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Religiões do Mundo I

Religiões do Mundo I
Introdução à Religião Comparada

LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO

Aula 02
As Principais Religiões Do Mundo: Ramo Semítico, Ramo
Ariano, Ramo Extremo Oriental E Tradições Indígenas.

O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.

Hoje será feita uma descrição inicial dos principais ramos, ou principais
tradições religiosas. “Ramos”, na verdade, não é uma expressão muito boa,
porque dá a impressão de que as diversas tradições religiosas têm uma origem
comum. Embora elas possam ter uma origem comum no sentido sobrenatural,
elas não têm uma origem natural, ou histórica, comum – por exemplo, o
Hinduísmo e o Xintoísmo não são, de modo algum, ramos de uma mesma
árvore. “Ramos”, aqui, pode-se usar apenas no sentido conceitual, ou seja, as
diversas tradições religiosas são ramos concretos da idéia de religião. O que
caracteriza as diversas tradições – as tradições arianas, as tradições semitas, as
tradições extremo-orientais – é justamente a sua independência histórica:
existem religiões que são, de fato, ramos de uma tradição original. Por exemplo,
o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo são ramos, de um modo ou de outro,
descendentes das tradições espirituais que se originam com Abraão. Do mesmo

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modo, o Hinduísmo e o Budismo são como que ramos das tradições que se
originam com os povos indo-europeus que migraram para o território hindu.

Ao invés de seguir essa ordem do programa, começaremos a falar desde


já desse ramo ariano, das tradições de origem ariana; depois faremos a junção
com as outras tradições. Essas inversões na ordem do programa serão mais ou
menos freqüentes, então já estejam preparados.

Apesar de nos últimos 20 ou 30 anos terem ocorrido algumas


contestações, ou uma discussão acerca da origem dos povos hindus, até uns 30
anos atrás havia um certo consenso, entre os historiadores e arqueólogos, de
que esses povos tinham sua origem num ramo comum, num ramo que veio de
fora do ambiente do território que hoje é a Índia, que eram povos que vinham
do noroeste do atual território indiano, que migraram para a Índia e acabaram
tendo predomínio sobre os povos de lá. Diz-se que esse povo que migrou para o
território indiano tinha um certo parentesco com os aqueus, que na mesma
época migraram para o território equivalente à Grécia. Essas teorias se baseiam
em algumas descobertas da arqueologia, e, principalmente, em semelhanças
estruturais entre a língua falada pelos povos hindus e as línguas faladas por
outros povos na Europa.

Outras semelhanças eram de ordem ritual. Por exemplo, o rito de


matrimônio entre os hindus é praticamente idêntico ao que era o rito de
matrimônio entre os romanos, que, por sua vez, também é muito semelhante ao
rito entre os gregos. Mas, nos últimos 30 anos, em parte por razões científicas,
e, em parte, por razões políticas, tem-se questionado muito essa origem da
tradição hindu.

Aluno: estamos falando de quantos milhares de anos atrás?

Professor: estamos falando de mais ou menos 2000 a.C., 2.500 a.C.,


talvez um pouco depois disso, mas não depois de 1.500 a.C.

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Nas últimas décadas tem-se questionado um pouco essa origem, em


parte por causa de novas descobertas arqueológicas, e, em parte, por um desejo
de autonomia do povo indiano, que quer separar historicamente a sua origem
dos outros povos da Europa. Mas, enquanto não se chega a alguma conclusão,
nós continuaremos chamando esses povos e sua cultura de tradição ariana, ou
tradição que tem uma origem indo-européia. Ariano é um nome meramente
simbólico e convencional, que não pode ser aceito, atualmente, de maneira
definitiva, como sendo a origem histórica desses povos – é só uma convenção.

O que caracteriza qualquer religião é que toda e qualquer religião se


propõe dar respostas sobre as questões que se levantam em torno de três
conceitos fundamentais: o conceito de Absoluto; o conceito de justiça; o
conceito de morte. Toda e qualquer religião se propõe explicar para o seu
religioso, para o seu fiel, o que é o Absoluto, o que é justiça, e o que é a morte –
e, portanto, o que acontece depois da morte.

A segunda característica comum a todas as religiões é que elas dizem


que essas respostas têm sua origem não num indivíduo humano – nem numa
coletividade humana –, mas que essas respostas têm como origem o próprio
Absoluto, de modo que todas as tradições religiosas se fundamentam, ou giram
em torno de duas idéias fundamentais: centro e origem. Toda religião tem um
centro original, um lugar, ou uma pessoa, ou uma figura, que é essencial para
ela, e uma origem: um momento, no tempo, em que aquele povo foi tocado pelo
Absoluto. Essa origem e esse centro podem ser tão antigos que assumem uma
forma mítica, ou quase mítica. Por exemplo, as tradições semitas têm origem
num momento – consta na Bíblia – em que Deus falou para um sujeito: “saia da
terra dos teus pais, porque é uma terra de idolatria, adora só a Mim, e Eu te
darei uma multidão de descendentes”. Então esse momento em que Deus fala
com Abraão é o centro e a origem das tradições semitas. Num determinado
momento da história, Abraão fez uma coisa, realizou uma ação que não partiu
da cabeça dele, mas que partiu da “cabeça” do próprio Deus.

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Nas tradições arianas, esse centro e essa origem são justamente o


conjunto de hinos que são os Vedas. Ninguém sabe exatamente quando os
Vedas começaram a ser compostos, mas sabe-se, com certeza, que entre 1.500
a.C. e 1000 a.C. eles já tinham a forma que têm hoje: quatro conjuntos de hinos
que descrevem a origem do universo, a natureza da humanidade – o que é a
humanidade –, os ritos que a humanidade tem que fazer, e o comportamento
próprio para o ser humano.

Segundo a tradição hindu, os Vedas foram ouvidos por sete sábios


diferentes, e eles se limitaram a compor e relatar esses hinos [e não a criá-los].
Segundo os hindus, os Vedas são um discurso divino: Deus recitou alguns
poemas e hinos que alguns sábios ouviram. Na tradição hindu existem dois tipos
de Escrituras Sagradas: a shruti, que significa “o que foi ouvido”, e a smriti, que
significa “o que foi lembrado”. A idéia é que existiam os Vedas – que foram
ouvidos por sábios, e saíram da “boca” de Deus –, cujo conteúdo foi esquecido;
depois vieram outros sábios e santos que, lendo os Vedas e vivendo daquele
jeito, se recordam do sentido original daquela mensagem e compõem outros
livros sagrados, que permitem que as outras pessoas voltem a acessar os Vedas.
Essa é a primeira idéia distintiva da tradição hindu: mesmo havendo um
registro exato da palavra de Deus, esse registro não é suficiente para que você
entenda o próprio Deus – porque você pode ler o registro e não entendê-lo, não
ter a menor idéia de qual é o conteúdo desse registro.

Uma das idéias centrais no Hinduísmo é justamente essa


descontinuidade entre duas potências no ser humano. Eles dizem que, por um
lado, existe no ser humano um fundo, um núcleo central que é idêntico ao
próprio Absoluto, e que basta este fundo se conhecer, e ele perceberá o
Absoluto. Por outro lado, existe a capacidade de pensar, a capacidade de
expressar para você mesmo o que você sabe e o que você experimenta. Mas a
capacidade de pensar é limitada. Em primeiro lugar, ela é limitada porque, para
pensar, você depende dos recursos idiomáticos disponíveis no ambiente: você
depende da língua que os teus pais te ensinaram; se a sua língua é mais rica,

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você pode aproveitar mais a capacidade de pensar da mente humana; se a sua


língua é mais pobre, você pode aproveitar menos. Os hindus foram o primeiro
povo a dizer, embora não explicitamente, que o tamanho da sua alma é
proporcional ao tamanho da sua linguagem. A sua alma é capaz de abarcar os
elementos do mundo na medida de sua riqueza lingüística – não pode haver
nada na sua alma, que você pode acessar, que não tenha um nome; tudo que há
na sua alma, que não tenha um nome, é inacessível para você.

Então vamos analisar duas polaridades que estão nos Vedas. A primeira
coisa que os Vedas dizem é que no começo do universo só existiam as trevas,
mas que por trás das trevas existia um Eu absoluto, um espírito absoluto, que
era um sujeito, e que esse sujeito iluminou as trevas e deu-lhes uma multidão de
formas. Essa multidão de formas são as imagens desse mesmo Eu para si
mesmo.

A primeira coisa que os hindus dizem sobre a realidade é que ela se dá


em dois pólos: existe o Atman, que é esse Eu, ou espírito original; e existe Maya,
que geralmente é traduzido como “a ilusão cósmica”. A palavra “Maya” tem sua
origem na raiz “ma”, que significa “medir”, ou “fazer”, ou “construir”. Dessa
mesma raiz vem a palavra “matéria”, ou a palavra “karma”, que significa “ação”,
significa “produzir” ou “realizar”. Aparentada também com a palavra karma,
existia no latim a palavra carmina, que significava um conjunto de poemas que
descrevia os feitos, ou ações de alguém. Carmina Burana são os poemas que
relatam os feitos, ou os atos de Burana. Carmina e karma são, evidentemente, a
mesma palavra originariamente.

A palavra Maya era uma derivação dessa raiz, que significava,


originariamente, o poder sobrenatural que os deuses e os demônios têm de se
apresentar para os homens nas mais diversas aparências. Todos os povos
sempre disseram: “os deuses podem aparecer para você como um sapo, como
um anjo, como uma pessoa, ou como qualquer coisa; eles podem disfarçar a sua
aparência, e aparecer como outra coisa pra você”.

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Então o primeiro ponto da doutrina hindu é que todo o universo, tudo


que existe, o conjunto das formas existentes é um conjunto de aparências
usadas pelo Deus original; são modos do Deus original aparecer – são disfarces.

A primeira polaridade de conceitos que é fundamental no Hinduísmo: o


conceito de Atman, que é o espírito original por trás das aparências; e Maya, que
é o conjunto de aparências que esse espírito toma na existência cósmica.

O segundo conceito é o dos meios que o ser humano tem para entender
o mundo. Quando o ser humano olha para o mundo, ele tem para cada coisa um
nome; na medida em que ele tem nomes, ele é capaz de descrever o mundo e ele
mesmo – lembrem que nós falamos: a alma é do tamanho da sua linguagem.
Quando eles dizem: “a alma é do tamanho da linguagem”, não significa que tudo
que está na alma é linguagem, mas sim que você só tem acesso, você só percebe
algo na sua alma na medida em que você tem um nome para esse algo.

Fora esse conjunto de nomes, esse tesouro de linguagem, existem as


coisas que são significadas pela linguagem, ou seja, as formas percebidas. Ao
primeiro conjunto de nomes, ou conceitos, ou recursos que a alma tem para
significar as coisas, se dava o nome de “naman” – do qual vem o nosso “nome”.
E ao conjunto de formas que eram significas por esse nomes se dava o nome de
“rupa”, que significa “figura” e “cor”. Então os hindus dizem que um indivíduo
humano é um composto, ou um conjunto chamado “namarupa”; ele tem, nele
mesmo, certas formas que são sensíveis, ou perceptíveis pelos sentidos, e certas
formas que são capazes de significar, ou representar estas formas. Você tem
atributos sensíveis, e você tem nomes ou representações mentais para esses
mesmos atributos. Os hindus dizem também que essa estrutura dual –
namarupa – não é apenas o modelo estrutural do ser humano, mas o modelo
estrutural de qualquer coisa que existe. Isto quer dizer que, para os hindus,
qualquer objeto contém elementos sensíveis e perceptíveis pelos sentidos, e
elementos que são supra-sensíveis. Por exemplo, se você olhar um cachorro, ele
tem, evidentemente, elementos sensíveis – ele tem uma cor, tem um tamanho,
um cheiro, uma textura –, mas ele também tem as características da espécie

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canina, que, por si mesmas, não são sensíveis; nós temos alguns indícios dessas
características nos sentidos, mas elas não são por si formas sensíveis diretas.
Nós sabemos que um cachorro vê o mundo, mas não vemos a sua visão.

Por mais diferentes que sejam os diversos ramos em que se dividiu a


tradição ariana, existe um elemento comum a todas elas; todas elas dizem: “o
Absoluto original está além de namarupa: ele não é nem naman, nem rupa, nem
a combinação dos dois”. Isso quer dizer que não podemos encontrá-lo em
nenhuma forma sensível, nem no conjunto das formas sensíveis, e que ele
também não é uma concepção da sua mente. Quando eu digo, por exemplo: “a
espécie canina”, espécie canina é um conceito; um conceito fundamentado na
observação dos cães. A espécie canina é uma palavra que significa algo presente
na minha mente, e abstraído de cada cão em particular. Já quando eu falo dos
pêlos dos cães, isso é um negócio que pertence à rupa, à forma física de cada
cão. O elemento comum a todos os ramos da tradição ariana é que o Atman
original, o espírito original não é nem naman, nem rupa. Como ele não é um
conceito, não é possível esgotá-lo por meio de conceitos, e também não é
possível conhecê-lo pela mera observação das coisas sensíveis; ele é algo que
tem que ser apreendido de outra maneira.

O que diferencia um ramo da tradição ariana de outro é justamente a


resposta à pergunta: “como você capta, ou percebe o que é esse Absoluto
original que está além de namarupa?”. As respostas para essa pergunta vão se
diferenciando, nos diversos ramos, até ramos diferentes chegarem a respostas
literalmente opostas.

A primeira resposta hindu sobre como você conhece [o Absoluto], ou o


que é esse Absoluto, vem no segundo estágio histórico da civilização hindu – o
primeiro estágio é o estágio de fixação ou cristalização dos Vedas. Quando os
Vedas adquiriram uma forma fixa, passou-se a escrever comentários sobre os
Vedas; isso acontece entre 1.000 a.C. e 500 a.C. Nesses 500 anos, os principais
sábios hindus se dedicaram a tentar entender os conceitos expressos nos
poemas védicos. A primeira resposta sobre quem é esse espírito original é que

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você mesmo é esse espírito. A primeira resposta da tradição hindu sobre como
você faz para conhecer o Absoluto é simples: “o Absoluto é você mesmo; você
mesmo é o Absoluto” – isso quer dizer que você ignora a sua natureza.

Isso levou os comentaristas dos Vedas a dizer que existem quatro tipos
de natureza, quatro tipos de seres: a) existe o Absoluto, que não tem princípio
nem fim; b) no extremo oposto da realidade, existe rupa, as formas sensíveis, e
todas elas têm princípio e fim; c) existe a sua consciência individual, que tem
um princípio, mas não tem fim – isto é, em algum momento você passou a se
perceber como ser, e eles dizem que você nunca vai parar de se perceber como
ser, e nó já veremos por que; d) e existe uma quarta natureza misteriosa, que é a
avídia, ou ignorância – a ignorância não tem princípio, mas terá um fim. Eles
dizem que, para que você seja consciente de você como um ser humano,
primeiro você teve que esquecer que você era o Absoluto; por isso eles dizem
que a ignorância é tão antiga quanto o Absoluto, e que ela é como que uma
dimensão do Absoluto, que permite que Ele se desdobre criativamente no
universo. Mas ela tem um fim, porque você pode alcançar a consciência liberta,
ou seja, você pode descobrir o Absoluto em você mesmo, e, assim, eliminar a
ignorância. Eliminando a ignorância, a sua consciência evidentemente passa a
partilhar da infinitude do próprio Absoluto, e passa a ter uma existência
indefinida.

Talvez a contribuição mais original, e o conceito mais característico da


tradição ariana seja a sua preocupação com a idéia de Eu, ou seja: o que é o Eu.
Essa idéia é tão importante nas tradições arianas, que é justamente ela que
diferenciou os seus ramos extremos. O primeiro ramo, que é o próprio
Hinduísmo, deu uma resposta fundamental à pergunta “o que é o Eu?”, ou
“quem sou Eu?”. Eles dizem: “o Eu é o próprio Absoluto”, que vestiu o disfarce
de Luiz Gonzaga em um caso, de Davi no outro, Stéfani no outro, e assim por
diante. Posteriormente, um outro ramo da tradição de origem ariana – o
Budismo – dará uma resposta contrária a essa pergunta. Quando o Buda se

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perguntou: “o que é o Eu?”, ele chegou à conclusão: “o Eu não é, não existe


nenhum Eu”.

São as diversas respostas a essa pergunta que constituem os diversos


ramos das religiões arianas. O Hinduísmo, portanto, é um monte de religiões,
porque, no decorrer da história da civilização hindu, os sábios deram várias
respostas, ou várias nuances de resposta a essa pergunta. A resposta
fundamental é que, em última análise, tudo é o Absoluto, tudo que é um Eu é o
Absoluto, e o único núcleo de identidade que você tem em você mesmo é
justamente o do Absoluto, e que tudo o mais é algo que se agrega
posteriormente.

Contudo, a pergunta fundamental que se coloca para o hindu, ou para o


budista, é uma pergunta cuja resposta exige uma espécie de fértil ou rica
imaginação metafísica. Para vocês constatarem isto, basta vocês mesmos se
perguntarem: “o que sou eu?”, ou “quem sou eu?”. Vocês verão que todas as
respostas que vocês dão à pergunta “quem sou eu?” são posteriores ao seu
próprio eu. Responder a essa pergunta exige que o sujeito dê um salto cognitivo.
Se você perguntar “o que é um cachorro?”, ou “o que é um ser humano?”, essa
pergunta pode ser abarcada pela sua linguagem; qualquer linguagem humana
suficientemente rica pode explicar o que é um cachorro, ou o que é um ser
humano, mas não existe nenhuma linguagem que possa responder
imediatamente à pergunta “o que é eu?”. Toda informação que você dá acerca de
você não é você, evidentemente – é algo que pertence a você. Por exemplo: à
pergunta “quem sou eu?”, você responde: “eu sou um ser humano”. Mas existe
uma identidade entre o conceito “eu” e o conceito “ser humano” em você? Não.
Se existisse essa identidade, um outro não poderia ser humano, não seria
possível que existisse outro ser humano. Logo, o conceito “eu”, num indivíduo
humano, e o conceito “ser humano”, são conceitos que têm uma certa
intersecção, mas não se correspondem. Depois eu poderia responder: “eu sou o
filho de Fulano de tal”, e mesmo que eu seja filho único de Fulano de tal, eu

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percebo que é possível que Fulano de tal tenha um outro filho, e, portanto,
também não há uma identidade entre um conceito e outro.

O conceito de eu é tão sutil, que a criança pequena, quando começa a


aprender a linguagem, não consegue perceber a quê esse nome se refere. É por
isso que a criança costuma falar: “o Joãozinho fez não sei o quê”; ela não fala:
“eu fiz não sei o quê”, porque ela não capta a ligação entre esse nome e uma
forma sensível. Quando você fala “Joãozinho”, ela lembra das mãos dela, dos
olhos dela, de um monte de aspectos do ser dela, que no conjunto se chama
“Joãozinho”; mas quando você fala “eu”, isso é tão abstrato que ela não
consegue captar. Isto significa que o conceito de “eu” serve de ponto de partida
para uma percepção do Absoluto justamente por ser um conceito de natureza
puramente intuitiva. Não há um conjunto de nomes que descreva a experiência
do que é “eu”; todo e qualquer nome se refere a algo que pertence à minha
mente ou ao meu corpo. Tudo que eu falo sobre mim mesmo corresponde a
naman ou a rupa, menos a palavra “eu”, porque eu sou justamente o possuidor
desse naman e desse rupa, [eu sou] aquele que está subentendido nisso aí.

Quando Deus falou com Abraão, qual era a diferença entre esse Deus
que falou com Abraão e os outros deuses? Qual era a diferença entre o Deus de
Abraão e os deuses dos outros? O que diferenciava os deuses dos outros do Deus
de Abraão, e o Deus de Abraão dos deuses dos outros? O Deus de Abraão não
tinha forma; não dava pra fazer uma figura do Deus de Abraão. Não é que toda
vez que um sujeito faz uma estátua de um deus, que ele pensa que aquela
estátua é o deus dele; mas ele afirma que existe uma analogia fundamental entre
essa estátua e o deus do qual ela é representação. A estátua é um rupa, quer
dizer, é uma forma sensível, e a toda forma sensível corresponde um naman, um
conjunto de conceitos que a descreve. Então quando você representa um deus
numa estátua, você está dizendo que esse deus é abarcado por um conjunto de
nomes; você está dizendo, simultaneamente, que ele é representável por um
conjunto de nomes, e que, portanto, num certo sentido, o seu psiquismo pode
esgotá-lo. Quando Abraão fala: “meu Deus não tem forma, não tem uma

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imagem, não dá pra fazer uma imagem, Ele é invisível”, essa invisibilidade
corresponde exatamente ao que os hindus fazem quando eles falam: o “Atman
supremo é o Eu; o Eu é o Atman e o Atman é o Eu”. Os dois – os sábios que
fizeram os Vedas, e Abraão – estão colocando o Absoluto fora da esfera de
naman e rupa. Isso é a mesma coisa que faz o Taoísmo quando, logo de cara, dá
um nome ao Absoluto – Tao –, e fala: “Tao significa ‘caminho’, ou ‘via’”, mas a
primeira coisa que ele [Taoísmo] fala sobre o Tao é que “o Tao que pode ser
trilhado não é o verdadeiro Tao; o caminho que pode ser trilhado não é o
verdadeiro caminho”. Quando o Taoísmo fala isto, ele está justamente
lembrando você da característica fundamental do Absoluto, que é estar além de
namarupa.

O que funda, o elemento comum e fundante das tradições é justamente


essa distinção absoluta de planos. Por um lado, existe a mente humana e o
corpo humano, e o que eles podem abarcar; por outro lado, existe algo que está
além tanto da mente quanto do corpo. Isso aí é o princípio fundante de qualquer
tradição religiosa. De um modo ou de outro, cada uma das tradições religiosas
marca, logo no começo, essa característica fundamental do Absoluto. Isso pode
ser marcado de diversos meios: no caso do Taoísmo, por uma expressão
contraditória; no caso do Hinduísmo, usando, para significar o Absoluto, um
termo que é puramente intuitivo; no caso de Abraão, das tradições semíticas,
simplesmente afirmando que esse Deus não tem forma. É essa expressão inicial
de cada tradição religiosa que diferencia a religião, como tradição humana, de
qualquer outra tradição humana, ou de qualquer outro elemento de uma cultura
humana. Existe, para cada civilização, um conjunto de ciências e artes que
aquela civilização possui, e que ela procura transmitir para a geração seguinte; a
humanidade inteira sempre viveu assim, tentando transmitir o que ela já sabia
para a geração seguinte. Nenhuma ciência ou arte propõe que o seu objeto,
desde o começo, transcende a capacidade conceitual humana. A primeira coisa
que o sapateiro diz ao ensinar o aprendiz de sapateiro não é: “veja bem, o objeto
dessa ciência, que é o sapato, é incompreensível; o verdadeiro sapato é
incalçável”. Qualquer tradição cultural, pelo contrário, se origina quando você

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consegue reunir um conjunto de conhecimentos numa forma mental que


expresse de maneira suficiente e completa o seu objeto. Ou seja, uma arte ou
uma ciência está consolidada numa cultura quando o conjunto de meios
lingüísticos, ou idiomáticos que expressam o objeto é suficientemente completo.
Por exemplo, os 13 livros dos Elementos, de Euclides – todos eles tratam de um
objeto, que é Geometria. Se você romper a cadeia histórica de ensino da
Geometria, a partir dos elementos de Euclides – Euclides ensinou para uns
discípulos, que ensinaram para outros discípulos, e assim por diante –, suponha
que eu interrompa essa cadeia de transmissão, e duas, ou três, ou cinqüenta
gerações depois, alguém encontre um exemplar, um manuscrito dos Elementos,
de Euclides, e tente entender o que é aquilo. O que vai acontecer? O que vai
acontecer é que é perfeitamente possível reconstituir completamente a ciência
da Geometria, tal como Euclides a conhecia, por meio do registro que ficou.
Mesmo que, num determinado momento histórico, não exista mais nenhum
descendente cultural ou intelectual direto de Euclides, se sobrar o registro
nominal, ele é suficiente pra você resgatar aquela tradição, pra você resgatar
aquele elemento da cultura grega. Por quê? Porque o próprio objeto está dentro
dos limites de namarupa, isto é, ele não é maior do que a capacidade conceitual
humana, ele é menor. Já a religião não é assim; como o seu objeto fundamental
transcende namarupa, se, num determinado momento, o ensino de uma religião
é cortado, ele não pode ser recuperado na geração seguinte. Se uma geração
humana não aprender o Hinduísmo da geração anterior, na outra geração não
haverá mais Hinduísmo. O registro nominal do Hinduísmo não é suficiente para
resgatá-lo. Isso vale também para o Judaísmo, Cristianismo, e assim por diante.

Aluno: por que a compreensão não pode vir apenas pela forma escrita?

Professor: porque a forma escrita é [apenas] uma indicação.

Aluno: o que altera com relação à fala?

Professor: a fala é um ato vital; o registro, o livro escrito, já não é mais


um ato vital. O Hinduísmo fala: “em algum momento, Brahma falou para

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Fulano tal coisa, e ele ouviu; aí este sujeito falou isto para um outro sujeito, que
falou para um outro, que falou para um outro, que falou, falou...”, e assim por
diante. É esta ligação vital que faz com que aquela religião seja uma religião
ainda; ela é uma imitação de um ato vital do próprio Deus. Por quê? Porque o
próprio Deus não pode ser abarcado conceitualmente. A experiência mais
comum é que a cada geração de qualquer tradição religiosa tenham que surgir
novos comentários à Escritura, ou à tradição anterior, porque a própria
Escritura não expressa o conteúdo para aquela geração. Por exemplo, se eu abrir
a Bíblia agora, se eu chegar em casa – [façamos de conta que] nunca ouvi falar
de Cristianismo, nem de Judaísmo –, se eu simplesmente abrir a Bíblia, como
eu faço para me tornar judeu ou cristão simplesmente abrindo a Bíblia? Não dá,
é impossível. Como eu faço para entender o que significava o Deus de Abraão
para Abraão? O único jeito de eu entender o que significava o Deus de Abraão
para Abraão é entender isso a partir de um sujeito que entendeu isto de um
outro sujeito, que entendeu de outro sujeito, que entendeu de Abraão, que
entendeu do próprio Deus. É por isso que as religiões são tradições: elas são
trazidas, de geração em geração, para a geração seguinte. Se o objeto último da
religião fosse esgotável pela mente humana, qualquer descrição suficiente dele
poderia ser resgatada duas ou três, ou cinqüenta gerações depois. Por exemplo,
vamos abrir aqui o Livro egípcio dos mortos. O que era o Absoluto para os
egípcios? Não tenho a menor idéia; ninguém tem a menor idéia.

Aluno: se houver um conjunto de obras que explique cada um dos


conceitos inerentes a uma relação, ainda não é suficiente?

Professor: também não é suficiente. O máximo de compreensão que você pode


ter de uma religião que foi interrompida historicamente é por analogia com
outras religiões semelhantes ou próximas.

Aluno: o que torna a fala especial em relação à escrita?

Professor: a fala, como ato vital, inclui uma série de outras dimensões
da existência humana, que o mero registro escrito não inclui. O registro escrito é

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maximamente abstrato; ele tende muito mais para naman. Por exemplo, a
escrita não parece com o que você falou: lendo uma língua totalmente
desconhecida, você não tem a menor idéia de como ela soa. Se analisarmos,
aqui, um conjunto de letras árabes, você tem alguma idéia do seu som? Mesmo
que você possa entender, você não tem a menor idéia do som. Você não tem
idéia, por exemplo, da musicalidade daquela língua. Então existem notícias ali
que já foram cortadas.

Aluno: a escrita empobrece.

Professor: a escrita empobrece. A escrita enriquece no sentido do


registro abstrato. Todo e qualquer objeto cósmico, ou objeto natural, a escrita
enriquece; ela enriquece no sentido de criar um registro que é recuperável,
mesmo no caso de se perder o ensino contínuo.

Aluna: por mais que você descreva um cheiro, se você não tiver a
experiência vivida, você não saberá como é aquele cheiro.

Professor: exatamente, você não saberá como é aquele cheiro. Inclusive


existiam povos, como os celtas, que tinham elementos de escrita, mas tinham
entre eles a lei que proibia de usar a escrita para as coisas da religião. A escrita
existia só para os registros comerciais, políticos, acordos, mas ela não podia ser
usada para as coisas da religião. Por quê? Porque ela daria a impressão de que
você estaria transmitindo um negócio, e não estaria. Segundo o Judaísmo, Deus
falou com Abraão. Por que Deus não escreveu um livro para Abraão?

Aluno: por que não mandou um e-mail?

Professor: exatamente, por que não mandou um e-mail pra Abraão? Por
que que Ele falou com Abraão? Porque a fala, além de ser um ato vital, como
que resume todos os componentes da individualidade humana: a fala tem desde
uma aparência sensível, quer dizer, a fala pertence a rupa, mas também
pertence a naman, porque ela tem um conteúdo inteligível, ela tem um
significado. A palavra é como que um resumo do próprio ser humano.

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Aluno: por isso que não basta o juiz ler um depoimento, ele tem de ouvir
o réu.

Professor: sim, por isso que o juiz tem de ouvir o réu. Há coisas que
ficam perdidas no registro escrito. Mesmo as religiões que põem ênfase num
livro escrito dizem: “primeiro isso foi falado, e, segundo, é importante que isso
não seja esquecido”. Por exemplo, no caso do Judaísmo, houve um tempo em
que eles perderam o seu alfabeto. Quando eles foram escravos na Babilônia,
passaram tanto tempo lá que esqueceram o seu alfabeto, e depois tiveram que
recriar um alfabeto, que é totalmente estranho à língua deles – mas eles não
perderam a narração oral dos hinos, da descrição dos ritos e tudo o mais,
porque sabiam que “se nós perdermos isso aqui, perdemos tudo; mas o alfabeto
não é tão importante assim”. Isso se dá exclusivamente no caso da religião;
qualquer outro componente da cultura humana só tem a ganhar com o registro
escrito. Isso significa que o Absoluto só pode ser captado como uma experiência
direta e individual; do mesmo modo que o “eu”, ou que uma coisa que não tem
forma alguma, como o Deus de Abraão – no começo não tinha nem um nome, e
é por isso que falavam “o Deus de Abraão”, porque ninguém sabia como Ele se
chamava –, ou o Tao que não pode ser trilhado, o caminho que não pode ser
trilhado. A expressão “um caminho que não pode ser trilhado” é algo que não dá
para imaginar, ou conceber abstratamente, e muito menos para ver.

Esse é o primeiro critério de distinção entre uma verdadeira tradição


religiosa e uma tradição pseudo-religiosa: se o conceito original pode ser
abarcado, se o objeto original pode ser abarcado conceitualmente,
evidentemente não é uma religião; muito menos ainda se ele puder ser abarcado
por uma forma sensível.

Se esse é um dos lados que caracteriza uma religião original, o outro


lado é o fato deste mesmo Absoluto se agarrar a uma forma sensível e a um
conjunto de conceitos. Se o Absoluto de que fala, por exemplo, a tradição hindu,
é inalcançável, inatingível, indefinível, no entanto Ele fala os Vedas, e os Vedas
são uma forma sensível. A mesma coisa o Deus de Abraão: se Ele é invisível e

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Religiões do Mundo I

impossível de ser representado, Ele fala para Abraão: “faça isso”. Sem essa
fixação numa forma sensível também não é possível a existência de uma
religião. O Absoluto não é, de modo algum, fundar uma religião. A fundação de
uma religião é justamente a fixação do Absoluto numa forma compreensível.

Aluno: mas não por meio de criatividade, e sim por meio de uma
experiência real.

Professor: por meio de uma experiência real, não por meio de


criatividade; não é uma elaboração. Segundo os hindus, os Vedas não são uma
elaboração dos sábios que escreveram, eles simplesmente ouviram. Do mesmo
modo que a ação de Abraão de sair do seu país não veio de ele achar, de ele
concluir que Deus não queria que ele ficasse morando naquele lugar que só
tinha idólatras, e que ele deveria se afastar, e que se ele fizesse isso, Deus o
recompensaria com uma descendência numerosa. A idéia é que Deus falou pra
ele isso, e aí ele simplesmente fez. Por que ele fez? E por que o brâhmane recita
os Vedas? É como que para retornar nesse mesmo movimento. Deus fez um
movimento na direção do homem, e aí o homem faz um movimento
complementar na direção de Deus. Então Deus fala para Abraão: “sai do teu país
e vai pra tal lugar”. Aí ele sai. Por que que ele sai? Só pra ter uma descendência
numerosa? Não, ele faz porque, saindo, ele volta na mesma direção donde veio
essa voz. Quando ele volta nessa direção, ele chega a uma série de conclusões
acerca de Deus: “ah, Deus é assim, Deus é assado”. São essas conclusões dele
que permitem que ele transmita a experiência original para a geração seguinte.
A mesma coisa com relação aos sábios originais que fizeram os Vedas, que
escutam aquilo de Deus, e aí recitam; quando eles recitam, eles como que
fizeram um movimento na direção daquela voz, e aí eles [perceberam]: “o dono
dessa voz é assim, assim e assim”; então eles descrevem isso para as pessoas da
geração seguinte, e as pessoas da geração seguinte fazem a mesma coisa, e assim
vai.

Esse é outro elemento comum a todas as tradições religiosas: logo no


início elas dão um meio de auto-perpetuação, elas ensinam um mecanismo por

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Religiões do Mundo I

meio do qual você irá perpetuar aquilo. No caso dos Vedas, é justamente a sua
recitação. A primeira coisa que os sábios falaram foi: “isso aqui foi o que Deus
falou, e, se você falar, você vai entender quem é o Deus que falou, e do quê Ele
falou”. No caso, por exemplo, da tradição abraâmica, é diferente. Abraão não
fala para o seu filho que ele [filho] fale as palavras que Deus falou pra Abraão,
mas ele [Abraão] ensina outro método de preservar aquela tradição, que é:
“Deus sempre dirá pra você abandonar alguma coisa. Se, a cada geração, nós
abandonarmos uma coisa específica que Deus mandou abandonar, nós nos
aproximamos Dele de novo”. Por isso que a história das tradições semíticas, até
elas se dividirem em ramos formalmente distintos, é uma história de renúncias.
De uma geração pra outra, Deus falando: “não faça isso”, ou “não fique em tal
lugar”, ou “não tenha tal coisa”.

Algumas tradições têm meios de perpetuação tão sutis que, durante


várias gerações, elas têm um número muito pequeno de membros; por exemplo,
a tradição de Abraão tinha só os seus descendentes. O Taoísmo se diz que, nas
10 primeiras gerações, só tinha um membro. Lao-Tsé ensinou pra um, que
depois ensinou pra um, que ensinou pra um, e assim foi durante as 10 primeiras
gerações.

[Houve uma pausa na gravação, e perdeu-se uma parte]

[...] Pela qual o registro escrito de uma tradição religiosa não é


suficiente, é porque, sendo o objeto transcendente à linguagem humana, você só
tem uma garantia dele por meio do testemunho humano direto. Quando Abraão
fala para o seu filho: “é o meu Deus que você adora”, ele está garantindo para
Isaac que ele captou a mesma coisa que Abraão captou. A continuidade de uma
tradição religiosa depende deste testemunho que a geração anterior dá para a
posterior de que você está captando a mesma coisa que eles. Não basta que você
repita as mesmas palavras que eles; eles olharão e falarão: “ih, mas essas
palavras não significam o mesmo objeto em você”. Só uma geração religiosa
pode dar testemunho, para outra geração, de que aquela religião é a mesma.

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Religiões do Mundo I

Quando você entende Geometria, você não precisa do testemunho de Euclides


de que você entendeu o mesmo objeto que ele.

Aluno: além de falar, o locutor empresta a sua credibilidade àquilo que


diz. No texto escrito não.

Professor: exatamente, ele transmite de modo vital a sua experiência


vital. E, mais ainda, ele pode dizer pra você: “isto mesmo que você está
percebendo agora é a mesma coisa que eu percebi antes; isso mesmo que você
defende agora é o que eu defendi antes”. É por isso que todas as tradições
religiosas são conservadoras: toda religião é preservar algo que alguém recebeu.

Aluno faz comentário.

Professor: exatamente, tradição significa justamente aquilo que é


trazido, aquilo que alguém entregou. É impossível resgatar uma tradição que
não foi trazida. O que garante para um judeu, hoje, que ele tem a mesma religião
que Moisés tinha, e que ele adora o mesmo Deus que Moisés adorava, se esse
Deus não pode ser contido em formas sensíveis ou mentais? É um sujeito que
olha aquele judeu como um indivíduo inteiro e percebe, capta a experiência que
aquele judeu tem da realidade e fala: “essa experiência é análoga à minha, que é
análoga à do sujeito que me ensinou a religião, e assim por diante, até chegar a
Moisés”. É por isso que até o ensinamento tradicional pode prescindir de
palavras, ou do ensinamento oral. Existem algumas tradições em que o sujeito
simplesmente lê alguns livros, e senta na frente do mestre, até que um dia o
mestre diz pra ele: “agora você alcançou o que é essa tradição aqui”. O Zen-
Budismo é todo assim. Um grande santo hindu do século XX também ensinava
só assim: Ramana Maharshi só ensinava pelo silêncio. Ele falava: “você leia aqui
os livros da religião, e sente aqui na mesma sala que eu, e eu transmitirei essa
experiência pelo silêncio”. Até que um dia ele falava pra um ou pra outro: “você
chegou à mesma experiência”.

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Religiões do Mundo I

Aluno: isso dá a impressão de que é mais fácil aceitar os fatos religiosos


do que os fatos contados pela História, porque a História só usa o registro
escrito, enquanto que na religião há o testemunho oral também.

Professor: as verdades religiosas e os fatos religiosos são os fatos mais


confiáveis que nós temos sobre a história da humanidade. Por quê? Justamente
por causa desse caráter inefável da experiência religiosa. Por exemplo, eu posso
explicar o Hinduísmo para cada um de vocês, detalhadamente; vocês
entenderam o Hinduísmo, mas isso não faz de nenhum de nós um hindu. Isso
quer dizer que a essência do Hinduísmo não foi experimentada por nós. Você só
pode transmitir uma religião se você é membro dela. O máximo que você pode
fazer por uma religião da qual você não é membro é descrevê-la de fora – com o
risco de dizer errado.

Mesmo que você entenda perfeitamente uma religião, você não é um


transmissor autorizado. É isso que faz com que nós desconfiemos das religiões.
Como eu sei se o Hinduísmo é verdadeiro se eu não sou hindu? Eu não sei. É
simples: eu não tenho como saber. Eu posso, evidentemente, dar um palpite
ilustrado; eu posso dar uma opinião esclarecida. Uma vez que eu não sou hindu,
eu posso estudar todo o Hinduísmo, estudar a história do Hinduísmo, estudar
os santos hindus, e falar: “parece que isso aí é uma religião de verdade”. Eu
posso, na prática, ter a certeza e a convicção de que é uma religião de verdade,
mas eu não posso dizer: “eu sei que é verdadeira”. É por isso que as religiões se
excluem mutuamente. O muçulmano, mesmo que entenda o Cristianismo e o
Hinduísmo, ele partilha de uma experiência só, a experiência do que é Islã, a
experiência que o Islã tem do Absoluto. Ele pode falar: “essa eu sei que é
verdadeira; as outras pode ser que sim, pode ser que não”.

Aluno: não pode ocorrer o inverso: reforçar a sua crença, na medida em


que você encontra elementos comuns [nas outras religiões]?

Professor: sim, claro, pode reforçar a sua crença, mas a crença ainda
não é tudo, ainda não é religião. Por exemplo, as religiões têm critérios

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Religiões do Mundo I

diferentes para o que é a religião. Se você acreditar em tudo que diz na Bíblia,
em tudo que diz no Novo Testamento, você é cristão? Todos os autores cristãos,
de todos os tempos, falarão: “não”. Você é cristão se você for batizado, esse é o
primeiro passo.

Aluno faz comentário.

Professor: exatamente, cristão não é o que adere intelectualmente; é o


que participa, numa certa medida, da mesma experiência original; é
simplesmente o sujeito que percebe o Cristo, em alguma medida, do mesmo
jeito que os apóstolos perceberam. Se o sujeito ler a Bíblia e acreditar, aceitar
tudo aquilo, ele deu um passo na direção de se tornar cristão, mas ele não se
tornou cristão – por mais que ele acredite; ele pode acreditar naquilo até mais
do que um cristão, ele pode estar mais convicto daquilo do que um cristão, que
de vez em quando: “não tenho certeza absoluta”. Já os hindus são diferentes,
eles são semelhantes aos judeus: você tem que pertencer a um determinado
povo para fazer parte daquilo. Para ser hindu, você tem que pertencer à
comunidade védica; é só quem for descendente dessas famílias aqui, aqui e aqui.

Aluno: as conversões são legítimas?

Professor: as conversões são legítimas na medida em que elas são


testemunhadas por uma autoridade legítima. Se um sacerdote cristão conhece
um sujeito que era budista, e aí o budista fala que quer se tornar cristão, apenas
aquele sacerdote pode testemunhar se aquele sujeito é cristão ou não. Quando
um sacerdote autêntico falar: “você é cristão”, você é. Isso vale até para as
religiões que são relativamente isoladas no sentido étnico. Mesmo o Hinduísmo
e o Judaísmo permitem conversões excepcionais. Porém, qual é a medida em
que podemos verificar a legitimidade de uma conversão? Só quem pode verificar
a legitimidade de uma conversão é aquele sujeito que se converteu e os
membros autorizados daquela religião, que avaliam se a experiência que o
sujeito tem do Absoluto é aquela experiência original ou não. Para a
comunidade cristã como um todo, um cristão que se torna muçulmano é

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Religiões do Mundo I

simplesmente um sujeito que perdeu o Cristianismo. Eles não podem dar a


certeza de que aquele sujeito ganhou o Islamismo; eles só podem dar a certeza
de que ele perdeu isso – e o mesmo vale para qualquer outra conversão. É por
isso que toda e qualquer comunidade religiosa evita a conversão dos seus para
as outras religiões. Nenhuma religião pode te garantir na outra religião.

São raros os místicos que, numa certa medida indireta, têm alguma
experiência ligada a outra religião. Por exemplo, na Idade Média há o caso de
alguns santos que tiveram visões de cristãos e muçulmanos entrando no
paraíso; ou o caso de alguns sacerdotes hindus, os brâhmanes que receberam
São Francisco Xavier na Índia, que passaram dois dias discutindo com ele a
religião que ele ensinava, e que, depois desses dois dias, falaram: “você pode
pregar a sua religião para o povo, porque a sua religião é verdadeira”. Mas esses
casos são excepcionais. Normalmente você não terá uma experiência do
Absoluto que seja tão abarcante ao ponto de te tornar captar a experiência de
outra religião. A verdade é que dificilmente, no decorrer da vida toda, um ser
humano terá duas religiões – no decorrer da sua história. Ele podia pertencer a
uma comunidade religiosa, mas ele mesmo nunca teve a experiência daquilo.

Aluno: era só uma doutrina.

Professor: era só uma doutrina, exatamente, era um conjunto de


costumes, e aí ele veio a ter a experiência de outra religião, que não era a da sua
comunidade. Raramente alguém se converte de uma religião para outra. Eu
nunca li uma biografia em que foi o caso de o sujeito ter uma religião e ter
passado para outra. É sempre assim: ele não tinha nenhuma religião, e aí ele
passou para outra – mesmo que ele pertencesse, formalmente, a uma
comunidade religiosa. Por quê? Porque, no próprio decorrer das gerações, os
critérios pelos quais você avalia se um sujeito pertence a uma religião, ou outra,
vão se formalizando. Numa medida, para que você entenda a experiência
original, mas na medida mesma em que eles se formalizam, eles também
perdem essa transcendência do espírito. Por exemplo: para um católico romano
falar quem é cristão, é simples: tem o batismo e o credo; se você foi batizado e

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Religiões do Mundo I

você aceita isso aqui, você é cristão. Pode haver um sujeito que foi batizado logo
que nasceu, e a vida toda ficou, toda semana, repetindo aquele credo, mas nunca
teve a menor percepção do que é aquilo. Em termos formais, ele é católico; mas
ele é realmente? Eu não sei. Só na medida em que isso – o batismo e a repetição
do credo – levou ele a uma experiência do que é significado por aquilo. Tanto é
assim que, na primeira geração, não havia aquele credo formalmente
estabelecido, e [no entanto] os apóstolos sabiam quem era cristão e quem não
era.

Isso significa que a religião é a coisa mais difícil que existe de se


perpetuar. A duração milenar das religiões é uma das maiores provas da sua
veracidade. Gamaliel falou diante do Sinédrio, quando estavam planejando
contra o Cristo: “não façam isso, porque se isso aí for de Deus e nós O
matarmos, eles vão ganhar do mesmo jeito, porque o negócio vai continuar; e se
não for, não se preocupe, porque vai acabar”. Ou seja, nenhuma religião falsa
dura milhares de anos. Por quê? Porque é um negócio tão difícil de se transmitir
de geração em geração, que, se durar, só pode ser de Deus.

Aluno faz comentário.

Professor: os milagres recorrentes e as pequenas revelações permitem


uma recordação, a cada geração, do que era a experiência original. É por isso
também que, a cada geração, surgem novas expressões para a mesma
experiência. Mas o que acontece? A segunda experiência não pode ser reduzida
de modo causal à primeira. Quando Isaac experimenta a mesma realidade que o
pai dele experimentou, e aí o pai dele fala: “essa aí é a mesma religião”, a
experiência de Abraão não pode causar a experiência de Isaac; então ela é como
que um novo milagre. Abraão podia falar um monte de coisas pra Isaac, podia se
comportar de um determinado jeito, e tudo isso aí indicava para Isaac a direção
da experiência do pai dele, mas não podia causar a mesma experiência. É por
isso que todas as religiões falam: “a primeira coisa que você precisa ter nesse
negócio é uma atitude que depende só da sua vontade”. Isso é o que, por
exemplo, no Cristianismo, se chama fé. Para você se tornar cristão, a primeira

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Religiões do Mundo I

coisa que você precisa ter é fé; você precisa querer aceitar essas verdades. Já no
Budismo eles falam: “essa é a religião que não precisa de fé, mas precisa de
outra coisa: você precisa querer se libertar definitivamente de todo e qualquer
sofrimento”. Esse é o pressuposto inicial para que você possa vir a ter a
experiência do que é ser budista. Já no Islã eles falam: “você pode não ter a
menor idéia do que é Deus, então, se você não tem a menor idéia do que é Deus,
você também não terá fé nenhuma, porque, evidentemente, a sua fé será mal-
direcionada. Mas se você quer pertencer a esta religião, primeiro você tem que
aceitar a Lei; primeiro submeta-se a esta Lei”. Todas as tradições religiosas, em
primeiro lugar, propõem um negócio para a sua vontade, mais do que para a sua
inteligência abstrata. Por quê? Porque a liberdade da sua vontade é o sinal mais
característico, na individualidade humana, do que é o Absoluto. Não poderia ser
a inteligência abstrata, porque você pode ser burro. Você pode ser minimamente
capaz de entender as coisas, mas, por mais burro que você seja, você ainda pode
escolher fazer isto ou aquilo, fazer ou não fazer – isto é algo que ninguém pode
tirar. O sujeito só se tornará, por exemplo, budista, se ele quiser, a todo custo, se
libertar de modo definitivo do sofrimento. O sujeito só se tornará, por exemplo,
cristão, se ele acreditar que Jesus Cristo era o filho de Deus, e que a Sua morte o
salva do inferno. A primeira coisa é acreditar nisso. Isso já torna alguém cristão?
Não, isso é um requisito para se tornar cristão.

Assim, pode-se dizer que a experiência de uma religião – ou seja, a


experiência transcendente que é trazida por uma religião, de geração em
geração – é acessível a partir de outra experiência, que é uma experiência
humana comum. Esta experiência [humana comum] pode ser de ordem
universal ou pode ser acidental e característica de um povo. Por exemplo, o
Budismo se baseia na experiência do sofrimento – todo mundo experimenta o
sofrimento. Se você nunca sofreu, não tem como você se tornar budista. O Islã
se baseia na experiência de que há normas que antecedem a tua escolha,
antecedem a tua existência, e que, no entanto, determinam a sua vida. Todo ser
humano vive diante de outros seres humanos, que aprovam algumas das suas
ações, e reprovam outras. O Cristianismo se baseia na experiência de que você é

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Religiões do Mundo I

pior do que você queria ser. É isso que quer dizer quando o Cristo fala: “Eu vim
para os enfermos, e não para os sãos”. Se você nunca experimentou isso – você
queria ser um cara legal, mas você vai lá e faz uma canalhice –, não tem como
você ser cristão, porque o Cristianismo é a experiência de uma bondade divina
que transcende a tua própria maldade, que a engloba e a apaga. É por isso que o
Cristianismo fala: “aquele que diz que não tem pecado não está com o Espírito
Santo”. Percebam que essas são experiências humanas comuns, e é só essa
experiência original que permitirá que você tenha a experiência do Deus
daquela religião, do Absoluto como Ele aparece naquela religião. Então o sujeito
se torna cristão na medida em que ele percebe isso: “eu queria ser um cara legal,
daí eu fui lá e não fui [um cara legal], fui exatamente o contrário, e eu merecia
me ferrar, mas eu não me ferrei. Quem me ajudou?”.

Aluno faz comentário.

Professor: sim, ele primeiro tinha que ter uma intenção bondosa à qual
ele não correspondeu. Ele tinha que, em algum momento, querer ser melhor.

Aluno: no momento em que o Lula disse que não tem pecado, é possível
que ele tenha essa percepção?

Professor: claro que é possível. Existem pessoas que não têm nenhuma
religião. Existem pessoas que não têm nenhuma percepção consciente do
Absoluto, é evidente [que existem tais pessoas]. É o sujeito que está no inferno
de todas as religiões.

Tudo aí será uma questão de interpretação. Por exemplo, o sujeito fala:


“eu queria ser um cara legal, daí eu fui lá, fui um cara mau, e, no entanto, eu me
dei bem”. Então ele conclui: “isso foi a sorte”. A sorte é um princípio injusto, não
é? A sorte premia os bons e castiga os maus? Não. A sorte é um princípio
injusto, que opera de modo injusto. No entanto, a sorte, para o sujeito de boa
sorte, foi boa, não foi? O quê que significa isso? Significa que, quando o sujeito
queria ser bom, mas ele é pior do que ele queria, e ele se dá bem, e atribui isso à
sorte, ele está fazendo o quê? Metafisicamente ele está atribuindo uma

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Religiões do Mundo I

experiência que foi boa para ele a um princípio que foi pior do que a
experiência, que era pior do que a experiência, a um princípio que era mau. Não
é à toa que, desde o começo, por exemplo, no Cristianismo, para explicar essa
experiência, é necessário doutrinalmente explicar: “não existe sorte”. Desde o
começo o Cristianismo faz esta insistência; o próprio Cristo fala: “não cai uma
folhinha sem a concessão do Pai”. Quando você chama um negócio de “sorte” é
só porque você não sabe qual foi a causa original.

Aluno: não tem sorte nem azar.

Professor: não tem sorte nem azar, exatamente. No entanto, existe a


graça. Existe justiça e graça. Existem alguns bens que vêm para você sem que
você merecesse, mas eles vêm assim mesmo. A medida que o sujeito vive esta
experiência é a medida em que ele é cristão. Tanto que, se você estudar as
biografias dos santos cristãos, qual é o ponto em que eles mais insistem? Todo
mundo chega pra eles e fala: “nossa, você é um cara maravilhoso, você só faz
coisa boa”, e ele: “eu não, eu sou um canalha, eu sou um filho da mãe, e tudo
isso aqui é Deus que está fazendo pra mim”. Se você perguntar isso pra um
budista, ele não vai falar que é a natureza búdica que está fazendo isso pra ele;
ele fala: “não, é isso mesmo” [“sou eu mesmo”], porque a experiência que
conduz um sujeito à percepção do Absoluto como Ele se mostrou para o Buda
não é a percepção de que ele é pior do que ele queria ser, mas a percepção de
que todos os seres sencientes sofrem, e de que existe uma libertação definitiva
desse sofrimento; não importa se você é bom ou mau, importa se você sofre.

A experiência do transcendente numa religião subentende, ou é


precedida por uma experiência humana comum. Esta experiência humana é o
fundamento, ou a via de acesso àquela religião. Na próxima aula começaremos a
falar da via de acesso no Hinduísmo, nas tradições de origem ariana.

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