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Religiões do Mundo I

Religiões do Mundo I
Introdução à Religião Comparada

LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO

Aula 05
Introdução ao Hinduísmo e Budismo.

O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.

Professor: o livre-arbítrio não se exerce sobre o campo das castas,


porque este é determinado, mais ou menos, por uma carga hereditária, ou de
família, e muito pouco pela determinação do próprio sujeito. Somente um
sujeito que, por herança de família, recebe, digamos, uma herança mista, talvez
tenha alguma liberdade de escolha no sentido de poder esculpir o seu próprio
caráter, esculpir a sua própria personalidade. O sujeito não pode escolher a sua
casta, do mesmo jeito que não pode escolher a cor do seu cabelo – ele pode até
pintar, mas não é a mesma coisa.

O domínio do livre-arbítrio, o campo próprio do livre-arbítrio se exerce


sobre uma natureza pré-definida. Por exemplo, não está no campo do livre-
arbítrio decidir: “eu quero ser um ser humano ou um cachorro?”. O indivíduo
pode até querer se comportar como um cachorro – isso ele consegue –, mas
virar cachorro não dá.

Aluna pede para repetir.

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Professor: o campo do livre-arbítrio só existe como um segundo andar


da natureza pré-definida, pré-determinada. Por exemplo, o seu livre-arbítrio
não pode se exercer sobre a sua herança de família, sobre a sua carga genética.

Nas últimas aulas nós descrevemos os cinco estratos da realidade no


Hinduísmo: primeiro o Annamaya, depois Pranamaya, Manomaya,
Vjnanamaya, Anandamaya, e, por último, além de todos esses, há o
fundamento último da realidade.

O Anandamaya é, digamos, a manifestação mais imediata da natureza


das coisas. Segundo a cosmovisão hindu, todas as coisas são boas, porque são
naturalmente preparadas e ordenadas para um fim que lhes é próprio. Isso
significa que todas as coisas apresentam uma ordem intrínseca, e é essa ordem
intrínseca que os sacerdotes hindus dizem que é a sua religião.

Os Vedas, que são a mais antiga escritura sagrada, e a mais sagrada


escritura dos hindus, afirmam-se como uma coleção de aplicações dessa ordem
intrínseca que está no Anandamaya à vida humana. Então o hindu – o
sacerdote hindu, ao menos – dá para a religião dele o nome de sanatana
dharma. Sanatana é uma palavra muito fácil de traduzir, significa “eterno”.
Mas dharma é uma palavra especialmente espinhosa, pois não tem um
correspondente exato em nenhuma língua ocidental. Normalmente dharma é
traduzido como “lei”, mas “lei” é um conceito ambíguo nas línguas ocidentais,
na tradição ocidental. Por um lado, “lei” significa a ordem que está
subentendida na existência de qualquer coisa. Por exemplo, para que esta
garrafa de água exista, existe uma série de leis físicas, leis químicas, leis
econômicas para que esta garrafa esteja aqui. Antes de a garrafa existir, ela
precisava de todas essas leis, todos esses corpos de leis. Outra coisa é a lei que é
definida a posteriori, ou seja, depois que a garrafa existe – depois que um
objeto existe, você pode inventar para ele [algumas leis]. Por exemplo, todas as
leis do nosso país se exercem sobre os seres humanos; porém, todas elas são
posteriores à existência da humanidade – antes de existirem essas leis, já existia
a humanidade. O conjunto de leis que determina, que precede a existência de

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um objeto, deriva do Anandamaya do objeto, isto é, do bem que aquele objeto é


no real. Esse conjunto de determinações do objeto que precede a sua existência
concreta é justamente o seu sanatana dharma. A palavra “dharma” vem de
uma raiz que significa “alicerce”, ou “fundamento”; então dharma é a lei que é o
fundamento de uma coisa na realidade – esse é o dharma daquela coisa.

Segundo os hindus, cada coisa, cada objeto, cada ser tem um dharma,
ou seja, tem uma ordem intrínseca que o apóia na realidade. Na medida em que
aquele ser se desvia daquele dharma, ele perde a sua identidade própria, e passa
a ser um mero efeito de outros seres. Por exemplo, o hindu diz que, se um
indivíduo humano particular não segue o seu dharma, o seu comportamento
será determinado pelo quê?

Aluno: pelo ambiente.

Professor: pelo ambiente, exatamente: pela sociedade, pelo clima etc.,


por tudo o que não é ele. Por quê? Porque o dharma dele é justamente o alicerce
dele no real, é o que o torna realmente presente como um modo efetivo de ser
diante dos outros seres.

Isso significa que, para o hindu, a religião não se apresenta primeiro


como um corpo de ritos, mandamentos e símbolos; não se apresenta nem
mesmo como um corpo doutrinal. Para eles, é uma religião todo e qualquer
corpo de leis, mandamentos, doutrinas, ritos, símbolos que sirva para traduzir
concretamente o dharma do ser humano. Então a religião hindu já se apresenta,
desde o começo, como tendo duas naturezas. Os Vedas são uma exposição do
que é o sanatana dharma, do que é o dharma eterno; por outro lado, eles já são
a tradução desse dharma num conjunto de ritos, mandamentos e doutrinas.
Mas, por um processo que é talvez único no Hinduísmo em relação às outras
religiões, nos próprios Vedas já está admitida a possibilidade de existirem
outros conjuntos de ritos, mandamentos e doutrinas que servem para o mesmo
propósito – tanto que isso foi uma coisa que assustou, no final da Idade Média,
os missionários cristãos e muçulmanos que chegaram à Índia. No século XVI,

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São Francisco Xavier chega à Índia para pregar o Cristianismo. Ele começa a
pregar e converte algumas pessoas; quando essas pessoas convertidas são em
número suficiente [relevante], esse grupo chama a atenção dos sacerdotes
hindus: “uma nova religião está sendo pregada aqui no território hindu; o que
iremos fazer?”. Reuniram um grupo de sacerdotes [brâhmanes] e chamaram
São Francisco Xavier para explicar a sua religião para eles; ficaram três dias
reunidos, e São Francisco Xavier foi explicando, até que uma hora eles falaram:
“isso aí é sanatana dharma. Você pode pregar essa religião dentro do nosso
território”. Aí São Francisco Xavier falou: “então, já que essa aqui é a religião,
vocês não vão se converter?”, e os sacerdotes hindus responderam: “não, claro
que não. Como nós iremos nos converter? Não dá para se converter do
sanatana dharma para o sanatana dharma. Nós continuaremos fazendo
exatamente o que sempre fizemos, mas você pode pregar isso para as pessoas, e
a maior parte das pessoas que não são sacerdotes irá se converter, porque esse é
mais um caminho”. Essa foi uma visão que espantou São Francisco Xavier. Nas
suas cartas para Santo Inácio de Loyola, que era o seu superior na Ordem [dos
Jesuítas], ele descreve isso, e percebe-se o seu espanto, porque foi a primeira
vez que ele viu uma reação desse tipo. A Ordem à qual ele pertencia era uma
Ordem fundamentalmente missionária, os jesuítas eram fundamentalmente
missionários, e em todos os lugares nos quais eles iam pregar era assim: ou as
pessoas se convertiam, ou os matavam [matavam os missionários jesuítas] –
não tinha meio-termo. De repente aparece um grupo que fala: “não, está
perfeito, isso aí está ótimo, pode pregar, mas nós não iremos nos converter”. Se
olharmos a sucessão das suas cartas, percebemos que é uma sucessão de
tentativas para enquadrar isso nos seus conceitos, ou seja, para criar conceitos
para tentar entender o que era um sacerdote hindu e qual era a visão que um
sacerdote hindu tinha do mundo.

Esse trabalho que foi iniciado com São Francisco Xavier, para tentar
entender os hindus do ponto de vista cristão, começou no século XVI e continua
até hoje. No século XX, o padre “Beda Grift” [???] foi para a Índia fazer a mesma
coisa que São Francisco Xavier, e viu que aconteceu exatamente a mesma coisa,

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e começou a coletar a história dos missionários cristãos na Índia. Somente agora


ele conseguiu entender qual é a visão do hindu; ele disse: “para converter um
sacerdote hindu é preciso, primeiro, um preparo doutrinal excepcional – porque
eles têm um preparo doutrinal muito grande –; segundo, é preciso ter uma vida
de penitência exemplar, porque eles fazem penitências das mais absurdas”.

Ficou claro esse ponto fundamental do Hinduísmo? O Hinduísmo não


se vê como uma religião, mas sim como uma expressão da [ênfase no “da”]
religião – aquela que existe para todos.

Aluno faz pergunta.

Professor: não, existem religiões que se vêem como a [ênfase no “a”]


religião.

Aluno faz pergunta.

Professor: cada um deles [hindus] sabe que está praticando uma


expressão do sanatana dharma.

Imediatamente depois da revelação dos Vedas, os sacerdotes hindus vão


assimilando as religiões das diversas tribos e agregando-as ao Hinduísmo.
Então o Hinduísmo é, do ponto de vista ocidental, uma coleção de várias
religiões, completamente diferentes uma da outra. Quando você chega na Índia
e pergunta para alguém como é a religião dele, ele conta uma coisa; se você
andar duas quadras e perguntar para outro, é outra religião completamente
diferente que ele tem. Num ambiente assim, só era possível manter esse
equilíbrio, essa coexistência de diversas religiões se contradizendo, se houvesse
alguma coisa que servisse de alicerce e critério para elas. Os Vedas propõem que
existem duas coisas que devem ser mantidas na sociedade hindu e que são o
fundamento suficiente para que haja uma diversidade de religiões lá: um, é o
sistema de castas; dois, é que as religiões aprovadas e desaprovadas sejam
escolhidas pelos brâhmanes. Então, basicamente, o Hinduísmo tem duas regras,
que se aplicam a todos, a todos os hindus: existem as castas, e são os brâhmanes

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que decidem quais são as religiões verdadeiras, que decidem, na verdade –


como eles mesmos dizem –, o que é religião e o que não é; decidem quais são os
corpos de doutrinas, mandamentos e ritos que são sanatana dharma, e os que
não são. Se você perguntar para o sacerdote hindu, para ele Islamismo também
é Hinduísmo, Cristianismo também é Hinduísmo, porque eles também são
sanatana dharma.

Aluno faz pergunta.

Professor: não, eles tratam essas diferenças como sendo uma expressão
natural da infinitude do real. Do mesmo modo que Deus faz pessoas diferentes,
Ele faz caminhos diferentes para essas pessoas chegarem até Ele. Porém – esse é
um ponto sutil do Hinduísmo –, eles não professam uma liberdade de religião,
não é isso que eles professam. Eles falam: “para você, para cada indivíduo
concreto há apenas um caminho concreto, que é o seu dharma, e você tem que
descobrir o seu dharma; você não é livre para escolher o seu dharma. Você tem
que investigar até descobrir qual é o seu dharma”. Então quando eles aceitam a
existência de diversas religiões, eles não estão aceitando a liberdade de você
passar de uma religião para outra. Isso não está sujeito ao seu arbítrio; está
sujeito à sua consciência, mas não ao seu arbítrio. Essa é uma pequena distinção
que o Concílio Vaticano II também fez quanto às religiões, e que é muito sutil.
Não é a sua vontade que deve decidir para qual religião você vai, é a sua
consciência, ao olhar todo o seu ser. Esse é um pensamento hindu tradicional, e,
embora seja um pensamento cristão tradicional, ele só se explicitou no século
XX, no Concílio Vaticano II. Encontramos referências a esse pensamento nos
santos padres, mas ele não está elaborado e não está explicitado. Por exemplo,
Santo Agostinho tem um conceito muito semelhante ao sanatana dharma, que
é o conceito de vera religione, de verdadeira religião. Ele fala: “a verdadeira
religião sempre existiu, evidentemente. A verdadeira religião existe desde Adão,
desde que existe ser humano, e agora ela passou a se chamar Cristianismo”. Ou
seja, ele admite que o Cristianismo é uma expressão de uma verdadeira religião,
que é historicamente anterior. Esse pensamento nunca foi muito desenvolvido

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no ambiente cristão, porque especulações teológicas de outra natureza,


especulações sobre outros objetos tiraram a atenção desse objeto. Alguns dos
santos padres desenvolveram uma teologia da encarnação e da paixão do Cristo
que abria a possibilidade para esse pensamento, mas outros santos padres
enfatizaram outros elementos, e durante muitos séculos foi a doutrina de outros
padres que predominou na opinião geral. Quando chegarmos ao Cristianismo,
explicaremos essa tensão. No Cristianismo existe uma tensão entre afirmar “o
Cristianismo é a [ênfase no “a”] religião” e “o Cristianismo é simplesmente a
expressão da religião”. Essa tensão no pensamento cristão existe desde o
começo. Essa tensão não existe, por exemplo, no Judaísmo – o Judaísmo
sempre se afirmou como a [ênfase no “a”] religião; ele nunca teve dúvidas sobre
esse assunto.

Aluno: o Islã também?

Professor: o Islã tem uma posição um pouco mais complexa, porque o


Islã fala: “originariamente, todas as religiões eram Islã. Isso aqui é só uma
restauração da religião que sempre teve”. Então, por um lado, o Islã se afirma
como a [ênfase no “a”] religião, e todas as outras religiões seriam desvios
parciais em relação a essa religião original – ou seja, a visão no Islamismo é
mais complexa ainda.

Aluna: eles dizem isso fundamentados em quê?

Professor: essa tensão existe porque toda religião tem uma origem
histórica: houve um momento em que não existia aquela religião, e depois
daquele momento passou a existir. Por outro lado, todas as religiões afirmam:
“isto aqui é um negócio eterno e necessário para o ser humano”. Como você
resolve o conflito entre essas duas premissas? Se é eterno, por que surgiu num
determinado momento do tempo? Se é necessário, por que Deus não fez todo
mundo [fazer parte] dessa religião desde o começo? Essa tensão surge em todas
as religiões, de um jeito ou de outro. A única religião em que não surge essa
tensão é o Judaísmo, porque ele se afirma como uma lei que surgiu num

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momento histórico; é por isso que o senso de história é mais forte entre os
judeus do que entre qualquer outro povo. Eles falam: “a nossa religião é a nossa
história, e a nossa história é a nossa religião”.

Aluno faz comentário.

Professor: exatamente, desde que Abraão se separou do seu povo,


começou uma história. Então para eles a questão se apresenta de um modo um
pouco diferente, mas também explicaremos isso quando falarmos de Judaísmo.

O importante é que o hindu – ou pelo menos a doutrina hindu e o


sacerdote hindu – tem uma visão sui generis da sua religião. O Budismo herda
isso numa certa medida, mas só numa certa medida – mais pra diante
explicaremos. A visão do hindu é que a religião dele, propriamente, “qual
religião você segue?”, “eu sigo o sanatana dharma”, “na forma vishnuíta”, “na
forma cristã”, “na forma shivaíta”, “na forma não sei o quê”. Isso tem como
efeito imediato sobre o mundo hindu que pelo menos metade do pensamento
hindu é dedicado a investigar as diversas diferenças entre os indivíduos
humanos, porque é conhecendo essas diferenças, as categorias de diferenças,
que conhecemos como o sanatana dharma vai se diversificar também. Por
exemplo, eles dizem: “existem quatro classificações gerais, quatro categorias
gerais de expressão do sanatana dharma, de acordo com as quatro diferenças
fundamentais entre os seres humanos” – veja bem, não são diferenças de castas
essas aí, são outras diferenças. Eles dizem: “alguns indivíduos humanos têm
uma forte inclinação para a especulação racional e a investigação intelectual, ou
seja, são capazes de fazer da sua vida, de tudo na sua vida um instrumento da
investigação intelectual, subordinar tudo à investigação intelectual. O dharma
desse indivíduo está ligado à vida intelectual, então deve existir um caminho
próprio para um sujeito assim”, que é justamente o Jnana Yôga. Yôga significa,
literalmente, “disciplina”. Mas, especificamente no contexto hindu, significa
“disciplina que conduz à união”. E Jnana significa “conhecimento”. Então
Jnana Yôga podemos traduzir como “a disciplina que conduz à união por meio
do conhecimento”.

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Eles dizem: “as pessoas que tendem a subordinar todos os elementos da


sua vida à investigação intelectual vão seguir algum tipo de Jnana Yôga; a
religião delas tem que se basear em algum tipo de Jnana Yôga – tem que fazer
uso principalmente dessa capacidade”. Por quê? Porque se o sujeito é capaz de
botar tudo na vida dele a serviço dessa atividade, e ele botar essa atividade a
serviço da união com Deus, ele botou tudo a serviço da união com Deus.

O princípio fundamental do Jnana Yôga é o seguinte: você tem um


objeto especial de estudo, e você deve dirigir a sua curiosidade intelectual
especialmente para este objeto. Este objeto é o objeto que corresponde à palavra
“eu”. O jnani – jnani é o sujeito que segue o Jnana Yôga – deve investigar a
qual objeto corresponde a palavra “eu”; ele deve se dedicar a responder à
pergunta: “quem sou eu?”.

Para quem tem interesse em saber detalhes sobre o Jnana Yôga, você
pode ler os escritos do Ramana Maharshi, que foi um grande jnani do século
XX, foi um sujeito que atingiu a realização espiritual por meio do Jnana Yôga.
Ele era de família brâhmane, mas uma família muito relaxada; durante a
infância e adolescência ele não recebeu nenhuma educação religiosa. Ele fala:
“na minha família só se falava em dinheiro, em casa só se falava em dinheiro.
Nunca ouvi uma palavra sobre religião. A primeira idéia que eu tive do que era
religião foi um dia em que chegou à minha casa um sujeito vestido de laranja, e
me falaram que ele era meu tio”. Era um tio dele que havia virado monge
mendicante. Ele perguntou: “tio, por que que você vive assim?”. Aí o tio contou
uma história sobre a família dele: “na nossa família, tantas gerações atrás,
aconteceu o seguinte: um dia veio um sujeito na nossa porta, veio um pária na
nossa porta e pediu uma esmola, e o nosso antepassado o mandou embora a
chute. Só que aquele sujeito lá era o grande santo não sei o quê, e ele botou uma
maldição na nossa família, dizendo que, a cada geração na nossa família, uma
pessoa ou se tornará um monge mendicante em busca da santidade, ou ficará
louco e virará mendigo, em toda geração. Na geração anterior à minha foi o tio-
avô fulano que ficou louco. Quando eu era novo, eu fiquei sabendo dessa

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história, e pensei: ‘eu não quero que ninguém na minha família fique louco,
então virarei monge mendicante’”.

Essa história impressionou muito o Ramana Maharshi, que tinha entre


10 e 12 anos. Ele ficou pensando nisso várias semanas: “ser mendicante é um
negócio muito difícil. Seria bom se ninguém da minha família ficasse louco, e de
repente pode ser eu que fique louco; eu não quero ficar louco, mas ser
mendicante é muito difícil”. E aí esqueceu o assunto.

Aos 17 anos, ele passou pela seguinte experiência: chegando em casa, e


vendo que não havia ninguém lá, ele foi para o seu quarto, e a idéia da morte
apareceu na sua cabeça: “e se eu morrer agora? E se acontecer alguma coisa e eu
morrer?”. Então ele pensou, pensou, sentiu muito medo, e se perguntou: “mas o
que é a morte? O que é morrer?”. Aí ele se deitou no chão, na postura de um
morto, fechou os olhos, e foi, mentalmente, desligando cada uma das coisas que
é desligada na morte: “deixa eu desligar o sentidos, imaginar-me sem nenhum
dos sentidos; deixa eu desligar o pensamento; deixa eu desligar a imaginação”.
No final ele viu que não conseguia desligar o “eu”, porque teria que ser ele
mesmo para desligar o “eu”. Ele pode desligar os sentidos, pode desligar a
respiração etc., mas o “eu” ele não pode desligar; o “eu” teria que ser desligado
por outro. Aí ele se perguntou: “nossa, que coisa interessante. O que é o eu?
Quem sou eu?”, e começou a se fazer essa pergunta, mas não obtinha resposta.

Um dia, indo para a escola, ele sentiu uma atração pelo templo, e
começou a frequentá-lo e fazer muitas orações – fez isso acho que durante dois
ou três meses. Depois desse tempo, ele decidiu: “eu preciso descobrir quem é o
eu”; voltou do templo para casa – a família dele já estava começando a ficar
preocupada, porque ele estava indo demais ao templo –, pegou o dinheiro que
havia num pote, e que era destinado às despesas domésticas, foi para a estação
de trem, deu o dinheiro e perguntou: “para onde esse dinheiro me leva?”. “Esse
dinheiro te leva a tal lugar”. “Então me dê uma passagem para esse lugar”.
Chegou lá, era uma vila perto da qual havia uma montanha especialmente
sagrada para os hindus, o Monte Arunachala. Aí ele decidiu: “vou até o pé do

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monte e me enfio no meio do mato”. No meio do mato ele achou um templo


abandonado, e pensou: “é aqui mesmo, perfeito”. Entrou no templo
abandonado, sentou na postura de meditação, começou a investigar quem é o
“eu”, e não saiu dessa postura durante vários meses. Um dia, um sujeito que
subia no monte para cuidar de outro templo passou por esse templo
abandonado e viu que tinha alguém sentado lá. Ele chegou perto e viu que os
insetos estavam comendo o corpo do Ramana Maharshi, e pensou: “nossa, esse
deve ser um grande santo que está aqui em meditação e nem percebe que os
insetos estão comendo ele. Vou começar a cuidar dele”. Então começou a limpar
o corpo dele, a pôr comida na boca dele todo dia, um tipo de sopa todo dia, e
limpou o templo. E lá ficou o Ramana Maharshi meses e meses.

O quê aconteceu? Esse sujeito que limpava o templo falou para outras
pessoas: “olha, tem um grande santo em meditação no templo tal”. Várias
pessoas começaram a ir lá, prostrando-se diante dele, fazendo orações pedindo
milagres etc. Uma hora o Maharshi despertou da sua meditação, viu que tinha
um monte de gente lá, dormindo – já era noite –, e pensou: “tem gente demais
aqui, vai me atrapalhar”, saiu de lá e foi pro meio do mato, no mesmo monte,
continuando o mesmo processo.

No dia seguinte o sujeito acordou, não viu o Ramana Maharshi lá,


decidiu procurar. Achou ele no meio do mato e continuou cuidando dele. Uns
meses ou anos depois, ele despertou de modo definitivo da sua meditação.
Quando despertou, ele pediu para lhe entregarem os Vedas, leu numa sequência
– porque ele nunca tinha lido, não tinha educação religiosa nenhuma –, e diz
que compreendeu toda a doutrina. Chegaram outras pessoas lá, examinaram a
doutrina dele, e falaram: “esse sujeito tem uma compreensão perfeita dos
Vedas, ele é um ser realizado”. E lá ele começou a dar ensinamentos espirituais.

O resultado desses ensinamentos, as conversas dele com discípulos são


muito interessantes para quem quer entender o que é o Jnana Yôga, porque é
um exemplo muito recente de um sujeito que percorreu justamente um caminho
que é puramente jnana – a única coisa que ele fez foi ficar investigando quem é

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o eu. Normalmente, mesmo um jnani não faz isso; ele segue um caminho de
investigação que é suportado por uma série de outras práticas: ele continua
trabalhando, reza, dá esmola, faz todas as outras coisas que as outras pessoas
fazem, mas todas essas coisas estão subordinadas e centradas na pergunta
“quem sou eu?”. Mas um sujeito jnani puro é muito raro, e quando acontece [de
aparecer alguém assim], ele simplesmente vai lá e investiga o que é o “eu”.
Como existe muito da vida do Ramana Maharshi registrado, é um caso
interessante para quem se interessa em saber o que é o Jnana Yôga.

Em suma, o Jnana Yôga é para pessoas que têm muita curiosidade


intelectual e são capazes ou tendem quase que naturalmente a subordinar todas
as suas atividades à atividade intelectual. O objeto principal do jnani será a
investigação do “eu” justamente porque o “eu” está fora da esfera condicionada,
da esfera acidental. A noção de “eu” é anterior a tudo o que apareceu em você.

Outro livro que vocês podem ler sobre Jnana Yôga – esse existe em
Português, numa tradução razoável – é A jóia suprema do discernimento. Este
livro é de autoria de Shankara, que foi talvez um dos maiores jnanis da história
do Hinduísmo, e fundou, lá pelo ano 900 d.C., um mosteiro para a prática do
Jnana Yôga, que existe até hoje, ou seja, é fundador de um mosteiro que já tem
mais de 1000 anos de história. Até hoje os monges desse mosteiro que ele
fundou são uma referência entre os hindus, no ensino da doutrina hindu.

Nem todas as pessoas são assim tão inclinadas à investigação


intelectual, mas todas as pessoas têm desejos, e algumas são capazes de
subordinar tudo na sua vida à realização dos seus desejos. Dentre essas pessoas,
existem algumas cujo desejo é do tipo amoroso, cuja inclinação natural é amar
alguém ou algo. Para essas pessoas, existe o Bhakti Yôga, o Yôga do amor. Para
elas, a idéia de identificação com um Deus impessoal e transcendente, que é o
objetivo do Jnana Yôga, é totalmente sem graça. O que elas querem é um Deus
pessoal, isto é, um Deus que se apresenta como outra pessoa e com o qual elas
podem se unir amorosamente.

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A idéia de chegar à santidade ou à realização espiritual por amor a um


Deus pessoal não é estranha no Ocidente, porque ela é muito difundida no
Cristianismo. Todo mundo sabe que o Cristo falou pra amar a Deus sobre todas
as coisas. Esse aspecto do ensinamento cristão foi bastante enfatizado no
decorrer dos 2.000 anos de história do Cristianismo, tanto que a imensa
maioria dos santos são bhaktas, ou seguidores do Bhakti Yôga.

Todo mundo é capaz de amar, assim como todo mundo é capaz de


conhecer, mas, para se tornar um bhakta, é preciso que o sujeito seja capaz de
subordinar tudo o que há na sua vida a esse amor, do mesmo jeito que para se
tornar um jnani é preciso que você seja capaz de subordinar tudo o que há na
sua vida à investigação intelectual.

Não é preciso fazer muito esforço para termos exemplos de grandes


bhaktas, pois quase todos os grandes santos cristãos são bhaktas, com exceção
de alguns poucos, que também leram no Evangelho essa parte do “amar a Deus
sobre todas as coisas”, mas que leram também outra parte, que lhes pareceu
muito mais interessante, que é: “buscai a verdade, porque a verdade vos
libertará” – porque isso aí é uma palavra para o jnani. Para o bhakta, que
diferença faz a verdade? E se a verdade estiver do outro lado do universo?

Um exemplo dentro do próprio Hinduísmo, no século XIX, é o Rama


Krishna, que foi um dos maiores bhaktas dos tempos recentes. No momento
não recordo de nenhuma biografia de excepcional qualidade do Rama Krishna,
mas posso trazer isso pra vocês em outra aula.

Se observarmos, veremos que a imensa maioria das pessoas não é capaz


de subordinar toda a sua vida, ou todos os componentes da sua vida, nem ao
conhecimento, nem ao amor. Ora, essas pessoas não têm um dharma próprio?
Elas não têm dharma? Elas nasceram com defeito? Os hindus dizem: “não, elas
não nasceram com defeito. Existem outros dharmas”.

A terceira grande expressão do dharma é o Karma Yôga, que é para as


pessoas que, não sendo capazes de subordinar tudo ao conhecimento, nem ao

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amor, são, no entanto, extremamente ativos, estão sempre fazendo alguma


coisa. Karma significa “ação”. Existem pessoas que não estão contentes quando
estão inativas, pessoas que sempre procuram mais obrigações, mais deveres,
mais coisas pra fazer – e, de um modo ou de outro, todos nós temos que fazer
muitas coisas.

Os hindus dizem que, para você chegar a Deus por meio da sua ação,
bastam duas coisas, dois princípios fundamentais do Kharma Yôga. Um deles é
que você tenha uma espécie de Bhakti Yôga menor, ou Jnana Yôga menor, ou
seja, ou você precisa estudar muito bem a doutrina da sua religião, ou você
precisa rezar bastante – uma parte do que você está fazendo é rezar –, e você
complementará isso com o seguinte: em tudo o que você fizer, você abster-se-á
dos resultados, abster-se-á de buscar resultados. Por exemplo, você leva o seu
carro no mecânico, para ele consertar – é uma ação. Qual é o seu propósito?
Que o carro esteja consertado no final. Uma hora o mecânico lhe devolve o carro
e este está funcionando. Se o mecânico lhe devolve o carro e ele está
funcionando, a sua reação sentimental é uma, a sua emoção é uma; se ele lhe
devolve e não está funcionando, a sua reação sentimental é outra; se a conta do
mecânico é baixa, sua emoção é uma; se a conta é alta, sua emoção é outra. Pois
bem, o Kharma Yôga consiste em desprezar todas essas reações emocionais ao
resultado. O único jeito de isso acontecer é que, desde o começo, na ação, você já
tenha renunciado ao resultado. Você tem um propósito lógico para a ação,
evidente – toda ação tem um propósito –, mas você, desde o início, tem de ter
renunciado a todos os resultados.

Então se você faz isso, e complementa com uma prática básica da


religião, uma prática, vamos dizer, mínima – é difícil dizer “mínima”, porque o
conceito de “mínimo” em religião para o hindu é muito diferente do nosso
conceito –, com uma prática mínima de religião, você atingirá o mesmo
objetivo, o mesmo objeto que é alcançado pelo Jnana Yôga e pelo Bhakti Yôga.

Eles falam: “a única coisa que você precisa fazer é, desde o início, em
cada ação particular, renunciar aos resultados”. É assim: você planeja a ação,

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direitinho, do jeito que ela tem que ser planejada, para que ela chegue ao fim ao
qual ela tem que chegar, mas ao final você renuncia [à expectativa do resultado],
você pensa: ‘se não acontecer assim, se acontecer tal coisa e der tudo errado,
não faz mal, porque eu [ênfase no “eu”] não queria para mim esses resultados’.
Você tem que ir, de pouquinho em pouquinho, em cada ação, destruindo as suas
expectativas temporais. O propósito do Kharma Yôga é conduzir o indivíduo a
uma realização que muda o mínimo possível da sua vida. O Jnana Yôga e o
Bhakti Yôga conduzem o sujeito a vidas bastante incomuns; o Kharma Yôga
não. Se você era um sujeito honesto, que não fazia nada de desonesto, ao chegar
ao final do caminho do Kharma Yôga você muito provavelmente levará
exatamente a mesma vida que já levava, exteriormente, no começo. O quê que
mudará? Mudará o interior: o primeiro resultado de um ou dois anos de
Kharma Yôga é uma serenidade interior inabalável.

É muito comum uma associação do Kharma Yôga com um Bhakti Yôga


relaxado, porque a prática da religião é, para a maior parte das pessoas, na
prática um Kharma Yôga. Por quê? Porque você pratica a religião sem esperar
um resultado agora – você está contando com um resultado para depois da
morte. Quando você vai à Igreja, o seu propósito é que aconteça alguma coisa na
semana seguinte? Não, a maior parte das vezes que você vai à Igreja ou que você
reza é para um resultado que não irá acontecer agora, então é natural essa
associação.

Os hindus dizem também: “nem todas as pessoas são maximamente


ativas”. Algumas pessoas são, no dizer das pessoas ativas, “preguiçosas”. Por
quê? Muitas das pessoas chamadas “preguiçosas” são simplesmente pessoas
cuja atenção se volta naturalmente para os seus processos psicológicos ou
físicos, fisiológicos. Existem pessoas que percebem mínimas diferenças nas suas
disposições psicológicas ou fisiológicas: o sujeito sente uma coceirinha no pé,
daí: “peraí, o que é isso?”; ele sente quando um músculo se move de modo
involuntário etc. – a atenção dele se volta para essas coisas naturalmente.

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Religiões do Mundo I

Esse é um tipo humano difícil de entender quando nós não somos desse
tipo, é difícil perceber que existem pessoas que são assim, porque desde
pequeno eles se treinam pra não mostrar demais isso, uma vez que o mero
voltar a sua atenção para isso tornar-se-ia um hábito patológico. Mas, sendo
essa a força psicológica, ou psíquica, mais relevante na psique de um indivíduo
humano, também essa força psíquica pode ser usada como um instrumento
espiritual, ou como base para um Yôga. Para essas pessoas existe o Raja Yôga.
Raja significa “o que é relacionado aos reis”, significa “real”, mas no sentido de
ligado à realeza, porque o instrumento do Raja Yôga, o método do Raja Yôga é
obter um domínio sobre os seus processos psicológicos e fisiológicos.

Existem pessoas cuja força de vontade natural não se volta para os


objetos exteriores a elas. A pessoa ativa tem uma vontade que naturalmente se
exerce sobre outras coisas, e não sobre ela. Ela se submete à disciplina porque
há outras coisas que ela tem que mudar – a ênfase do campo da vontade dela
está fora dela. O sujeito preguiçoso é o contrário: a ênfase da sua vontade está
dentro dele.

Aluno: essas pessoas são aquelas que fazem jejuns longuíssimos...

Professor: fazem jejuns longuíssimos, treinam artes marciais, espetam


facas em si mesmos, exatamente.

Aluno faz comentário.

Professor: as penitências na verdade são testes para eles verem se


chegaram no domínio das diversas faculdades psicológicas e fisiológicas; são, na
verdade, experiências.

Aluno: o Siddhartha Gautama passou por tudo isso?

Professor: sim, ele passou por tudo isso, ele praticou de tudo um pouco.

A religião, para o hindu, é o sanatana dharma, que é o mesmo desde


sempre, em todas as partes, e sempre será o mesmo. Segundo, esse sanatana

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Religiões do Mundo I

dharma se manifesta de quatro formas principais, de acordo com esses quatro


tipos humanos fundamentais: os tipos contemplativos; os tipos emotivos, ou
sentimentais, ou afetivos; os tipos ativos; e os tipos, vamos dizer, inativos, mas
que têm uma tremenda curiosidade acerca do seu próprio corpo e acerca da sua
própria psique. A curiosidade destes não é sobre o “eu”, como a do jnani, é, pelo
contrário, sobre tudo aquilo que está nele, mas que não é o “eu”, ou seja, é sobre
o Annamaya, sobre o Pranamaya, sobre o Manomaya, sobre o que é tudo isso,
sobre como isso funciona, sobre por que às vezes uma coisa funciona e às vezes
não funciona – a atenção deles se volta naturalmente para isso.

Geralmente essas quatro tipologias nós percebemos desde a infância


nas pessoas, nós observamos as crianças e já percebemos que uma vai tendendo
para um lado, outra vai tendendo para outro, e outra para outro. Todos os pais e
mães sabem que não dá para exigir de um dos filhos a mesma coisa que se exige
de outro, porque a psicologia deles é completamente diferente e simplesmente
não dá, e que quando eles tentam, a sua vida vira um inferno – isso é uma
percepção universal.

O Hinduísmo se vê, primeiro, como o sanatana dharma, que se


manifesta principalmente de quatro formas, que são determinadas pelos tipos
humanos. Em segundo lugar, há os Vedas, que são uma garantia formal de que
os hindus estarão no sanatana dharma, desde que respeitem duas coisas: o
sistema de castas, e a autoridade dos brâhmanes para determinar o que é
sanatana dharma e o que não é.

Esses são os princípios fundamentais da religião hindu, são os únicos


princípios que se aplicam a todos os hindus. O resto é tudo assim: “esse aqui é
para esse sujeito aqui; esse aqui é para aquele grupo ali; esse aqui é para aquela
casta ali” – tudo o mais é assim.

INTERVALO

Alguém aqui, no intervalo, perguntou sobre os diversos deuses hindus, e


como eles têm tantos deuses. Isso deriva, em primeiro lugar, da primeira

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Religiões do Mundo I

premissa do Hinduísmo, que é: “o transcendente é inefável”, ou seja, você não


pode expressar o que é o fundamento último da realidade. Sendo ele inefável,
você só o expressa simbolicamente. A característica de toda expressão simbólica
é que ela pode ser substituída por outra expressão simbólica diferente, mas
equivalente. Isso é a mesma coisa que a tentativa de expressar o mistério da
trindade: você acabará usando símbolos, dizendo, por exemplo: “é como um
triângulo”, mas Deus não é um triângulo. [O transcendente] É um objeto que
não tem como ser significado na língua humana, senão de modo simbólico.
Como o símbolo nunca expressa tudo do objeto, mas só indica algo do objeto,
outro símbolo pode indicar outra coisa completamente diferente.

Aluno: significa também que se está falando de algo de outro mundo.

Professor: exatamente, de algo que não se alcança com o pensamento


discursivo, de algo que só pode ser alcançado numa esfera muito mais íntima do
indivíduo humano do que o pensamento.

Tudo que você pode expressar claramente e literalmente, está sob o seu
domínio, mas o próprio Deus não está sob o seu domínio, então você não pode
expressá-Lo tal como Ele é; toda expressão já é uma adaptação. Os Vedas,
partindo dessa premissa, apresentam várias descrições de Deus, várias
descrições do Absoluto.

Outra questão que levantaram [no intervalo] é: “os hindus são pacíficos,
e eles não ficam matando uns aos outros”. Então eu disse: “isso não é bem
verdade, os hindus não são tão pacíficos assim”. Aliás, um dos grandes clássicos
da literatura hindu é justamente sobre uma guerra de um sujeito contra seus
próprios parentes. A história hindu é cheia de assassínios e massacres, como a
história de todos os outros povos. O hindu não é mais tolerante do que os
outros, isso é só uma visão mítica que nós temos, nós que, não estando na Índia,
não tendo vivido a história da Índia, temos essa impressão. Quando um
sacerdote hindu diz: “algumas pessoas chegam a Deus pelo Cristianismo, outras
chegam pelo Vishnuísmo, e outras chegam pelo Islamismo”, dizer isso é uma

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Religiões do Mundo I

coisa; botar todas essas pessoas para conviver na sociedade, em paz, é outra
completamente diferente, e o próprio Hinduísmo já tem um mecanismo que fala
que não é possível botar todas essas pessoas para conviver em paz. Por quê?
Porque a ordem social é uma expressão simbólica do sanatana dharma. Se ela é
simbólica, significa o quê? Uma ordem simbólica é uma ordem que implica
necessariamente em algum elemento de desordem. Eles mesmos sabem que não
é possível uma paz absoluta no terreno da ordem social, no campo da ordem
social – isso é impossível. O que os Vedas oferecem? Isso é uma característica
especial dos Vedas: eles oferecem, explicitamente, o princípio fundamental da
ordem social, e nesse sentido a sociedade hindu é mais pacífica. Eles dizem:
“existem quatro categorias hierárquicas de funções sociais, e a ordem social
depende, em última análise, da hierarquia correta dessas funções”. Essas
funções são as quatro castas. Mas, novamente: dizer isso não é solucionar todo e
qualquer problema de desordem social, é simplesmente dar um princípio de
otimização da ordem social.

Aluno: o Hinduísmo existe apenas no território indiano?

Professor: praticamente, ele se estendeu um pouco para o Oriente, um


pouco para o lado mais oriental da Ásia, mas não muito mais.

Aluno: dentre as grandes religiões, o Hinduísmo, assim como o


Judaísmo, não se espalhou muito. Isso se dá por alguma característica própria
do Hinduísmo?

Professor: sim, existem duas coisas na natureza do Hinduísmo que


exigem isso. Um: as narrativas simbólicas dos Vedas estão quase sempre
associadas a lugares: “em tal monte desceram tais deuses assim, e eles fizeram
tal coisa que deu tal forma pra esse monte”. Então se faz parte da sua religião a
adoração desse deus, você tem que ir naquele monte de tempos em tempos, você
tem que fazer peregrinações para lá, então, na prática, você não pode estar
muito longe de lá – pelo menos até o século XX não podia.

Aluno: o Islamismo e o Cristianismo também são ligados à geografia.

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Religiões do Mundo I

Professor: sim, o Cristianismo e o Islamismo também, mas ambas as


religiões estipularam que você só tem que fazer essas peregrinações se você
puder. O mandamento de peregrinação a Meca está lá: “faça a peregrinação a
Meca uma vez na vida, se você puder”. Evidentemente, a ligação com o local é
firme do ponto de vista abstrato, mas tênue do ponto de vista concreto.

Aluno: esse “se você puder” funciona como uma cláusula de abertura.

Professor: sim, exatamente.

Aluna: mas também há possibilidade de conversão, não?

Professor: também há possibilidade de conversão.

O segundo elemento que dificulta a difusão do Hinduísmo é: para um


sujeito que não vive já há séculos numa sociedade de castas, como se define qual
é a casta dele? Quem e como? Quem definirá e como definirá? Você é brasileiro,
e agora virará hindu; a que casta você pertence?

Aluno: não basta a certificação dos brâhmanes?

Professor: mas como que o brâhmane pode garantir que a certificação


dele é suficiente? Como ele mesmo pode garantir? Ele mesmo falará: “eu não
sei, é complicado. Pode parecer uma coisa agora, e daqui a dez anos se revelar
outra”. Porém, se eu conheço a história da sua família, e vejo que nas dez
últimas gerações a maioria das pessoas tinha, de fato, uma evidente inclinação
sacerdotal e intelectual, há 99% de chance de que você também tenha, basta
você se esforçar para ativar. Ou seja, na prática é difícil. E outra coisa: e se eles
decidirem que você é shudra? Você topará? E se decidirem que você é pária, e
que o seu trabalho será limpar fossa? O único trabalho, o único emprego que
eles aceitam pra você é limpar fossa, porque você é pária. Você aceitaria? Talvez
isso fosse, para você, um impedimento concreto.

As diferenças que são propostas desde o início em uma religião são mais
maleáveis no começo, ou menos definidas no começo, e mais formais no final.

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Religiões do Mundo I

Por exemplo, como se faz hoje para definir quem é bispo e quem não é na
Igreja? Existe uma série de critérios formais, critérios estes que o Cristo não
explicitou quando estava selecionando alguns bispos. No entanto, Ele tinha
algum critério pra selecionar. Na Bíblia fala: “Ele escolheu 72 discípulos e falou:
‘vocês pregarão para todo lugar’”. Segundo a tradição, esses 72 eram o que hoje
nós chamamos de bispo, mas na hora Ele não falou: “você é bispo, e para virar
bispo tem que fazer isso, isso e isso”. A formalização dos critérios é necessária
na medida em que cresce a população daquela religião. É certo que no período
de revelação dos hinos védicos eles tinham critérios para decidir quem era
brâhmane, shudra, vaishya e kshatrya, mas esses critérios eram intuitivos, e
não expressos. No decorrer das gerações teve-se que ir formalizando. Quando se
formalizam os critérios, eles não se aplicam a determinadas categorias de
pessoas. Deste modo, existe um problema concreto. A possibilidade de ser hindu
ou não se torna, na prática, uma questão étnica: “você é de família indiana ou
não?”, do mesmo modo que, na prática, ser judeu ou não é uma questão étnica.
Não é que em princípio é só uma questão étnica, não: em princípio pode haver
conversões, mas, concretamente, será muito difícil, conversões para essas duas
religiões são muito difíceis.

Aluna: existe algum indiano que não é hindu?

Professor: existem inúmeros indianos que não são hindus.

Aluna: mas a grande maioria da população é hindu?

Professor: sim, a grande maioria da população é hindu, mas perceba


que, por exemplo, o indiano cristão é hindu, porque quem é que decide se ele
não é mais hindu? É o sacerdote hindu, e não ele próprio. O sacerdote hindu
fala: “você é cristão? Você é cristão, mas você é hindu, porque o Cristianismo é
uma expressão do sanatana dharma”.

Aluna: estando lá, eles não excluem ninguém.

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Religiões do Mundo I

Professor: não, eles excluem várias pessoas, várias categorias. Há várias


religiões que eles falam: “isso não é religião, isso é piada”.

Aluna: então existem indianos que não são hindus.

Professor: existem. Por quê? Porque existem religiões, ou


pseudoreligiões, que não são reconhecidas entre os sacerdotes hindus. A
macumba, por exemplo, não é reconhecida como religião.

Alunos: que injustiça! [risos]

Professor: macumba não é aceita.

Aluno: e a maçonaria?

Professor: a maçonaria nunca se propôs como uma religião. Ela pode


até ter, originariamente, propósitos que tenham alguma ligação com os
propósitos religiosos, mas não é uma religião. Quem você adora na maçonaria?
Não tem um objeto de adoração específico, tanto que os próprios maçons dizem:
“você pode ser muçulmano, judeu, cristão, ateu etc.”.

Aluno: o positivismo é considerado uma religião?

Professor: o positivismo inventou uma pseudoreligião, eles criaram


uma pseudoreligião. Esse foi um dos propósitos iniciais do positivismo: “temos
que criar uma nova religião”. O positivismo, em termos de religião, classificava a
história da humanidade em três períodos: o período politeísta, o período
monoteísta, e o período racional, que, obviamente, começava com o próprio
positivismo.

O Budismo, por exemplo, não é aceito pelo Hinduísmo, de jeito


nenhum.

Aluna: mas eles não estão nem aí [com os budistas].

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Religiões do Mundo I

Professor: hoje em dia eles têm muita tolerância com os budistas,


porque os budistas apanharam muito, mas é só por isso.

Aluna: não é aceito?

Professor: não, porque a primeira coisa que o Buda fez foi falar: “o
sistema de castas não vale nada!” [risos]

Aluna: por que está ocorrendo, atualmente, na Índia, uma conversão


em massa ao Budismo?

Professor: talvez porque as religiões hindus, as diversas religiões hindus


estejam muito decadentes, talvez seja por isso.

Aluno: como que o cristão indiano se relaciona com o sistema de castas?

Professor: o indiano que vive na Índia e é cristão tem que aceitar o


sistema de castas. Isso é encarado pelo cristão indiano assim: “do mesmo modo
como, se eu estivesse nos Estados Unidos, eu aceitaria a lei do país. O sistema de
castas é a lei daqui, então nós aceitamos esta lei”. É assim que o cristão indiano
encara o sistema de castas.

Aluna: é o cristão que aceita, e não o hindu.

Professor: o cristão indiano que vive na Índia tem que aceitar o sistema
de castas. Recentemente essas coisas estão mudando, porque a própria Índia
está mudando. Um problema que surgiu no Hinduísmo é que justamente os dois
últimos grandes santos hindus aboliram, na prática, o sistema de castas. O
Rama Krishna e o Ramana Maharshi falaram: “o sistema de castas é
perfeitamente válido, mas não é ele que está acontecendo aqui na Índia. Os
indivíduos que todo mundo está chamando de brâhmanes não são brâhmanes,
e os indivíduos que todo mundo está chamando de shudra não são shudra. O
sistema de castas é válido, mas ele já não existe mais”. Talvez isto esteja
ocasionando muitas conversões ao Budismo.

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Religiões do Mundo I

Aluno: o Islamismo é aceito?

Professor: sim, o Islamismo é aceito.

Aluno: o muçulmano deve se sentir oprimido na Índia.

Professor: na Índia, tanto os muçulmanos quanto os cristãos fazem tudo


que lhes é possível para converter os outros indianos para aquela religião,
porque isso faz parte da religião deles; e isso, é claro, gera certos conflitos
sociais. Mas o quê que o hindu vai fazer? Ele fala: “ah, isso é inevitável”. Os
conflitos entre vishnuítas e shivaítas foram muito piores na história da Índia.

Uma coisa é o Hinduísmo em princípio, e outra coisa é ele de fato. De


fato, o Hinduísmo está se extinguindo. Por quê? Porque o sistema de castas não
está mais sendo aplicado como deveria ser aplicado – segundo os grandes
santos hindus, ou seja, isso não é uma opinião de fora do Hinduísmo. Tanto o
Rama Krishna quanto o Ramana Maharshi falaram: “eu aceito todo mundo para
receber os meus ensinamentos”. O Ramana Maharshi: “aqui no meu ashram é o
seguinte: o brâhmane, quando é o dia dele de servir a comida, tem que servir a
comida no prato do pária, e não tem discussão. Por quê? Porque esse indivíduo
que vocês estão chamando de pária não é pária, e você que está se chamando de
brâhmane também não é brâhmane”. Isso obviamente causará a extinção do
Hinduísmo; ou talvez a sua renovação num pequeno grupo.

Aluna: você acredita mais em quê?

Professor: em nenhuma das duas: não tenho a menor idéia; realmente


não tenho a menor idéia, porque se por um lado, em termos de organização
social, o Hinduísmo está tão decaído, por outro lado existem manifestações de
vitalidade espiritual muito grandes em alguns mosteiros. Há alguns santos
muito evidentes, então é possível que um monte de gente se converta ao
Budismo e um pequeno grupo forme um Hinduísmo como ele era. Mas isso
também está sujeito a muitas contingências histórias, porque se esse pequeno
grupo for dominado pelo grupo maior, e a ordem social e política do grupo

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Religiões do Mundo I

maior, de budistas, se impor sobre eles, eles não podem aplicar o sistema de
castas, então isso é muito complicado de saber. Os próprios hindus não se
incomodam com isso, porque, para eles, é como eu falei: “a nossa religião é o
sanatana dharma, ela é eterna; se mudarem as formas de expressão, mudaram
as formas de expressão”. É claro que com a perda de uma forma de expressão,
algo se perdeu humanamente, mas esse algo é substituído por outro.

Aluna: então existe a possibilidade de o sanatana dharma existir fora


do sistema de castas.

Professor: não, o sanatana dharma já existe fora do sistema de castas,


porque ele é anterior ao sistema de castas. Os sacerdotes hindus dizem: “se você
não aceita o sistema de castas, eu não posso garantir que você está no sanatana
dharma. Então você está por sua própria conta”. Mas eles mesmos admitem
que, entre os “bárbaros”, existem também religiões que são expressões do
sanatana dharma – “bárbaros”, aqui, deve ser entendido como “aqueles que
não admitem o sistema de castas”, evidentemente.

Aluna: por que havia conflitos entre os vishnuítas e os shivaítas?

Professor: porque os seus ritos, mandamentos eram muito diferentes,


eram extremamente diferentes.

Aluna faz comentário.

Professor: como é que eles vêem? É simples: as pessoas são diferentes.

Aluna: são ramos diferentes.

Professor: não, são expressões diferentes, e não ramos; são expressões


diferentes do sanatana dharma. No caso, o vishnuísmo e o shivaísmo são
expressões védicas, ou seja, baseadas diretamente nos Vedas, então não tem
como uma impugnar a outra. Mas o esforço de uma para dominar politicamente
a outra e acabar com todos os seguidores da outra é histórico.

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Religiões do Mundo I

Aluno: xiitas e sunitas.

Professor: xiitas e sunitas. É assim: se você é shivaíta, você não pode ir


numa vila vishnuíta à noite, porque você não sai de lá.

Aluna: é uma disputa de poder.

Professor: Não, não é uma disputa de poder. Não dá pra reduzir as


disputas religiosas a disputas de poder. É simplesmente o seguinte: ninguém
troca o certo pelo duvidoso, especialmente em questão religiosa. Quando você
tem uma experiência religiosa, digamos, completa, que te põe numa religião, te
torna budista, ou cristão, ou judeu, mesmo que você entenda que as outras:
“parece que é verdade também”, você nunca trocará uma pela outra, e quando
você sentir que o outro grupo é uma ameaça para esse, você defenderá esse com
tudo que você puder, do mesmo jeito que as pessoas defendem a própria família.
Isso é um processo natural, não é uma disputa de poder; é um esforço para
perpetuar algo que é melhor do que você, que você sabe que é melhor do que
você, e que é importante que esteja presente para os seus filhos, seus netos e
bisnetos.

Aluna faz comentário.

Professor: não. Eu sei que hoje em dia isso é difícil de entender, porque
atualmente, aqui no Ocidente, as pessoas não têm a religião com a mesma
intensidade que todo mundo sempre teve, mas vamos pensar o seguinte:
substitua religião por comida; ao invés de usar a palavra religião, use a palavra
comida, alimento. Então você trabalha, ganha dinheiro, e compra um alimento
para os seus filhos. O que acontecerá se você estiver numa vila na qual só a sua
casa tem alimento (todas as outras não têm)?

Aluna: você será assaltado.

Professor: exatamente. Com religião é a mesma coisa. Se você está


numa vila e só a sua casa tem aquela religião, seus filhos e netos serão

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Religiões do Mundo I

bombardeados com a outra religião o tempo todo, e a sua família perderá a


religião que ela tinha, e você não sabe se ela ganhará outra equivalente. O que
vale pra comida, vale pra religião do mesmo jeito. Por quê? Porque todos os
povos sempre encararam a religião como o objeto de uma necessidade natural,
assim como o alimento. As pessoas precisam de alimento, precisam de roupas,
de lei, justiça, e precisam de religião; elas precisam de tudo isso, e de vez em
quando você tem que lutar para garantir isso. Então dizer que há uma luta por
poder é uma ignorância completa da natureza das coisas. Por exemplo, São
Bernardo pregou a cruzada para retomar Jerusalém. Se você estuda a vida de
São Bernardo e estuda a sua psicologia, você vê que ele não tinha nenhum
desejo de poder; se tem uma coisa que não existia na psicologia dele era desejo
de poder. Então por que ele pregou isso? Por desejo de manter viva a sua
religião, para que as gerações futuras pudessem ter aquela religião.

Aluno diz que a reação cristã foi tardia, no caso das cruzadas.

Professor: sim, porque antes eles olhavam e falavam: “isso ainda não é
uma questão de sobrevivência da religião, não precisa fazer isso agora”. Só no
momento em que eles viram: “opa, isso aí está ameaçando a unidade do nosso
mundo religioso”. O que isso significa? Na prática, os mundos religiosos
precisam de fronteiras. Assim como o mundo econômico e o mundo político
precisam de fronteiras, o mundo religioso também precisa de fronteiras, precisa
de um território, onde aquilo possa se exercer livremente, sem coerção
contrária, sem perigo de contaminação. Isso está sempre no começo de toda
religião; está lá, se não me engano, em São Timóteo: “preservai o depósito da fé,
guardai o depósito da fé”, ou seja: “vocês receberam um negócio, agora não
deixem isso se perder, não dissipem esse tesouro”. Toda pessoa que tem uma
religião sabe que aquela religião é um tesouro que ela tem que preservar.

Aluno faz pergunta.

Professor: aí você descobriu que você pertence àquela religião. Você não
descobriu que ela é melhor, você descobriu que você pertence a ela. Uma

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Religiões do Mundo I

conversão não é um juízo sobre a religião, é um juízo sobre você. Você não tem
como provar que uma religião verdadeira é negativa em relação a outra, e dizer:
“o Hinduísmo é mais rico do que o Cristianismo”, você não tem como fazer isso.
Você tem como perceber, por exemplo: “no Hinduísmo, eu tenho mais religião
do que no Cristianismo; eu [ênfase no “eu”] pego mais da religião nessa aqui do
que na outra”. Isso significa que as fronteiras religiões existirão, primeiro, como
uma necessidade prática, e, segundo, que elas serão determinadas pela
necessidade prática.

Aluno: pelas necessidades individuais.

Professor: sim, exatamente.

Qual é a religião que tem mais adeptos? Aquela que mais pessoas
percebem como a sua religião – simples.

Aluno: desde que não haja elemento de coação.

Professor: o limite entre um processo educacional e um processo de


coerção é muitas vezes nebuloso. Por exemplo, quando você está educando uma
criança, tem que ter muita coação. Se você olhar as crianças, você verá que há
crianças que gostam de rezar, e há crianças que detestam rezar. Mas, pra você
ensinar a sua religião pra ela, você tem que obrigá-la a rezar. Algumas não é
preciso obrigar, porque todo dia virão te perguntar: “não está na hora de
rezar?”, e com outras tem que ser assim: “aqui está o chinelo. O que você quer: a
oração ou o chinelo?”. Do mesmo modo com comida: não tem criança que gosta
de comer e criança que não gosta de comer?

Aluna: e se você esperar que essa necessidade surja lá na frente?

Professor: eu não posso esperar, eu nem sei se ela viverá lá pra frente.
Isso é a mesma coisa que: vou esperar que a necessidade de comida surja mais
pra frente na criança. Ótimo, às três da manhã ela acordará te pedindo comida,

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Religiões do Mundo I

te pedindo almoço. Como você acha que ficará a saúde dessa criança se você
fizer isso durante dois anos pra ela? Você destruiu a saúde dela.

Aluna: existe a possibilidade de uma pessoa perceber que ela pertence a


outra religião, se ela vive em um território no qual não há outras religiões?

Professor: hoje em dia existe, mas isso só passou a existir com a


invenção dos modernos meios de transporte e comunicação; antes não. O que
isso significa? Isso significa que, considerada em si mesma, toda religião
verdadeira é completa, é suficiente para todo e qualquer tipo humano, em
princípio; e as diferenças de ênfase derivam, em grande parte, das diferenças
dos povos. É que hoje nós tendemos a não encarar a religião como uma
necessidade natural. Nós tendemos a encarar a religião – por conseqüência de
ideologias materialistas – como um luxo mental, um objeto que nós inventamos
e que achamos legal, e que agora o compramos, porque o achamos legal, assim
como o xadrez. Hoje nós tendemos a encarar a religião assim, e, portanto, como
algo em princípio dispensável, mas nenhum povo nunca pensou assim. Todos
eles sempre pensaram: “existem várias necessidades naturais: comida, roupa,
um território no qual se possa aplicar a justiça, a mesma lei, e religião”.
Basicamente, as categorias de necessidades naturais correspondem às quatro
castas, porque o fundamento psicológico das quatro castas está em todos os
seres humanos. Então nós temos necessidade do quê? Necessidades puramente
corporais: alimento, roupa, habitação. Temos necessidades estéticas. Nós
pegamos os ingredientes da comida e jogamos na boca, ou os preparamos para
dar um sabor especial? O sabor não é uma necessidade corporal, é uma
necessidade estética. Temos necessidade de justiça nas relações, não temos? E
temos necessidade de religião. São dessas quatro coisas que nós precisamos.
Temos necessidade de ter alguma idéia do que acontece conosco depois da
morte, e de nos prepararmos para isso. Essas quatro coisas são cruciais para
uma existência verdadeiramente humana. Todas as sociedades humanas sempre
tentaram oferecer essas quatro coisas, e é por isso que os hindus dizem: “as

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Religiões do Mundo I

funções das castas são o princípio da organização social, porque a sociedade


existe para dar essas quatro coisas para as pessoas”.

Aluno: as sociedades, com exceção das socialistas.

Professor: todas as sociedades normais [ênfase em “normais”]. As


[sociedades] socialistas disseram que algumas dessas necessidades não existem,
que são luxos, e não necessidades. E enquanto nós pensarmos que a religião é
um luxo e não uma necessidade, nós estaremos plantando uma semente de
comunismo na geração seguinte – não é brincadeira.

A religião hindu toda se baseia num conceito fundamental, o conceito


de sanatana dharma. Ela não se baseia num fato fundamental, num fato
histórico, ela se baseia numa idéia. Claro, uma idéia que se expressou por uma
sucessão de fatos – a revelação dos hinos védicos –, mas a ênfase na idéia é tão
grande que eles não se preocuparam nem um pouco em registrar quem recebeu
cada hino, quando recebeu etc. O que eles se preocuparam em registrar? Que
esses hinos são expressões do sanatana dharma. Assim como quando você
entende uma coisa que você queria muito saber, você não se preocupa, na hora
que você entende, em: “agora anotarei a hora, dia e lugar em que eu entendi”,
você anotará o quê [ênfase em “o quê”] você entendeu. Este é um elemento
distintivo do Hinduísmo, que nós só iremos reencontrar no Taoísmo, que é
outra tradição religiosa que se baseia fundamentalmente numa idéia, mais do
que num fato.

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