diz Lacan. [pg.148] Mas nessa embora a tradução não tenha visto necessidade de
fábula edipiana o homem só se sustenta por ser um incluí-lo (p.141). É que esse poço, muito provavelmente,
garotinho: que no frigir dos ovos, seu desejo é gozar era aquele de águas tão claras e frescas que a Mentira
com a mãe. convenceu a Verdade de aí mergulhar em uma tarde de
verão e, enquanto a Verdade nua aí se refrescava, vestiu
• Isso leva Lacan a comparar o mito do Édipo e o de suas roupas e foi-se, como se fosse ela a própria
Totem e Tabu, o mito do pai da Horda. Dirá que o Verdade.
primeiro foi ditado a Freud pela insatisfação das
histéricas, e o segundo pelos próprios impasses de As máscaras, como se vê, não são coisas de agora. Lacan
Freud. As questões presentes no primeiro mito, a marca menciona a história de Ashikaga Yashimasa (1435-1490)
do trágico na passagem do falo do pai para o filho, que – cujo nome não enuncia –, o oitavo shogun do período
condensa numa única revelação o assassinato do pai e o Muromachi da história do Japão, que teria construído,
desejo do filho pela mãe, tais elementos não estão em Kyoto, o templo conhecido como Pavilhão de Prata,
presentes no mito do pai da Horda. Ali a questão é que o onde guardam, ainda hoje, sua máscara, sua persona de
assassinato surge com vingança. No Édipo o assassinato apaixonado pela lua. E quem não é apaixonado por
do pai é um fato desconhecido a priori. Selene? No Carnaval, cantávamos que, se ela não fosse
casada, faríamos uma escada para ir ao céu beijá-la.
• Lacan parece preocupado em reconhecer os efeitos Mas, depois, como na obra de Alfonse Allais, Um drama
da lei que interdita o gozo e produz, como efeito, essa bem parisiense, quando tiram as máscaras, não era ele,
impossibilidade de escrever a relação sexual. não era ela.
• No mito do Édipo, esse gozo do filho com a mãe é O texto de Lacan tem um pouco dessa mascarada.
velado ao casal real, mas está ali e no momento em que Impenetrável nas primeiras leituras, vai se abrindo
é revelado faz todo um estrago. Essa revelação e seu como um corpo de mulher e, depois, o leitor não sabe se
exílio como castração simbólica só são necessárias para o captou exatamente como gostaria, ou como deveria. É
restabelecer a garantia do gozo do povo. Édipo, assim, desde a frase de abertura:
representante do falo de seu povo, e não de Jocasta, diz
Lacan, então, bem podemos reconhecer que, ao punir-se Um homem e uma mulher podem se ouvir, não digo
pela sua desmedida, sua hybris (ὕϐρις), em relação ao que não.
gozo, foi o modo de expressar que o valor da lei é para Podem, como tais, ouvir-se gritar.
todos.
Lacan usa o verbo entendre, que pode ser traduzido
• Em Totem e Tabu, esse gozo está explícito e é o que tanto como ouvir como entender. Como ele está ocupado
motiva o assassinato do pai. Não só assassinado, as com o escrito, tendo mesmo redigido algumas notas
devorado pelos filhos, ficando cada um apenas com para essa aula, ele destaca do ecrit o cri, o grito, tema do
uma parte. O pai como um todo, só se constitui numa qual diz que, pelo menos naquele momento, não voltará
comunhão. Os efeitos são outros. Se estabelece um a falar. Mas como Lacan não costuma dizer coisas por
contrato social onde se instaura a interdição da mãe, dizer, temos de prestar atenção em tudo, como se fosse
primordialmente enquanto mulheres do pai. um Heiligue text, o texto sagrado de um sonho. Lembro,
então, dois momentos em que fala do grito. Primeiro, no
• E Lacan finaliza apontando as diferenças em suas seminário da Angústia, quando se ocupa da pintura de
funções, entre os dois mitos, e o que tem de comum: Munch, intitulada justamente de O Grito. Edvard está
sobre uma ponte com os amigos, de repente vê aquele
§ No Édipo a lei está desde o princípio e é a céu com línguas vermelhas, os amigos seguem e ele
saída da profusão do gozo. Ali, o lugar do pai para, paralisado pelo medo, e sente um grito infindável a
precisa ser assegurado pela lei. atravessar a natureza. Interessante que, desse
Seminário, Miller nos conta que Lacan deixou
§ Em Totem e tabu, primeiro está o gozo e transcrição das aulas, por tê-las relatado cada uma delas
depois a lei. Esta lei é efeito de uma conjuração, à sua filha Judith que, nestes dias, estava em viagem.
ou seja, de um acordo comum que, via Quero dizer que delas também fez um escrito. Depois o
proibição das mulheres do pai, instaura um retoma, no Seminário sobre os Problemas cruciais da
acordo que limita o gozo. O pai só será psicanálise. Está ocupado com o significado do grito da
reconhecido na comunhão dos filhos. criança. Em ambos os momentos, ele diz que o grito não
se dá sobre um fundo de silêncio, como talvez a obra de
• Aliás, esse efeito de conjuração é o que Lacan aponta Munch fizesse pensar, mas que o grito cria o silêncio,
de comum entre os dois mitos e que Totem e Tabu é o este silêncio que também assusta Pascal, ao dar-lhe uma
mito apresentado por Freud como um produto noção de seu tamanho frente à imensidão do universo.
neurótico, recurso usado por ele justo por ser Souberam, a propósito, que dois anos atrás, em 2018, os
impossível de formular no discurso a relação sexual. astrônomos, liderados por Olga Cucciati, descobriram
um superaglomerado ancestral de galáxias, batizado,
Notas:
1. Construída pelo matemático Felix Klein, em 1884, a garrafa de por seu tamanho colossal, como Hyperion, com massa
Klein é um objeto matemático que vive em um espaço de quatro de um milhão de bilhões de vezes a do sol e cuja luz leva
dimensões embora possa ser visualizado em um espaço de três mais de onze bilhões de anos para chegar até nós? E
dimensões. A garrafa de Klein, um conceito da matemática Pascal, o pobre, nem sabia disso... Quando a criança
bastante interessante, trata-se de uma superfície fechada sem grita, cria-se um momento de interpenetração do
margens e não orientável, isto é, uma superfície onde não é interior com o exterior, e é neste momento de
possível definir um “interior” e um “exterior”.
remboursement que Lacan está interessado, nesse
momento de virada, de aproximação dos espaços, cuja
torção ele aponta, mais para o final dessa aula, na
garrafa de Klein, no momento em que acontece a
transformação do fundo, do culier, uma palavra aludida
quando falava do
Notas:
André Brenton. (1924b/1992) Introduction au discours sur le peu de
réalité, in Point du jour, Oeuvres Complètes II. Bibliothèque de la
Pléiade, Paris, Gallimard, p. 266.
SEMINÁRIO 18 DE LACAN
De um discurso que não seria do semblant
16 de junho de 1971
X. Lição "Do mito forjado por Freud".
Contribuição de Contribuição de
Maria da Glória S. Telles da Silva Luiz-Olyntho Telles da Silva
12 de janeiro de 2021 12 de janeiro de 2021
Quando o homem não faz idéia das Que me importa esse Giges,
coisas Potente rei de Sardes?
remotas e desconhecidas, as estima Não quero, nem invejo,
pelas O cetro dos tiranos.
coisas presentes e conhecidas. Se por tais glórias ardes,
GIAMBAPTISTA VICO, Scienza Nuova, Por certo que me vejo
1725. De gostos mais humanos.
• Chegamos à última Prefiro perfumosas
aula desse Seminário. Mas, numa perspectiva Ter a barba e as melenas;
viconiana,1 ela bem poderia ser a primeira, Coroar-me de rosas
E, antes que ele se acabe,
inaugurando um novo ciclo de leitura desse complexo Gozar o dia de hoje.
Seminário, já que os pontos cruciais que Lacan Pois – amanhã – quem sabe?
trabalhou ao longo desse ano estão aí presentes. A ANACREONTE, As
começar pelo título, destacando que o colocou no tempo Anacreônticas. Ed. Campbell,
condicional, como hipótese, o que reforça a colocação Nº 8, 2001. Trad. de Almeida
Cousin)
de Luiz-Olyntho no comentário a primeira lição, de que
a melhor tradução ao português é De um discurso que
não seria do semblant.
• Retoma que os discursos que estabeleceu no seu Chegamos a última aula do 18º Seminário de Lacan. Ele
seminário do ano anterior se dispõem numa certa busca, agora, fixar o sentido de seu título. Antecipa, em
ordem, privilegiando o discurso do analista, na medida sua preocupação, a importância da Bedeutung,
que é o discurso que esclarece a articulação da verdade discriminada por Frege em Sinn e Bedeutung, o sentido e
com o saber, ou seja, o saber que importa e move o a significação, o sentido e a denotação e também o
sujeito vem de uma verdade que não se tem acesso de sentido e o nominatum.
modo direto.
Ressaltando também o tempo condicional da frase, uma
• Daí o valor da descoberta freudiana, através das observação que não parece ter sido registrada pela
histéricas e obsessivos, do sintoma, ou seja, no lugar do
tradução, ele parte dos discursos já trabalhados no
que não pode ser reconhecido como causa do gozo, algo Seminário anterior, frisando a importância de sua
emerge como substituto dessa verdade. ordem, começando pelo discurso do amo, e seguindo
pelo da universidade, da histérica e do analista,
• Daí também Lacan vai precisar da noção de estruturados sempre a partir de um semblant, sendo
semblant, sendo justo isso que pode ser articulado num que o último privilegia a articulação da verdade com o
discurso, valendo-se dos recursos da linguagem, para saber.
fazer emergir a verdade do sujeito de modo a dar
sentido aos efeitos da castração. Isso tudo para 1.
enfrentar a verdade que realmente importa: não existe O saber de que se trata, é o do analista, enquanto
a relação sexual. Ao menos, é o que Lacan passou este suposto pelo neurótico, e a verdade em questão é a dos
ano a nos dizer, do impossível de escrevê-la. histéricos e dos obsessivos, estruturada através da
linguagem, em especial de uma linguagem que se
• E afirma que todo discurso possível só apareceria cristaliza no atravessamento de uma dimansão (Lacan
como semblant (pg.156), fazendo suplência ao que fala. diz demansion) construída no tempo da vida do sujeito,
marcada, sobremaneira, pela religião, da qual diria, não
• Lacan também deixa aberta, na lição final deste se pode perder o sentido de re-ligar. Dizer que uma
Seminário, a questão de saber se é pelo fato de ser linguagem condiciona a verdade é dizer da limitação da
falante que as coisas são assim ou se, ao contrário, é pelo verdade imposta pela linguagem de cada sujeito, e
fato de a origem estar em que a relação (sexual) não é também dizer que o neurótico é aquele que dá mais
falável que é preciso, para todos que habitam a crédito à sua verdade, ignorante que é do que ignora.
linguagem, que se elabore aquilo que possibilita, sob a
forma da castração, a hiância deixada no que é O discurso do neurótico surge com o sintoma. O sujeito
biologicamente essencial à reprodução desses seres como imagina a vida de um jeito e ela lhe sai de outro, e isso a
viventes para que sua raça continue. (pgs. 156/7) ponto de o sujeito não mais reconhecer-se. É nesse
momento que Lacan associa com a operação de
• Parece apostar nessa última hipótese, ao colocar que
subversão marxista. Em parte porque Marx havia
os rituais de iniciação sexual, presentes até hoje em
definido o sintoma como o que não funciona no Real e,
inúmeras culturas, surgem no lugar da impossibilidade
em parte, por sua teoria do conhecimento contrária à
de escrever a relação sexual. É o recurso da cultura
posição idealista de Hegel – advogado da imobilidade
para fazer marca ao órgão que representa o terceiro
das classes sociais –, e que acreditava na possibilidade
elemento necessário para inscrever a castração, ou seja,
subversiva da classe trabalhadora, que ele chamava de
a submissão à lei que instaura o falo como limitador e
proletariado. Em outros termos, trata-se da distância do
ordenador do gozo entre o homem e a mulher.
eu atual ao eu ideal, conforme proposto por Freud.
• Ao que parece, habitar a linguagem nos retira da
condição de responder à natureza e, consequentemente, A importância de Marx, para Lacan, é que a subversão
no que diz respeito ao gozo sexual, coloca uma marxista introduz, pelo engano aí denunciado, a
dificuldade ao não ser possível escrever a relação dimensão do semblant. E o discurso que lhe interessa
sexual. Isto é a castração. não é, então, o do semblant, vale dizer o do engano. O
motor da subversão é o reconhecimento de um valor
• Pela histérica Freud nos conduziu a reconhecer que cujo semblant, por seu peso e medida, é tomado como
sua relação com o falo faz semblant a esse mistério do moeda sonante. E como esta denúncia gira em torno ao
gozo sexual. Pela linguagem, só alcançamos uma dinheiro, ao capital, ela enuncia algo da mais-valia, uma
Bedeutung do falo, uma significação, sem jamais promoção da mais-valia como argumento da subversão.
alcançar seu sentido verdadeiro. Só sabemos da
verdade por um discurso oblíquo, onde jamais teremos Neste sentido, o discurso do capitalista é uma
a = a, onde um termo está sempre a significar a outro determinação do discurso do amo. Agora, o que leva
termo, mesmo quando usamos um mesmo nome, Lacan a chamar determinação, é uma inversão da
fazendo Lacan ai diferença entre nome (name, como posição do semblant com a da verdade: O $ – no lugar
nome próprio, em inglês) e nome (noun, como da verdade do amo – é o ocupante do lugar do agente,
substantivo). do lugar do semblant, e, apoiado na verdade o amo,
explora o saber do outro para obter, como gozo, um
• É no nível do nome próprio que fica claro que sua lucro.
função é fazer falar. O nome é aquilo que chama, diz
Lacan (pg.160), chama a quê? A falar. Já o falo, chame o
quanto quiser, continuará a não dizer nada (pg. 160).
3.
Lacan aborda um aspecto menos óbvio do Complexo de
Édipo. Antes que apontar a primazia do pai, destaca sua
numerabilidade. Lembram que o jovem Édipo foge de
Corinto para escapar da previsão oracular. Para não
matar o pai Pólibo termina por matar o pai Laio. O pai é
sempre mais de um, daí sua numerabilidade observada
em reis, faraós e tais, enquanto a mãe é inumerável. Por
outro lado, avós e mesmo bisavós – que é outro modo de
contar –, também podem ser pais. Entre os egípcios, a
pratica do incesto entre os governantes foi bastante
comum. Amenófis III, por exemplo, conforme recentes
estudos genéticos, com uma de suas filhas foi pai de
Tutankamon e, na morte deste, casou com sua esposa a
qual, por sua vez, era sua neta. O pai tem uma história
que pode ser contada, enumerada.
Fonte:https://en.wikipedia.org/wiki/The_Meaning_of_Meaning#:~:text=The%20Meaning%20of%20Meaning%3A%20A,Crookshank.