Começo por lembrar que inauguramos há pouco um novo
modo de abordar o texto O aturdito de Jacques Lacan, privilegiando, como se lê no e-mail enviado aos participantes deste Seminário, “temas e questionamentos que fundamentam os principais avanços teóricos e clínicos que dele derivam”. Não é por acaso que esse novo modo de “leitura” é proposto no momento em que se coloca em questão o que separa sentido de significação no texto lacaniano, isto é, um questionamento sobre a relação do homem com a linguagem, relação esta que a psicanálise, desde Freud, desde sempre, desnaturalizou e interrogou. Fierens, aliás, ao tratar deste momento crucial de O Aturdito, resume esse questionamento com uma clareza impar_ “O discurso psicanalítico coloca a significação entre parênteses e coloca o sentido em movimento”(2002, o. 237)_ iluminando, assim, o papel do discurso analítico na ronda dos discursos. A saber, o de suspender a significação para produzir deslocamentos, isto é, sentido. Chamo a atenção para o fato de Lacan ter feito valer esse “procedimento” em sua fala e em sua escrita, como ele próprio dá a entender em dois parágrafos do seminário 18 _ De um discurso que não seria do semblante_os quais mencionei aqui em outro momento. Cito: “Foi na época em que meus Escritos ainda não tinham sido lançados que elas (les gens du monde, as pessoas da elite – tradução minha) me deram seu ponto de vista de técnicos: Não entendemos nada. Observem que isso é muita coisa. Algo de que não se compreende nada é a esperança absoluta, é o sinal de que 2
se foi afetado por aquilo. Felizmente não se compreendeu
nada porque só se pode compreender o que já se tem na cabeça. Mas, enfim, acho que eu gostaria de articular essa ideia um pouco melhor. Não basta escrever algo que seja in-compreensível de propósito, mas ver porque o ilegível tem sentido (19711/2007. p. 99).
Se o ilegível tem sentido, é possível concluir que a
compreensão se reduz à significação? Ao que já se tem na cabeça? Ao que não passa para outra coisa? Sim, mas há algo além que se pode ler nesse excerto de Lacan. Apontando para o “ininteligível” de um livro_ seus Escritos_ dos artigos que ele contém, do discurso de que esses artigos são tributários, fica negada a hipótese que, à primeira vista. vem à tona de que a significação concerne à palavra, à maior fixidez de sua forma e significado, enquanto o sentido concerne a unidades como a frase que significa a partir da gramática que põe suas palavras em relação. Nada mais apropriado para introduzir a antinomia significação/sentido que um fenômeno linguístico comum a todas as línguas: os provérbios. Tomemos, por exemplo, a frase: “Quem não tem cão, caça com gato.” Seu sentido nada tem a ver com sua significação. Aliás, sua significação é absurda_ ninguém caça com gato_ mas ela circula pelo sentido que veio a ter e que se fixou. Ao se fixar, porém, passou a ter de novo apenas uma significação, uma significação possível de ganhar sentido, de passar para outra coisa. Lacan foi muito além do modo como funcionam os provérbios ao desvelar/revelar um outro sentido para uma expressão/frase através de uma estratégia radical, isto é, interferindo na segmentação/corte da cadeia articulada pelas palavras que 3
compõem os títulos que deu ao Seminário 21 e 24, por exemplo,
desarticulando-as para lhes dar um sentido outro. No primeiro caso, é uma expressão e, mais que isso, um conceito cunhados por ele mesmo_Les Noms du Père_ Os Nomes do Pai_que ele segmenta para escrever Les non-dupes errent_Os não-patos erram/os não- tolos erram_interferência formal cujo efeito de sentido desfaz e interroga a significação antes dada. Essa operação poderia ser chamada de operação da letra, mas não me deterei nela agora. O que me parece fundamental aqui agora é o fato de que, desde 1957, no Seminário 5, ao tratar das formações do inconsciente, ele já a tinha nomeado e nomeado com uma expressão que, ao mesmo tempo, a designa, a demonstra: pas-de- sens. Basta traduzi-la para apreender a homofonia que a bifurca: passo-de-sentido e não-sentido. O vocábulo pas que originalmente significava passo _ do latim, passus_ veio a integrar uma forma enfática da expressão de negação em francês e a perder sua significação de origem, passando a ter simplesmente o valor de não. (ver a elaboração feita por Lacan em torno desse vocábulo em sua resposta à sétima pergunta de Radiofonia (Outros Escritos, p. 444). A meu ver, o duplo sentido da expressão pas-de sens vale como uma verdadeira definição da passagem da significação para o sentido: o não-sentido/sem sentido (perda da significação?) é um passo-de-sentido, um movimento de passagem para outra coisa. Mais ainda: há sentido no não-sentido. Retomando a frase de Fierens em seu primeiro livro sobre o Aturdito: “O discurso psicanalítico coloca a significação entre parênteses e coloca o sentido em movimento.” Ouso afirmar que o 4
discurso psicanalítico incide sobre o que na história de cada língua
_ou melhor, dos falantes, dos que foram por elas falados_em que, ao contrário, passou-se do sentido à significação, do movimento à fixação. Valho-me, para isso, da história da formação do artigo definido nas línguas românicas e. em particular no português, que ocorreu entre os séculos IV e VI da era cristã. Resumindo uma história de dois séculos, os pronomes demonstrativos do Latim Vulgar _illu(m), illa(m)_ dão origem no português tanto aos pronomes pessoais ele e ela quanto às formas o e a (plural: os e as). À mudança de sua forma sonora, porém, corresponde uma mudança decisiva, a saber, à passagem de uma função puramente demonstrativa, como a do gesto de apontar ( atualmente, este, esse, aquele) para uma função de categorização. Em outras palavras, aos chamados universais. Lacan dá reconhecimento disso colocando a barra no artigo definido que encabeça a expressão A mulher, para fazer valer a expressão uma mulher e poder escrever A Mulher não existe. A história do artigo definido mostra nas línguas românicas a passagem do gesto singular para o universal da categoria. A barra de Lacan suspendeu a significação para devolver sentido a “mulher”, escrevendo com a barra a suspensão do efeito do artigo definido sobre a palavra que a designa. Como Lacan mostra em A Terceira, não apenas o artigo definido mas até mesmo o verbo ser, nas formas que assume em línguas várias, que veio a ser um esteio do universal que sustenta o silogismo de Aristóteles_ “O homem é mortal”_, mostra em sua conjugação nas línguas românicas e na sua história, como ele se entrelaça com o verbo estar que, como o artigo definido, designa o 5
espaço dêitico, o espaço da enunciação. Assim se repete o caminho
do ato_ aqui/agora_ para o universal da categoria, para o universal filosófico. Barbara Cassim, em seu belíssimo livro Jacques le Sophiste- Lacan, logos et psychanalyse (p. 63, 2012), depois de apontar os equívocos do verbo ser no poema de Parmênides, afirma algo que ilumina a leitura que Nina e eu vimos fazendo de O Aturdito:
“É de propósito que evoco aqui O Aturdito porque esta escuta
sofística da história da filosofia nas línguas é necessariamente uma escuta das filosofias em línguas, tais como elas são ditas, isto é, tais como elas mergulham na lalíngua de cada língua.”
A partir do exposto acima, seria possível ler o enunciado “Que
se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve/entende”, associando os ditos_quaisquer ditos_à significação e o dizer ao sentido? É uma pergunta, talvez um caminho a ser percorrido, caminho que começa seguindo Lacan no longo caminho que ele próprio fez depois de O Aturdito, debruçando-se sobre a poética, recorrendo à topologia, interrogando a escrita de James Joyce e dela se apropriando, fazendo valer lalingua sobre a língua. Outra pergunta que, na verdade, é um desafio: se “o ilegível tem sentido”, como diz Lacan, como tornar ilegível a fala do analisante e escutar seu sentido? 6