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CAPÍTULO 4

natureza do signo lingüístico< 1 ?)

,
E de F. de Saussure que procede a teoria do signo lingüístico
atualmente afirmada ou implicada na maioria dos trabalhos de
lingüística geral. E é como uma verdade evidente, não ainda
explícita, mas incontestada na realidade, que Saussure ensinou
que a natureza do signo é arbitrária. A fórmula impôs-se imedia-
tamente. Toda afirmação sobre a essência da linguagem ou sobre
as modalidades do discurso começa por enunciar o caráter arbi-
trário do signo lingüístico. O princípio tem tal alcance que uma
reflexão que verse sobre qualquer parte da lingüística o encontra
necessariamente. Os fatos de que seja invocado em toda parte
e dado sempre por evidente são duas razões para que se procure
ao menos compreender em que sentido Saussure o tomou e a
natureza das provas que o manifestam.
Essa definição é, no Cours de linguístique générale< 18 J, moti-
vada por enunciados muito simples. Chama-se signo "o total
resultante da associação de um significante [ = imagem acústica]
e de um significado conceito]" ... "Assim a idéia de "sceur",
"irmã", não está ligada por nenhuma relação interna com a
seqüência dos sons s-o-r que lhe serve de significante; poderia
igualmente bem ser representada por qualquer outra seqüência:
provam-no as diferenças entre as línguas e a própria existência
de línguas diferentes: o significado "bceuf', "boi" tem como sig-
nificante b-ó._f de um lado da fronteira e o-k-s (Ochs) do outro"

· 17. Acta linguistica, I (1939), Copenhague.


18. Citado aqui segundo a primeira edição, Lausanne-Pis, 1916.

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(p. 120). Isso deve estabelecer que "o elo que une o significante outro, com uma mesma realidade. Há, pois, contradição entre a
ao significado é arbitrário" ou, m!iis simplesmente, que "o signo. maneira como Saussure defíne o lingüístico e a natureza
lingüístico é arbitrário". Por "arbitrário", o autor entende que fundamental que lhe atribui.
"é imotivado, quer dizer arbitrário em relação ao significado com Semelhante anomalia no raciocínio tão cerrado de Saussure
o qual não tem nenhuma ligação natural na realidade" (p. 103). não me parece imputável a um afrouxamento da sua atenção
Esse caráter deve, pois, explicar o próprio fato pelo qual se veri- crítica. Eu veria aí, um traço distintivo do pensamento
fica: a saber, que para uma noção, as expressões variam no tempo histórico e relativista do fim do século um processo habitual
e no espaço, e em conseqüência não têm com ela nenhuma relação a essa forma de reflexão filosófica que é a inteligência compa-
necessária. rativa. Observam-se nos diferentes povos as reações suscitadas
Não sonhamos em discutir essa conclusão· em nome de por úlll mesmo fenômeno: a infinita diversidade das atitudes e
outros princípios ou partindo de definições diferentes. Trata-se dos julgamentos leva à consideração de que nada aparentemente
de saber se é coerente, e se, admitida a bipartição do signo (e nós é necessário. Da universal dessemelhança, chega-se à universal
a admitimos), se deve em conseqüência caracterizar O signo COmú contingência. A concepção saussuriana está ainda solidária, em
arbitrário. Acabamos de ver que Saussure toma o signo lingüís- certa medida, com esse sistema de pensamento. Decidir que o
tico como constituído por um significante e um significado. Ora signo lingüístico é arbitrário porque o mesmo animal se chama
·- isto é essencial- ele entende por "significado" o conceito. boi num país, Ochs, noutro, equivale a dizer que a noção do luto
Declara literalmente (p. 100), que "o signo lingüístico une não é "arbitrária" porque tem por símbolo o preto na Europa, o
uma coisa e um nome mas um conceito e uma imagem acústica". branco na China. Arbitrária, sim, mas somente sob o olhar im-
Garante, logo depois, que a natureza do signo ~ arbitrária porque) passível de Sirius ou para aquele que se limita a comprovar, de ·
não tem com o significado "nenhuma ligação natural na reali- fora, a ligação estabelecida entre uma realidade objetiva e um
dade". Está claro que o n1ciocínio é falseado pelo recurso incons- comportah1ento humano e se condena, assim, a não ver aí senão
ciente e sub-reptício a um terceiro termo, que. não estava com- contingência. É'claro que, com relação a uma mesma realidade,
preendido na definição inicial. terceiro termo é a própria \ todas as denominações têm igual valor; o fato de que existem
coisa, a realidade. Saussure cansou-se de dizer que a idéia de é, pois, a prova de que nenhuma delas pode pretender o absoluto
"·sreur" não está ligada ao significante s-o:.r, porém não pensa da denominaÇão em si. Isso é verdadeiro. Isso é até verdadeiro
menos na realidade da noção. Quando fala da diferença entre demais - e, portanto, pouco instrutivo. O verdadeiro problema
b-o'-f e o-k-s, refere-se, contra a vontade, ao fato de que esses é muito mais profundo. Consiste em reencontrar a estrutura
dois termos se aplicam à mesma realidade. aí, pois, a· coisa, íntima do fenômeno do· qual não· se percebe senão a aparência
a princípio expressamente excluída da definição do signo, e que exterior e em descrever a sua relação com o conjunto das mani-
nela se introduz por um desvio e aí instala para sempre a contra- festações de que depende.
dição. De fato, se se estabelece em princípio ·- e com razão Assim quanto ao signo lingüístico. Um dos componentes
que a língua é forma, não substância (p. 163), é preciso admitir do signo, a imagem acústica, constitui o seu significante; a outra,
- e Saussure o afirmou claramente a
que lingüística é ciência o conceito, é o seu significado. Entre o significante e o significado,(}
das formas exclusivamente. Tanto mais imperiosa é então a ne- o laço não é arbitrário; pelo contrário, é necessário. O conceito
cessidade de deixar a "substância" irmã ou boi fora da compreen- ("significado") "boi" é forçosamente idêntico na minha consciên-
são do signo. Ora, é somente se se pensa no animal "boi" na cia ao conjunto fônico .("significante") boi. Como poderia ser
sua partictilarídade concreta ~ "substancial" que se tem base diferente? Juntos os dois foram impressos no m~u espírito; juntos
para julgar "arbitrária" a relação entre boi de um lado, oks do evocam-se mutuamente em qualquer circunstância. Há entre os
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dois uma simbiose tão estreita que o conceito "boi" é como que
a alma da imagem acústica boi. O espirito não contém formas resolvido a não ser por decreto. É, realmente, transposto em ter-
vazias, conceitos não nomeados. O próprio Saussure diz: "Psico- mos lingüísticos, o problema metafísico da relação entre o espírito
logicamente, excetuando-se a sua expressã.o por meio das palavras, e o mundo; problema que o lingüista estará, talvez um dia, em
.o nosso ·pensamento é apenas u'a massa amorfa e indistinta. condições rie abordar com sucesso, mas que no momento fará
!Filósôfõse Tingüislasêonêor(faram- sempre~m reco~r que,J"' melhor se o deixàr de lado. Propor a relação como arbitrária é
l~e~ o concurso _dos signvs, seríamos incapazes de ~~uir duas para o lingüista uma forma de defender-se contra essa questão
detas de ma1~e1ra clara c constante. ,Tuma:nu---em si mesmo-;-õ e também contra a solução que o falante lhe dá instintivamente.
pensamen o e como uma 1fel5úiõsa ém que nada é necessaria- Para o falante há, entre a língua e a realidade, adequação com-
mente delimitado. Não há idéias preestabelecidas, e nada é dis- pleta: o signo encobre e comanda a realidade; ele é essa realidade
tinto antes do aparecimento da língua" (p. 161). Inversamente, o' (nomen Ômen;-tabus de palavra, poder mágico do verbo, etc\
espírito só acolhe a forma sonora que serve de suporte a uma Na verdade, o prisma do sujeito e o do lingüista são tão diferentes
representação identificável para ele; se não, rejeita-a como des- a esse respeito que a afirmação do lingüista quanto ao arbitrário
conhecida ou estranha. O significante e o significado, a represen- das designações não refuta o sentimento contrário do falante.
tação mental e a imagem acústica são, pois, na realidade as duas Seja como for, porém, a natureza do signo lingüístico não tem
faces de uma mesma noção e se compõem juntos como o incor- nada. que ver com isso, se o definimos como o fez Saussure~ pois
porantc e o incorporado. O significante é a tradução fônica de o prvprio dessa definição consiste precisamente em não encarar
um conceito; o significado é a contrapartida mental do signifi- senão a relação do significante com o significado. O .domínio
cante. Essa consubstancialidade do significante e do significado do arbitrário fica assim relegado para fora da compreensão do
garante a unidade estrutural do signo lingüístico. Ainda aqui é signo lingüístico.
o testemunho do próprio Saussure que invocamos, quando diz Assim, é bastante inútil defender o princípio do "arbitrário
a respeito da língua: "A língua é ainda comparável a uma folha do signo" contra a objeção que poderia ser tirada das onomato-
de papel: o pensamento é a face e o som é o verso; não se pode péias c dos termos expressivos (Saussure, p. 103-104), não apenas
recortar a face sem recortar ao mesmo tempo o verso; da mesma porque a sua esfera de emprego é relativamente limitada e porque
forma, na língua, não se poderia isolar nem o som do pensa- a expressividade é um efeito essencialmente transitório, subjetivo
mento, nem o pensamento do som; não o conseguiríamos a não e freqüentemente secundário, mas sobretudo porque, ainda aqui,
ser por uma abstração cujo resultado seria o fazermos ou psico- qualquer que seja a realidade retratada pela onomatopéia ou pelo
logia pura ou fonologia pura" (p. 163). O que Saussure diz aqui termo expressivo, a alusão a essa realidade na maioria dos casos
a respeito da língua vale primeiro para o signo lingüístico no não é imediata e não é admitida a não ser por uma convenção
qual se afirmam incontestavehnente os caracteres primeiros simbólica análoga à que credencia os signos comuns do sistema.
da língua. Reencontramos, pois, a definição e os caracteres válidos para
Vemos agora, e podemos delimitar, a zona do "arbitrário". qualquer signo. O arbitrário só existe aqui em relação com o
O que é arbitrário é que um signo, mas não outro, se aplica a fenômeno ou o objeto material e não intervém na constituição
determinado elemento da realidade, mas não a outro. Nesse própria do signo.
sentido, e somente nesse sentido, é permitido falar de contin-- Convém COI\SÍderar agora, rapidamente, algumas conclusões
gência, e ainda assim é menos para dar solução ao problema que Saussure tirou do princípio aqui discutido e que repercutem
que para assinalá-lo e afastá-lo provisoriamente. De fato, esse longe. Ele mostra, por exemplo, admiravelmente, que se pode
problema não é senão o famoso cpóam ou 3imn e não pode ser falar ao mesmo tempo da imutabilidade e da mutabilidade do
signo: imutabilidade porque, sendo arbitrário, não pode ser dis-
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cutido em nome de uma norma razoável; mutabilidade, porque,. saber como e em relação a quê. Proponhamos imediatamente
sendo arbitrário, é sempre susceptível de alterar-~e. "Uma língua isto: o valor é um elemento do signo; se o signo tomado em si
é radicalmente impotente para defender-se contra os fatores que mesmo não é arbitrário, como pensamos havê-lo demonstrado,
deslocam de momento a momento a relação do significado com segue-se que o caráter "relativo" do valor não pode depender
o significante. Essa é uma das conseqüências do arbitrárío do da natureza "arbitrária" do signo. Unia vez que é preciso abstrair-
signo" (p. 112). O mérito dessa análise não é diminuído em na- mo-nos da adequação do sígno à realidade, com maior razão
da, mas ào contrário muito reforçado se se especifica melhor devemos considerar o valor apenas como um atributo da forma,
a relação à qual realmente se aplica. Não é entre o significante não da substância. Daí, dizermos que os valores são "relativos"
e o significado que a relação ao mesmo tempo se modifica e per- significa que são relativos uns aes outros. Ora, não está aí justa-
manece imutável, é entre o signo e o objeto; é, em outras palavras, mente a prova da sua necessidade? Trata-se, aqui, não mais do
a motivação objetiva da designação, submetida, como tal, à ação signo isol:-:.do mas da língua como sistema de signos e ninguém,
de diversos fatores históricos. O que Saussure demonstra perma- tão firmemente como Saussure, concebeu e descreve.u a economia
nece verdadeiro, mas a respeito da significação, não do signo. sistemática da língua. Quem diz sistema diz a organiza-;ão e
Outro problema, não menos importante, que interessa dire- adequação das partes numa estrutura que transcende e explica
tamente à definição do signo, é o de valor, em que Saussure pensa os soos elementos. Tudo aí é tão necessário que as modificações
encontrar uma confirmação das suas idéias: "a escolha que cha- do conjunto e do pormenor se condicionam-ríX-iprocamente.
m::;. determinado corte acústico para determinada idéia é perfei- A relatividade dos valores é a melhor prova de que dependem
tamente arbitrária. Se o não fosse, a noção de valor perderia estreitamente uns dos 011tros na ·sincronia de um sistema sempre
do seu caráter, pois conteria um elemento imposto de fora. ameaçado, sempre restaurado. Isso se deve a que todos os valores
De fato os- valores permanecem inteiramente relativos, e eis são de oposição e não se definem a não ser pela sua diferença.
aí o motivo qual o elo entre a idéia e o som é radicalmente Opostos, conservam-se em mútL<a relação de necessidade. Uma
arbitrário" (p. 163). Vale a pena retomar sucessivamente as partes oposição é, pela força das coisas, subtendida de necessidade, corno
desse raciocínio. A escolha que chama determinado corte acústico a necessidade reforça a oposição. Se a língua é algo além~ de um··--~~-------·
para determinada idéia não é absolutamente arbitrária; esse cenglomeHJ.do fortuito de noções erráticas e de sons emitidos
corte acústico não existiria sem a idéia correspondente e vice- ao acaso, é porque há uma necessidade imanente à sua estrutura·
versa. Na realidade Saussure pensa sempre, embora fale de como a toda estrutura.
"idéia", na representação do objeto real c no caráter evidente- Evidencia-se, pois, que a parte de contingência inerente à
mente não necessário, imotivado, do elo que une o signo à coisa língua afeta a denominação enquanto símbolo fônico da realidade,
significada. A prova dessa confusão encontra-se na seguinte frase e na sua relação com ela. Mas o signo, elemento primordial do
cujo membro característico sublinho: "Se não fosse assim, a sistema lingüístico, encerra um significante e um significado cuja
noção de valor perderia algo do seu caráter, pois conteria um ligação deve ser reconhecida como necessária, sendo esses dois
elemento imposto de fora". É bem "um elemento imposto de fora", compónentes consubstanciais um com ~ outro. O caráter abso-
portanto, a realidade objetiva que esse raciocínio toma como eixo luto do signo lingüístico assim entendido comanda, por sua vez,
de referência. Quando se considera o signo em si mesmo e enquan- a necessidade dialética dos valores em constante oposição, e forma
to portador de um valor, o arbitrário se encontra necessariamente o princípio estrutural da língua. Talvez o melhor testemunho da
eliminado. De fato a última proposição é a que encerra mais fecundidade de uma doutrina consista em engendrar a contradição
claramente a sua própria refutação - é bem verdade que os que a promove. Restaurando-se a verdadeira natureza do signo
valores permanecem inteiramente "relativos"; mas trata-se de no condicionamento interno do sistema, reforça-se, além de
Saussure, o rigor do pensamento saussuriano.
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