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Dilthey e a compreensão do homem por meio da Poesia

Vinícius Gomes de Paula Rocha

UFDPar – Psicologia

Introdução

Ao debruçar-se sobre a história da humanidade é possível observar que em


diversos momentos houve certa busca, em menor ou maior medida, de se entender
e de se explicar o homem (ser humano) e seu comportamento. A partir do período
conhecido como Modernidade, que teve o seu início por volta do final do século XV,
passou-se cada vez mais a investigar o ser humano e as suas experiências. Isso se
deu, em grande parte, pelas mudanças culturais provenientes da Reforma
Protestante e pelas mudanças de paradigmas do conhecimento originadas a partir
da Revolução Científica. Com o surgimento desses dois movimentos, que
representavam os anseios da Europa pós-medieval, houve espaço para que mais
pessoas pudessem refletir sobre si mesmo e sobre a humanidade em geral. O
conceito de indivíduo e as questões individuais passam a ganhar força e há uma
maior liberdade para a busca de conhecimento, que não é mais restrito ao domínio
da Igreja Católica. Assim, foram impulsionados os estudos acerca da natureza e
acerca do homem.

Alguns séculos depois, com as ciências da natureza mais consolidadas e as


ciências humanas em constantes tensões, surge um autor importantíssimo para a
continuação dos estudos voltados para a concepção de homem, Wilhelm Dilthey
(1833-1911). O historiador protestante teceu severas críticas às ciências humanas
de sua época, que ou apoiavam-se demasiadamente na metafísica, da qual ele era
opositor, ou no positivismo das ciências naturais. Como forma de superar esse
problema, Dilthey propõe a existência e o estudo das “ciências do espírito”, uma
nova concepção das ciências humanas que não trataria o ser humano tal qual um
objeto das ciências naturais. Pelo contrário, nessa concepção, se investigaria o
homem com base na hermenêutica das suas vivências, da sua interioridade,
buscando compreendê-lo de forma descritiva e analítica. Uma boa forma de se
acessar essas vivências se dá através da Poesia, já que esta funciona como um
importante meio de representação das emoções e da realidade psíquica do ser
humano, de modo abstrato, porém factível. Segundo Araújo (2007, p.253), para
Dilthey “[...] quando nos debruçamos sobre a produção poética, estamos adentrando
neste universo psíquico e trazendo à baila um quadro profundo e verdadeiro sobre o
modo particular de viver e poetizar dos poetas”.

Ao compreender o quão enriquecedora essa abordagem “Diltheyana” da


compreensão do homem por meio da Poesia pode ser, optou-se por escolhê-la
como tema deste ensaio. A partir da escolha desse tema, o objetivo do mesmo
ensaio será realizar investigações acerca de como poemas podem contribuir para
essa compreensão do homem, tendo as ideias de Dilthey como base. Para isso,
será feita uma breve apresentação do complexo pensamento do autor acerca do
assunto, com a contribuição de outros autores, e, então, se buscará em exemplos
práticos como os poemas podem auxiliar no entendimento sobre o homem. O
principal material usado para apresentar as ideias de Dilthey será o texto de Sônia
Araújo (2007) intitulado “Dilthey e a Hermenêutica da Vida”. Serão usados também
trechos de dois poemas para análise, “Tabacaria”, de Fernando Pessoa e “Soneto
do amigo”, de Vinícius de Moraes. Além do mais, outros materiais de apoio, como
artigos, serão utilizados e poderão ser citados em diversos momentos do ensaio.

Dilthey: o Homem e a Poesia

Wilhelm Dilthey foi um importante pensador alemão da sua época, a segunda


metade do século XIX e o início do século XX, responsável por realizar contribuições
para diversas áreas do conhecimento humano como a História, a Filosofia e a
Psicologia. Dentre as suas contribuições para essas áreas, merece destaque a sua
forma de entender o ser humano: não como um objeto passível de ser
esquadrinhado pelo método das ciências naturais ou de se limitar às abstrações da
metafísica de sua época. A sua concepção de homem esteve mais ligada à relação
entre este e o mundo, assim, seria possível descobrir mais sobre o que é o homem
ao se buscar descrever e analisar as vivências dele com enfoque na sua
interioridade, no seu “espírito”. Sobre a importância das vivências para esse
processo de compreensão do homem na perspectiva de Dilthey, Araújo (2007, p.
250) afirma:

A vivência é, para Dilthey, uma realidade direta, no sentido de que


potencialmente lança bases à relação do homem com o mundo. Ela é a
experiência no seu estado puro; a conexão entre o espírito e o tempo,
portanto, realidade histórica; mundo exterior; saber estruturado pela
compreensão da vida. Espírito e mundo encontram-se articulados na
vivência expressada, portanto ela se põe como material privilegiado de
descrição psicológica e de hermenêutica das manifestações da vida —
fundamentos das ciências do espírito.

Percebe-se, então, a importância de se observar as vivências do sujeito para


compreendê-lo. Ainda sobre a concepção “Diltheyana” acerca do homem, Araújo
afirma (2007, p.252): “O homem, identifica Dilthey, é um sujeito de atitude
contemplativa, volitiva e afetiva. São estas atitudes o material pelo qual é possível
conhecê-lo e que devem ser descritas e analisadas pela Psicologia”. Essas atitudes
compõem a interioridade e a unidade psíquica do ser humano. Mas como a
Psicologia poderia, então, acessar o material oferecido por elas? Dilthey aponta
alguns meios como as elaborações filosóficas, religiosas e artísticas do próprio
homem (ARAÚJO, 2007). Dentre esses meios, as elaborações artísticas, que podem
ser representadas pela Poesia, por exemplo, constituem notáveis formas de se
acessar tais atitudes, além de possibilitarem uma análise e descrição das vivências
humanas.

A Poesia pode ser entendida, no presente ensaio, como um conjunto de


produções humanas expressas através da linguagem, que são resultantes das
vivências, da imaginação e dos sentimentos do homem. Tais produções constituem
importantes ferramentas para os psicólogos e para os mais diversos estudiosos das
humanidades por tratarem do que aconteceu, como ocorre nos poemas escritos
durante os momentos de paixão de um poeta, ou do que pode acontecer, como se
observa nos poemas que tratam de um futuro distópico. Para corroborar essa ideia
apoia-se na visão Aristotélica explicitada por Machado (2000, p.6) ao afirmar que: “a
Poesia opera sobre ações que pertencem ao domínio do Possível, que corresponde
ao ‘que foi’ e ao ‘que poderia ter sido’”.

Assim, a Poesia trata diretamente de experiências que aconteceram ou que


ao menos são possíveis de acontecer com a humanidade. Vale lembrar que ao
representar essas experiências, os poemas costumam apontar para o âmago ou
interior da vida psíquica do homem. Logo, pode-se inferir que tanto quem consome
quanto quem produz é beneficiado por essas obras artísticas, visto que no seu
processo de composição e de apreciação há contato direto com os sentimentos e
anseios próprios da existência humana. Estabelecida essa base teórica relacionada
à importância da Poesia para a compreensão do homem, na concepção de Dilthey,
serão apresentadas, adiante, breves análises e descrições de poemas na tentativa
de se aplicar o método “Diltheyano”.

Poesia: Tabacaria e Soneto do amigo

O primeiro poema escolhido, “Tabacaria”, é de autoria de um dos nomes mais


renomados da Poesia da língua portuguesa, Fernando Pessoa (1888-1935). Este
famoso poeta português ficou bastante conhecido pelo uso que fazia de
heterônimos, ou seja, diferentes nomes que usava na hora de escrever, cada um
com uma personalidade distinta. Pessoa escreveu sobre a vida, a natureza, o amor,
as inquietações próprias da humanidade, dentre outros temas. Uma de suas obras
mais conhecidas, “Tabacaria”, foi escrita por ele sob o heterônimo Álvaro de
Campos. Será analisado o trecho a seguir:

Fiz de mim o que não soube, E o que podia fazer de mim não o fiz. O
dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não
desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já
não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e
dormi no vestiário. Como um cão tolerado pela gerência. Por ser inofensivo.
E vou escrever esta história para provar que sou sublime. (ARQUIVO
PESSOA, 2021, on-line).
A partir desse trecho, é possível inferir que o “eu lírico” do poema está
descontente com quem foi ao longo da vida pelo fato de não ter sido ele mesmo,
mas quem os outros queriam que ele fosse. É possível imaginá-lo tendo essa
reflexão e olhando para a vida que teve, desde o momento em que as outras
pessoas o viram como alguém diferente do que ele era e ele aceitou usar essa
“máscara”, tornando-se assim um personagem de si mesmo. Apesar disso, com
base em algumas partes desse trecho, também é cabível afirmar que em algum
momento da vida ele tentou se tornar ele mesmo, fazer o que queria, porém já era
tarde e ele estava velho. Já não conseguia nem mesmo vestir o “dominó” que lhe
deram, assim, não “vestia nada”, abrindo margem para que se hipotetize que ele se
considerava, nesse momento da sua vida, sem personalidade. Considerava-se
alguém inofensivo, que não era nada como ele disse em outro trecho, no início, do
poema “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada”. (ARQUIVO
PESSOA, 2021, on-line).

Então, aparentemente, como forma de se agarrar a algo e ao menos parecer


ter sido e ser alguém, ele conclui dizendo que vai relatar a sua história para assim
provar que é sublime, que foi alguém (mesmo sem se expressar) e não o que
fizeram dele. A partir dessas hipóteses analíticas e descritivas pode-se imaginar
alguém passando por essa situação de angústia e crise de identidade, quem sabe
até o próprio poeta que escreveu esse poema. Quantas pessoas na geração dele,
na geração atual ou até nas gerações futuras já vivenciaram, vivenciam ou
vivenciarão essa experiência? Provavelmente muitas, que inclusive podem ter
assimilado as suas próprias vivências a esse poema ou pelo menos entender mais
das vivências dos outros ao lê-lo. Portanto, nota-se, a partir desse caso, as
contribuições para o entendimento da realidade psíquica oferecidos pela Poesia,
como apontou Dilthey.

O próximo poema a ser analisado, “Soneto do amigo” foi escrito por um dos
maiores poetas brasileiros, Vinícius de Moraes (1913-1980). Escritor, letrista e até
diplomata, Vinícius possui uma vasta produção poética e musical com lugar de
destaque na cultura brasileira. Geralmente seus poemas voltaram-se para a
temática do amor, no entanto, ele escreveu sobre diversas outras questões,
abordando também temas políticos e sociais, por exemplo. Uma de suas obras mais
diferentes trata-se do poema “Soneto do amigo”, que fala sobre outro tipo de amor, o
da amizade. Pode-se evidenciar isso melhor no trecho a seguir:

Enfim, depois de tanto erro passado. Tantas retaliações, tanto perigo. Eis
que ressurge noutro o velho amigo. Nunca perdido, sempre reencontrado. É
bom sentá-lo novamente ao lado. Com olhos que contêm o olhar antigo.
Sempre comigo um pouco atribulado. E como sempre singular comigo.
(CULTURA GENIAL, 2021, on-line).

Nesses versos é possível deduzir que o “eu lírico” está se reencontrando com
um velho amigo seu. Provavelmente se trata de uma amizade duradoura, em que os
envolvidos já passaram por muita coisa juntos, não somente por situações boas,
mas também por dificuldades, inclusive na própria amizade. No entanto, há esse
reencontro, em que a chama da amizade parece acender-se novamente. Uma nova
amizade surge reencontrada em um velho amigo. A amizade desse reencontro é
nova, pois o velho amigo reencontrado agora já é outra pessoa (“eis que ressurge
noutro”), contudo, paradoxalmente é a mesma de sempre, já que contêm o “olhar
antigo”. Assim, o papel de amigo que o sujeito reencontrado exercia nessa amizade
parece ainda ser o mesmo. Nos versos finais percebe-se que a outra pessoa que ele
possa ter se tornado não interfere em quem ele é com e para o seu amigo, o seu
jeito “singular” de encarar essa amizade permanece.

É interessante levantar essas hipóteses, ao descrever e analisar esse trecho


do poema, porque a amizade é uma relação social e afetiva habitual na vida das
pessoas. Não é difícil se identificar com esse reencontro entre velhos amigos,
possivelmente amigos de infância. Muitas pessoas passaram, passam ou passarão
por essa experiência. Provavelmente foi um relato pessoal do Vinícius, visto que
quando ele escreveu esse poema, em 1946, estava exilado em Los Angeles, longe
de muitos dos seus amigos e talvez próximo de outros que ali viviam. Essa
conjuntura pode tê-lo levado a refletir com todo esse teor poético acerca da
amizade. Portanto, outra vez percebe-se que tanto para o autor quanto para o leitor
mais da realidade psíquica pode ser expresso e compreendido por meio da Poesia.
Considerações finais

Ao longo desse ensaio foi possível perceber como a concepção de homem


formulada por Wilhelm Dilthey acrescentou às investigações iniciadas na
Modernidade acerca do que é o homem e seu comportamento. Concepção essa que
defendia que se conheceria mais do homem ao se buscar descrever e analisar as
vivências dele com enfoque na sua interioridade, no seu “espírito”. Isso é bem
representado na sua oposição tanto à Metafísica quanto ao Positivismo, que trouxe
outra possibilidade de compreender o ser humano, através do que ele chamou de
“ciências do espírito”. Uma importante ferramenta para se estudar estas ciências
formuladas por Dilthey e se acessar vários elementos da unidade psíquica humana,
seria a Arte, representada nesse texto pela Poesia. Ao notar a inovação dessa
abordagem “Diltheyana” foi proposto que aqui se investigasse como os poemas
podem contribuir para a compreensão do homem. Ao se analisar os poemas
“Tabacaria”, de Fernando Pessoa e “Soneto do amigo”, de Vinícius de Moraes foi
possível perceber que a Poesia auxilia bastante na compreensão do homem por
tratar das possibilidades do que é ser humano, das suas vivências e dos seus
comportamentos. Observou-se que tanto autor quanto leitor podem se compreender
melhor e compreender melhor a humanidade por meio desses textos. Para concluir,
pode-se dizer que uma boa forma de lidar com os poemas e que pode ser
aproveitado pelos Psicólogos e pelos profissionais das humanidades, em geral, é o
método de análise e descrição “Diltheyano”. O ser humano é enigmático, ainda há
muito o que se investigar sobre ele, muitos outros métodos e elementos podem e
devem ser usados para compreendê-lo, contudo os apontamentos de Dilthey trilham
um caminho interessante para isso e também precisam ser mais estudados e
considerados.

Referências

DA SILVA ARAÚJO, Sônia Maria. Dilthey e a hermenêutica da vida. Cadernos de


Educação, n. 28, 2007.
MACHADO, Ronaldo Silva. História e poesia na poética de Aristóteles. Mneme-
Revista de Humanidades, v. 2, n. 03, 2001.

14 melhores poemas de Vinicius de Moraes analisados e comentados. [S. l.], s.d.


Disponível em: https://www.culturagenial.com/vinicius-de-moraes-melhores-poemas/.
Acesso em: 20 nov. 2021.

OBRA Édita - TABACARIA - Arquivo Pessoa. [S. l.], s.d. Disponível em:
http://arquivopessoa.net/textos/163. Acesso em: 20 nov. 2021.

OS 14 melhores poemas de Fernando Pessoa. [S. l.], s.d. Disponível em:


https://www.pensador.com/os_melhores_poemas_de_fernando_pessoa/. Acesso
em: 20 nov. 2021.

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