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Um dizer sem palavras

Marcelo Veras

A distinçã o que fez Lacan entre o discurso do mestre e o discurso do analista


permitiu situar a Psicaná lise distante das marcaçõ es do tempo impostas pelos
ideais da época. Nã o surpreende, portanto, que a pensemos como um discurso
que nunca contará com o apoio das massas, estas sempre propensas a seguir a
marca do Outro, como nos fala Freud desde 1921 1. O desafio é redobrado, para
Lacan, pelo fato de que o pró prio ato analítico faz do ofício do analista uma
profissã o impossível2. Assim como governar e educar, psicanalisar é um dos
impossíveis que nã o deixam de persistir no século XXI. A promessa de
governabilidade das sociais democracias, como afirma Laurent, caducou junto
com o fim das utopias liberalistas3, o 11 de setembro é o maior exemplo. Com
relaçã o à educaçã o, os fracassos na aprendizagem, elevados à categoria do DSM,
nos mostram que sua psiquiatrizaçã o foi a resposta da ciência ao impossível de
educar. Do mesmo modo, a bulimia dos cursos de Psicologia por uma psicologia
científica nã o cessa de catapultar as TCC ao ranking de ú nica Psicologia possível,
deixando a Psicaná lise sob a suspeiçã o dos sistemas, dito estatísticos, de
avaliaçã o.

Com efeito, a perspectiva de uma avaliaçã o quantitativa tenta tornar a


Psicaná lise dó cil ao sistema de falseabilidade científica. Porém, o real em jogo no
objeto da psicaná lise torna impossível o crivo do verdadeiro ou falso. Daí que
nã o é do discurso universitá rio, tampouco, que se deve esperar um desejo que
faça perdurar o discurso analítico. Surge entã o a importâ ncia do ato de Lacan de
fundar sua Escola como meio de sustentaçã o da causa analítica.

A Escola de Lacan é o prolongamento de um dizer que ecoa trinta anos apó s sua
morte. É na Escola que é possível pensar o dispositivo do passe, que tem como
1
Massenpsychologie und Ich-Analyse
2
Lacan, J., L’envers de la psychanalyse, Le Séminaire livre XVII, Ed du Seuil, Paris,
1991, p.194
3
Laurent, E., O Supereu sob medida, Agente Digital,
http://agente.institutopsicanalisebahia.com.br/entrevista.html, Revista
Eletrô nica da EBP-Bahia
finalidade zelar, secularizar, o desejo do analista, que Lacan situava acima
mesmo de sua obra, esta destinada, como ele mesmo evocava, à poubellication4.
Nã o se trata, portanto, de criar uma Escola para defender sua obra, estas se
sustentam por si mesmas, mas de manter vivo um dizer sobre esse desejo.
Sejamos claros, a ú nica possibilidade de sustentar a psicaná lise no século XXI é
mantendo vivo o desejo do analista. Contudo, dizer que esse desejo é o desejo de
um objeto sem nome implica na separaçã o desse objeto de boa parte dos ideais
que presidem nossa época.

Nossa época é nominalista e tem horror ao indizível. A Coisa tem que ser
nomeada em toda sua plenitude. Nesse sentido, o que traz problema nã o é o
avanço das descobertas científicas, mas as expectativas que sã o depositadas
nestas descobertas. Espera-se da ciência que ela possa recobrir saber e real sem
restos. Busca-se um real totalmente recoberto pela lei. Assim surgem as leis do
universo, da biologia, da física, da cogniçã o etc. Nã o podemos afirmar que estas
leis sã o vá lidas para todos. Lacan nã o se afastou da falseabilidade de Popper, o
que muda é a apreensã o do real. Somente podemos falar de lei onde é possível
aplicar o critério de verdadeiro ou falso. Porém, somente podemos falar do real
em Lacan quando vamos além da possibilidade de aplicar o princípio da
falseabilidade. Ou seja, o real em Lacan é fora da lei, pois esta é uma ficçã o do
falasser. Se a humanidade desaparecesse, o universo permaneceria, mas nã o suas
leis, pois estas precisam ser lidas para existir.

O sinthoma de Lacan contém precisamente esse paradoxo de ser uma lei que vale
apenas para um. Ele implica em uma lei singular que nã o se confunde com o real
- pois este, como dissemos, é sem lei - mas que, ao enodar real, simbó lico e
imaginá rio, é vá lida enquanto durar uma existência. É a passagem dos efeitos da
lei universal, a lei edípica, ao sinthoma que uma aná lise deve promover. Para
além do mar de ditos de uma aná lise, busca-se um dizer do falasser que seja fora
da lei do Outro. Um dizer que sempre necessite uma boca que o profira de modo
singular. Esta é a condiçã o para que possa emergir o discurso do analista, um
discurso que inclui o corpo e o gozo de um dizer que se satisfaz com o brincar da

4
Lacan, J., …ou pire, Le Séminaire livre XIX, Paris, É ditions du Seuil, p. 219
lalíngua para além dos efeitos de sentido inerentes à cadeia significante. Esse
dizer, se nã o fosse a psicaná lise, estaria condenado ao esquecimento.

O discurso de uma análise

Uma aná lise é bem mais do que a rememoraçã o dos fatos e frases marcantes, ela
nã o se faz sem a inquietante lembrança de um dizer cujo destino é ser esquecido.
Lacan nã o fala de recalque e sim de esquecimento em uma de suas formulaçõ es
mais conhecidas. Em mais de uma ocasiã o ele a propô s a sua audiência:

Qu´on dise reste oublié derrière ce que ce dit dans ce que s´entend.

Esta frase é usada tanto para abrir seu texto O Aturdito5 quanto para encerrar
seu Seminá rio Ou Pior6. Em português podemos traduzir do seguinte modo:

Que se diga fica esquecido por traz do que se diz naquilo que se ouve.

Nesses dois textos, Lacan promove uma dissecaçã o entre dito e dizer. Eles se
incluem nos três anos consecutivos em que Lacan aborda os discursos e que, com
a publicaçã o do seminá rio ...ou pire, tornam possível ver os seminá rios XVII, XVIII
e XIX como uma espécie de trilogia dos discursos. É verdade que em seu ensino é
fundamental o fato de sermos seres habitados pela linguagem, mas a frase “Que
se diga...” de Lacan tem um espectro maior. Ela vincula a pró pria existência ao
dizer que faz da linguagem um discurso. Assim, a ênfase nã o recai sobre os ditos
e sim sobre o dizer que ex-siste a esses ditos. Um dizer que apenas é possível
devido a seu suporte corporal, que nã o tem nada a ver com a significaçã o e sim
com o fato de que na praça, tudo que é dito faz gozar7.

Se o inconsciente é estruturado como linguagem, é preciso uma psicaná lise para


que ele se torne um discurso. “Que se diga... comporta em si a fratura lacaniana

5
Lacan, J., L’Étourdit, in Autes É crits, Ed. du Seuil, Paris, 2001, p. 449
6
Lacan, J. …ou pire, Le Séminaire livre XIX, Ed. du Seuil, Paris, 2011, p. 221
7
idem, p.230 – Par-dessus le marché, tout ce qui est di fait jouir, traduçã o nossa
entre aquilo que é singular e se modaliza como discurso a partir da enunciaçã o
do falasser, e o que é da ordem do para-todos, do universal.

Sem o discurso do analista, nã o seria possível perenizar o dizer de Lacan. Sua


Escola seria reduzida a uma associaçã o em torno das palavras do pai. Contudo, a
orientaçã o lacaniana esta está longe de ser nostá lgica e capturada pela repetiçã o,
o que reduziria a Escola à um campo de linguagem e nã o de discurso.

A presença dos AE’s na Escola seria inconcebível se a ló gica fosse outra. O AE nã o


faz uma doutrina, tampouco é testemunha de uma revelaçã o. Ele traz para o seio
da Escola um dizer singular e o modo como, em sua aná lise, operou-se esse corte
entre o dizer e os ditos. Ou seja, como o dizer, que nã o cessava de ser esquecido,
emerge em sua relaçã o com o Outro. Isto porque o “Que se diga...” nã o pode
existir sem Outro.

O esquecimento do gozo

O Aturdito retoma questõ es bastante exploradas por Lacan nos anos 50. A partir
deste texto, é possível fazer uma nova leitura do esquema L e explorar a tensã o
gerada da oposiçã o entre o plano das relaçõ es humanas, onde impera a dimensã o
do dito submetido à verdade, do eixo a-a’, e a diagonal do sujeito em relaçã o à
alteridade, onde se situa o dizer como experiência de gozo, a ex-sistência8. O que
muda entre o primeiro e o segundo ensino de Lacan é precisamente o estatuto
dessa alteridade. Enquanto no primeiro ensino o Outro é o pró prio simbó lico,
garantido pelo Nome-do-Pai, no segundo ensino trata-se do Outro sexo, ou seja, a
ex-sistência de um dizer sem palavras.

É possível identificar desde o esquema L, o esquecimento da relaçã o com o


Outro. Ele surge na vetor que liga o es(S) ao Outro, e que se torna pontilhado
precisamente quando este vetor encontra a diagonal da realidade.

8
Lacan, J., L’Étourdit, in Autres É crits, Paris, Ed. Du Seuil, p. 452.
Proponho assim uma leitura da frase de
Lacan a partir do esquema dos
Seminá rios iniciais. Ele nos dá a pista
desse movimento no pró prio texto
Aturdito ao afirmar que, em 56, se foi
possível introduzir o Nome-do-Pai no
campo das psicoses foi graças ao
consentimento do discurso analítico9.

Quando seguimos os passos dos homens de exceçã o, percebemos que, por mais
prolíficos que eles sejam, sempre é possível encontrar um traço de inovaçã o
genial, uma intuiçã o ou revelaçã o que acompanha sua obra por toda a vida. Nã o
surpreende, portanto, que o discurso analítico estivesse presente desde o
momento em que Lacan, para além da poubellication, iniciou seus Seminá rios
fazendo destes o seu maior legado. Para além do que se lê nos textos, seus
Seminá rios nã o nos deixam esquecer seu dizer.

9
Lacan, J., L’Étourdit, in Autres É crits, Paris, É ditions du Seuil, p.458

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