Você está na página 1de 12

gida apresenta o caráter abstrato de "texto", e a resposta que da- composições literárias.

Mas, no próprio acontecimento comunicativo,


rão é do mesmo gênero. O que significa que essa resposta tem o eles opõem resistência a sua textualização. Vou destinguir três
caráter de uma declaração escrita. Prova disso é a insatisfação formas dessa linguagem para destacar, em seu pano de fundo,
com que as próprias testemunhas acolhem a protocolação de uma aquele que de modo eminente se torna acessível à textualização, ou
declaração. Não podem negar o que dizem, mas não lhe agrada melhor, o que realiza sua verdadeira vocação na figura textual. Essas
deixá-lo nesse isolamento, querendo interpretá-lo de imediato três formas são os antitextos, os pseudotextos e os pré-textos.
eles mesmos. A tarefa de fixação e, portanto, a redação do proto- Chamo de antitextos àquelas formas de falar que resistem à
colo deve levar isso em conta, uma vez que, na reprodução do que textualização, porque nelas a situação de realização do diálogo é
realmente foi dito, o protocolo, na medida do possível, deve ajus- dominante. Delas faz parte qualquer tipo de chiste. O fato de não
tar-se à intenção do declarante. O exemplo da declaração das tes- levarmos algo a sério, esperando realmente que seja compreendido
temunhas mostra, ao contrário, como o procedimento escrito (ou como brincadeira, é um fenômeno que tem seu lugar no processo da
os componentes da escritura no processo) influi no desenvolvi- comunicação e é ali que encontra sua sinalização: pode ser no tom
mento do diálogo. A testemunha isolada em sua declaração en- de voz, no gesto que o acompanha ou na situação social etc. Mas
contra-se de antemão confinada à expressão escrita dos resulta- não é possível, evidentemente, reproduzir essa expressão jocosa
dos da investigação. Uma situação parecida ocorre quando pedi- momentânea. É o que podemos ver também em outra forma
mos para que a promessa, a ordem dada ou a formulação da per- clássica de entendimento recíproco: a ironia. O uso da ironia pres-
gunta sejam feitas por escrito: também isso supõe uma separação supõe um consenso comum prévio, que é seu pressuposto social.
da situação comunicativa original e deve expressar o sentido ori- Quem diz o contrário do que pensa, mas está certo de que os outros
ginário em forma de fixação escrita. Em todos esses casos é evi- sabem o que quer dizer, faz uso de uma situação de consenso funcional.
dente a referência à situação comunicativa original. A possibilidade de fixar por escrito essa "desfiguração", que não é
Esse processo pode ser feito também mediante uma pontuação uma desfiguração, depende do grau de consenso comunicativo prévio
adicional, recurso já encontrado pela fixação escrita para facilitar a e do acordo realmente existente. Conhecemos, por exemplo, o uso da
reta compreensão. O ponto de interrogação, por exemplo, indica ironia na antiga sociedade aristocrática, que inclusive passou
[347] um modo como deve articular-se propriamente uma frase fixada diretamente para a forma escrita. O uso das citações clássicas, em
por escrito. O inteligente costume da língua espanhola de inserir a geral degradando-as em sentido pejorativo, pertence a esse mesmo
frase interrogativa entre dois pontos de interrogação esclarece contexto. Isso serve também para a busca de uma solidariedade
convincentemente a intenção fundamental: já no começo da leitu- social, nesse caso, o controle superior dos pressupostos educativos,
ra sabe-se como deve articular-se a frase correspondente. O caráter um interesse de classe e sua ratificação. Mas se as circunstâncias
indispensável de tais recursos de pontuação, ausente em numero- dessas condições de consenso não são tão claras, a passagem para a
sas culturas antigas, confirma por outro lado que a compreensão forma escrita torna-se problemática. O uso [348] da ironia representa,
sempre é possível apenas com o texto escrito. A mera sucessão dos muitas vezes, uma tarefa hermenêutica extremamente árdua, e não é
signos escritos sem pontuação representa de certo modo e na for- fácil de justificar a suposição de que se trata de ironia. Diz-se não sem
ma extrema a abstração comunicativa. razão que o tomar algo em sentido irônico não é mais que um ato de
desespero do intérprete. No trato humano, ao contrário, há uma
Há sem dúvida numerosas formas de conduta comunicativa clara ruptura do consenso quando não se compreende a presença da
pela linguagem que não se deixam submeter a essa finalidade. Tra- ironia. Para que seja possível o chiste ou a ironia, é necessário um
ta-se de textos, na medida em que podem ser considerados tais ao consenso básico. Por isso, quando alguém traduz seu modo irônico
aparecerem desligados de seus destinatários, por exemplo, em de expressar-se numa for-

400 401
mulação inequívoca, isso dificulta grandemente o restabelecimen- de interpretação converte-se em descobrir os subterfúgios e comu-
to do entendimento entre as pessoas. Mesmo que isso seja possível, nicar o que se expressa realmente neles.
esse sentido unívoco da expressão assim obtido dista muito do sen- Esses textos aparecem, por exemplo, na formação de opinião
tido comunicativo do discurso irõnico. pública, denunciando a influência ideológica. O conceito de ideolo-
Ao segundo tipo de texto antitextual, denominei pseudotexto. gia quer dizer precisamente que aqui não se dá uma verdadeira co-
Refiro-me ao modo de falar e de escrever que assimila elementos municação, mas serve para encobrir interesses escusos. Por isso a
que não pertencem realmente à transmissão de sentido, mas repre- crítica da ideologia trata de refutar o que foi dito com interesses es-
sentam uma espécie de material suplementar, que serve para fazer cusos, por exemplo os interesses da classe burguesa na luta por in-
transições retóricas visando a fluência do discurso. Podemos defi- teresses capitalistas. Seria possível igualmente criticar a própria
nir a retórica no discurso dizendo que não representa o conteúdo atitude da crítica à ideologia como uma atitude ideológica, uma
objetivo das frases nem sequer o conteúdo de sentido transferível vez que defende interesses antiburgueses ou de outro tipo, masca-
ao texto, mas o que exerce um papel puramente funcional e ritual rando assim seus próprios pré-textos. Talvez possamos considerar
na comunicação oral ou escrita. O que abordo aqui como pseudo- como motivo comum da recaída em interesses ocultos a ruptura do
texto é, por assim dizer, o componente de linguagem vazio de signi- consenso, o que Habermas chama distorção da comunicação. A co-
ficado. Todos conhecemos esse fenômeno, por exemplo, na dificul- municação distorcida aparece igualmente como uma perturbação
dade de descobrir e de tratar adequadamente o material suplemen- da possibilidade de consenso e entendimento, motivando assim a
tar do discurso ao traduzir um texto para outro idioma. O tradutor recuperação do sentido verdadeiro. É como uma decodificação.
presume que esse material suplementar contém um autêntico sen-
tido e reproduzindo-o destrói a verdadeira fluência comunicativa
do texto que tem em suas mãos. Isso é um risco que corre todo tra- Um outro exemplo dessa interpretação como descortinamento
dutor. O que não impede que se possa encontrar algo que corres- dos pré-textos é o papel que exercem os sonhos na psicologia pro-
ponda a esse material suplementar. Mas a tarefa da tradução res- funda. As experiências da vida onírica são na realidade inconsisten-
tringe-se unicamente ao conteúdo de sentido do texto, e por isso tes. A lógica da vida empírica fica abolida em boa parte. Isso não
reconhecer e eliminar essas passagens vazias representa a verdadei- impede que a surpreendente lógica da vida onírica possa produzir
ra tarefa de uma tradução racional. Convém antecipar que a ques- imediatamente um estímulo de sentido muito parecido com o cará-
tão muda por completo quando se trata de textos de verdadeira ter ilógico do conto. Na realidade a literatura narrativa se apode-
qualidade literária, textos que eu qualifico de eminentes, como rou do gênero dos sonhos e do conto, por exemplo, no romantismo
alemão. Mas o que se desfruta no jogo da fantasia onírica é uma
os que vamos conhecer mais adiante. É aqui que nos deparamos
qualidade estética, que pode naturalmente ser objeto de uma inter-
com os limites na tradutibilidade de textos literários, limites que se
pretação literário-estética. Mas o mesmo fenômeno dos sonhos se
apresentam nos mais diferentes graus possíveis.
converte em objeto de uma interpretação bem distinta quando por
trás dos fragmentos do sonho evocado busca-se revelar o verdadei-
Chamo pré-textos à terceira forma de textos antitextuais. Ne- ro sentido que se mascara nas fantasias oníricas, o qual é suscetível
les incluo todas aquelas expressões comunicativas que não são de decodificação. A isso se deve a enorme relevãncia da recordação
compreendidas segundo o sentido que elas têm em mente transmi- dos sonhos no tratamento psicanalítico. Mediante a interpretação
tir, mas aquelas que expressam algo que permanece mascarado. dos sonhos, a análise pode promover um diálogo associativo, elimi-
[ ] Pré-textos são, pois, aqueles textos que interpretamos numa dire-
349
nando assim os bloqueios e libertando o paciente de sua neurose.
ção que eles não referem. O que eles apresentam é um mero subter- Esse processo de análise recorre, como se sabe, a etapas completas
fúgio por trás do qual se oculta o "sentido", e nesses casos a tarefa de reconstrução do texto onírico originário e de sua interpretação.

402 403
Decerto, que é um sentido totalmente diferente daquele expresso identidade do enunciado na medida
por quem sonhou ou, antes daquele extraído pelos intérpretes de em que se remonta à compreensão,
ou seja, na medida em que é tratada
[350] sonhos que apaziguaram a inquietude da experiência onírica com como texto.
sua interpretação. O que motiva procurar por trás do "que se tem
em mente" e interpretar o pretexto é, antes, a total distorção do O intérprete deve superar o elemento estranho que impede a
processo de entendimento baseado no consenso, distorção que inteligibilidade de um texto. Faz-se mediador quando o texto (o dis-
chamamos neurose. curso) não pode realizar sua missão de ser escutado e compreendi-
do. O intérprete não tem outra função que a de desaparecer uma
Também a psicopatologia da vida cotidiana, conhecida à mar- vez alcançada a compreensão. O discurso do intérprete não é um
gem do transtorno neurótico específico, oferece a mesma estrutu- texto, mas serve ao texto. Isso não significa, porém, que a contribu-
ra. Nela os atos falhos adquirem uma compreensibilidade imediata ição do intérprete se esgote no modo de escutar o texto. Essa con-
pela sua referência a certos movimentos inconscientes. Aqui se re- tribuição não é temática, não é objetivável como texto, mas está in-
pete a motivação do regresso ao inconsciente por causa de sua in- corporada ao texto. Essa figura caracteriza a relação entre texto e
consistência, quer dizer, partindo da incompreensibilidade do ato
falho. Graças ao esclarecimento, esse ato faz-se compreensível e interpretação em seus aspectos mais gerais. Aqui aparece um mo [351]
perde a dimensão irritante que antes comportava. . mento da estrutura hermenêutica que convém ressaltar. Essa lin-
guagem mediadora possui, ela própria, uma estrutura dialogal. O
A relação entre texto e interpretação que constitui o tema do intérprete que faz a intermediação entre as duas partes do diálogo
presente estudo aparece, pois, aqui numa forma especial que Rico-
eur chama hermenêutica da suspeita, hermeneutics of suspicion. nada pode fazer a não ser considerar sua distância frente ao emara-
É um erro privilegiar esses casos de compreensibilidade distorcida nhado de ambas as posições como uma espécie de superioridade.
como caso normal na compreensão de textos97. Por isso, sua ajuda no entendimento não se limita ao plano de lin-
guagem, mas passa sempre por uma intermediação real que busca
equilibrar o direito e os limites de ambas as partes. O "intermedia-
Todas as considerações que fizemos até o presente desti- dor do discurso" converte-se em "negociador". Creio que se dá uma
nam-se a mostrar que a relação entre texto e interpretação muda relação muito parecida entre o texto e o leitor. Após superar o ele-
radicalmente quando se trata dos denominados "textos literários". mento estranho de um texto, ajudando assim o leitor a compreen-
No que se seguiu, nos casos em que se dava uma motivação para a dê-lo, a retirada do intérprete não significa desaparecimento em sen-
interpretação e onde no processo comunicativo se constituía algo tido negativo. Significa antes sua entrada na comunicação, resolven-
como um texto, tanto a interpretação quanto o texto propriamente do assim a tensão entre o horizonte do texto e o horizonte do leitor.
dito estavam inseridos no acontecimento do entendimento. Isso É que chamo de fusão de horizontes. Os horizontes separados como
correspondia ao sentido literal da palavra interpres, que designa a pontos de vista diferentes fundem-se num. Por isso a compreensão
pessoa que faz a intermediação na fala. Esta é a função originária de um texto tende a integrar o leitor no que diz o texto. É justamen-
do intérprete que faz a mediação entre os interlocutores de diferen- te aí que o texto desaparece.
tes idiomas e com seu discurso mediador une os que estão separa-
dos. Se nesse caso a mediação serve para superar a barreira do idio-
ma estrangeiro, também quando aparecem obstáculos na compre- Mas existe também um fenõmeno chamado literatura: textos
que não desaparecem, mas que se oferecem à compreensão com
97. Cf. do autor The Hermeneutics of Suspicion, em C. Shapiro e A. Sica (eds.), Hermeneu- uma pretensão normativa e precedem toda e qualquer possível re-
fies, Questions and Prospects, Amherst 1984, p. 54-65.

404 ensão da mesma língua se faz 405


necessária essa mesma mediação.
Nesse último caso estabelece-se a
leitura do texto. Qual é sua característica? Que significa para a fato põe de manifesto o que é a
linguagem mediadora do intérprete o fato de os textos poderem linguagem ela mesma.
estar "aí"?" Não é fácil compreender corretamente essa auto-apresentação
da palavra. É óbvio que também no texto literário as palavras con-
Minha tese é que estão aí unicamente no ato de retorno a
servam sua significação e sustentam o sentido do discurso, que tem
eles. Mas isso significa que são texto no sentido original e próprio
em mente algo. É próprio da qualidade de um texto literário respei-
do termo, palavras que só estão "aí" quando se retorna a elas, rea-
tar este primado do conteúdo, próprio de todo discurso. Deve, ao
lizam o verdadeiro sentido de textos a partir de si mesmas: elas fa-
contrário, reforçá-lo a ponto de deixar em suspenso a dimensão real
lam. Literários são aqueles textos que devem ser lidos em voz
do enunciado. Por outro lado, o modo "como" algo é dito não pode
alta, mesmo que unicamente para o ouvido interior, e quando re-
tomar o primeiro plano. Caso contrário, não falamos de arte da pala-
citados não são apenas ouvidos mas devem ser acompanhados
vra, mas de artificialidade; não de um tom, que ao modo de um tipo
pela voz interior. Ganham sua verdadeira existência pela possibili-
de canto estabelece prescrições, mas de imitação poetizante; não fa-
dade de ser recitados de cor, par coeur. Vivem na memória do rap- lamos de um estilo, cuja qualidade inconfundível admiramos, mas de
sodo, do cantor de coro ou do cantor lírico. Como se estivessem um manejo que nos molesta. Apesar disso, um texto literário exige
escritos na alma, estão a caminho da escritura e por isso não deve estar presente em sua manifestação de linguagem e não somente
surpreender que nas culturas de leitura tais textos egrégios se cha- cumprir sua função comunicativa. Não basta lê-lo, é preciso ouvi-lo,
mem "literatura". mesmo que só com o ouvido interior.
Um texto literário não é uma mera fixação de um discurso fala-
do. Não remete a uma palavra já pronunciada. Isso tem conseqüên- É só assim que a palavra adquire sua autopresença no texto li-
[352] cias para a hermenêutica. A interpretação não é aqui um mero re- terário. Não se limita a tornar presente o que é dito, mas se apre-
curso para reintermediar um enunciado original. O texto literário é senta a si mesma em sua realidade sonora. Como o estilo é um fa-
tor determinante para constituir um texto de qualidade, sem im-
um texto que dispõe de um status especial, justamente porque não
por-se como mero estilismo, assim também a realidade sonora das
remete a um ato de linguagem originário, mas prescreve, antes, to-
palavras e do discurso está intimamente unida com a comunicação
das as repetições e atos de linguagem. Nenhuma linguagem falada
de sentido. Mas se o discurso se determina pela busca de sentido e
pode cumprir totalmente a prescrição representada por um texto li-
além de sua aparência escutamos e lemos o sentido que ele nos co-
terário. Esse exerce uma função normativa que não se refere ao dis-
munica, no texto literário a auto-aparição de cada palavra em sua
curso originário nem à intenção do orador, mas surge nele mesmo;
sonoridade e a melodia do discurso também são relevantes para o
por exemplo, na felicidade de um poema bem-sucedido que surpre-
ende e supera o próprio poeta. conteúdo. Nasce uma tensão peculiar entre o sentido do discurso e [353]
a auto-apresentação de sua figura. Cada membro do discurso, cada
Não é por acaso que a palavra "literatura" conservou um senti- palavra que se insere na unidade da frase representa uma unidade
do axiológico, de forma que a pertença a ela representa uma carac- de sentido ao evocar algo com sua significação. Ao mover-se dentro
terística distintiva. Um texto desse gênero não significa a mera fi- de sua própria unidade e na medida em que não atua como mero
xação de um discurso, mas possui sua própria autenticidade. Se o meio para decifrar o sentido do discurso, permite o desenvolvimen-
caráter do discurso consegue fazer com que o ouvinte ultrapasse o to da diversidade de sentidos de sua própria força de nomeação.
98. Cf. especialmente os escritos sobre teoria da literatura recolhidos em Ges. Werke, vol. 8.

407
406 próprio discurso, ouvindo
através dele e centrando sua atenção
no que o discurso lhe comunica, esse
Fala-se assim das conotações que ressoam quando uma palavra será que ocorre o inverso: que o cancelamento da referência à reali-
aparece com seu significado num texto literário. dade que caracteriza um texto como poesia, quer dizer, como auto-
Nesse sentido, a palavra singular como portadora de seu sig- manifestação da linguagem, faz aflorar a plenitude de sentido do
nificado e como co-portadora do sentido discursivo é apenas um discurso em toda sua magnitude? Ambos os extremos são insepará- [354]
momento abstrato do discurso. Tudo deve ser visto no âmbito veis, e o parâmetro de medição das participações que preenchem o
mais amplo da sintaxe. Tratando-se de um texto literário, é uma espaço, de diferentes maneiras, desde a prosa artística até a poésie
sintaxe que não é tal incondicionalmente nem tampouco segundo pure, dependerá da respectiva participação do fenômeno da lin-
a gramática usual. Assim como o orador lança mão de liberdades guagem na totalidade do sentido.
sintáticas outorgadas pelo ouvinte, na medida em que este está
em sintonia com todas as modulações e gesticulações do orador, No extremo fica claro o quão complexo é o ajuste do discurso à
também o texto literário - com todos os matizes que ostenta - unidade e o arranjo de seus elementos, isto é, das palavras. Por
possui suas próprias liberdades. Essas liberdades se encaixam na exemplo, quando a palavra em sua polivalência se vangloria como
realidade sonora que reforça o sentido do conjunto do texto. De possuidora de um sentido independente. Chamamos a isso um
certo, já no âmbito da prosa corrente supõe-se que um discurso jogo de palavras. Ora, não se pode negar que ela, muitas vezes, al-
não é um "escrito", tampouco como uma conferência é uma aula, cança a independência unicamente quando utiliza a linguagem
um paper. Isso fica ainda mais acentuado no caso da literatura, como adorno, o qual realça o engenho do orador, mas permanece
no sentido eminente da palavra. Ela supera a abstração do escrito totalmente subordinada à intenção de sentido do discurso. A con-
não somente porque o texto seja legível, quer dizer, compreensí- seqüência é que o sentido do discurso como um todo perde pronta-
vel em seu sentido. Um texto literário possui um status próprio. mente sua univocidade. Por trás da unidade do fenômeno sonoro
Sua presença como texto estruturado na linguagem exige uma re- aparece então a unidade oculta de significados heterogêneos e até
opostos entre si. Nesse contexto, Hegel falou de instinto dialético
petição da literalidade original. Isso sem recorrer a uma lingua-
gem originária, mas na medida em que inaugura uma linguagem da linguagem, e no jogo de palavras Heráclito viu um dos testemu-
nhos mais relevantes de sua intuição básica, a saber, os contrários
nova e ideal. A trama das referências de sentido nunca se esgota
nas relações existentes entre os significados principais das pala- são na verdade um e o mesmo. Mas esse é um modo de falar filosó-
fico. Trata-se de rupturas da relação semântica natural do discurso
vras. Justamente as relações de significado anexas, que não apa-
recem ligadas à teleologia de sentido, conferem sua magnitude que são úteis para o pensamento filosófico, uma vez que assim a
linguagem vê-se forçada a abandonar seu significado objetivo ime-
(Volumen) à frase literária. Tais relações não se dariam se o con-
diato e favorecer o surgimento das especulações do pensamento. O
junto do discurso por assim dizer não se mantivesse de pé por si
sentido equívoco nos jogos de palavras representa a forma mais
só, se convidasse à quietude e impedisse o leitor ou o ouvinte de
densa de manifestação do elemento especulativo, que se explicita
tornar-se cada vez mais ouvinte. Mas, apesar disso, como toda au-
em juízos contraditórios. Como disse Hegel, a dialética é a repre-
dição, esse tornar-se ouvinte é sempre um ouvir algo, que entende
sentação do especulativo.
o que ouviu como a figura de sentido de um discurso.

Mas a coisa se modifica quando se trata de um texto literário,


É difícil dizer aqui o que é causa e o que é efeito: Será esse au- e justamente por essa razão. A função do jogo de palavras não
mento de magnitude (Volumen) que suspende a função comunica- compactua com a ambigüidade polivalente da palavra poética. É
tiva e a referência do texto e o converte num texto literário? Ou verdade que as conotações que acompanham um significado prin-

408 409
cipal emprestam à linguagem sua magnitude (Volumen) literária. Essas considerações devem servir também para a metáfora. Na
Mas, pelo fato de subordinarem-se à unidade de sentido do discur- poesia, ela está tão inserida no jogo de tons, sentidos verbais e sen-
so e evocar outros significados como meras ressonâncias, os jo- tido do discurso, que não se destaca sequer como metáfora. Isso [356]
gos de palavras não são simples jogos de ambigüidade ou de poli- porque aqui a prosa está ausente do discurso originário. Por isso,
valência que dão origem ao discurso poético. Neles confrontam-se mesmo na prosa poética a metáfora quase não exerce nenhuma
unidades de sentido autônomas. O jogo de palavras rompe assim função. Desaparece de certo modo depois de despertar a intuição
a unidade do discurso e exige ser compreendido numa relação de espiritual, a que serve. A área de domínio da metáfora é, ao contrá-
sentido reflexiva e superior. O uso reiterado de jogos de palavras rio, a retórica. Nela desfrutamos da metáfora como metáfora. Tan-
e trocadilhos nos irrita, porque rompem a unidade do discurso. O
princípio desarticulador do jogo de palavras dificilmente será efi-
100. O soneto de Mallarmé, ao qual eu anexo uma paráfrase livre, soa assim:
caz numa canção ou num poema lírico, ou seja, sempre que preva- Salut
leça a figuração melódica da linguagem. Muito diferente é, obvia- Rien, cette écume, vierge vers
A ne désigner que la coupe;
mente, o caso do discurso dramático, onde a contraposição domi- Telle loin se noie une troupe
na a cena. Basta lembrarmos a Stichomythia ou a autodestruição De sirènes mainte à l'envers.
Nous naviguons, õ mes divers
[355] do herói que se anuncia no jogo de palavras com o nome próprio Amis, moi déjà sur la poupe
herói". Também é diferente o caso em que o discurso poético não Vous l'avant fastueux qui coupe
origina o fluxo da narração, a desenvoltura do canto nem a repre- Le flot de foudres et d'hivers;
Une invresse belle m'engage
sentação dramática, mas se move conscientemente no jogo da re- Sans craindre méme son tangage
flexão, de cujos jogos especulativos faz parte a desarticulação De porter debout ce salut
Solitude, récif, étoile
de expectativas do discurso. O jogo de palavras pode exercer as- A n'importe ce qui valut
sim uma função fecunda numa lírica muito reflexiva. É o que Le blanc souci de notre toile.
ocorre na lírica hermética de Paul Celan. Mas há que se pergun- Saudação
Nada, essa espuma, verso inocente
tar também aqui se o caminho dessa sobrecarga reflexiva de pa- Apenas para desenhar a borda do cálice;
lavras não acaba se perdendo no descaminho. Surpreende com Na amplidão, distante se banha um tropel
De sirenes, muitas ao reverso.
efeito que Mallarmé utilize jogos de palavras em ensaios de pro- Navegamos, ó meus diversos
sa, como em Igitur. Onde se trata, porém, de conjuntos sonoros Amigos - eu já na popa
Vós à frente, na proa orgulhosa, que corta
de figuras poéticas, ele quase não joga com as palavras. Os ver- A fúria de raios e tempestades.
sos de Salut parecem estratificados e preenchem uma expectati- Uma doce embriaguez me induz,
Mesmo sem temer seus cambaleios,
va de sentido em planos tão diversos como o de um brinde à saú- De pé, a enviar esse cumprimento
de e de um balanço de vida, oscilando entre a espuma do cham- Solidão, recife, estrela
panhe na taça e o rastro ondulado que o barco da vida deixa Ou seja lá onde nos leve
A vela branca da inquietação.
para trás. Mas ambas as dimensões de sentido podem se realizar P. Forget, o editor de Text und Interpretation, Munique, 1984, cita isso na p. 50 U. Japp,
Hermeneutik, Munique, 1977, p. 80s. Ali distinguem-se trés planos (apoiando-se em Ras-
tier); leva-se ao extremo a "análise saturada", não se compreende salut apenas como sau-
dação, mas também como salvação (récif!) e a inquietação branca como papel, o que de
modo algum se encontra no texto, nem sequer no auto-referente vierge vers. Isso é méto-
do sem verdade.

99. Cf. M. Warburg, Zwei Fragen zum "Kratylos" (Neue philologische Untersuchungen 5), 411
Berlim, 1929.

410 na mesma unidade de discurso


como o mesmo gesto melódico da
linguagem».
to a teoria da metáfora quanto os jogos de linguagem não ocupam é dialogal, porque na medida do possível deve sintonizar o fenõme-
nenhum lugar de honra na poética. no sonoro com a captação do sentido.
Essa digressão ensina que, quando se trata de literatura, a con- No fundamental, a arte de recitar tampouco é diferente. Neces-
jugação de som e sentido possui muitos níveis e distinções tanto sita apenas de uma técnica especial, porque os ouvintes são pes-
no discurso quanto na escrita. Cabe perguntar como se pode re- soas anõnimas e o texto poético exige sua realização em cada ou- [357]
conduzir o discurso mediador do intérprete à realidade dos textos vinte. Encontramos aqui algo parecido com o que acontece quando
poéticos. A resposta a essa questão deve ser muito radical. Diferen- soletramos, a saber, a recitação mecãnica. Declamar mecanicamen-
temente de outros textos, o texto literário não se interrompe com o
te não é falar, mas alinhar fragmentos de sentido, um atrás do ou-
discurso mediador do intérprete, mas é acompanhado de sua parti-
tro. Um exemplo claro é o das crianças que aprendem versos de me-
cipação constante. Isso se pode constatar na estrutura da tempo- mória e os "recitam", para a alegria dos pais. Quem é realmente
ralidade conveniente a todo discurso. Em todo caso, as categorias capaz de recitar ou é um artista da recitação, ao contrário, tornará
temporais que utilizamos em relação com o discurso e com a arte presente uma figura global de linguagem, do mesmo modo que o
da linguagem oferecem uma dificuldade peculiar. Fala-se então de ator deve criar as palavras de seu personagem como se as en-
presença, e como eu dizia antes, de auto-apresentação da palavra contrasse no ato. Não poderá ser uma série de retalhos de fala,
poética. Mas é uma falácia querer compreender essa presença a mas um todo, composto de sentido e som, que "se sustenta por
partir da linguagem da metafísica, como a atualidade do "que si". Por isso o falante ideal não pode fazer-se presente a si mesmo,
está simplesmente dado", ou a partir do conceito que caracteriza mas unicamente ao texto, que deve tornar-se acessível inclusive a
o que é passível de ser objetivado. Não é essa a atualidade que um cego, incapaz de ver seus gestos. Disse Goethe certa vez: "Não
compete à obra literária, nem a nenhum outro texto. A linguagem há maior nem mais puro prazer do que fechar os olhos e ouvir re-
e a escrita sempre se mantêm referidas a essa atualidade. Elas não citar - não declamar - um fragmento de Shakespeare, entoado
são, mas têm em mente, inclusive quando o que elas têm em mente com uma voz natural perfeita" m. Podemos perguntar, no entanto,
só existe na palavra que se manifesta. O discurso poético somente se a recitação é possível com qualquer tipo de textos poéticos; por
se faz efetivo no ato de falar ou de ler; quer dizer, não existe se não exemplo, quando se trata de poesia para meditação. Este problema
é compreendido. surge também na história dos gêneros da lírica. A lírica coral e o
canto em geral, que convida a cantar junto, é algo totalmente
distinto do tom elegíaco. A poesia para meditação somente parece
A estrutura temporal do falar e do ler apresenta um campo de possível na pura solidão.
problemas pouco explorado. A impossibilidade de aplicar o puro
esquema da sucessão à fala e à leitura salta à vista quando se vê
que desse modo não se descreve a leitura, mas o soletrar. Quem Em todo caso, aqui o esquema sucessivo está totalmente fora
precisa soletrar para poder ler é incapaz de ler. O que se dá na lei- de lugar. Basta lembrar o que, na aprendizagem da prosódia lati-
tura em voz baixa vale também para a leitura em voz alta. Uma boa na, se chama construir: o aluno de latim deve procurar o "verbo"
recitação significa transmitir ao outro o jogo existente entre signi- e depois o sujeito e partindo daí articular toda a massa verbal até
ficado e som, de modo que o outro o renove e recrie para si e em si. alcançar de repente a confluência de elementos que pareciam to-
Recita-se ao outro e isso quer dizer que quem recita sempre se diri-
ge ao outro. Ele faz parte do processo. Tanto ditar, quanto recitar
são atos "dialogais". O próprio ato de ler em voz alta para si mesmo 101. Shakespeare und kein Ende, in: J.W . Goethe, Siimtliche Werke, Artemis-Gedenkausga-
be, vol. 14, p. 757.

413
412
talmente divergentes em seu sentido. Em certa passagem, Aristó- reto em função de dizer o que todos e cada um diria, mas porque
teles descreve o congelamento de um líquido, que de repente, ao possui um novo e singular critério de correção, que o caracteriza
ser agitado, sofre uma mudança súbita. Algo parecido ocorre como uma obra de arte. Cada palavra se "encaixa", parecendo
com a compreensão repentina, quando os elementos verbais quase insubstituível, e de certo modo o é.
desordenados cristalizam-se na unidade de sentido de um todo. Foi Dilthey quem, continuando o idealismo romântico, deu
O ouvir e o ler possuem a mesma estrutura temporal que o aqui as primeiras orientações. Recusando o então vigente monopó-
compreender, cujo caráter circular é uma das constatações mais lio do pensamento causal, deixou de lado a relação causa-efeito, pro-
antigas da retórica e da hermenêutica. pondo a relação de efeitos, uma relação portanto que se dá entre os
próprios efeitos (sem prejuízo de que todos eles tenham suas cau-
Isso vale para todo tipo de audição e de leitura. No caso dos
sas). Introduziu para isso o termo "estrutura", tão prestigiado poste-
textos literários, a situação é muito mais complexa. Neles não se
riormente, e mostrou como a compreensão de estruturas apresenta
trata simplesmente de recolher a informação transmitida pelo tex-
necessariamente uma forma circular. Dilthey tomou como ponto de
to. Não corremos, impacientes, diretamente à busca do sentido fi-
partida a audição musical, segundo a qual a música absoluta, com
nal para com ele captar a totalidade da comunicação. Também nes-
sua extrema a-conceptualidade, representa um exemplo paradigmá-
se caso se dá, sem dúvida, uma espécie de compreensão instantã-
tico por excluir toda a teoria da imitação. A partir daí, falou de con-
[358] nea, que permite ver a unidade do conjunto. No texto poético ocor-
centração num ponto central, tematizando a estrutura temporal da
re o mesmo que na imagem artística. Conhecemos relações de sen-
compreensão. Na estética, num sentido muito parecido, fala-se de
tido, embora de modo vago e fragmentário. Mas em ambos os casos
"configuração" (Gebild), tanto em referência ao texto literário
a referência que retrata a realidade fica em suspenso. O texto é o
como a um quadro. O significado indeterminado de "configuração"
único que permanece presente com sua relação de sentido. Quan-
implica que algo não deve ser compreendido em sua realidade pré-
do lemos textos literários, em voz alta ou baixa, vemo-nos constan-
planejada e já pronta, mas que se formou de certo modo a partir de
temente remetidos a relações de sentido e de som que articulam a
dentro, até alcançar sua própria figura (Gestalt), e talvez seguindo
estrutura da totalidade, e isso não apenas uma vez, mas sempre de
uma formação evolutiva. É evidente que buscar compreender
novo. Voltamos páginas atrás, recomeçamos, relemos o texto, des-
fenômenos dessa natureza representa uma tarefa muito especial. A
cobrimos novas relações de sentido e ao final não estamos seguros
tarefa man-
de ter finalmente compreendido a coisa, resultado que em geral
nos faria abandonar o texto. Ocorre o inverso: aprofundamo-nos da que isso que representa uma configuração deve ser construído [359]
cada vez mais, conforme aumentem as referências de sentido e som
em si mesmo; construir algo que não está "construído", o que impli-
que entram na consciência. Não abandonamos o texto, mas nos dei-
ca retomar todos os intentos de construção. Enquanto a unidade de
xamos conduzir para dentro dele. Permanecemos em seu interior,
compreender e de ler se realiza na leitura compreensiva, deixando
como o orador se mantém no âmbito das palavras que diz e não
de lado o fenõmeno da linguagem, o texto literário sempre oferece
fica à distância como ocorre com aquele que maneja ferramentas,
algo que atualiza relações recíprocas de sentido e som. É a estrutura
que as toma e as deixa de lado. Nesse sentido, torna-se um grande
temporal da mobilidade, que chamamos permanência, o que realiza
erro falar de manejo das palavras. A expressão "manejo de pala-
essa presença, e é isso mesmo que o discurso mediador da interpre-
vras" não atinge a fala real. Trata-a como se lançasse mão de um lé-
tação deve abordar. Sem a disposição do receptor a ser "todo ouvi-
xico de uma língua estrangeira. E quando se trata de fala real, é
dos", o texto poético não nos diz nada.
preciso limitar radicalmente as regras e normas. Essa limitação é
válida sobretudo para o texto literário. O texto literário não é cor-

414
415
Para finalizar, um exemplo bem conhecido pode servir de ilus- brilho porque é uma obra de arte. É indubitável que o brilho se refe- [360]
tração. É o final do poema de Mõrike Auf eine Lampe102. O verso re aqui à lâmpada que ilumina, ainda que ninguém a utilize.
diz: "Mas o que é belo resplandece feliz em si mesmo".
O verso foi objeto de um debate entre Emil Staiger e Martin Num trabalho altamente acadêmico sobre essa discussão, Leo
Heidegger. Interessa-nos aqui unicamente como um caso exemplar. Spitzer analisou detalhadamente o gênero literário desses poemas
Nesse verso aparece um conjunto verbal de aparente trivialidade: temáticos, indicando de forma convincente o lugar que ocupam na
scheint es. Pode-se entender como "parecer", dokei, videtur, il semble, história da literatura. Heidegger, por seu lado, chamou a atenção
it seems, pare etc. Essa interpretação prosaica da expressão faz senti- com razão para o nexo conceitual da palavra schõn (belo) e schei-
do e por isso encontrou seu defensor. Mas pode-se ver muito bem que nen (brilhar, parecer) que ressoa na famosa expressão de Hegel so-
tal interpretação não cumpre a lei do verso. Pode-se também demons- bre o brilho sensível da idéia. Mas existem também razões imanen-
trar que scheint es significa aqui "reluz", splendet. Basta aplicar um tes. A ação que combina som e significado das palavras faz surgir
princípio hermenêutico. Em caso de conflito, decide o contexto mais outra clara instância de decisão. Uma vez que, nesses versos, os
amplo. A dupla possibilidade de compreensão é sempre um conflito. sons sibilantes formam uma trama consistente (was aber schõn ist,
Mas é evidente que o belo se aplica aqui a uma lâmpada. Tal é o enun- selig scheint es in ihm selbst), ou uma vez que a modulação métri-
dado global do poema que é preciso compreender. Uma lâmpada que ca do verso constitui a unidade melódica da frase (existe um acento
não ilumina porque repousa dependurada, velha e fora de moda, num métrico sobre schõn, selig, scheint, in, selbst), não há lugar para
salão de luxo ("quem tem olhos para ela?"), adquire aqui seu próprio uma erupção reflexiva como seria o caso de um prosaico scheint
es. Significaria antes a erupção da prosa coloquial na linguagem de
um poema, um desvio do compreender poético que sempre nos
ameaça a todos. Isso porque, em geral, falamos em prosa, como
102. O poema de Mõrike é: constata o Monsieur Jourdain, de Molière, para a sua própria sur-
Noch unverrückt, o schõne Lampe, schmückest du, presa. Foi justamente isso que levou a poesia atual a formas estilís-
An leichten Ketten zierlich aufgehangen hier, ticas extremamente herméticas para impedir a erupção da prosa.
Die Decke des nun fast vergessnen Lustgemachs.
Auf deiner weissen Marmorschale, deren Rand Aqui, no poema de Mõrike, esse desvio não está muito distante. A
Der Efeukranz von goldengrünem Erz umflicht, linguagem desse poema aproxima-se freqüentemente da prosa
Schlingt frõhlich eine Kinderschar der Ringelreihn.
Wie reizend alies! lachend, und ein sanfter Geist
(Quem tem olhos para ela?). Ora, a posição que esse verso ocupa no
Des Ernstes doch ergossen um die Banze Form - poema, a posição de conclusão, confere-lhe um peso gnômico espe-
Ein Kunstgebild der echten Art Wer achtet sein? cial. Com seu próprio enunciado, o poema ilustra, na realidade, o
Was aber schõn ist, selig scheint es in ihm selbst
motivo por que o ouro desse verso não é uma ordem de pagamento
Ainda intocada, ó bela lâmpada, adornas como uma nota bancária ou uma informação, mas possui seu valor
Aqui, dependurada em leves correntes,
O teto do salão, agora quase esquecido. próprio. O brilho não é apenas compreendido, mas se irradia sobre
Sobre tua branca pele de mármore, cuja borda todo o esplendor dessa lâmpada que jaz dependurada, despercebida,
A hera trança com bronze verde-áureo,
Um tropel de crianças, alegre, brinca de roda.
num salão esquecido, e só reluz ainda nesses versos. O ouvido inte-
Ó, como tudo é cativante! Sorridente, porém, rior percebe aqui as correspondências de schõn (belo), selig (feliz),
Toda sua forma envolta num suave alento de seriedade, scheinen (brilhar, parecer) e selbst (mesmo)... e o selbst, que
Uma autêntica obra de arte. Quem tem olhos para ela?
Mas o que é belo resplandece feliz em si mesmo. encerra e emudece o ritmo, faz ressoar o movimento calado em nosso
O debate entre Emil Staiger e Martin Heidegger, ao qual me refiro a seguir, está docu -
ouvido interior. Faz brilhar em nosso olho interior o suave fluir da luz
mentado em: Emil Staiger, Die Kunst der Interpretation, dtv Wissenschaftliche Reihe, que chamamos de scheinen (brilhar). Desse modo, nossa
4078, 1971, Atlantis Verlag, Zurique e Friburgo i. Br. 1955, p. 28-42. compreensão

416 417
não entende apenas o que se diz ali sobre o belo e o que expressa a
autonomia da obra de arte, que não depende de nenhuma relação
de uso... nosso ouvido ouve e nosso entendimento percebe o brilho cil de ultrapassar. Mas o certo é que tampouco Hegel outorgou à
do belo como seu verdadeiro ser. O intérprete que atribui suas ra- linguagem um posto central.
zões desaparece, e o texto fala. Em Heidegger repetiu-se uma irrupção parecida, e até mais vi
gorosa, do impulso originário da linguagem na esfera do pensa
mento. O que contribuiu muito para isso foi seu recurso consciente
[361] 25. Destruição e desconstrução (1985) originalidade da linguagem filosófica grega. Assim, em virtude d
força intuitiva de suas raízes plantadas no mundo da vida, a "lin
Quando Heidegger elevou o tema da compreensão de uma me- guagem" retomou toda sua virulência e penetrou decisivamente no
todologia das ciências do espírito à condição de um existencial e fun- sutil artifício descritivo da fenomenologia husserliana. Era inevitá [362
damento de uma ontologia da "pre-sença", a dimensão hermenêuti- vel que a própria linguagem se convertesse em objeto de sua auto
ca já não representou um estrato superior na investigação da in- compreensão filosófica. Quando já em 1920, como eu mesmo posso
tencionalidade fenomenológica, baseada na percepção física, mas testemunhar, partindo de uma cátedra alemã, um jovem pensador
fez aflorar sobre uma base européia e dentro da orientação da fe- Heidegger - começou a meditar sobre o significado de "mundear
nomenologia o que na lógica anglo-saxônica aparecia quase simul- (es weltet), isso representou uma brecha aberta na linguagem
taneamente como a linguistic turn. No desenvolvimento originá- escolar da metafísica, que se pautava por uma linguagem sólida, ma
rio da investigação fenomenológica levada a efeito por Husserl e inteiramente distanciada de suas origens. Esse fato representou ao
Scheler, a linguagem permaneceu na penumbra, apesar da guinada mesmo tempo um acontecimento no âmbito da linguagem e
que se deu rumo à Lebenswelt ("mundo da vida"). conquista de uma compreensão mais profunda da própria linguagem
A atenção que a tradição do idealismo alemão dedicou ao fenômeno
Na fenomenologia repetira-se o abissal esquecimento da lin-
da linguagem, desde Humboldt, os irmãos Grimm, Schleiermacher
guagem que já havia caracterizado o idealismo transcendental e
Schlegel e por último Dilthey, e que deu um claro impulso à nov
que parecia encontrar respaldo na infeliz crítica de Herder à gui-
ciência da linguagem, sobretudo à linguagem comparada
nada transcendental kantiana. A linguagem não encontrou um
permaneceu no âmbito da filosofia da identidade. A identidade do
lugar de honra nem sequer na dialética e na lógica hegelianas.
subjetivo e o objetivo, de pensamento e ser, de natureza e espírito s
Por outro lado, Hegel mencionou ocasionalmente o instinto lógi-
manteve até a filosofia das formas simbólicas' inclusive, entre a
co da linguagem, cuja antecipação especulativa do absoluto im-
quais destaca-se a linguagem. Como o ponto extremo dess
pôs a tarefa da obra genial da Lógica hegeliana. Na verdade, por
fenômeno, encontramos a obra sintética da dialética hegeliana, qu
trás da germanização da linguagem escolar da metafísica,
através de todas as contradições e diferenciações imagináveis
imposta por Kant no estilo rococó, a contribuição de Hegel à
buscava restabelecer a identidade e elevar a originária idéi
linguagem da filosofia foi de inegável relevância. Hegel destacou
aristotélica do noesis noeseos a sua perfeição mais apurada. Foi as
formalmente a grande energia de Aristóteles na formação da
sim que o parágrafo final da Enciclopédia de ciências filosóficas d
linguagem e dos conceitos, e seguiu de perto seu egrégio exemplo
Hegel o formulou, de um modo um tanto insolente. Como se a
ao procurar salvar na linguagem do conceito muito do espírito de
longa história do espírito tivesse dirigido todo seu esforço a uma
sua língua materna. Essa circunstância acarretou-lhe o
única meta: tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem, con
inconveniente da intradutibilidade, uma barreira que tem sido
clui Hegel evocando um verso de Virgílio.
insolúvel durante mais de um século e que hoje continua
103. E. Cassirer, Die philosophie der symbolischen Formen I. Die Sprache, Berlim, 1923.

419
constituindo um obstáculo difí-

418

Você também pode gostar