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Competência 6

Linguagens NÃO é interpretação


Linguagens, códigos e
suas tecnologias

AUTORES:
Felipe Pereira Cunha | Gabriel Torres

IMAGENS:
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© Autores

CAPA:
Humberto Nunes

PROJETO GRÁFICO E
DIAGRAMAÇÃO:
Vânia Möller | Cristiano Marques

DIREITOS RESERVADOS:
© Felipe Pereira
COMPETÊNCIA 6

Compreender e usar os sistemas simbólicos das


diferentes linguagens como meios de organização
cognitiva da realidade pela constituição de significados,
expressão, comunicação e informação.
O que é um “sistema simbólico”?
Um “sistema” só é um sistema na medida em que Partindo dos pressupostos até aqui apre-sentados,
se estrutura por si só e apresenta regras internas fica relativamente simples concluir que a palavra
que regem seu próprio funcionamento. O sistema é composta por duas metades: uma concreta
apresenta autonomia; tudo o que ocorre dentro porque sonora (o símbolo), outra abstrata porque
do sistema só pode ser explicado por meio da psíquica (a mensagem do símbolo). Essa metade
observância das leis do próprio sistema. concreta e sonora é chamada, pela linguística
tradicional de “significante”; a outra metade,
Um sistema “simbólico” é, naturalmente, um
sistema formado por “símbolos”. Símbolos são abstrata e psíquica é chamada de “significado”.
formas autônomas que representam outra coisa A ongregação entre “significante” e “significado”
que não é elas próprias. Um símbolo nunca formaria a totalidade do signo linguístico (a
condiz perfeitamente com seu significado; palavra). Por exemplo, o “significante” seriam os
nunca é idêntico àquilo que significa. Para sons da palavra /m-a-r/, e o “significado” seria
exemplificar, sabemos que aquilo a que os sons se referem.
a pomba simboliza a paz, e Numa visão inocente, alguém
“Símbolo (subst. masc.) aquilo
entendemos, sem esforço, que, por um princípio de analogia, pensaria que o significado da
que a pomba (esse animal) e representa ou substitui outra palavra “mar” é simplesmente o
coisa.”
a paz (essa maneira pacífica mar por si, composto por todos
Dicionário Etimológico
de organização social) não Antônio Geraldo da Cunha os seus oceanos. No entanto,
são a mesma coisa. Isto é, essa é uma visão simplista,
“Os sons emitidos pela voz são os
o símbolo é, por si só, uma símbolos dos estados de alma, e as inocente e equivocada, já que,
representação, uma refra-ção, palavras escritas, os símbolos das ao ouvir a palavra “mar”, me
um desencontro, um descola- palavras emitidas pela voz.” sinto remetido a uma série
mento da coisa simbolizada. Da Interpretação, Aristóteles de sensações, lembranças,
O símbolo é o distanciamento palavras, comparações que
da coisa que ele significa extrapolam o próprio mar. O
em nome da elevação dessa coisa significada, mar em si é essa fatia considerável do globo: essa
promovendo nela a vida simbólica, inflando-a de faixa de terra submersa em água salgada. Porém,
sentido e de razão. a palavra “mar” não é exatamente o mar, mas um
símbolo do mar, um bloco de sons que representa
O primeiro, mais profundo e radical sistema
simbólico que há é a língua. As palavras são a o mar dentro do sistema da língua. Uma vez
maior simbologia já criada pela racionalidade e construída essa representação, a palavra “mar”
ao mesmo tempo pela fantasia humanas. Afinal, ganha autonomia para navegar por dentro do
toda palavra é uma representação sonora de mar da língua, por onde navios obscuros cruzam
algo que não é a própria representação sonora. as águas turvas da interpretação. A palavra “mar”
Ou seja, os sons /´ka.za/ não são exatamente “o que acabo de usar na linha anterior já não significa
lugar onde moro”. Há uma evidente diferença mais “mar”, mas ganha um novo significado, uma
entre o lugar que de fato habito e “a palavra que nova recapagem, uma nova carga simbólica, e isso
representa, dentro do sistema da língua, esse é natural na nossa língua e em todas que existem.
lugar”. Se a palavra é um “símbolo” que funciona Assim, chegamos ao primeiro grande postulado
dentro de um “sistema” (chamado ‘língua’), tudo do estudo de qualquer língua: o significado de
o que ocorre na palavra deve ser explicado a uma palavra não condiz com seu referente no
partir das regras desse sistema. mundo real.

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SIGNIFICADO “O signo linguístico une não uma coisa a uma palavra, mas
um conceito (uma concepção) a uma imagem acústica.
Esta ‘imagem’ não é só o som material, coisa puramente
física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som,
a representação que dele nos dá o testemunho de nossos
SIGNO
sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-
la ‘material’, é somente nesse sentido, e por oposição ao
SIGNIFICANTE REFERENTE outro termo associado, o conceito, mais abstrato.”
Triângulo semiótico, Peirce (1827)
Curso de Linguística Geral, Ferdinand de Saussure

Além da língua, quais seriam os outros sistemas simbólicos?


O que nos diferencia de todos os outros animais da ganham representação simbólica. Os sons das
natureza é a língua. Quanto a isso, tanto religião cordas de uma guitarra também são preenchidos
quanto ciência concordam. Noam Chomsky de significado; afinal, não têm a mesma
(importante linguista norte-americano) chega
a chamar a linguagem de “essência humana”,
“No princípio existia a Palavra, e a Palavra
supondo que seríamos pré-determinados estava voltada para Deus, e a palavra era
geneticamente para a comunicação linguística; Deus.”
considerava que todo ser humano nasce com uma Bíblia, Evangelho segundo São João, cap. 1,
versículo 1
“Gramática Universal”.
Uma das interpretações possíveis dessa
Somos seres tão simbólicos e tão escravos do passagem da Bíblia nos permite dizer que
sentido, que damos significado a tudo o que nos Deus também se revela por meio da palavra.
Entre os vários indícios de que Deus exista,
rodeia. É como se a simbolização fosse algo tão um deles seria a própria língua, a palavra.
natural à nossa existência, que precisássemos Isto é, a capacidade comunicativa é algo tão
extraordinário que, para muitos, só se explica
simbolizar tudo, nos marcando por onde como sendo produto da mão divina.
passamos. Não são só os sons das palavras que

simbologia dos sons das cordas de um violão.


Ambos sons remetem a sensações diferentes, a
“A vida nunca faz significados diferentes. E não são só os sons que
mais do que imitar
o livro, e esse livro são dotados de significação. As imagens também
não é ele próprio entram no jogo simbólico, e com as imagens vêm
senão um tecido
de signos, imitação as cores, que invadem nossas roupas, nossos
perdida, infinitamente cabelos, nossas casas. Junto das cores, vêm as
recuada.” pinturas, que se marcam em quadros, paredes
O Rumor da Língua, e braços tatuados. E assim nosso raio de ação
Roland Barthes
simbolizadora não tem limites, e somos capazes,
por meio da língua, de dar um sentido novo a
nós mesmos, contrariando o determinismo

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natural e escolhendo nossa própria maneira social, por meio de nossas opiniões, por meio
de nos representar e de existir por meio dessa de nossas roupas, por meio de nossas relações
representação. Como se nos simbolizássemos por interpessoais, enfim, por meio de tudo aquilo que
meio de nossas ações, por meio de nossa função é humano e que só é humano porque é simbólico.

De que modo os sistemas simbólicos funcionam como


meios de organização cognitiva da realidade?
Em primeiro lugar, é preciso definir organização
cognitiva, que pode ser entendida como a A palavra “cognição” deriva da forma latina
“cognoscere”, que também origina “conhecer”,
capacidade de construir conhecimento acerca de que nos leva à palavra “conhecimento”. Isto
algo que observamos na realidade. Por exemplo, é, a atitude cognitiva está intimamente ligada
quando conheço (no sentido mais puro do verbo) à atitude de lançar sobre o “conhecido” um
olhar investigativo, curioso, desejante de saber.
algo no mundo, não significa simplesmente que
eu já tive contato visual com isso que chamo de
“conhecido”. Na verdade, conhecer um lugar,
uma pessoa, um filme não remete simplesmente
ao campo sensorial da visão. “Já vi” não condiz
exatamente com “já conheço”. É perfeitamente
possível ver eventos da vida que não são
conhecidos, e conhecer eventos da vida nunca
vistos.

Conhecer, de fato, remete à construção do pen-


samento acerca do conhecido. Conhecer é posi-
cionar-se, de maneira inteligente e intencional,
diante do conhecido: observá-lo, descrevê-lo,
refletir sobre ele: investir raciocínio. A organiza-
ção cognitiva, portanto, se trata de um esforço
mental na direção da elaboração lógica que nos

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permita simbolizar a realidade. Por fim, conhe- que vivemos, nem a classe social da qual fazemos
cer exige uma postura mental ativa diante do que parte, tampouco as relações que estabelecemos,
se vê na vida, para que assim se lance, sobre o mas algo mais. Nossa individualidade – entendi-
mundo, uma maneira de entendê-lo, que sempre da como a essência da cada um de nós – reside
é simbólica (pois é subordinada à língua), e por- no modo como organizamos a realidade por meio
tanto nunca é objetiva, mas sempre é legítima. da cognição, considerando a atividade cognitiva
Perceber que a realidade é organizada de ma- como a estruturação de um saber sobre o mundo,
neira cognitiva é aceitar a variabilidade das ma- acreditando que o saber só se contrói por meio
neiras de pensar sobre a existência. Afinal, todos do pensar, que só se elabora por meio da fala, da
nós podemos ter acesso à mesma realidade, que escrita e da leitura. Isto é, a elaboração do pen-
se apresenta, muita vezes, indiferente às nossas samento passa pelo manuseio bem-sucedido da
escolhas. No entanto, apesar de vermos o mesmo língua e da linguagem, tanto para compreensão
mundo, nunca pensaremos o mesmo sobre o mes- quanto para a criação do saber. Assim, se somos o
mo mundo em que estamos. E é exatamente isso que pensamos, e se só pensamos porque falamos,
que faz cada um de nós seres únicos. O que nos é de se considerar que nossa subjetividade se ori-
torna pessoas inéditas não é somente o lugar em gine apenas na (e por causa da) língua.

“Todos os caracteres da língua: a sua natureza imaterial, o seu funcionamento simbólico, a sua organização
estruturada, o fato de que tem um conteúdo, já são suficientes para tornar suspeita essa compreensão (da
língua) como um ‘instrumento’, o que tende a dissociar do homem a propriedade da linguagem.
É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito,
porque só a língua fundamenta o conceito de ‘eu’ na realidade,
na sua realidade que é a do ser eu.”

Da Subjetividade na Linguagem,
Èmile Benveniste

Os sistemas simbólicos, a organização


da realidade e o poder...
A língua e a linguagem não são “empoderadoras” aos outros, é comunicar, interferir, influenciar.
somente no âmbito individual; afinal, é na Falar é deixar escapar um pedaço de nossa
coletividade que a língua se funda e mais subjetividade: até quando tentamos esconder,
claramente se mostra. A língua e a linguagem são acabamos revelando. Por isso, é possível analisar
formas de expressão daquilo que se pensa, de manifestações linguísticas e supor quais eram as
exteriorização do que se organiza na subjetividade, intenções do sujeito que nos dirigiu determinada
no submundo do sujeito. Falar é revelar-se mensagem.

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Há que se considerar que as mensagens nos vêm específico por meio dos sistemas simbólicos,
não somente pelas palavras e pela língua, mas que induzem a uma organização cognitiva da
também pelas cores, pelas formas, pelas texturas, realidade. Vejamos alguns exemplos em que se
pelos movimentos, pela composição das imagens, constrõem compreensões absolutamente opostas
enfim, pelas mais variadas linguagens. Por isso, sobre o mesmo evento da vida social, e isso só
podemos influenciar e ser influenciados por meio é possível no momento em que as diferentes
dessa “politransmissão” de significados. Nosso linguagens (palavras, imagens, movimentos)
“eu” contrasta com os outros “eus” do mundo, entram em funcionamento, expressando formas
na medida em que ocorrem os choques entre os específicas de se entender uma realidade social.
sujeitos, entre o “eu” e o “tu”, entre o “locutor” e
o “interlocutor”, entre o que “fala” e entre o que
A palavra “sujeito” deriva da forma latina
“escuta”, entre o que “seleciona a imagem” e o “subjectus”, que também dá origem à
que “vê a imagem”. “subjetividade” e “subjaz”. Ou seja, “sujeito”
está intimamente ligado àquilo que está
A supremacia das propagandas hoje em dia “abaixo”(sub-), àquilo que não se vê, àquilo que
não se explica. A nossa subjetividade (que nos
apenas vem comprovar o poder que as linguagens compõe como sujeitos) é formada por algo que
podem exercer sobre o pensamento coletivo. O está submerso em nós mesmos, com que só
temos raros e curtos contatos e que nos faz ser
que se quer dizer aqui é que é possível levar muitas exatamente quem somos.
pessoas a compreender a realidade de um modo

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