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Seminário ENTRE_ 14.04. 2023_ Claudia

Começo por lembrar que inauguramos há pouco um novo


modo de abordar o texto O aturdito de Jacques Lacan, privilegiando,
como se lê no e-mail enviado aos participantes deste Seminário,
“temas e questionamentos que fundamentam os principais avanços
teóricos e clínicos que dele derivam”.
Não é por acaso que esse novo modo de “leitura” é proposto no
momento em que se coloca em questão o que separa sentido de
significação no texto lacaniano, isto é, um questionamento sobre a
relação do homem com a linguagem, relação esta que a psicanálise,
desde Freud, desde sempre, desnaturalizou e interrogou.
Fierens, aliás, ao tratar deste momento crucial de O Aturdito,
resume esse questionamento com uma clareza impar_ “O discurso
psicanalítico coloca a significação entre parênteses e coloca o sentido
em movimento”(2002, o. 237)_ iluminando, assim, o papel do
discurso analítico na ronda dos discursos. A saber, o de suspender a
significação para produzir deslocamentos, isto é, sentido.
Chamo a atenção para o fato de Lacan ter feito valer esse
“procedimento” em sua fala e em sua escrita, como ele próprio dá a
entender em dois parágrafos do seminário 18 _ De um discurso que
não seria do semblante_os quais mencionei aqui em outro
momento. Cito:
“Foi na época em que meus Escritos ainda não
tinham sido lançados que elas (les gens du monde, as
pessoas da elite – tradução minha) me deram seu ponto de
vista de técnicos: Não entendemos nada.
Observem que isso é muita coisa. Algo de que não se
compreende nada é a esperança absoluta, é o sinal de que
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se foi afetado por aquilo. Felizmente não se compreendeu


nada porque só se pode compreender o que já se tem na
cabeça. Mas, enfim, acho que eu gostaria de articular
essa ideia um pouco melhor. Não basta escrever algo
que seja in-compreensível de propósito, mas ver porque o
ilegível tem sentido (19711/2007. p. 99).

Se o ilegível tem sentido, é possível concluir que a


compreensão se reduz à significação? Ao que já se tem na cabeça? Ao
que não passa para outra coisa? Sim, mas há algo além que se pode
ler nesse excerto de Lacan.
Apontando para o “ininteligível” de um livro_ seus Escritos_
dos artigos que ele contém, do discurso de que esses artigos são
tributários, fica negada a hipótese que, à primeira vista. vem à tona
de que a significação concerne à palavra, à maior fixidez de sua
forma e significado, enquanto o sentido concerne a unidades como a
frase que significa a partir da gramática que põe suas palavras em
relação.
Nada mais apropriado para introduzir a antinomia
significação/sentido que um fenômeno linguístico comum a todas as
línguas: os provérbios. Tomemos, por exemplo, a frase: “Quem não
tem cão, caça com gato.” Seu sentido nada tem a ver com sua
significação. Aliás, sua significação é absurda_ ninguém caça com
gato_ mas ela circula pelo sentido que veio a ter e que se fixou. Ao se
fixar, porém, passou a ter de novo apenas uma significação, uma
significação possível de ganhar sentido, de passar para outra coisa.
Lacan foi muito além do modo como funcionam os provérbios
ao desvelar/revelar um outro sentido para uma expressão/frase
através de uma estratégia radical, isto é, interferindo na
segmentação/corte da cadeia articulada pelas palavras que
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compõem os títulos que deu ao Seminário 21 e 24, por exemplo,


desarticulando-as para lhes dar um sentido outro. No primeiro caso,
é uma expressão e, mais que isso, um conceito cunhados por ele
mesmo_Les Noms du Père_ Os Nomes do Pai_que ele segmenta
para escrever Les non-dupes errent_Os não-patos erram/os não-
tolos erram_interferência formal cujo efeito de sentido desfaz e
interroga a significação antes dada.
Essa operação poderia ser chamada de operação da letra, mas
não me deterei nela agora. O que me parece fundamental aqui agora
é o fato de que, desde 1957, no Seminário 5, ao tratar das formações
do inconsciente, ele já a tinha nomeado e nomeado com uma
expressão que, ao mesmo tempo, a designa, a demonstra: pas-de-
sens.
Basta traduzi-la para apreender a homofonia que a bifurca:
passo-de-sentido e não-sentido. O vocábulo pas que originalmente
significava passo _ do latim, passus_ veio a integrar uma forma
enfática da expressão de negação em francês e a perder sua
significação de origem, passando a ter simplesmente o valor de não.
(ver a elaboração feita por Lacan em torno desse vocábulo em sua
resposta à sétima pergunta de Radiofonia (Outros Escritos, p. 444).
A meu ver, o duplo sentido da expressão pas-de sens vale como
uma verdadeira definição da passagem da significação para o
sentido: o não-sentido/sem sentido (perda da significação?) é um
passo-de-sentido, um movimento de passagem para outra coisa.
Mais ainda: há sentido no não-sentido.
Retomando a frase de Fierens em seu primeiro livro sobre o
Aturdito: “O discurso psicanalítico coloca a significação entre
parênteses e coloca o sentido em movimento.” Ouso afirmar que o
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discurso psicanalítico incide sobre o que na história de cada língua


_ou melhor, dos falantes, dos que foram por elas falados_em que, ao
contrário, passou-se do sentido à significação, do movimento à
fixação.
Valho-me, para isso, da história da formação do artigo definido
nas línguas românicas e. em particular no português, que ocorreu
entre os séculos IV e VI da era cristã. Resumindo uma história de
dois séculos, os pronomes demonstrativos do Latim Vulgar _illu(m),
illa(m)_ dão origem no português tanto aos pronomes pessoais ele e
ela quanto às formas o e a (plural: os e as).
À mudança de sua forma sonora, porém, corresponde uma
mudança decisiva, a saber, à passagem de uma função puramente
demonstrativa, como a do gesto de apontar ( atualmente, este, esse,
aquele) para uma função de categorização. Em outras palavras, aos
chamados universais. Lacan dá reconhecimento disso colocando a
barra no artigo definido que encabeça a expressão A mulher, para
fazer valer a expressão uma mulher e poder escrever A Mulher não
existe. A história do artigo definido mostra nas línguas românicas a
passagem do gesto singular para o universal da categoria. A barra de
Lacan suspendeu a significação para devolver sentido a “mulher”,
escrevendo com a barra a suspensão do efeito do artigo definido
sobre a palavra que a designa.
Como Lacan mostra em A Terceira, não apenas o artigo
definido mas até mesmo o verbo ser, nas formas que assume em
línguas várias, que veio a ser um esteio do universal que sustenta o
silogismo de Aristóteles_ “O homem é mortal”_, mostra em sua
conjugação nas línguas românicas e na sua história, como ele se
entrelaça com o verbo estar que, como o artigo definido, designa o
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espaço dêitico, o espaço da enunciação. Assim se repete o caminho


do ato_ aqui/agora_ para o universal da categoria, para o universal
filosófico.
Barbara Cassim, em seu belíssimo livro Jacques le Sophiste-
Lacan, logos et psychanalyse (p. 63, 2012), depois de apontar os
equívocos do verbo ser no poema de Parmênides, afirma algo que
ilumina a leitura que Nina e eu vimos fazendo de O Aturdito:

“É de propósito que evoco aqui O Aturdito porque esta escuta


sofística da história da filosofia nas línguas é
necessariamente uma escuta das filosofias em línguas, tais
como elas são ditas, isto é, tais como elas mergulham na
lalíngua de cada língua.”

A partir do exposto acima, seria possível ler o enunciado “Que


se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se
ouve/entende”, associando os ditos_quaisquer ditos_à significação e
o dizer ao sentido? É uma pergunta, talvez um caminho a ser
percorrido, caminho que começa seguindo Lacan no longo caminho
que ele próprio fez depois de O Aturdito, debruçando-se sobre a
poética, recorrendo à topologia, interrogando a escrita de James
Joyce e dela se apropriando, fazendo valer lalingua sobre a língua.
Outra pergunta que, na verdade, é um desafio: se “o ilegível
tem sentido”, como diz Lacan, como tornar ilegível a fala do
analisante e escutar seu sentido?
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