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ENTRE DITOS E MALDITOS

Por entre as tramas de Lacan

Adriano de León

1
Este breve texto foi produzido para buscadores e buscadoras dos entremeios da
Psicanálise mais orientada à leitura das teses de Jacques Lacan.
São alunos e alunas que me orientaram a escrevê-lo.
Trata-se apenas de uma possível leitura das teorias de Lacan. É a minha leitura,
com os vieses dos meus campos de atuação e conhecimento: Antropologia,
Sociologia e Psicanálise.
Não é um compêndio e nem se propõe a isso. É mais um passeio, um diálogo
que, como todo diálogo é aberto e inconcluso. São meus significantes que
permeiam o texto.
Como as ideias são de tantos outros, este texto é completamente aberto. Pode
ser copiado, reproduzido, refeito conforme o desejo de quem lê. Sou apenas um
tecelão que usa as fibras produzidas por outros que colheram, secaram, teceram
e tingiram as fibras.
É uma interpretação pessoal da teoria de J. Lacan. Como uma teoria, ela está
sujeita a novas interpretações, assim como fez J.A. Miller com a obra de Lacan.
Como a maioria de seus seminários foram frutos de aulas abertas, é claro que
tanto a transcrição destas aulas, quanto as diversas traduções já causaram furos
nos ditos de Lacan. Mas isto não interessa. O que importa é saber como ele se
valeu das teses de S. Freud, da Filosofia, da Antropologia e Lógica para
desenhar sua teoria. Como leitores, poderemos também atualizá-la,
complementá-la e criticá-la.
Este texto é dedicado aos meus alunos e alunas, os buscadores.
Boa leitura!

2
Por mais que se diga o que se vê,
o que se vê não se aloja jamais no que se diz.
Michel Foucault

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Você pode saber o que disse, mas nunca o que outro escutou.

A verdade só pode ser dita nas malhas da ficção.

A angústia surge do momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo


em que ele não sabe mais onde está, em direção a um tempo onde ele será
alguma coisa na qual jamais se poderá reencontrar.

Ponham algo de si na psicanálise, não se identifiquem comigo. Tenham seu


estilo próprio, pois eu tenho o meu.

Há alguma coisa que se repete na sua vida, que é sempre a mesma, essa é a
sua verdade. E o que é essa coisa que se repete? É uma certa maneira de
gozar.

O desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque
o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto
[do desejo do homem] é ser reconhecido pelo outro.

Jacques Lacan

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SUMÁRIO

PRA INÍCIO DE CONVERSA ................................................................................1

O ESTÁDIO DO ESPELHO ...................................................................................8

OS TRÊS TEMPOS DO ÉDIPO ..........................................................................12

O MISTÉRIO DO DESEJO ..................................................................................16

O GOZO ................................................................................................................26

O PROCESSO DE SEXUAÇÃO .........................................................................30

SUMÁRIO 1
PRA INÍCIO DE CONVERSA

O ano era 1901. Num subúrbio de Paris, uma família simples vivia da
produção de vinagre. Eram católicos e por assim serem, resolveram
homenagear a Virgem Mãe, colocando seu nome como aposto ao nome do seu
filho: Jacques-Marie Émile Lacan.
Afastando-se do destino de comerciante traçado pelo pai, o qual era tido para
Lacan como um homem fraco, vai cursar medicina, se dedicando ao campo da
psiquiatria. Durante seu percurso lê autores como B. Spinoza 1, F. Nietzsche2,
C. Maurras3 e J. Joyce4.

Como S. Freud, Lacan era médico neurologista. Este ramo da medicina é um


dos que mais apresenta efeitos somáticos nas doenças do corpo. Afasias, dores
sem causa, paralisias, voluntarismo musculares têm muito mais a presença de
uma emoção do que traços biofisiológicos. E tal como Freud, Lacan ficará, nos
seus primeiros escritos entre a racionalidade biológica e a compreensão
metapsicológica das emoções. Foi em 1928 que Lacan conheceu uma paciente
bretã que havia sofrido traumas emocionais durante a I Guerra Mundial. Os
distúrbios motores ocorriam principalmente quando a paciente se locomovia.
Andava na ponta dos pés, recuando e avançando, em velocidades inconstantes
e, às vezes, realizando giros parciais ao redor do seu próprio corpo. Tais
sintomas não tinham nenhuma explicação neurológica, o que levou Lacan a
questionar os próprios métodos da neurologia. Assim, em 1932, Lacan resolve
ler S. Freud e naquele mesmo ano, começou a frequentar o divã de Rudolph
Loeweinstein, um dos dez membros fundadores da Sociedade Psicanalítica de

1
De Spinoza, Lacan retira a ideia de que deus é a natureza, portanto, uma criação do próprio
homem. Ora, o que se passa em nosso corpo – as afecções – é experimentado por nós sob a
forma de afetos (alegria, tristeza, amor, ódio, medo, esperança, cólera, indignação, ciúme, glória)
e, por isso, não há imagem alguma nem ideia alguma que não possua conteúdo afetivo e não
seja uma forma de desejo. São esses afetos, ou a dimensão afetivo-desejante das imagens e
das ideias, que aumentam ou diminuem a intensidade daquilo que conhecemos.
2
De Nietzsche, Lacan absorve a ideia de potência de vontade, do racionalismo e do homem
como produtor dos discursos que criam as coisas.
3
As ideias de anti-família de Maurras influenciaram o jovem médico. Apensar de serem ideias
conservadoras, elas serviram para que Lacan renegasse suas raízes e as ideias de que uma
revolução, como a francesa, seria capaz de emancipar alguém;
4
Joyce e os surrealistas encantavam Lacan. Os jogos de linguagem presentes nas suas obras
diziam respeito a como uma imagem se forma a partir do sujeito que a aprecia. Tudo é
linguagem!
SUMÁRIO 1
Paris. Essa análise durou seis anos e meio, tendo sido interrompida em função
de forte desentendimento entre ambos.

A partir de 1936, após iniciar-se na filosofia hegeliana5 e participar de


importantes grupos de grande riqueza cultural e teórica, concluiu que a obra
freudiana devia ser relida “ao pé da letra” e à luz da tradição filosófica alemã.

Lacan denominou o começo de seu ensino de “retorno a Freud”. Com base na


filosofia hegeliana, na linguística de F. Saussure e nos trabalhos de C. Lévi-
Strauss, retornou aos textos freudianos. Assim, tal aporte possibilitou a
elaboração de suas concepções sobre o “significante”, o “inconsciente
organizado como uma linguagem”, “simbólico, imaginário e real”, a “interdição do
incesto” e o “complexo de Édipo”.

As ideias do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss sobre as estruturas


universais presentes na linguagem humana chamaram a atenção de Lacan. O
estruturalismo, como uma matemática, pressupõe certo universalismo entre
palavras e coisas. Estruturas como alimentação, ritos funerários e relações de
parentesco, segundo Lévi-Strauss têm a mesma base independente das
condições culturais nas quais os grupos estejam presentes.

O suíço Ferdinand de Saussure, fornece a Lacan a teoria que prediz que a língua
é um sistema de valores que se opõem uns aos outros. Ela está depositada como
produto social na mente de cada falante de uma comunidade e possui
homogeneidade. As noções de signo, significante e significado terão
importância enorme na teoria lacaniana do inconsciente estruturado como uma
linguagem.

Quando digo manga, o que lhe vêm à cabeça? Há uma imagem acústica que
aponta para um conceito. Então, algo sempre tem a ver com uma outra coisa. A
palavra falada manga só terá sentido quando relacionada a uma outra palavra.
O significante aponta para a imagem acústica. O significado diz respeito ao
conceito.

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A importância de G. Hegel para Lacan subsiste no fato de que, a despeito de toda ruptura e
descontinuidade teórica,a tensão fundamental de um inominável, de um impossível, ou de um
real, que se apresenta e ao mesmo tempo resiste à simbolização.
SUMÁRIO 2
“A manga é doce!”

“A manga está muito comprida”

“Ela manga de mim o tempo todo”

Observe que só sei o que vem a significar “manga” quando a relaciono à fruta, à
parte de um traje ou ao verbo debochar.

A linguagem tem por base a cadeia de significantes. Desta maneira “o sujeito é


o que um significante representa para outro significante” segundo Lacan. Como
em Hegel, o “eu” é indissociável do “outro”, como no poema de Mário de Sá
Carneiro de 1914:

Eu não sou eu nem sou o outro,


Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Isto significa que o sujeito em si não tem identidade senão aquela que é imposta
pelo outro. O sujeito, portanto, não é uma personalidade ou ego. O sujeito é
assujeitado por um outro. Desta feita, entre 6 e 18 meses, o bebê irá adquirindo
certa autonomia. Na primeira fase, ele não se vê como indivíduo, mas sim como
uma imagem que o outro lhe fornece. O seu corpo é visto como um apêndice do
corpo do outro (geralmente quem faz o papel materno). Logo em seguida, a
criança nota que sua imagem é própria, pois os reflexos do espelho são
comandados por suas expressões. Finalmente, a criança se percebe como
única, independente da imagem frente a outros, ou mesmo da sua imagem
refletida. Ele se percebe como único, com um núcleo que o diferencia dos
demais.

O ser humano é um ser social, portanto dependente do outro. A literatura do


final do XIX e início do XX é rica nisto. Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, conta
a história de um náufrago cujo desejo maior era voltar ao mundo dito civilizado.
Crusoe transmite ao leitor a solidão de si mesmo diante da natureza e a
necessidade da vida coletiva, mesmo conturbada numa metrópole6. O americano

6
Tom Hanks estrelou o filme O Náufrago (2000), contando esta mesma história e a atualizando.
SUMÁRIO 3
Edgar Rice Burroughs, em 1914, publica uma série de histórias, depois
transformada em livro, sobre um bebê perdido nas selvas africanas e criado por
gorilas: Tarzan. Vale a pena a descrição do momento em que Tarzan se vê
diante do fenômeno da linguagem, passando então a entrar no conflito
antropológico entre natureza e cultura, pois é a linguagem que reloca Tarzan, o
lorde perdido de Greystock de volta às suas origens londrinas. A jovem Mary
Shelley, com apenas 16 anos, escreve a polêmica novela Frankenstein, sobre a
suposta capacidade humana de criar a vida. Mas não é só juntar pedaços e
gerar vida biológica que produzirá um humano: é a linguagem, a via de entrada
no mundo das palavras e das coisas. Há muito mais o que se perceber neste
campo da literatura.

A linguagem busca uma estruturação comunicativa. Ele nomeia, designa.


Entretanto, o que alguém diz a outrem passa por uma hiato interpretativo, de
modo que eu nunca sei ao certo como o outro recebeu o que eu falei. Há sempre
um ruído na linguagem. Traduttore, traditore! Diz o dito popular italiano,
referindo-se aos lapsos da tradução. Toda tradução, assim, seria uma traição.
A representação de algo é sempre parcial. Quando digo “cadeira”, cada um
imagina uma cadeira que depende da situação na qual está envolto.
Imaginamos uma cadeira de cinema ou de praia se estamos de férias. Entramos
em pânico ao imaginar uma cadeira de rodas ou mesmo elétrica. A palavra,
portanto, é uma situação de significado. Na linguagem há furos.

Veja, então:

Não queremos saber.


Não, queremos saber.

Quando alguém diz algo que talvez não quisesse (querer saber no lugar não
querer saber) há ali um processo inconsciente. O inconsciente, assim, é uma
verdadeira forma de registro: é uma estrutura linguística. A pausa, a troca, a
piada, o sonho, todos estes fenômenos de uma estrutura que não era bem
previsível ao ser falante, mas que escorre, escapa, causa erosão.

Para Lacan, a existência do indivíduo é constituída por três referências


imagéticas: o imaginário, o simbólico e o real. O Imaginário gira em torno de
um registro da relação dual com a imagem do outro. O Simbólico é representado
SUMÁRIO 4
pelo inconsciente, em que nada pode ser expresso diretamente a não ser por
símbolos que assumem forma de acordo com associações da experiência real.
Representa a base do pensamento, por meio da qual o sujeito poderá formular
e organizar seu mundo. O Real é o impensável e o impossível de ser
simbolizado. é sem fissura e que só é possível apreendê-lo por intermédio do
Simbólico. A realidade é constituída por uma trama simbólico-imaginária, feita,
portanto, de palavras e de imagens, ao passo que o real é precisamente aquilo
que não pode ser representado nem por palavras nem por imagens: ao real falta
representação psíquica. Estas três estruturas caminham juntas, num esquema
interdependente, como os arcos olímpicos.

Em se tratando de vínculos sociais, Lacan lida com a falta como a ausência


fundamental de toda psiquê humana, responsável pela construção das relações
interpessoais. Na teoria lacaniana, tudo aquilo que preenche esse espaço, o que
nunca seria definitivo, é chamado de “falo”. O suposto objeto que poderia
satisfazer esta ausência, que daria conta do desejo é chamado “objeto a”. Ao
mesmo tempo em que este é impossível de ser alcançado, ele mesmo é o que
causa o desejo.

SUMÁRIO 5
Sendo o Real indizível, o sujeito só é capaz de se expressar no simbólico. Assim,
somos inexoravelmente sujeitos da linguagem, pois é esta que nos permite
preencher a falta que nos persegue desde o nascimento com objetos. Ao tentar
preencher esta falta, a linguagem cria novos desejos, portanto, novas faltas. A
palavra mata a coisa. Enquanto a ideia está na nossa mente, ela de fato não
existe. Ao falarmos, esta ideia toma forma através de moderações da linguagem.
A linguagem tenta, deste modo, mapear o indizível. Por isso ela é expressa a
partir de imagens e depois de símbolos. Uma criança quando deseja água,
aponta para o local onde há água (geladeira, filtro, bebedouro). Se alguém não
entende este gesto, ela tenta se expressar por meio de uma palavra-imagem-
sentido (o significante) através do vocábulo “água”. Ela imita os adultos pedindo
“água”, “water”, “wasser”, “aqua”, “eau” conforme o círculo linguístico onde foi
criada.

Todavia, nem a mais complexa das línguas será capaz de expressar o que nos
falta. O sujeito viverá com esta lacuna e fará de tudo para supri-la. Tal falta nos
perseguirá por uma vida. Quando a criança percebe que não pode significar por
si mesma aquilo que os pais desejam, que existem outros falos para quem ocupa
o lugar da mãe, que existe um outro lugar que costumeiramente chamamos pai
(nomes do pai) que interdita esta fantasia de ser só da mãe, a criança se
estrutura como sujeito da falta e passará a buscar nos outros sua completude.
Buscamos, assim, no outro a possibilidade da realização plena dos nossos
desejos. A outra banda da laranja, a lua e a estrela, a plenitude da relação
sexual, todas estas fantasias em torno da felicidade eterna é o que geralmente
pomos em lugar da nossa falta. Nascer só, morrer só. Eis o começo e o fim.

César chaga à clínica à procura de saídas. Diz ao analista das suas dores. Diz-
lhe um homem depressivo. Não porque é triste e antissocial, mas porque foi
diagnosticado por um psiquiatra e toma remédios que confirmam este laudo. O
analista ouve sem dar atenção a este rótulo de “depressivo”. Não que não se
importe. A pergunta que o analista faz a César é: o que é ser depressivo para
você?

Para a Psicanálise, o sofrimento vem de um dito. Talvez de um maldito...


Alguém formulou para César este conceito-estado e ele o engoliu sem digerir.
Fez disso um rótulo e assim se apresenta ao mundo. Não existe naturalmente “o

SUMÁRIO 6
depressivo”. Isto foi inventado por um dado saber médico psiquiátrico e colado
a um sintoma. O dito, portanto, cria uma sujeição. Algo só existe porque foi dito.
César não nasceu depressivo, pois não existe nada antes ao sujeito, senão
formas simbólicas discursivas. Segundo Michel Foucault, o sujeito é uma criação
do discurso e não ao contrário. Só quando leio algo é que sou um leitor. Só
quando estudo que sou um estudante. Somos, pois, criações discursivas.

O sujeito é uma formação trina: imagens, símbolos e bordas.

SIMBÓLICO IMAGINÁRIO

Metáfora paterna Estádio do Espelho

SUJEITO

REAL

Alienação e separação

SUMÁRIO 7
O ESTÁDIO DO ESPELHO

Lacan pensa de maneira diferente as fases do desenvolvimento do bebê. Para


ele, não se trata de períodos cronológicos, mas de etapas constitutivas da
formação do sujeito. Ele propõe três tempos:

1º Tempo

EU NÃO SOU

Fonte: internet

Neste tempo, o bebê vê-se a si mesmo não como um outro, mas como um só.
Trata-se de um corpo fragmentado, numa situação esquizofrênica de não se
reconhecer como um todo e sim como fragmentos de corpo. O Eu é este outro
da imagem. Os processos de reconhecimento dizem mais respeito a este outro
que é o lugar-mãe, lugar-pai, lugar-família. O processo de individuação ainda
está por vir.

SUMÁRIO 8
2º Tempo

QUEM É ESTE OUTRO?

Fonte: internet

Neste segundo tempo se dá o processo de alteridade. É um tempo transitivo da


presença de um Eu-só para um Eu-com-Outro. O bebê se confunde com um
outro, pois entra na dúvida se este outro é ele mesmo. Um exemplo: bebês que
se encontram numa creche e um morde o outro. Os dois choram. Há uma
confusão de quem mordeu quem, ou seja, de quem é quem. Ao mesmo tempo
em que o bebê estranha o outro, ele quer se aproximar e ter certeza de que
aquele outo é ele mesmo. E se não for? A imagem entra em cena e é a partir
dela que a interação acontece. Outro exemplo: a primeira vez em que uma tribo
nativa encontra com o homem branco. Os nativos temem, se armam. Os
brancos oferecem adornos como forma de segurança. Os nativos se aproximam
e tocam na pele, na barba, nos cabelos. Os nativos se deparam com a diferença
num ser semelhante. Este segundo tempo reflete um sentimento de paranoia.
Também é um tempo sem limites: o bebê anda, corre solto, grita, fala uma língua
própria. Busca neste outro, um eu ideal. Reflete-se, portanto, no outro.

SUMÁRIO 9
3º Tempo

Fonte: internet

Este é o tempo da neurose. Nesta etapa, o terceiro aparece. Como no conto da


Branca de Neve, a rainha se desespera em saber que há uma outra mais bela
do que ela, revelada pelo espelho mágico. Ela sempre pergunta: espelho
mágico, espelho meu, existe alguma mulher mais bela do que eu? O espelho
sempre respondia que não. Só ela. Só o Eu. Mas eis que chega um dia que ele
responde: tu és bela, sem dúvida, porém existe outra ainda mais bela... É esta
existência deste terceiro que causa uma dissociação na relação do Eu. O bebê
se pergunta: este sou eu? Se existem outros, eu sou o que o outro quer que eu
seja. O lugar-mãe7 diz: meu príncipe, meu reizinho. O lugar-pai diz: meu
guerreiro, meu herdeiro. Então o bebê é aquilo que se diz dele. É o sujeito

7
Passarei a designar lugar-mãe, lugar-pai para indicar que qualquer indivíduo pode ocupar este
lugar, pois a ideia é que o sujeito é uma posição num contexto.
SUMÁRIO 10
assujeitado pelo outro, pelo discurso do outro. O sujeito passa a ser reconhecido
através do outro. É o outro quem confirma a imagem do eu. O bebê é, portanto,
o desejo dos lugares-pais. O sujeito é alguma coisa enquanto for desejado. O
sujeito é uma posição do discurso do outro. Desta forma, o sujeito entra na
linguagem e passa também a ser um sujeito desejante. Sujeito aos significantes.
Um sujeito idealizado pelos outros: o ideal do eu. Um sujeito que é um fragmento
do social, sujeito da cultura. Sendo desejante, nunca será pleno, pois nunca
abarcará o que os outros querem dele, o que os outros querem que ele seja.

O Eu sem o Tu só é possível na psicose, pois o delírio que nela reside cobre a


alteridade necessária. Temos aí um ideal delirante.

Para falar de sujeito, tome como exemplo uma selfie. Por que geralmente se
filtra uma imagem? Porque o sujeito quer ser visto da melhor maneira possível.
Um eu ideal é o eu da selfie. Contudo, isto não garante que o outro irá me ver
da mesma maneira. Quando eu poso para uma selfie, quando eu modifico minha
própria imagem é que eu tento chegar ao ideal do eu: como eu devo ser visto.
Daí que a neurose se funda numa confusão de que o eu ideal seja igual ao ideal
do eu. Isso é impossível, portanto, um furo numa suposta blindagem do sujeito
em relação à opinião do outro. A análise, neste esteio, visa emancipar o sujeito
dos ideais que os outros têm dele. Separar o sujeito do desejo do outro. A
paixão, oh, a paixão. A utopia de encontrar um outro ideal, um presente de
deus, um ser completo e sem defeitos. As mensagens que não param ao longo
do dia. Juras de amor para sempre. Mas segundo Renato Russo e Vinícius de
Morais, “o pra sempre, sempre acaba” e “que seja eterno enquanto dure” são
realidades que se apresentam face aos apaixonados. Os defeitinhos começam
a incomodar. Já acontecem os primeiros vácuos nas mensagens de amor. A
larva da paixão esfria e vira pedra. Este outro tão desejado talvez não fosse bem
o que eu esperaria para mim. Mas, como escreveu Gonzaguinha: “começaria
tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor”.

SUMÁRIO 11
OS TRÊS TEMPOS DO ÉDIPO

Para Lacan, também o Complexo de Édipo não é cronológico. É uma situação.


Trata-se de reconhecer como se dá o processo de recalcamento da criança em
relação ao desejo do lugar-mãe. Vale a pena relembrar que na Psicanálise, pai
e mãe são lugares ou, noutras leituras, funções. Necessariamente não se trata
de uma família nuclear com base no pai, mãe e filho. Qualquer pessoa pode
ocupar estes lugares, independentes do gênero, da presença, da organização
familiar ou conjugal.

1º Tempo

O bebê tem total dependência do lugar-mãe. Este lugar-mãe vai além de suprir
as necessidades da criança: ela fala por ele, ela simboliza por ele. O lugar-mãe
é ocupado por um ser onipotente. A potência, que vamos chamar falo, é este
lugar-mãe. O pai ainda nem existe de fato. A criança é como um apêndice do
lugar-mãe. Este lugar-mãe é ocupado por qualquer pessoa que possa dar ao
bebê os cuidados básicos, carinho, alimento e presença.

2º Tempo

É o tempo da quebra da ilusão fálica. A criança não é tudo para o lugar-mãe.


Ele sente a ausência da mãe em certos momentos. Vê-se só no berço, no
quarto. Sente-se sem colo. Se alguém que ocupa o lugar-mãe se ausenta é
porque não precisa 100% da criança. Este lugar-mãe tem outros desejos.
Ambos, lugar-mãe e criança são castrados, pois se dão conta da falta. Não se
trata da ausência. Veja: se abro um armário na cozinha que esteva vazio, sinto
uma ausência de mantimentos. Mas se ele está cheio e alguns mantimentos
não estão lá, eu sinto falta. A falta, portanto, tem um objeto. Neste tempo, o
lugar-pai aparece como um elemento privador, interventor. Pode ser um
humano, um trabalho, uma série, um livro. É algo que retira o lugar-mãe da
atenção plena à criança. Este lugar-pai é o lugar da Lei, do que normatiza, do
que impede, do que impõe limites. O lugar-pai representa a castração, portanto.
A castração pode ser entendida como o que nos impede da satisfação plena.

SUMÁRIO 12
3º Tempo

Todavia, o lugar-mãe também retorna para a criança. Se ela volta é porque


também este outro lugar, esta outra pessoa não representa 100% do desejo dela.
Temos, assim, um resto do desejo. A criança deve se contentar com este resto.
Neste tempo, a criança se vê como um ser incompleto, faltante e desejante.

O lugar-pai que a criança experimenta no Complexo de Édipo, inaugura no


sujeito uma função simbólica, que lhe permitirá significar os dados, os elementos,
as falas, as imagens, os ditos e os não ditos que ele capta na sua relação com
o outro e com o social, de forma a estabelecer uma ordem, um sentido pessoal
e, portanto, uma estruturação psíquica, uma vez que estes conteúdos são
organizados dentro de uma cadeia de significantes a partir da ordenação das
significações que ele estabelece ao longo da sua história.

Apesar de o lugar-mãe estar também inserida no pensamento simbólico – pois


ela fala, representa, significa sua realidade – por si só não consegue estabelecer
essa inserção do filho no sistema simbólico. A relação entre lugar-mãe e filho é
bastante permeada pelo laço natural que marca, desde a concepção até o
nascimento, esta relação. Por conseguinte, ela não pode fundar algo da
dimensão cultural para o filho, uma vez que a própria relação entre os dois se
encontra atrelada à natureza. Há que se ter um terceiro que inaugure a criança
no circuito do mundo da cultura. Este é o processo de individuação.

Deste modo, é necessário que o lugar-mãe dependa de uma lei que vem de fora,
a lei do lugar-pai. É necessário, para que a criança participe da ordem simbólica,
que ela perceba que seu lugar-mãe também depende de outra coisa, e que esta
outra coisa é o representativo de uma insatisfação do lugar-mãe com relação à
criança, que a faz ir e vir, como o carretel do netinho de Freud8.

Portanto, no 1º tempo, a criança acredita que é este objeto mágico para o lugar-
mãe: o falo. Nada falta a este lugar-mãe. No 2º tempo, ao perceber que o lugar-
mãe tem outros interesses, a criança se pergunta: tenho ou não tenho o falo?
Ou seja, se não seria capaz de ter o objeto que faria este lugar-mãe plenamente
satisfeito. Para responder a esta questão, a criança passa a olhar para onde se
dirige o desejo do lugar-mãe. A isto, Lacan denomina o nome-do-pai: uma pós-

8
Leia Além do Princípio do Prazer, no qual Freud faz a alusão à brincadeira do Fort-Da
SUMÁRIO 13
graduação, um trabalho, um filme, uma pessoa... No 3º tempo, a criança sabe
que não é e nem tem o falo. Assim, passa a buscá-lo perseguindo a trilha do
desejo do outro, uma trilha cuja bússola é o nome-do-pai. Um exemplo: uma
criança percebe que a mãe deixou de tomar conta dele por um momento para
se dedicar à leitura de textos numa pós-graduação. Sua futura neurose pode se
refletir por adorar livros, buscando assim neste nome-do-pai o falo e ser um
excelente estudante ou ter muita raiva de quem tirou dele a presença do lugar-
mãe – os livros – e ser um péssimo estudante. Ambas as situações dizem
respeito de como lidar com esta perda fálica e a superar. Só que nunca!

O final deste processo é marcado por saídas. O esquema gráfico a seguir mostra
isto, mas de forma estrutural.

Histeria

Afirmação Neurose Obsessão

Fobia

Masoquismo
Desmentido Perversão
Saída
Sadismo

Fetichismo

Foraclusão
Melancolia
Psicose
Paranoia

Esquizofrenia

Aquele que afirma a castração passa a ser um devedor e um eterno buscador: o


neurótico. O sujeito passa a ter acesso à cultura, pois é lá onde irá encontrar os
possíveis significantes que irão supostamente dar conta da sua falta.

Aquele que desmente a castração preenche a falta com objetos externos à falta
do lugar-mãe, como os fetiches. O fetiche é usado para tamponar a falta
captada. Deste modo fica desmentida a castração do lugar-mãe. O fetiche

SUMÁRIO 14
substitui o falo do lugar-mãe, criando um paradoxo: o lugar-mãe tem e não tem
o falo ao mesmo tempo. No perverso, o falo não se perde. Ao contrário, através
do fetiche, ele o mantém consigo.

Aquele que não inclui (ou rechaça) a castração recusa o acesso ao mundo
simbólico. Este mundo simbólico, em algum momento, representou para este
sujeito uma ameaça real à sua integridade. Como ele não admite esta realidade,
o foracluso alucina. Para ele não há dúvida, posto que não há falta, portanto nem
simbolização. A foraclusão é a via da psicose. Neste processo, ao contrário dos
demais, o sujeito não se sente cindido, em dúvida e nem em dívida. Ele é uma
espécie de caixa hermeticamente blindada, o falo de si mesmo. O falo enquanto
alucinado é então aquilo que completa a falta do lugar-mãe. Esta caixa blindada
que é o foracluído não teve acesso ao nome-do-pai. Não simbolizou,
consequentemente. Deste modo, se não há dúvida (como ocorre na neurose em
função da divisão e na perversão em função da escolha objeto-fetiche) há a
certeza, mas certeza delirante.

SUMÁRIO 15
O MISTÉRIO DO DESEJO

Beatriz chega para seu pai pedindo um Iphone. O aparelho é caro. Mas existem
outros caros também, de outras empresas. O pai faz uma excelente pesquisa
sobre a superioridade de outros smartphones e a envia para Beatriz. Nada feito.
Ela cismou com a maçã mordida. Eles chegam à loja. Numa última tentativa, o
pai de Beatriz pede ao vendedor explicações sobre o Iphone e outro aparelho de
igual valor. O vendedor explica que o outro aparelho realmente é bem melhor
tecnologicamente. No entanto, olha para o pai de Beatriz, com leve sorriso no
rosto e diz: ela não quer um smartphone; ela quer um Iphone. O Iphone não é
um aparelho. É uma situação. Beatriz riu e foi escolher o modelo.

Existem, pois, três conceitos que podem se confundir e nos confundir:


necessidade, demanda e desejo.

A necessidade, como aponta a maçã da figura anterior é da ordem da pulsão.


Eu tenho fome e quero comer maçã. A maçã seria qualquer smartphone que
tivesse os recursos do celular da Apple, ou seja, eu preciso de um aparelho para
me comunicar. Pode ser qualquer um.

A demanda é da ordem da repetição: Iphone 13, Iphone 14, Samsung S9,


Samsung S23... A demanda não para de se repetir. Tecnicamente, um celular

SUMÁRIO 16
não tem muita diferença entre uma edição e outra mais nova: cores novas, um
novo design, talvez. Mas o que um faz, o outro faz. O que os diferencia é a
demanda pelo novo.

E o desejo? O que faz com que Beatriz deseje? A falta, então. Toda satisfação
é parcial. Ao ganhar o Iphone, Beatriz será bombardeada, em alguns meses,
pelas notícias do lançamento do modelo mais novo. O desejo que é ativado nela
é um desejo pela completude. A ilusão de que aquilo irá parar um dia. Que
haverá um aparelho que nunca mais precisará ser atualizado. Mas não existe
nenhum objeto que aplaque a fúria do desejo. Um desejo sempre conduz a um
outro desejo.

“O que você deseja?” Esta é a pergunta do diabo Mefistopheles a Fausto, na


obra de Goethe. Também é a pergunta do gênio da lâmpada no conto de Aladim.
A resposta é relutante. Há tanto a se desejar. Contudo, nenhuma resposta sairá
ilesa. Quem deseja gera um carma, uma dívida.

Observe esta poesia de Arnaldo Antunes (Comida):

Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer
(Eu pergunto)
Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comer
A gente quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer pra aliviar a dor
A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro e não pela metade

SUMÁRIO 17
Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida
Quer comida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer
A gente não quer só comer
Quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer pra aliviar a dor
A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro e não pela metade
Desejo, necessidade, vontade
Necessidade, desejo
Necessidade, vontade
Necessidade, desejo
Necessidade, vontade
Necessidade, desejo
Necessidade, vontade
Necessidade

O desejo se funda na perda do objeto, momento este que marca a entrada do


sujeito numa relação contínua com uma insatisfação. E como não há o objeto, o
desejo não se realiza. Ali onde nada há, há o desejo.

O sistema capitalista vive, deste jeito, da produção de desejos. Não se trata


apenas da produção de mercadorias, mas da produção de sonhos em forma de
imagens, de capacidade de realização. Apenas deseje, diz o diabo do sistema.
Mas como desejar sem ter dinheiro para satisfazer o desejo? O sistema inventa
também o dinheiro em suas variadas formas chamadas de crédito. Uma vez que
se tem, deseje e tenha. Beatriz só desejava o smartphone. Mas saindo da loja
tem uma capinha, tem uma película, tem um cabo... A Apple não produz um
aparelho. Produz desejos.

SUMÁRIO 18
O desejo se mantém sempre insatisfeito. Tal insatisfação leva o sujeito falante a
uma contínua busca por novos objetos, sempre na tentativa de encontrar esta
satisfação. Isso marca a relação do sujeito com o objeto de um modo que é
fugaz, pois se está sempre em busca de novos objetos, que proporcionem a
plenitude da satisfação.

Assim, Caetano Veloso nos coloca nas encruzilhadas do desejo, na canção O


Quereres:

Onde queres revólver, sou coqueiro


E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alta, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca a dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero e não queres como sou
Não te quero e não queres como és
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

SUMÁRIO 19
Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock'n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, Fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim

Se eu desejo algo, meu desejo tem um endereço: o outro. Se é a partir deste


outro que nós nos constituímos, o desejo é a falta que também está no outro.
Meu desejo é, desta via, um desejo do outro. O desejo é metonímico porque
desliza sobre objetos substitutos, encontra o vazio de objeto em objeto, jamais
se satisfazendo. É como a criança que chora pedindo um sorvete. Para calar o
choro, alguém lhe dá o sorvete. Enfim, esta criança parou de desejar. Começa
um novo choro. Por quê? Porque ela clama por chocolate, enquanto na loja só
tem baunilha. O que sustenta o desejo é da ordem de uma fantasia, e não de
uma realidade. Não é o chocolate! É a falta.

Pelo nosso desamparo original, depois do parto, somos incluídos na ordem


social, visto que um sujeito desamparado sempre recorre a um outro, pelo
vínculo. Não há objeto que satisfaça o desejo, mas apenas objeto que o causa.
Lacan, numa de suas criações teóricas, chamou este objeto que causa o desejo
de objeto a. Atua como um furo numa banheira, de modo que, por mais água
que se coloque nela, ela nunca encherá.

Assim, o que sustenta um desejo é o impossível de satisfazê-lo. Enquanto a


demanda pretende suturar a falta no Outro, o desejo pretende manter o Outro
faltante. O objeto do desejo humano não é um objeto, mas outro desejo.
Portanto, o que o homem deseja é sempre o desejo do Outro. O desejo está
referido à linguagem: um significante que busca outro, que busca outro,
infinitamente. Tom Jobim, grande músico da Bossa Nova, ao se deparar com
SUMÁRIO 20
sua idade, falou: “meus desejos me abandonaram. Estou pronto pra morrer”.
Como bom boêmio, ele se referia aos desejos sexuais. Mesmo tendo sido
abandonado pelos seus desejos, ainda restava um: morrer.

O objeto a é o que se coloca como o representante dessa falta. É uma tentativa


de não surtar pelo fato de desejar. Como uma variável matemática, “a”
representa um substituto, algo que se põe num lugar. Ele entra neste lugar
fantasioso da completude, como resposta a um desejo. No entanto, ele não
completa, mas provoca, é causa. Como diria Milton Nascimento: o mistério da
sede do peixe não tem solução. Como ter sede vivendo num meio aquático?

O desejo presume uma demanda. Para Lacan, toda demanda é demanda de


amor. Mas ao mesmo tempo, dizia ele: “amar é dar o que não se tem". É preciso,
então, que o sujeito se reconheça como faltante e dividido para poder amar, pois
só ama quem reconhece uma falta em si mesmo. Não se pode saber do amor, a
não ser enroscado nas suas próprias cordas. Ao contrário da demanda que é
uma repetição, o amor é uma metáfora.

Segue um conto amoroso, para quebrar um poco o rigor teórico9:

Os começos são inesquecíveis até o momento em que os esquecemos.

Eles viveram isso de forma intensa, como é dado aos amantes. A cara-metade,
o amor que se completa como a lua e a estrela, as bandas que se unem num só
todo. Embora a Natureza insistisse no contrário, eles acreditavam no amor
romântico, na glória do eterno, aquele eterno que é mesmo o infinito, o
sempiterno. Mãos e bocas entrelaçadas, o sexo como encaixe e ajuste perfeito.

Ah, tantas músicas e fotos nas redes sociais. A felicidade estava ali e existia de
fato. Um amor por entre almíscares e alfazemas. Um amor de chocolates e juras
ao luar. Os passeios pela praia e os risos que pareciam nunca terminar.

O amor-vulcão, seus magmas derretidos derretendo os vales em chamas, em


pulsões, gritos e urros na cama, pelas beiradas dos abismos do risco.

9
Escrito para o Dia dos Namorados
SUMÁRIO 21
Eles estavam plenos, como manda o desejo da paixão. Aliás, tudo era desejo.
Os desejos de um que eram completados pelo outro. Aquele pensar que o outro
desvenda. Aquela frase que o outro completa.

O amor-ópio. Sim, aquela alienação da embriaguez dos amantes desarrazoados.


O amor-cupido, um coração flechado, porém não ferido. Aqueles dois e seus
dias eram contagiantes. Aquele amor que desperta inveja mesmo nos corações
mais cristãos. O amor-romântico é o amor dos sonhos, do eu nunca e sim sempre
nós. Um amor que se pensa na simbiose fusional das peles que se roçam, dos
cabelos que se enlaçam, das línguas que serpenteiam as bocas e margens, do
gozo líquido dos suores e jatos da pulsão.

Eles queriam gritar ao mundo seu amor extremo num ritual de casamento sob a
luz das estrelas e o abraço dos primeiros raios de sol. Aliança e juramentos sobre
o eterno. Assim longos 7 meses passaram.

Eles se amaram continuamente até que os olhares começaram a se desviar um


do outro. Tudo começou com um simples creme dental apertado no meio. Sei lá
de onde, uma irritação se estabeleceu sobre o melhor e talvez o mais correto
modo, segundo um, de apertar o tubo de creme dental. Havia, quem sabe, um
método universal de usar o creme, mas que não era tão universal assim, pois
que o outro apertava sempre no meio, quando, segundo o outro, a forma correta
de apertar o tubo era pelo fundo em direção à saída do creme. O que começou
como uma rusga, foi quase um debate de uma tese de doutorado sobre tubos e
apertos. E assim os apertos não eram já tão apertados e usuais. Nos seus
corações jazia um aperto.

Nos seus olhares, havia uma sombra de um entreolhar. Um olhar para algo que
nem eles mesmos sabiam o que era. Por um momento, houve um abalo. Aqueles
abalos sísmicos que ninguém percebe, mas uns sentem. Suas redes sociais
foram invadidas por uma série de fotos de cada um. Havia também fotos do
casal, porém bem rareadas. O eu estava no comando.

Havia um nó no nós. Os desvios breves cederam lugar a olhadelas mais longas.


O desejo parecia sair dos trilhos. Novos rituais foram inaugurados para
encarcerar novamente o desejo. Viagens, presentes e quem sabe mudar de
casa.

SUMÁRIO 22
Os olhares começaram deslizando para objetos, coisas do cotidiano, talvez sem
importância. Depois os olhares escorreram para outros. Outros olhares, outros
corpos, outros encantos. Eles se amavam ainda no frisson do sexo apaixonado,
mas havia um terceiro entre eles. Um terceiro imaginário, súbito, que aparecia
nas fantasias e, com muito risco e culpa, no delírio de que o outro fosse um outro,
um outro que se desejava nem que fosse por instantes, por um lapso do desejo,
talvez.

Tudo começou a estremecer. Não apenas o tubo de creme dental todos os dias
mal apertado. Para isto, dois tubos resolveriam. Mas havia mais. Toalhas
molhadas na cama. Tênis soltos pela sala. Uma disputa surda de quem deveria
lavar a louça. De grandes rituais de acasalamento, eles agora tinham rituais
diários de conflitos. Pequenos e ridículos conflitos que geravam longas horas de
discussões inócuas. Teria o amor cessado?

Decidiram ir a sessões de terapia de casal. Decidiram buscar o início do fim.


Decidiram desatar os nós e retomar o nós. Quem sabe eliminar o eu, este ente
tão perverso quando se trata de uma relação entre dois. Negar forçosamente a
sombra do outro, deste outro que está sempre à espreita dos desejos fugidios.
Fugir de vez deste demônio chamado sedução, deste mal que assola os casais
como Saturno devorando seus próprios filhos.

Os velhos e comuns sintomas afloraram no casal. A tentação de vasculhar a


intimidade do outro em busca de respostas. Quem sabe descobrindo quem é
este maldito outro, possa-se, enfim, salvar a relação.

A tentação de tocar outros corpos, de delirar mesmo entre coxas desconhecidas,


morder pescoços e carnes com novos sabores, de se lambuzar, mas voltar
limpinho ao aconchego do lar. Mas onde pôr a culpa? Onde pôr a agonia das
ligações clandestinas?

A saída mais tranquila foi uma relação aberta. Eles aderiram a quase uma moda
entre os casais descolados. O modelo propõe não só a abertura para outros,
mas principalmente a liberação da culpa por desejar um outro. Incialmente a
novidade, como toda novidade, causou o efeito esperado: uma tranquilidade nos
conflitos.

SUMÁRIO 23
Mas a cada ida, a cada busca, o casal se reencontrava com mais ausências.
Este ir-ao-mundo satisfazia os desejos sexuais, mas abria cada vez mais a
cratera do vazio. Em casa, juntinhos, o casal se abraçava, abraçando seus
vazios. Não se falavam, pois se bastavam.

Ah, o amor e suas armadilhas! Um laço leve ou uma gaiola, não importa. O amor
tem suas astúcias. Nossa relação com o amor é quase uma síndrome de
Estocolmo. Depois de presos, até feridos, nos apaixonamos por aquele algoz.
Ele tem algo que desejamos, talvez uma solução sadomasoquista, talvez o
terrível abismo do que não se pode nominar.

Eles tinham coisas a compartilhar. Tinham amores que poderiam ser divididos.
Mas não sabiam mesmo como fazer. O amor não tem manual de instruções.

Entreolhando-se, eles se sabiam como mortos de sede em frente ao mar. Uma


água que não pode dar conta da sede. O que não tem solução, nem nunca terá.
Eles descobriram que o amor é feito em pedaços, como um quebra-cabeça cujas
peças se perderam. Há peças parecidas, mas falta o encaixe perfeito.

Amar é faltar-se ao outro.

É tanto um deserto, quanto um oceano. O amor é aquele riozinho leve que


escorre lento, mas depois explode numa cachoeira de espumas em fúria, que
depois se amansa em rio de novo. E lá no seu percurso final, se espalha em
deltas de mil riachos e mangues, de modo que não se sabe nem se fazem parte
de um mesmo rio.

O amor nos presenteia com a falta. Ele nos oferta a dádiva de ser no outro, a
partir do outro, porém nunca ser o outro ou ser para o outro. Um dia nascemos
nus e frágeis e alguém nos acolhe e nos veste.

Ali se inicia a jornada do eu a partir do outro. Um dia nós nos iremos sós. Alguém
talvez nos vestirá para a jornada final, desta vez sem o outro. Quando o amor
nos mostra a falta, mostra também a travessia.

Atravessar nossos fantasmas através de tantos outros olhares, bocas, rasgos e


tropeços. O amor ergue pontes do eu para um outro, pois é intermédio, nunca
destino.

SUMÁRIO 24
Assim eles descobriram o amor. Perceberam que o amor é como a lua. Quando
minguante, se afasta como uma despedida breve. Quando nova, se esconde por
entre as sombras que a ocultam como um sono profundo. Quando crescente,
anuncia que a sombra se rasga quando chega a luz. Quando cheia, ilumina a
noite, enche o coração dos poetas e dos amantes, desperta os loucos e magos.

Eles se viram em pedaços, se enxergaram faltando um pedaço. O amor não


estava mais neles, mas entre eles. Entre seus abraços, entre outros abraços
reais ou imaginários. Pois o amor a tudo permite e aceita. Amar é verbo
intransitivo. Ama-se, apenas. E como as águas, flui, reflui, se encrespa e lambe
o mundo, fertilizando a terra, esculpindo rochas, provocando arco-íris.

Amar, enfim, é dar vexame. Permitir-se o amar-se e também aos outros e a tudo.
Amar não cabe em nada. Amar é, assim, permitir-se.

SUMÁRIO 25
O GOZO

Lacan valeu-se do conceito jurídico de gozar para estabelecer este conceito.


Juridicamente, gozam-se férias. Goza-se de um bônus salarial. Mas vou tentar
clarear isto com um caso clínico:

Carmem, 48 anos, dois filhos, divorciada. Chega à clínica porque está atolada
em dívidas. (Questão: a análise não seria mais uma dívida?). O ex-marido a
deixou com dois filhos e nunca pagou um centavo de pensão. Questão: por que
você não colocou seu ex-marido na justiça? Carmem respondeu que não valeria
a pena. Mora com a mãe, pensionista do Estado. Um dos filhos se formou em
Direito, mas não exerce, preferindo a malhação. O outro vive trocando de cursos
e ela pagando seus estudos. O seu pai era um homem fraco. Alcoólico, deixou
a carga da família com a mãe. Carmem viveu épocas de escassez, tendo que
trabalhar aos 15 anos, enquanto as amigas se preparavam para o baile de
debutante.

A situação financeira dela era confortável. Servidora federal, com estabilidade,


apartamento e carro quitados. Vivendo com a mãe que contribuía com seu
salário de aposentada. Quando perguntada sobre a planilha orçamentária, ela
disse: “eu ganho bem, mas sempre aparecem gastos externos com filhos que eu
tenho que cobrir.” Havia um paradoxo em Carmem: sua queixa eram as dívidas,
mas ela se recusava a falar sobre elas quando questionada pelo analista.

O objetivo maior de Carmem é passar num concurso para a Justiça Federal,


embora tenha uma boa condição financeira. O analista percebeu que ela sempre
busca entrar em emboscadas financeiras. Trocou um carro novinho por um SUV
importado. Um fato importante: toda vez que ela vai se equilibrando, ela contrai
dívidas para entrar no vermelho e surtar. De fato, Carmem parecia gostar de
viver na corda bamba financeira...

O que levaria Carmem a sempre viver cheia de dívidas? A repetição da


configuração de escassez que ela viveu desde cedo na família. A crença que
ter, como sua mãe, de sustentar homens fracos. Este é o gozo de Carmem.

SUMÁRIO 26
Pensando em metáfora, o gozo é o ato de tensionar a corda de um arco pelo
arqueiro. Ele não tem objetivo. Tem a ver com desfrutar de algo. Mas sem
completude. Ao soltar a flecha, o arqueiro se libera da tensão, do que lhe
enobrece. Ao soltar as cordas, o alvo é alcançado e a plenitude do momento se
esvai. O gozo reside na tensão, não na realização. Após acertar o alvo, o
arqueiro não para: tensiona de novo e de novo o arco. O gozo é do campo do
não-dito, pois carece de significantes.

Na tragédia dos golpistas à frente dos quarteis no ano de 2022, temos um


exemplo vivo de gozo. Depois de todas as notícias sobre a desistência do golpe
por parte de Bolsonaro, depois da fuga deste para a Florida, depois mesmo da
posse de Lula enquanto presidente da República, os chamados “patriotários”
continuaram às portas dos quarteis. Negando a realidade, eles se realizavam
numa fantasia de restituição da ordem, num tempo mítico da ordem e do
progresso. Não estavam lá pelo desejo. Estavam lá pelo gozo. Por este curto-
circuito de um a mais (sempre depois de 72h haveria um fato novo capaz de dar
conta da desordem). Uma indeterminação via satisfação inconsciente de algo
que não existe, a não ser na fantasia.

Um exemplo: a vigorexia. Fabiano sempre foi magro. Se lembra de começar a


olhar para seu corpo e sentir prazer no toque aos 8 anos. Depois parou e voltou-
se a si aos 14 anos. Ao ir para um banheiro coletivo aos 15 anos, descobre que
os outros meninos têm um pênis maior que o dele. Ele não nota que os outros
meninos tinham uns 4 anos a mais do que ele. Se envergonha e deixa o colégio
militar. Passa a se ver como menos homem. O pai o rejeita, o compara com o
irmão que ficou no colégio militar. Numa das falas de Fabiano, ele se referia à
hipertrofia: “é bom ser monstro, ser o supersarado. As meninas amam e os
homens morrem de inveja. Por mim passava o dia na academia e quando não
vou, sinto que meus músculos estão murchando...”

Mostre-se! Veja! Ser visto passa a compor um plano no Ideal de Eu do sujeito.


Este campo escópico é fortemente investido por imagens veiculadas na mídia,
pelos modelos fotográficos, atores, esportistas etc. Sabemos que o imaginário é
o campo da identificação especular com o outro. Neste plano, as imagens
apelam à identificação mais direta com a imagem do corpo e chegam ao
indivíduo como imperativos de ideais a serem seguidos; afinal, esses corpos se

SUMÁRIO 27
tornam atraentes, na medida em que escamoteiam a castração, pois parecem
exibir vigor, saúde, um certo hedonismo e veiculam a ideia de bom desempenho.
Ora, é com a falta que o indivíduo com sintomas vigoréxicos busca não se
deparar. Para satisfazer o que imaginariamente supõe que falta ao Outro, ele
busca manter o corpo sempre grande, como um corpo/órgão que não
detumesce, pois só assim resta garantida sua identidade fálica, lugar de onde
supõe ser desejado e amado pelo Outro, levando adiante a tentativa de não
aparecer castrado aos olhos do Outro. Os espelhos da academia de ginástica
como o espelho da rainha de Branca de Neve.

Diz Fabiano: “às vezes me olhava no espelho e achava meu corpo pequeno e
fraco, e quando comentava isso com alguém, me chamam de louco (não que eu
seja gigante); falam que eu tava grande coisa e tal mas eu não via (vejo). Daí,
cheguei a tirar medidas diariamente antes de dormir; logo que eu acordava me
olhava no espelho, se alguém falasse que eu tava menor: pronto, era o fim do
mundo. Foda. Muito foda. Hoje ainda tenho certos "traumas" menores e mesmo
assim é muito foda. A minha namorada rompeu comigo por causa da
musculação. Parece que foi demais para ela. Sarah nunca conseguiu realmente
compreender por que eu precisava ir à academia ou por que isso representava
tanto para mim. Eu perguntava várias vezes por dia se ela achava que eu era
bastante grande ou musculoso. Acho que ela ficou cansada de tanto eu
perguntar. Ela também se queixava muito porque eu era bastante inflexível. Ela
queria sair e fazer alguma coisa e eu dizia que não podia porque precisava ir
para a academia e treinar. Mas eu a avisara que eu era assim. Eu lhe disse isto
quando começamos a viver juntos: a academia vem primeiro, minha dieta em
segundo e você em terceiro. Acho que ela não quis ficar em terceiro lugar. E
realmente não a censuro.”

A gozo de Fabiano era o vigor. A ele não importava a opinião dos outros. Só
ser maior, maior.

Veja, então este esquema:

SUMÁRIO 28
Objeto a

Desejo
Gozo

Objetos do desejo:
casa, carro, comida,
roupas > consumo

Observe que o desejo é tangível: o dinheiro que eu posso ter na maleta. O gozo,
ao contrário. É este cansaço, esta correria que nunca alcança algum objetivo.
É o prazer de correr atrás e, ao mesmo tempo, a dor de jamais conseguir.

Como seu Jaime, que toda semana vai fazer sua fezinha no jogo. Mas na maioria
das vezes, ele nem confere os números sorteados. Mesmo que um dia ganhe,
ele continuará jogando, pois este é seu gozo.

Como nos ensina Chico Buarque, num trecho da canção O que Será:

O que será que será


Que vive nas ideias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia-a-dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido

SUMÁRIO 29
O PROCESSO DE SEXUAÇÃO

O que nos torna homens ou mulheres? O que é um ser sexuado? Não é nem
necessariamente um heterossexual, nem necessariamente um homossexual, é
um ser capturado no desejo do outro.

Em sendo o desejo do outro, o humano é um sujeito que não confia em seu


desejo e, no entanto, aspira segui-lo, um sujeito perturbado pelo campo do
desejo, uma vez que este põe em jogo o inconsciente. Um sujeito sempre em
busca de seu desejo. Um sujeito que Lacan chama de “dividido”, para dar conta
dos efeitos da fala sobre aquele que acredita saber o que diz.

As categorias de homem e de mulher, em psicanálise, não são tanto normas,


mas, antes, o resultado de um percurso subjetivo do ser falante a partir de seu
próprio interesse em seu desejo. Os gêneros homem/mulher não são, portanto,
categorias determinadas do ser, pois o próprio ser não é um ser imutável. Em
psicanálise, o ser é mais da ordem de um devir. Isto significa que não temos
nenhum tipo de “natureza humana”. Somos seres da escolha, sempre em
construção até o último dia de vida.

A sexualidade sempre foi uma causa extrema. M. Foucault registra estes


extremismos quando escreve sobre a história da sexualidade em tempos
vitorianos, época em que nunca se falou tanto sobre o sexo. Rituais, regras,
definições, ordens e censuras são processos da nossa sexualidade. Quanto
mais a civilização busca domesticar a vida sexual, mais ela engendra sofrimento
e, portanto, neuroses. O gênero de um sujeito não surge de modo algum “do
nada”, ele se delineia a partir de uma história que pode repercutir as normas da
época. A sexualidade não é um dado biológico, então. É construída
historicamente e, portanto, está sujeita às regras de cada tempo e lugar. Voltar-
se para as origens do gênero, seja quanto a um homem ou uma mulher que
marcaram o ser em sua relação com a sexualidade é perceber que as normas
são uma espécie de véu que recobre o que, muito frequentemente, não é dizível.
As leis do gênero não existem. “Mulher” e “homem”, devido à sua inquietante
estranheza, são significantes que solicitam o sujeito em sua relação com o

SUMÁRIO 30
desejo. Isto permite que o outro nos veja como seu desejo lhe impuser e que
possamos nos ver também como nosso desejo nos conduz. As categorias
mulher e homem são tão somente tentativas de reduzir nossa sexualidade a dois
corpos biologicamente diferentes.

Para a Psicanálise, a libido é assexuada. Freud considera que “existe apenas


uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas.
À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo. Desde o início, há
disjunção entre o sexo e o gênero, já que somente o sexo masculino parece ser
reconhecido como tal. A menina é um homenzinho, no sentido em que ela faz
com seu clítoris a mesma coisa que o menino faz com seu pênis. De fato, para
Freud, na fase fálica das meninas, o clitóris é a principal zona erógena. Mas,
naturalmente, não vai permanecer assim. Com a mudança para a feminilidade,
o clítoris deve, total ou parcialmente, transferir sua sensibilidade, e ao mesmo
tempo sua importância, para a vagina. O que importa aqui é percebermos que
no mundo civilizado ocidental, a lógica da sexualidade é masculina. É a partir
do pênis que classificamos os humanos: quem tem e quem não tem. A ideia da
falta é o que configura o que chamamos mulher. Nos “chás de revelação”,
alguém de fora vai acompanhar o exame de ultrassonografia com a futura mãe,
e o médico vai revelar a este outro de fora qual é o sexo do bebê, com a seguinte
base: apareceu um pênis na imagem, é menino; faltou o pênis na imagem, é
menina. Durante o chá de revelação, o sexo do bebê em gestação é revelado à
família e aos amigos, de modo que o grupo é responsável doravante pela
construção da sexualidade daquele ser ainda em formação.

Para Freud, o ser humano é um organismo animal com uma disposição bissexual
inequívoca. O sexo constitui um fator biológico que, embora de extraordinária
importância na vida mental, é difícil de apreender psicologicamente. Seja como
for, se considerarmos verdadeiro o fato de que todo indivíduo busca satisfazer
tanto desejos masculinos quanto femininos em sua vida sexual, ficamos
preparados para a possibilidade de que estas exigências não sejam satisfeitas
pelo mesmo objeto e que interfiram um com o outro. Mas quem daria direção a
nossa sexualidade? O grupo social em que estamos inseridos! Ninguém traz
em si uma sexualidade já formada. A sexualidade não deve ser confundida com
os órgãos sexuais. Ter um pênis não configura alguém a ser um homem, assim

SUMÁRIO 31
como ter uma vagina não faz de alguém uma mulher. A sexualidade é um
conjunto de aprendizados que vão se impondo aos indivíduos.

Quando pensamos a sexualidade sob o ponto de vista binário da biologia, o que


escapa é a função do desejo nos seres falantes. O processo civilizador vai
reiterar que o que está presente, na verdade, é uma primazia do falo, função que
não deve ser confundida com o pênis, enaltecendo apenas o órgão. Na formação
das sexualidades, o masculino entra em cena pois, para ambos os sexos,
apenas um órgão é considerado, simbolizado, ou seja, trata-se do órgão
masculino, pois é o único que desempenharia um papel. Nesse sentido, o que
está em jogo é a presença ou a ausência do pênis, que fica investido como valor,
ou seja, fica investido de valor fálico na constituição do masculino e do feminino.
As estruturas da construção da nossa sexualidade têm como base o elemento
fálico da época. Para os anatomistas do século XVII, o espermatozoide trazia
em si a presença de um ser vivo e o útero servia apenas de abrigo quente para
seu desenvolvimento como feto. A lógica é a mesma de uma massa fermentada
(o espermatozoide) e o forno que o assa (o útero).

(o útero, Versalius, 1543)

(homúnculo, 1661). Fonte: Museu Britânico

O que é sustentado como elemento organizador da sexualidade não é o órgão


genital masculino, mas a representação psíquica imaginária e simbólica
construída a partir desta região corporal do homem. Desde Leonardo da Vinci e

SUMÁRIO 32
os renascentistas, o homem era considerado “a medida de todas as coisas”. O
corpo da mulher era desenhado a partir desta ausência. O domínio da
sexualidade era, pois, o masculino: deus e sua criação, o homem.

Para Freud, este modelo de sexualidade tinha por base a crença numa suposta
castração sofrida por quem não tinha o pênis. Ele denomina de complexo de
castração a percepção da diferença sexual, desencadeando uma “angústia de
castração”. Nos meninos, pelo medo de serem privados do órgão, nas meninas
pela perda já efetivada.

Assim Freud estabelece as origens da sexualidade como registro de uma


satisfação perdida que buscamos reencontrar. Trata - se de uma experiência que
inaugura a produção das fantasias de desejo. O desejo é, pois, relativo à
representação de uma perda, isto é, relativo ao desejo do outro. A inscrição
psíquica provoca esse efeito de como se o objeto de satisfação tivesse estado
um dia lá, mas quando vamos procurá-lo já estamos um passo atrás. Daí a
famosa frase de Freud, escrita nos “Três ensaios”: “O encontro do objeto não é
mais do que um retorno ao passado.”

Após a constatação de que há uma diferença anatômica são elaboradas teorias


que visam suplantar a ausência do pênis no corpo feminino: “é pequenino ainda,
mas vai crescer”, “ela o tinha, mas perdeu”, “o pênis foi cortado como castigo” ...

Ter o falo implica, então, identificar-se com o significante pai, já que este é o
portador das insígnias fálicas. Já as meninas entram no Édipo ao perceberem
que com a mãe como objeto não obterão suporte para se valer do falo. Buscam
isso no representante-pai, mas sem poder identificar-se com ele, optam por
substituir o desejo de ter um falo pelo desejo de ter um bebê.

A criança, inicialmente, é o falo da mãe, ela é completamente alienada ao seu


desejo e confundida com seu corpo. Não há distinção dos dois corpos. A grávida
enxerga o bebê como algo só seu, como um órgão, um organismo dentro de seu
organismo. Depois que a nasce, o bebê vai aos poucos se identificando consigo
mesmo.

Entre 3 a 5 anos, a criança entra num processo de identificação consigo e com


os outros. Ao perceber que não faz parte do corpo da mãe, a criança é capaz de
se perceber como um outro, numa fase na qual se desenvolve o narcisismo, ou

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seja, a busca pela sua autoimagem. Lacan denominou esta fase de 1º tempo do
Édipo. No segundo tempo do Édipo, o falo se desloca, a função paterna opera
de modo a destituir a criança do lugar que ocupa. É uma operação simbólica que
indica ao objeto de desejo um lugar além. Ela é vivida como uma queda narcísica
que incide tanto sobre a criança quanto sobre a sua referência materna. O falo
não pertence nem a um nem a outro, não importando o sexo do filho em questão.
Ele está no pai (no nome-do-pai), aquele que é assim nomeado, e desejado, pela
mãe. Para a criança esse outro que a mãe deseja é vivido como, ao mesmo
tempo, idealizado e ameaçador. A figura paterna destitui a mãe deste lugar de
falo da criança. Desse modo, opera - se, ao mesmo tempo, interdição do incesto
e castração: a figura-mãe não é mais possível como exclusivamente minha e eu
me percebo como castrado.

No terceiro e último tempo do Édipo, o falo passa de uma imagem que tinha até
então, ao falo simbólico, ou seja, a uma representação de falo. Não é mais nem
a figura materna e nem a figura paterna, mas tão somente o representante deste
lugar da falta, aonde se aloja o desejo.

A figura materna deixa de ser o falo. Busca-se na figura paterna este mesmo
falo, porque no discurso da figura materna e na cultura do grupo social este
paterno é o representante da lei. Daí Freud dizer que o Supereu é o herdeiro do
Complexo de Édipo, pois o Supereu representa toda forma de sanção social
presente na vida do indivíduo.

Lacan introduz o significante Nome-do-Pai como o operador da trajetória


edipiana, tratando a função paterna como simbólica realizada por meio de
metáforas. A figura paterna é, portanto, o que impõe, o que comanda, o que
proíbe, o que cancela, o que ordena.

Não se trata, necessariamente, da presença paterna, mas de um significante que


substituirá outro significante - o Nome-do-Pai substituirá o Desejo da Mãe, desejo
sem lei, caprichoso, e essa operação possibilitará a significação fálica para o
sujeito.

Desta forma, a criança é, portanto, desalojada do lugar de ser o falo para a mãe,
e é ao ser desalojada dessa posição que o terceiro momento se estabelece, cuja
problemática será ter ou não ter o falo, possibilitando à criança o acesso à

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significação fálica que a situa na partilha dos sexos. Isso porque, no terceiro
tempo, a figura paterna intervém como aquele que realmente tem. Nesta
intervenção, a criança enxerga nesta figura paterna o ideal do Eu, uma figura tão
mítica quanto um super-herói.

A figura paterna, como detentor do falo, leva a criança a confrontar-se com a


questão da castração, que será atravessada à medida que a identificação com
a figura paterna é feita, e assim o complexo de Édipo declina.

Percebe-se que não é a questão anatômica que vai falar da posição sexual de
um sujeito, mas, sim, a forma como ele irá lidar com a castração, com o falo,
uma vez que fora inserido na linguagem. Portanto, trata-se de posições
subjetivas que cada ser falante poderá ocupar em face da sexualidade.

O que se conclui deste movimento é que homem e mulher são apenas


semblantes. Como semblantes são construções ou modos de parecer. Baseiam-
se na repetição ou uso de traços, ao modo performativo da linguagem. A máxima
de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher” implica neste
modelo de construção. O “tornar-se” homem ou mulher tem por base o
aprendizado por imitação, ou seja, a repetição de performances que definem a
sexualidade.

Pode-se perguntar: onde fica a atração sexual como nos é ensinada segundo a
lógica heteronormativa “somos atraídos pelo sexo oposto”? Este é apenas um
dos modelos de atração sexual, vamos dizer o mais usual, por enquanto. Há
outros e muitos. Vale pensar aqui em modelos de atração sexual que não
correspondem exatamente ao corpo do outro, mas a um desejo por um objeto
qualquer, por uma parte do corpo, por uma série de imagens tantas.

Pode-se ver esses estereótipos como produzidos pela ordem social, com o
objetivo de assujeitar os seres. Pode-se vê-los também como produzidos pela
angústia dos próprios sujeitos diante daquilo que eles não sabem como explicar.
Como ser um homem, como ser uma mulher, isso não se aprende nem em sua
família, nem na escola, nem no mundo do trabalho e nem nas igrejas. Para falar
a verdade, isso não se aprende. Então, para facilitar nossa vida, a Ciência
propõe uma simplificação sob um ponto de vista anatômico, sob um ponto de
vista genético, sob um ponto de vida neuronal. As teorias de gênero vieram,

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assim, na tentativa de desmontar este sistema binário heteronormativo, mas
caíram no mesmo erro de dividir os gêneros em dois. Também a sopinha de
letras LGBTQIA+ não dá conta de seres falantes e sexualizados conforme
condições muito particulares, uma a um. A Psicanálise, como um saber a partir
do indivíduo e seu inconsciente, lida com o biológico como ilusão e a sexualidade
como escolha do outro. Não somos nem mulher e nem homem, mas sim aquilo
que o outro deseja que eu seja. Não importa o corpo e suas formas, mas o que
se faz dele.

O homem, uma mulher não são nada mais que significantes, e assim são
tomados pela função fálica para constituir os semblantes. São apenas modelos,
portanto. Termos como heterossexual, homossexual são meros apelos para
classificar o desejo. Mas o desejo não se encarcera nas palavras. O desejo é
fluido e particular.

O enquadramento das sexualidades em corpos definidos apenas coage a vida


sexual dos sujeitos, normatizando-a e colocando-a a serviço de políticas de
controle e consumo. Os sujeitos entram na neurose cotidiana a tal ponto de ter
sua libido aprisionada em seus sintomas. A Psicanálise entra neste processo
propondo uma outra via ao sujeito que não a repressão da vida sexual.

Homem e mulher designam dois modos de ser que não se aparentam tanto com
as normas de gênero quanto às maneiras de responder ao desejo do Outro.
Neste esteio, Judith Butler se apoia para conceber o gênero como um uso teatral,
uma performance. Esta performance dos sujeitos diz respeito às formas como
os tais se relacionam com as normas vigentes.

O gênero é um modo de ser e não uma norma do como ser. Além do mais,
significantes como pai, mãe vão sofrendo erosões e se transformando em outros
significantes. Há casais de um só gênero, há casais com três sujeitos, há
adoções ou produções independentes, enfim, uma infinidade de possibilidades
de ser e ter uma família.

Quanto à Psicanálise, ela não está interessada em formatar sujeitos dentro de


caixinhas de gênero. O seu real papel é deixar os sujeitos confortáveis diante
de suas escolhas e orientações. A sexualidade é uma vivência com o outro, a
partir do outro. Há muitas formas de sermos.

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Como diz Caetano Veloso, na canção Nu com a minha música:

Deixo fluir tranquilo


Naquilo tudo que não tem fim
Eu que existindo tudo comigo, depende só de mim
Vaca, manacá, nuvem, saudade
Cana, café, capim
Coragem grande é poder dizer sim

Para escrever este texto, tive as seguintes inspirações:

Bruce Fink. O Sujeito Lacaniano. Autor muito didáticos e livros recheados de


exemplos.

Caetano Veloso, com as músicas O Quereres e Nu com a Minha Música.

Chico Buarque, com a música O que Será.

Christian DUNKER. O cálculo neurótico do gozo. Ele é um dos maiores


divulgadores da obra de Lacan, contando inclusive com um canal no YouTube.

Elizabeth Roudinesco. Jacques. Lacan: esboço de uma vida e história de um


pensamento. Uma biografia com muito suporte teórico.

Hervé Castanet. Para compreender Lacan. Um livrinho introdutório, mas a


leitura é quase tão complicada quanto a de Lacan.

Jacques Alain Miller. Introdução a leitura do Seminário “A angústia” de Jacques


Lacan, na Revista Opção Lacaniana. Sistematizou grande parte da obra de J.
Lacan, também reinventando-a.

Jacques Lacan, O aturdito, no livro Outros Escritos; Seminário 20, Mais ainda,
O estádio do espelho como formador da função do [eu] tal como nos é revelada
na experiência psicanalítica nos Escritos, além de Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise (Seminário 11).

Judith Butler, Problemas de gênero, Undoing gender. Ela faz parte de um


debate sobre o ultimíssimo Lacan, no que diz respeito ao pós-estruturalismo.
Uma crítica mordaz da Psicanálise.

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Michel Foucault. História da sexualidade, a vontade de saber, As Palavras e
as Coisas e O Poder Psiquiátrico. Autor pós-estruturalista que lida com o
debate sobre o sujeito como posição.

Sigmund Freud, no texto A feminilidade, que está nas Novas conferências


introdutórias à psicanálise e outros trabalhos, XXXIII Conferência, Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade. Há outros tantos textos, mas a base é esta.

Thomas Laqueur, Inventando o sexo. Um passeio histórico maravilhoso sobre


o sexo na Modernidade

Vladimir Safatle. Introdução a Jacques Lacan. Uma aula de filosofia, para


entender as bases do pensamento de Lacan.

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