Você está na página 1de 9

DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA:

DOSSIÊ:
HAROLDO DE CAMPOS
TRADUÇÃO E HENRI MESCHONNIC
“Passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é desejar não mais a obra,
mas sua própria linguagem.” Roland Barthes

COMO CRIAÇÃO Guilherme Gontijo Flores

E CRÍTICA A tradução não tem um começo


na história do homem. Ela surge com a
linguagem, de modo que, se operássemos
uma redução total do conceito, arrisca-
ríamos dizer que todo ato comunicativo é
“O dicionário é, no máximo, um ponto de
partida” (ECO, 2007: 425). Não precisa-
mos dizer peremptoriamente que todo ato
comunicativo é ato tradutório, ao menos
não no sentido de tradução que pretendo
também um ato tradutório, já que implica desenvolver aqui, mas ao menos implicar
uma interpretação ativa por parte do re- que, como pressuposto da linguagem, não
ceptor, que então dá sentido à mensagem podemos aceitar uma estabilidade dos
a partir do seu próprio universo linguísti- conceitos e dos sentidos como num siste-
co e conceitual (STEINER, 1975: 47). Isso ma estanque da língua, e sim uma cons-
se dá porque, embora usemos as mesmas tante atualização que se dá nas relações
palavras numa dada língua, seus sentidos humanas, que são sempre criativas e per-
não estão estanques, muito menos seus formativas, mesmo nos momentos banais
usos, e assim cada indivíduo opera na lín- da vida cotidiana. Podemos, portanto, por
gua um pequeno desvio do que seria seu ora voltar à acepção mais corrente de tra-
suposto padrão. Assim, o dicionário não dução. É um desafio comum ao estudante
resolve a língua, já que não é capaz de de qualquer língua, como o latim, a ideia
prever usos, mas apenas atesta os usos de como verter corretamente um texto;
mais correntes de cada termo no passado: ou ainda mais singelamente, como fazer

8 9
uma versão adequada para transpor um pode se transmutar de sua língua a ou- o mesmo na nova versão – night tem um duzível” (1952: 3). Nessa nova via afirma-
texto de determinada língua para a sua tra sem que se rompa toda sua doçura e som aberto, que poderíamos por sineste- tiva do ato tradutório, o próprio termo tra-
própria. No entanto, se considerarmos a harmonia” (1.7.14). Essa afirmação está sia associar ao luminoso dos astros, ao dução fracassa em sua etimologia. Como é
instabilidade de toda linguagem, está cla- embasada no fato de que cada língua tem contrário do sombrio e escuro som de no- de conhecimento geral, “traduzir” vem do
ro que não existe um modo adequado de uma musicalidade específica, que não é che e noite, então o mesmo conceito pro- latim traducere, que, no Novissimo diccio-
tradução, pois as traduções, como qual- traduzível como o significado do texto. E duz ecos diferentes com outras palavras nario latino-portuguez de Saraiva, recebe
quer empenho de leitura crítica, entram mais, a afirmação de Dante nos leva a crer da oração, tais como beside e waters em as seguintes acepções:
num gênero discursivo próprio, que de- que um determinado jogo linguístico não inglês, além de realizar uma assonância
pende de várias teorias e métodos que as se reproduz, porque a sonoridade, ao fim com o neologismo de hitherandthithering. (de trans duco) 1o Conduzir além, con-
possam embasar, para que aí se prestem e ao cabo, interfere no sentido do texto. Nesse ponto, poderíamos chegar à aporia duzir d’um logar para outro, transferir,
a uma possível discussão sobre pertinên- É o que podemos deduzir também da se- tradutória: se nem mesmo uma única pa- transportar, traspassar; 2o Fig. Transfe-
cia. Isso não implica uma inutilidade dos guinte conversa com Jorge Luis Borges re- lavra será traduzível – uma palavra banal, rir, passar d’uma ordem a outra; elevar
exercícios escolares e universitários, dado latada por Augusto de Campos, acerca do como night, e não um conceito específico (a dignidade); virar, voltar para, levar a;
que uma certa ilusão de que os conteúdos dia em que os dois poetas se encontraram da cultura – como traduzir a oração? Ou 3o Expor ao riso, ao despreso, menos-
por transpor não variam é necessária para em Buenos Aires, em 1984 (2013: 77-8): pior, como traduzir um texto inteiro? Bor- cabar, deshonrar, mostrar, dar a saber,
o estabelecimento de um conhecimento ges cai no ceticismo. Eppur si muove: a publicar, divulgar; 4o Passar (o tempo),
linguístico básico: na verdade, é essa ilu- Depois, [Borges] cita a passagem final resposta de Augusto, que à primeira vista cumprir, exercer; 5o Traduzir, verter; ti-
são que permite a baliza inicial de conhe- do capítulo das lavadeiras [do Finne- parece mudar ligeiramente de assunto, con- rar, derivar (palavras).
cimento. Por isso, o ponto fundamental é gans Wake, de James Joyce]: “Beside tradiz a aporia já não com uma nova afir-
outro: a tradução é um ato cultural que the rivering water, of, hitherandthithe- mação categórica, mas com um exemplo Na verdade, a 5a. acepção não
envolve muito mais do que a transposição ring waters of. Night!” E indaga: “Como prático a partir de suas traduções poéticas consta no latim clássico, que usa o termo
entre duas línguas, porque, na prática, o traduzir isso? E night? Noche, noite, não da obra de William Butler Yeats: o que se transfero no sentido exclusivo de “tradu-
que se traduz são textos particulares; e os é a mesma coisa.” Conto-lhe que venho depreende do exemplo é que, para Augus- zir” (cf. contra McElduff 2013: 103-4). O
textos são feitos de relações com a língua, de traduzir os “poemas de Bizâncio” to, não se trata de um problema de intra- termo traducere só aparecerá muito mais
em cada caso diferentes, por esse moti- de Yeats, e que encontrei uma solução duzibilidade, mas de criar outro efeito na tarde com Leonardo Bruni, numa carta de
vo é que elas sempre são postas em che- curiosa para as duas últimas linhas: “Ou língua de chegada, ou seja, de analogia e circa 1400, talvez por um erro de tradução
que e devem ser interrogadas pelo tradu- cantarei aos nobres de Bizâncio e às da- paralelismo, ou de diálogo poético; dessa sobre uma passagem de Aulo Gélio (cf.
tor e por seu futuro leitor. Com isso, uma mas, / pousado em ramo de ouro, como forma, diante da evidência prática, o mes- Bettini, 2012: vii-ix). Como exemplo bási-
dada tradução nunca pode ter o escopo de um pássaro, / o que passou e passará e tre Borges acaba por anuir: “a tradução co de outros modos de pensar a tradução,
transpor um texto em sua completude, ou sempre passa”.1 Ele pede que eu repi- deve ser inventiva”. Desse modo, a fala de no ocidente, penso em dois termos ale-
seja, nenhuma tradução compreende em ta, fitando-me com os olhos abstratos, Borges ecoa o adágio anônimo, hoje co- mães que comportam acepções bastante
si uma leitura total do texto original. Ela atento às palavras, e diz: “Está bien. La mumente atribuído a Robert Frost, de que diversas: Nachdichtung, que significaria
será sempre diversa. tradución deve ser inventiva.” “poetry is what gets lost in translation”, algo como um “poema depois de um poe-
Não é à toa, afinal, que comu- que recai numa espécie de melancolia do ma”, ou “pós-poema”; e Umdichtung, um
mente vemos afirmações sobre a intradu- Neste pequeno trecho narrativo da tradutor, diante das perdas inerentes ao “poema transformado”, ou “transpoema”.
zibilidade da poesia, já que é sobretudo conversa entre os dois poetas, encontra- seu ofício, como fizera Dante. Já Augusto De qualquer modo, dessa entrada de di-
nela que vemos um alto grau de trabalho mos o cerne da poética da tradução. Bor- de Campos insinua por uma resposta prá- cionário podemos depreender pelo menos
formal que não pode ser inteiramente re- ges cita um trecho do Wake de Joyce, para tica àquilo que em português já foi bem duas coisas. Em primeiro lugar, que nosso
petido na cadeia fônica de outra língua. então se espantar num detalhe minucioso: explicitado por alguns teóricos como Paulo termo bastante específico para um ato na
Diante dessa derrota inicial da tradução, o termo inglês night não soa como noche Rónai: “o objetivo de toda arte não é algo linguagem é derivado de um uso mais tar-
alguns afirmaram ideias similares à que em espanhol ou noite em português; por impossível? O poeta exprime (ou quer ex- dio do termo latino, que em primeiro lugar
Dante Alighieri havia apresentado em seu isso, verter uma palavra pelo seu corres- primir) o inexprimível, o pintor reproduz tinha uma acepção ligada a movimento e
Convivio e que hoje servem de base para pondente semântico em outra língua não o irreproduzível, o estatuário fixa o infi- condução: traduzir, portanto, seria trans-
uma argumentação pela intraduzibilidade seria o bastante, porque o que estava xável. Não é surpreendente, pois, que o portar um texto de um lugar para outro.
da poesia: “nada harmonizado em música “harmonizado em música” não seria mais tradutor se empenhe em traduzir o intra- Em segundo lugar, que esse conceito me-

10 11
tafórico implica a imagem melancólica da sedutor enquanto possibilidade aberta à que ele chama “linha de invenção”, que outra língua. No entanto, para que o
perda, já que se trata de “levar algo” para recriação.” O que Haroldo de Campos rea- permite alterações e inserções na tradu- processo crítico se realize, o tradutor
que chegue incólume. Assim, a tradução liza nesse trecho curto é uma virada da ção, desde que condizentes com o modo precisa atuar em pelo menos duas
estaria de fato fadada ao fracasso, já que argumentação tradicional do pensamento de escrita do autor traduzido. O principal frentes: por um lado, na escolha de
sempre entrega do outro lado da margem cristão ocidental sobre tradução. O texto problema argumentativo desse artigo está poetas que precisem ser traduzidos ou
um texto diferente do original. O termo na mais difícil — em muitos casos, aquele no fato de que Campos troca a visão tradi- retraduzidos em determinada língua,
origem latina, somado à metafísica oci- “harmonizado em música”, se retomar- cionalista do texto original — a semântica, vale dizer, uma crítica da tradição poé-
dental cristã — que em geral pensava na mos as palavras de Dante— “mais recriá- por um lado, ou a intraduzibilidade da ca- tica diacrônica e do presente em sua
tradução da Escritura —, contribui para vel”, porque no trabalho poético a aber- deia fônica, por outro — por outra imagem sincronia; e, por outro, num projeto
um pensamento melancólico derivado da tura inevitável da obra seduz o tradutor do texto original que, de certo modo, é tradutório que apresente em seu pró-
perda; mas podemos dar-lhe uma acepção a mais variedades de tradução criativa, ainda mais vaga talvez derivada da tradi- prio corpo essa avaliação crítica do
nova que incorpore seu aspecto criativo. já que o texto não cobra a recriação da ção romântica: o “espírito” ou o “clima”. texto original. Daí que, neste artigo,
Na verdade, como bem demonstra Mauri- sua inteireza, ou seja, da sua materiali- Nesse ponto do seu pensamento, Ha- nasça uma espécie de pedagogia “não
zio Bettini, em Vertere: dade mesma. Esse pensamento não é de roldo praticamente se restringe a tro- morta e obsoleta, em pose de contri-
todo novo, claro: já estava profundamen- car a ênfase do semântico para o esté- ção e defunção, mas fecunda e estimu-
O fato é que os povos e as culturas, te calcado na linguística de Roman Jakob- tico; o que é um passo importante, lante, em ação” (ibid.: 44): a tradução,
quando querem definir o ato de traduzir son e na estética de Max Bense; deste, mas ainda incipiente. É só quando pas- sem a mística da intraduzibilidade, ga-
de uma língua para outra, pensam isso Haroldo concluía sobre a complexidade e sa à análise das traduções de Odorico nha a possibilidade crítica, e mais, a
de modos bastante diversos entre si: e fragilidade da informação estética, porém Mendes que Haroldo demonstra melhor possibilidade de ser uma categoria do
sobretudo formulam essa noção segundo discordava quando Bense afirmava, em uma noção de projeto tradutório: a saber, com análises e decomposições
paradigmas linguísticos e culturais ex- princípio, a intraduzibilidade, e preferia a tradução que Odorico fez da poesia ho- pedagógicas para que o processo pos-
tremamente específicos, ligados à cultu- possibilidade jakobsoniana da recriação mérica tem valor, para Haroldo, não sa ser ensinado aos interessados.
ra que os produz. Exatamente por isso, paralela como um corolário da abertu- porque reproduzia fielmente um “cli- O pensamento iniciado naquele
limitar-se a traduzir as palavras para ra estética (Jakobson não aparece citado ma” homérico, nem porque alcançava artigo foi aprofundado e radicalizado nas
‘traduzir’ por ‘traduzir – o trocadilho é neste artigo, mas sua influência sobre o uma fidelidade poética mais acurada, décadas seguintes. Em 1976, quando pu-
inevitável – leva não apenas a falsear o poeta paulista será crescente). Para isso, mas sobretudo por “desenvolver um blica suas primeiras traduções de seis can-
sentido dessas palavras específicas, mas, apoiava-se na prática tradutória do poeta sistema de tradução coerente e consis- tos do Paradiso de Dante, Haroldo de
pior ainda, a mistificar o contexto cultural norte-americano Ezra Pound, com a pro- tente, onde seus vícios (numerosos, Campos cunha o termo transcriação, para
onde elas foram geradas (2012: ix). posta do make it new: sem dúvida) são justamente os vícios evitar qualquer confusão com as ideias
de suas qualidades, quando não de sua mais tradicionais sobre tradução e fideli-
A metáfora de “levar”, ou “trans- muitas vezes, Pound trai a letra do origi- época” (ibid.: 38). Ao tradutor criativo dade semântica. A ideia de trans+criar já
portar” é apenas um modo de pensar esse nal (…); mas, ainda quando o faz, e ain- caberia então a criação de um projeto indica que não se trata mais de conduzir
ato. Não foi à toa, afinal, que Haroldo de da quando o faz não por opção voluntária de leitura e a realização que, por sua (“-duzir”, do latim ducere) para algum lu-
Campos passou a utilizar o termo trans- mas por equívoco flagrante, consegue coerência e consistência, apresente gar, pois agora se trata de criar algo em
criação para os seus trabalhos tradutó- quase sempre (…) ser fiel ao “espírito”, uma crítica do texto original ao mesmo outro ponto, num processo de profundo
rios, para evitar cair na lógica tradicional ao “clima” particular da peça traduzida; tempo em que se insira no tempo, na diálogo poético e crítico. Trata-se, afinal,
vinculada às imagens de levar e trazer um acrescenta-lhe, como numa contínua se- sua própria época. É nesses termos “de um modo de traduzir que se preocupa
texto original ou seu leitor. Esse problema dimentação de estratos criativos, efeitos que Haroldo (ibid.: 43-4) pensa uma eminentemente com a reconstituição da
já aparece em germe na seguinte afirma- novos ou variantes, que o original autori- crítica via tradução (criticism via trans- informação estética do original em portu-
ção em “Da tradução como criação e como za em sua linha de invenção (ibid.: 37). lation), porque o texto original se pres- guês, não lhe sendo, portanto, pertinente
crítica”, de 1962 (2004: 35): “Tradução de ta à análise meticulosa do seu maqui- o simples escopo didático de servir de au-
textos criativos será sempre recriação, ou Então, no lugar da tradicional fide- nário (portanto, já crítica e distante da xiliar à leitura desse original” (1976: 7).
criação paralela, autônoma, porém re- lidade semântica, melhor seria erigir uma metafísica do “gênio incomparável do Neste ponto, está claro que o texto da tra-
cíproca. Quando mais inçado de dificul- fidelidade ao “espírito” ou ao “clima” do poeta”), para que o tradutor o possa dução poética não serve para apenas
dades esse texto, mais recriável, mais texto original, sobretudo se embasado no recriar, por meio do labor poético, em apontar o original, já que passa a ocupar o

12 13
lugar de novo texto em nova língua: a me- qualquer modo, numa afirmação como críticas aos textos sobre linguagem adâ- como ele mesmo explicita seu pensamen-
lancolia tradutória pode ser, dessa forma, essa vemos a crescente radicalização das mica escritos por Benjamin em 1916, que to em dois artigos posteriores (Haroldo
mitigada. Isso não implica, no entanto, propostas de Haroldo de Campos. viriam a embasar o pensamento do autor escreve o exato mesmo parágrafo, 2013:
que o texto nunca possa servir de acesso O pensamento tradutório de Ha- alemão no seu texto tradutório. Num arti- 55-6 e 100):
à leitura do original, é só que esse acesso roldo de Campos atinge o ápice da sua ra- go de 1992 intitulado “O que é mais im-
da transcriação é uma lente crítica e cria- dicalidade em “Transluciferação mefisto- portante: a escrita ou o escrito?” (2013: Tenho para mim que o jogo conceitual
tiva sobre o original, com nova “informa- fáustica”, de 1981. Nele, Haroldo 141-54), Haroldo de Campos atacaria com benjaminiano é um jogo irônico (...) Sob
ção estética” (termo ainda derivado de apresenta uma leitura inventiva do clássi- mais minúcia ainda outro problema da a roupagem rabínica de sua “metafísica”
Bense). Sua crítica continua então a ope- co texto de Walter Benjamin, “Die Aufgabe teoria benjaminiana: a intraduzibilidade do traduzir pode-se depreender nitida-
rar abertamente naquelas duas fronteiras: des Übersetzers”, originalmente escrito no das traduções. Na verdade, esse problema mente uma “física”, uma pragmática da
a crítica do texto original e a crítica do início da década de 19202, para afirmar já tinha sido posto em xeque num artigo tradução. Essa “física” pode, hoje, ser
contexto de chegada. Alguns anos depois, que o teórico alemão: “inverte a relação de 1969, “A palavra vermelha de Hoelder- reencontrada in nuce nos concisos teo-
ele fará uma formulação inda mais preci- de servitude que, via de regra, afeta as lin” (In: 1972), em que Campos traduz um remas jakobsonianos sobre a tradução
sa: “a escolha do modelo a transcriar não concepções ingênuas da tradução como trecho da tradução que Hölderlin havia fei- (...), aos quais, por seu turno, os relam-
é ingênua, nem deve ser inócua. Trata-se tributo de fidelidade” (1981a: 179). As- to da Antígone de Sófocles; o assunto é pagueantes filosofemas benjaminianos
fundamentalmente de uma operação críti- sim, Haroldo lê, ou deslê, a passagem ainda ampliado em outro artigo de 1996, darão uma perspectiva de vertigem.
ca” (1981b). Mais tarde, dirá que o objeti- benjaminiana que caracteriza as traduções “A clausura metafísica da teoria da tradu-
vo é produzir “um texto comparativa e convencionais como “transmissão inexata ção de Walter Benjamin, explicada através Então, para o brasileiro, por um
coextensivamente forte, enquanto poesia de um conteúdo inessencial (eine unge- da Antígone de Hölderlin” (In: 2013); em lado Jakobson dá a fundamentação físi-
em português” (1993:11). Assim, em vez naue Uebermittlung eines unwesentlichen todos os casos, Haroldo rompe com a ideia ca e linguística para uma poética do tra-
de uma pretensa fidelidade, a tradução Inhalts)” (ibid.: 179), tomando-a como de que uma tradução não deveria ser tra- duzir, por outro, Benjamin dá ao aparato
“guarda, com o texto de partida, uma re- uma defesa para sua proposta de trans- duzida; afinal, se tradução é um novo tex- lógico uma potencialidade filosófica que o
lação formal e semântica de ‘reimagina- criação. Para tanto, sua leitura acaba por to, ela renova o empenho dos tradutores. prepara para a transluciferação, o grande
ção’, para além tanto do rudimentarismo “equacionar a teoria da tradução do lin- salto no pensamento tradutório de Harol-
literal, como da banalidade explicativa” guista Roman Jakobson com a do filósofo De modo similar, a tese benjami- do de Campos. Ao longo desse processo,
(1994: 17). Nesse sentido, a crítica via Walter Benjamin (...). A primeira estaria niana da estrangeirização é retomada por Haroldo também faz uso do pensamento
tradução é um processo conciso, em que o para a segunda como uma física da tradu- Campos pelo seu viés poético e político: desconstrutivo de Jacques Derrida (num
tradutor precisa explicitar sua leitura a ção para a sua metafísica” (apud Lages, “ao invés de aportuguesar o alemão, ger- trecho como “tradução enquanto inscrição
partir de soluções poéticas, sem um alon- 2002: 187, grifo do autor). Cláudia Santa- manizo o português, deliberadamente, da diferença no mesmo”) para liberar da
gamento explicativo sobre os problemas na Martins, ao comentar a apropriação de para o fim de alargar-lhe as virtualidades “clausura metafísica” o pensamento ben-
do texto. Essa ideia aparece na entrevista Benjamin por Haroldo de Campos, afirma criativas” (1981a: 194). Portanto, está jaminiano e fazer propostas radicais como
em que Campos defende que “a tradução que “Haroldo despe a ‘roupagem rabínica’ aqui longe de toda a questão messiânica a de que o texto tradutório deve ser lucife-
poética é uma prática teórica, em que o da teoria de Benjamin, considerando a presente em Benjamin (cf. Lages, 2002) rino, ou seja, derivar de sua função angé-
poeta tem a mesma natureza” (2005: ‘língua pura’ não como a língua adâmica, para se dar numa política material das lín- lica (de grego ἀγγέλος, “mensageiro”, que
354). A afirmação tem seu exagero retóri- primeva, mas como o ‘lugar semiótico da guas; com isso, Campos também se afas- levaria a mensagem, seu conteúdo sem a
co, já que certamente o ato de traduzir operação tradutora’(…)” (2011: 148-9). ta de uma corrente que Inês Oseki-Dépré forma) a faceta demoníaca de usurpação
não é idêntico ao de compor uma nova Talvez a equação mais notável seja aproxi- identifica na França, onde “a literalidade do lugar do original, uma recriação formal
obra, mas procede, se considerarmos que mar a negação da comunicação nas obras (…) é o caminho que permite criar ou re- ao modo de um ágon com o texto de par-
se trata da natureza do artífice, do artesa- literárias (Benjamin) a ideias que o próprio criar a obra original num élan hiperliteral tida; “assim, nada mais estranho à tarefa
nato linguístico que dá forma à poesia, de Haroldo já vinha defendendo havia quase ou extraliterário (Pierre Klossowski, Michel do traduzir, considerado como uma forma
modo que os limites entre criação autoral vinte anos, como a fragilidade da informa- Deguy, André Chouraqui)” (2005: 213-4) (...), do que a humildade” (1981a: 180).
e tradução permanecem borrados (cf. Har- ção estética (Bense) e a função poética da uma tradição que também teria o nome de Pelo contrário, como nota Lucia Santael-
dwick, 2000, onde exemplos de recria- linguagem (Jakobson). Sobretudo devido Antoine Berman (2007). Assim, Haroldo la, “a empresa é luciferina porque chega a
ções, imitações, traduções e obras novas ao refinado aparato linguístico derivado de busca operar uma espécie de refisicaliza- sugerir uma superação do texto original”
traçam diálogo com textos clássicos). De Jakobson, Haroldo de Campos faz algumas ção da metafísica de Benjamin. É o modo (2005: 229). Essa aspiração usurpado-

14 15
ra está baseada numa nova dupla crítica sado e pela sua realização prática como de Haroldo de Campos, que foi pouco ex- mulação teórica. Haroldo compreendera
que o tradutor deve realizar: por um lado, obra do presente numa tradição de tradu- plicitado na sua própria escrita, mas que, Meschonnic perfeitamente, num texto de
contra as traduções mediadoras e, por ou- ções. Por isso, na entrevista já citada, Ha- se contrastado às teorias de outro teórico, 1985 intitulado “Da transcriação: poéti-
tro, contra as traduções medianas (1981a: roldo afirma: “a tradução como crítica tem pode ser melhor depreendido. A questão, ca e semiótica da operação tradutória”;
184), sem oferecer um resultado de fato como corolário uma crítica da tradução” no momento, é que toda tradução criativa nele, Campos promove uma crítica à crí-
poético. O risco menos óbvio está sobre- (2005: 357); e em outro artigo posterior e crítica será, por conseguinte, um ato po- tica que Meschonnic fizera a Jakobson;
tudo no segundo grupo, porque ele traduz o famoso adágio italiano tra- lítico. Esse ponto é bastante marcado no mas esse embate de Haroldo não afasta
duttore/traditore com uma mistranslation pensamento do poeta, tradutor e ensaísta o pensamento dos dois: pelo contrário, o
o empenho estético mediano, morige- intencional: “TRADUTOR:TRADITOR, pen- francês Henri Meschonnic, onde podemos poeta brasileiro se esforça por demons-
rado, apesar de suas inegáveis boas sando na tradução como tradição do pas- encontrar formulações pungentes que re- trar como o francês não compreendera
intenções, redunda em Kitsch involuntá- sado no presente” (2013: 94-5). A tradu- velam com mais clareza algumas impli- bem as teorias tradutórias de Jakobson,
rio, seja pela imperita seleção dos pa- ção envolve uma revisão participativa da cações de uma poética da tradução. No o resultado disso é que as teorias de Ha-
radigmas lexicais, seja pela trivialidade tradição, porque os textos do passado só seu hoje já clássico Pour la poétique II, roldo de Campos, Meschonnic e Jakobson
das rimas (obtidas, frequentemente, vivem no presente mediante leitores que de 1973, Meschonnic postulava uma união acabam sendo ainda mais aproximadas.
pelo pinçamento de palavras em “esta- os interpretem ativamente: “O receptor entre teoria e prática muito similar às re-
do de dicionário”, ou por um dificultoso não é somente alguém que recebe algo, lações entre tradução e teoria em Haroldo Que a ideia de “prática teórica” se afasta
contorcionismo sintático que acusa o nem está somente em estado passivo; em de Campos: da de simples empiria no caso da tradu-
“versejador de domingo”). De qualquer termos ótimos, ele deveria ser um coau- ção, não há dúvida, pois um dos fatores
modo, se o poeta-tradutor, em seu esto- tor da informação” (2002: 83). Assim, a 1. Uma teoria da tradução dos textos é constitutivos da operação tradutora é,
que mobilizável de formas significantes, tradução da tradição pode ser como uma necessária, não como atividade especu- exatamente, seu caráter crítico (aquilo
não estiver ao nível curricular da melhor maiêutica poética (2013: 115) em que o lativa, mas como prática teórica para o que Meschonnic prefere denominar o
e mais avançada poesia do seu tempo, poeta extrai a diferença por meio do pro- conhecimento histórico do processo so- “trabalho ideológico concreto” implícito
não poderá reconfigurar, síncrono-dia- cedimento mimético da tradução. Ou, se cial de textualização, como uma trans- à relação texto/tradução, envolvendo
cronicamente, a melhor poesia do pas- apenas transferirmos essas ideias semió- linguística. (...) uma teoria da tradução “descentramento”, “dessacralização”,
sado (ibid.: 184-5). ticas para a ideia de tradução luciferina, dos textos está inclusa na poética, que “anti-ilusionismo”). (2013: 91)
“toda tradução criativa é já também um é a teoria do valor e da significação dos
Desse modo, a tradução, como a caso deliberado de mistranslation usurpa- textos (1973: 305-6). O que acontece com o tradutor é
poesia, tem pouco espaço para o trabalho dora” (1981a: 208). Para Haroldo, a tra- que teoria e prática se misturam criando
mediano e requer mais ousadia luciferina dução é o caso mais óbvio dessa interven- Noutro momento, ele ainda refor- uma cadeia mútua de influências calcadas
da parte de um tradutor que, para além de ção criativa e crítica do receptor/leitor. çaria: “A teoria, a crítica, a prática são no experimentalismo que contém em si o
ler a poesia do passado e dominar algumas aqui inseparáveis” (1981: 39), e isso germe da crítica. Portanto, como ato con-
regras de métrica e rima, deve também Flamejada pelo rastro coruscante de seu se dava precisamente porque seu pen- tínuo de prática e teoria, a tradução não
estar familiarizado com a melhor poesia Anjo instigador, a tradução criativa, pos- samento teórico desde o início esteve apenas escapa a uma metodologia prede-
de seu próprio tempo. Do mesmo modo suída de demonismo, não é piedosa nem atrelado às traduções poéticas de tex- finida, como ainda poderá servir de base
como, para Henri Meschonnic, que tratarei memorial: ela intenta, no limite, a rasu- tos bíblicos, como Les cinq rouleaux, de epistemológica para uma crítica ideoló-
com vagar mais adiante, “a armadilha da ra da origem: a obliteração do original. 1970, uma união que se manteve até, por gica do aparato intelectual do ocidente,
teoria tradicional é identificar esta poéti- A essa desmemória parricida chamarei exemplo, as traduções dos Salmos, intitu- suas ideologias espalhadas nos diversos
ca do texto com o literalismo, assim como ‘transluciferação’ (ibid.: 209)4. ladas Gloires, de 2001. O resultado inevi- níveis sociais. Isso acontece porque, na
ela confunde a poesia com a versificação” tável desse entrelaçamento entre teoria, tradução, linguagens e pensamentos dife-
(2010: 5). Nesse sentido, a ideia de que E isso só pode ocorrer no momento prática e crítica, é que a tradução, como rentes entram em contato, gerando – se
o projeto tradutório importa (e muito) se em que um leitor assume conscientemen- acontecimento empírico, não se subme- livre da coação prescritiva ideológica – um
torna ainda mais complexa, porque cada te seu papel na realização de uma obra, te a qualquer tipo de metodologia prees- novo texto capaz de apresentar constan-
projeto pode e deve ser julgado segundo para em seguida tomar em mãos a escrita tabelecida, ou à mera aplicação teórica tes idiossincrasias para a teorização já es-
sua pertinência poética e política, ou seja, de uma nova obra, a tradução. Neste pon- anterior à prática; do mesmo modo que tabelecida e, em decorrência disso, uma
pela sua visão crítica sobre a obra do pas- to nós chegamos a um nó-chave da teoria a prática não pode existir sem uma for- crítica à epistemologia que havia formado

16 17
aquela teorização prescritiva. Isso impli- que chegaríamos “à noção metafísica, não a ideologia estabelecida. Para Meschon- feita pelo indivíduo que apenas conhece
ca, afinal, que a tradução, em sua poéti- historicizada, do intraduzível” (ibid.: 309), nic, é preciso combater uma dominância a língua, mas pouco intervém como lei-
ca, não pode se resumir à mediação com que por sua vez antepõe sempre o origi- da tradutória estetizante, “que se marca tor de um texto. Para Meschonnic, isso é
o texto original, sob a pretensa categoria nal à tradução, na medida mesmo em que por uma prática subjetiva de supressões muito mais do que um problema de estilo
de imparcialidade, nem pode subsistir na nega à tradução seu estatuto de texto. Ou, (das repetições, por exemplo), acrésci- e de fidelidade, trata-se de um problema
figura do tradutor invisível, que entrega como ele mesmo diz em outro livro: “O mos, deslocamentos, transformações, em de ética e de política. Apesar de ética e
uma tradução transparente ao seu leitor. intraduzível não é um dado empírico, é um função de uma ideia preconcebida sobre política serem costumeiramente planos
Ao contrário, para Meschonnic: “10. Se a efeito da teoria” (2010: 21). O texto não é língua e literatura” (ibid.: 315). Essas complementares (a ética está para a vida
tradução de um texto é estruturada-rece- estanque, nem apresenta um sentido ape- palavras, que à primeira vista poderiam privada como a política para a vida social),
bida como um texto, ela funciona texto, nas, que deva ser traduzido de modo cor- depor contra o pensamento tradutório de o tradutor francês expressa como se dá o
ela é a escritura de uma leitura-escritura, reto; a forma se imbrica no sentido tanto Haroldo de Campos, são, na verdade, mui- movimento entre um e outro plano na lin-
aventura histórica de um sujeito.” (1973: quanto o conteúdo, e desconsiderar qual- to próximas. Quando Meschonnic fala de guagem, pela poética:
307). Se considerarmos esse dado empíri- quer um dos dois seria um ato ideológico dominação estetizante, não critica a tra-
co da tradução como intervenção criativa de dominância contra aquilo que o origi- dução poética que leva em consideração Não defino a ética como uma responsa-
de um leitor que interpreta criticamente nal, por meio de uma tradução descentra- os aspectos estéticos do texto de partida, bilidade social, mas como a procura de
determinado texto e lhe dá nova forma, lizante, poderia por em xeque na ideologia mas aquelas traduções que lançam sobre um sujeito que se esforça para se cons-
claro está que não existe transparência estabelecida do presente. Nesse aspecto, o texto de partida uma poética preconce- tituir como sujeito pela sua atividade,
com relação ao original, porque a tradu- a poética da tradução de Meschonnic, as- bida e assim obliteram o original não por mas uma atividade tal, que será sujeito
ção é ela própria texto, passível de nova sim como a de Haroldo de Campos, é uma um ágon luciferino, e sim por apagamen- aquele por quem um outro é sujeito. E
interpretação e reescritura diferentes da- poética transgressora, porque pensa nas to político do ato de leitura, em geral em nesse sentido, como ser de linguagem,
quelas do texto original. Assim, Meschon- possibilidades de uma crítica sincrônica nome de ideias vagas como “bom gosto” e esse sujeito é inseparavelmente ético e
nic propõe a tradução como “reenunciação engajada a partir das contradições atuali- “espírito da língua”. Para ele, a poetização, poético. É na medida dessa solidarieda-
específica de um sujeito histórico, intera- zadas no choque com o texto diacrônico do ou literariação tradutória, é uma “escolha de que a ética da linguagem concerne a
ção entre duas poéticas, descentramento” passado ou de uma cultura diversa. É por de elementos decorativos segundo a escri- todos os seres de linguagem, cidadãos
(ibid.: 307-8), isto é, como um choque dis- esse motivo que não podemos pensar que tura coletiva de uma dada sociedade num da humanidade, e é nisso que a ética é
sonante entre pontos de vista diferentes, se traduz de uma língua para outra, como dado momento” (ibid.: 315). O exemplo política (2007: 8).
seja pela língua, pela pátria, pela cultura, é costume dizer, mas que se traduz de um principal dado pelo autor é a tradução da
etc.; o que resulta num descentramento texto para outro. O fato é que os textos Bíblia – que, no Velho Testamento, é cons- Se voltarmos à questão do he-
epistemológico que oferece ao tradutor e estão escritos em línguas diversas, porém tituída por um aglomerado de textos he- braico, veremos que, ao apagar o caráter
aos seus leitores uma visão mais comple- nunca é a língua que se traduz – siste- breus de tradição oral – segundo um crité- oral da cultura semítica, não apenas fa-
xa da existência humana. Esse descentra- ma fechado –, e sim um acontecimento rio de literatura como escrita. zemos um texto milenar de uma cultura
mento deve acontecer, portanto, por meio na língua. Se traduzimos a língua, acaba- distante soar como intrinsecamente nosso
do apagamento da ilusão de naturalidade mos por traduzir para a nossa língua, ou A estrutura paratática, coordenada do e apagamos suas diferenças estéticas; na
na tradução; o que ela deve deixar trans- seja, para um sistema fechado, sem dar hebraico bíblico é inseparável daquilo verdade, apagamos a própria literatura, e
parecer é seu próprio estatuto ambíguo de ao texto aquilo que o caracteriza – seus que é uma literatura oral. Não é apenas com ela a cultura oral que foi capaz de pro-
tradução e de texto. Para o teórico fran- desvios e idiossincrasias, sua existência a estrutura linguística que se apaga ao duzir aquele pensamento, apagamos toda
cês, a típica ilusão da transparência tradu- singular e histórica– para então criarmos traduzirmos a Bíblia na língua de Bos- a alteridade do texto e, com isso, as pos-
tória pertence ao sistema ideológico, que um texto “natural” e transparente; por suet, ou no estilo dito escrito, como se sibilidades de que ele também realize uma
se constitui pelas noções ligadas de hete- isso, por essa necessidade da relação en- o semítico fosse pensado em francês – é crítica à nossa cultura. De um lado, caímos
rogeneidade entre pensamento e lingua- tre textos, a tradução se torna um even- também essa literatura oral que se apa- no beletrismo das belles infidèles france-
gem, “noções fundadas sobre uma linguís- to translinguístico e transnarcísico (ibid.: gará (ibid.: 345-6). sas; do outro, na subserviência da mule-
tica da palavra, e não do sistema” (ibid.: 313), uma ação de alteridade. Com isso, a ta de leitura. É numa espécie meio-termo
308), que acabam por promover a sacrali- tradução pode romper as dicotomias tra- Dessa forma, a poetização bele- com posição política demarcada, abolindo
zação da literatura e a idealização do texto dicionais para implicar uma leitura crítica trista é tão inócua para a tradução poé- dicotomias e erigindo o leitor-tradutor ao
original e do seu sentido. É desse modo capaz de promover um ato político contra tica quanto a tradução palavra a palavra, estatuto de escritor, que Meschonnic pre-

18 19
tende eliminar a ingenuidade da leitura do a tradução. Sua atividade é a oralidade. A entre poesia e prosa (…) segundo opi- to-mundo (cf. Cassin 2005: 31). Assumir
texto tal qual ele é, ou transparente: “a literatura é sua realização máxima” (2010: na, a estrutura rítmica já é portadora de essa implicação política da linguagem na
poética é a ética do poema” (2007: 27). xxi). Isso implica uma historicidade do ato sentido (2004a: 26). configuração de mundo, muito além de
Uma intervenção crítica do tradutor que tradutório. É então o centramento no leitor mera ornamentação textual, exige que
leve em consideração essa ética opera, em crítico que determina a tradução, ou melhor, Então os dois pensam que a forma o tradutor seja, no fim das contas, tam-
última análise, uma transformação poéti- o traduzir, porque então Meschonnic radica- é muito mais do que um fetiche da obra bém um escritor, alguém que renuncie e
ca e cultural (1973: 319); por isso ele vê liza ainda mais o caráter experimental: poética; a forma é condição do conteú- reenuncie o original por meio de uma nova
na obra de Ezra Pound como tradutor a do, inseparável deste. Assim como no fa- escrita interpretativa e crítica, ciente de
figura de um precursor, ainda inexplorado Digo poética do traduzir, mais do que moso adágio de Maiakóvski, não haveria sua dissemelhança em relação ao origi-
(ibid.: 322-3). Isso ganha ainda mais for- “poética da tradução”, para marcar que arte revolucionária sem forma revolucio- nal. “A tradução é sempre reenunciação.
ça, se levarmos em conta sua insistência se trata da atividade, por meio de seus nária, poderíamos pensar que não existe O tradutor que acreditava não interpre-
sobre a tradução como acontecimento de produtos. Como a linguagem, a litera- tradução política sem uma forma política tar estava, graças ao mesmíssimo pris-
um discurso para outro discurso, não de tura, a poesia são atividades antes de de tradução, sem um olhar para as for- ma ideológico, cego de si mesmo” (1973:
uma língua para outra. Para Meschonnic a gerar produtos. Olhar o produto primei- mas políticas dos textos alheios: explici- 359-60), diz Meschonnic. “O tradutor é
língua, a langue de Saussure, é uma abs- ro é, segundo o provérbio, olhar o dedo, tar a alteridade, nesse caso, é promover um leitor-autor”, complementa Haroldo
tração como um todo; na prática o que te- quando o sábio mostra a lua. uma crítica intensa do contexto presente de Campos (1989: 89), e mais: “só me
mos é sempre parole, a fala; que no caso Antes, quase, poética do retraduzir. ao mesmo tempo em que se critica o texto proponho a traduzir aquilo que para mim
da poesia assume a força discursiva espe- (ibid.: xix). original. Podemos com isso, retornar a um releva em termos de um projeto de mili-
cífica. Traduzir, portanto, não é enfrentar texto de Haroldo, para explicitar a política tância cultural” (2013: 136); e num artigo
uma língua, mas seu acontecimento como Daí que todo traduzir seja em implícita na sua teoria, agora à luz da po- de 1997 Haroldo volta a afirmar que a tra-
discurso; porque na verdade a literatura grande parte retraduzir, uma inserção lítica e da ética em Meschonnic: dução é uma forma de pedagogia (2013:
apenas demonstra com mais especifici- também na história das traduções do tex- 204). Cada tradutor terá um programa,
dade que não existe concretamente a lín- to; mas inserção que contém o germe do ao significar-se como operação trans- ou um projeto de militância cultural, pró-
gua: apenas discursos (1982: 85). Sem imprevisto, já que é sempre experimental. gressora, a tradução põe desde logo prio, vinculado aos seus interesses como
a metafísica da língua, o texto nos chega Por isso, podemos dizer que é na proposta entre parênteses a intangibilidade do leitor e talvez até como autor e, por isso,
dessacralizado, passível da crítica do su- de atualização inventiva e crítica dos tex- original, desnudando-o como ficção capaz de influir sobre o mundo, ou “lan-
jeito que o interpreta e traduz. Com essa tos traduzidos que se unem essas duas e exibindo sua própria ficcionalidade çar mundos no mundo”, como na canção
dessacralização do sentido unívoco do tex- poéticas de Haroldo de Campos e Henri de segundo grau na provisoriedade do de Caetano Veloso. Esse questionamento
to original, Meschonnic ainda insiste num Meschonnic. Até o momento, venho lendo como se. No mesmo passo, reconfigura, profundo que leva à intervenção política e
ponto fundamental: “a poesia não é um Meschonnic à luz de Haroldo de Campos, numa outra concretização imaginária, o poética acaba por exigir muito do tradu-
caso especial na língua” (ibid.: 332); afir- para fazer daí emergir um diálogo intenso; imaginário do original, reimaginando-o tor, para que essa tradução, uma vez feita,
mação que se desdobra em dois aspectos: mas também poderia fazer o movimento por assim dizer (1989: 94). também passe a existir. Como afirma Mes-
por um lado, arruína o estatuto sacralizado inverso, encontrar mais facilmente em Ha- chonnic, “A Bíblia foi traduzida em inglês,
da poesia como palavra intocável, intradu- roldo referências ao poeta, tradutor e teó- Nos dois casos, a intervenção po- em alemão. A Bíblia nunca foi traduzida
zível, como metafísica, originada do gênio, rico francês, sobretudo nos trabalhos com lítica e a transcriação existem num am- em francês” (2010: xxvii). Não há espa-
etc.; por outro, determina que qualquer poesia bíblica (1993, 2004a e 2004b), em biente sem a melancolia por uma perda ço para a humildade, ou para a tradução
pensamento sobre a linguagem deve in- trechos como: irreparável no texto de partida, porque mediana: ela será tradução, ou simples-
cluir a poética, já que a poesia não é anta- ambas as teorias repousam na ideia de mente não será (ibid.: lxi). A conclusão é
gônica aos outros usos da língua, tal como Uma das maiores contribuições do (…) que o texto original não é igual a si mes- que “quanto mais o tradutor se inscreve
a oralidade não se opõe à escrita (sobre francês Henri Meschonnic à poética da mo (diria Meschonnic, que “um texto é como sujeito na tradução, mais, parado-
a falsa oposição entre oral e escrito, cf. tradução bíblica está, a meu ver, na ên- sempre poesia de sua gramática”, 1973: xalmente, traduzir pode continuar o tex-
Finnegan, 1977, passim, e 1982, intro.). fase por ele dada ao aspecto ritmopéico, 345); ele é uma ficção do mundo e de si, to. Quer dizer, em um outro tempo e uma
Na tradução, essa união é explicitada, de rítmico-prosódico, do original hebraico que, por isso mesmo se transforma diante outra língua, dele fazer um texto. Poética
modo que “dois modos de transformação, (…). Julgando não-pertinente quanto aos das várias leituras que lhe são impostas e pela poética (ibid.: xxxiv). O processo crí-
na política e no pensamento, agem sobre textos bíblicos a distinção convencional pode talvez performar com isso um efei- tico que propõe um novo texto no lugar

20 21
do original – arriscando obliterá-lo lucife- do texto original quanto com o presente/ pp. 13-15. Paris: Gallimard, 1970.
rinamente – não será, ao fim e ao cabo, futuro de sua própria cultura: poético, éti- _________. “Da tradução à transficciona- __________. Pour la poétique II: Épisté-
uma resolução; pelo contrário, ele entra na co, político. lidade”. In: 34 Letras. n.3; março de 1989. mologie de l’écriture; Poétique de la tra-
história e convive intertextualmente com Pp. 82-101. duction. Paris: Gallimard, 1973.
o texto original, sem se prestar ao serviço _________. Bere’shith: a cena da origem __________. Jona et le signifiant errant.
de muleta de leitura. É arriscando o apaga- (e outros estudos e poética bíblica). São Paris: Gallimard, 1981.
mento pelo ágon que a tradução, no fim, dá Paulo: Perspectiva, 1993. __________. Critique du rythme: anthro-
continuidade ao original. Do mesmo modo, _________. Hagoromo de Zeami: o char- pologie historique du langage. Lagrasse:
sem facilitar qualquer ideia de fidelidade, me sutil. São Paulo: Liberdade, 1994. Verdier, 1982.
“uma grande tradução é uma contradição _________. “Semiótica como prática e __________. Politique du rythme: Politi-
que se mantém” (ibid.: lxii). Tanto no ágon não como escolástica” (entrevista). In: que du sujet. Lagrasse: Verdier, 1995.
como na contradição, o texto da tradução Depoimentos de oficina. São Paulo: Uni- __________. Gloires: traduction des psau-
ocupa um lugar, ele não será mais trans- marco, 2002. mes. Paris: Desclée de Brouwer, 2001.
porte, nem transparência do original. Por _________. Qohélet = O-que-sabe : Ecle- __________. Éthique et politique du tra-
certo isso pode envolver a questão dos siastes : poema sapiencial (com uma co- duire. Lagrasse: Verdier, 2007.
equívocos do processo tradutório, mas gos- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS laboração especial de J. Guinsburg). São __________. Poética do traduzir. Trad. Je-
taria de ressaltar, como Viveiros de Castro Paulo: Perspectiva, 2004a [1990]. rusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São
(2004 e 2009), que um equívoco não se ALIGHIERI, Dante. Obras completas. Con- _________. Éden: um tríptico bíblico. São Paulo: Perspectiva, 2010.
iguala a outras perdas tradutórias, porque tendo o texto original italiano e a tradução Paulo: Perspectiva, 2004b. OSEKI-DÉPRÉ, Inês. “Make it new”. In:
não se trata de uma falha (como uma fal- em prosa portuguesa. 10 vols. São Paulo: _________. Haroldo de Campos — Trans- MOTTA, Leda Tenório da (org). Céu acima:
ta) de interpretação, pelo contrário - é um Editora das Américas, 1958. criação. org. de Marcelo Tápia & Thelma Mé- para um ‘tombeau’ de Haroldo de Campos.
excesso interpretativo. Tal como a antro- BERMAN, Antoine. A tradução e a letra: ou o dici Nóbrega. São Paulo: Perspectiva, 2013. São Paulo: Perspectiva, 2005, pp. 213-220.
pologia, também a tradução poética se in- albergue do longínquo. Trad. de Marie-Helè- ECO, Umberto. Quase a mesma coisa: ex- RÓNAI, Paulo. Escola de tradutores. Os
teressa pelo equívoco possível, entendidos ne Catherine Torres, Mauri Furlan, Andréia periências de tradução. Trad. Eliana Aguiar. Cadernos de Cultura: Ministério da Educa-
como “o fundamento mesmo da relação Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2007. ção e Saúde, 1952.
que o implica e que é sempre uma rela- BETTINI, Maurizio. Vertere: una antropo- FINNEGAN, Ruth H. Oral poetry: its natu- SANTAELLA, Lucia. “Transcriar, transluzir,
ção com a exterioridade” (2009: 58, trad. logia della traduzione nella cultura antica. re, significance and social context. Cam- transluciferar: a teoria da tradução de Ha-
minha ), porque o equívoco pressupõe a Torino: Einaudi, 2012. bridge: Cambridge University Press, 1977. roldo de Campos” In: MOTTA, Leda Tenório
heterogeneidade das premissas em jogo; CAMPOS, Augusto de. Quase Borges: 20 ____________ (ed.). The Penguin book of da (org). Céu acima: para um ‘tombeau’
no nosso caso, ele funda uma relação que transpoemas e uma entrevista. São Paulo: oral poetry. London: Penguin, 1982. de Haroldo de Campos. São Paulo: Pers-
se desenvolve poeticamente. Isso significa Terracota, 2013. HARDWICK, Lorna. Translating words, trans- pectiva, 2005, pp. 221-232.
que, à diferença do texto argumentativo/ CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como lating cultures. London: Duckworth, 2000. STEINER, George. After Babel: Aspects of
interpretativo, que se baseia numa coerên- criação e como crítica.” In: Metalinguagem JAKOBSON, Roman. “On linguistic aspects of language and translation. Oxford: Oxford
cia argumentativa, e da tradução semânti- e outras metas: ensaios de teoria e crítica translation”. In: BROWER, Reuben A. (org.) University Press, 1975.
ca, que tende a confiar num sentido estável literária. São Paulo: Perspectiva, 2004. On translation. New York: Oxford, 1966. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.“Pers-
do texto original, a tradução poética recria _________. A arte no horizonte do prová- LAGES, Susana Kampff. Walter Benja- pectival anthropology and the method of
o original pela formulação ativa de um novo vel. São Paulo: Perspectiva, 1972. min: tradução e melancolia. São Paulo, controlled equivocation”. In: Tipití: Jour-
texto poético, portanto, passível de inúme- _________. “Luz: a escrita paradisíaca”. Edusp, 2002. nal of the Society for the Anthropology
ras leituras como fora o original; a tradução In: ALIGHIERI, Dante. Seis cantos do Pa- MARTINS, Cláudia Santana. Vilém Flusser: of Lowland Southamerica. No. 1, vol. 2.
poética, em vez de resolver os pontos de raíso. Recife: Gastão de Holanda, 1976. a tradução na sociedade pós-histórica. 2004. pp. 3-22. Consultado em http://di-
abertura pela interpretação mais correta, _________. Deus e o diabo no Fausto de São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2011. gitalcommons.trinity.edu/cgi/viewcontent.
pode preferir mantê-los ou recriá-los, en- Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981a. MCELDUFF, Siobhán. Roman theories of cgi?article=1010&context=tipiti.
quanto performa sua tarefa crítica. E isso _________. “A transcriação do Fausto” translation: surpassing the source. New _________. Métaphysiques cannibales.
só pode acontecer quando o tradutor é um In: “Suplemento de Cultura” d’O Estado York/London: Routledge, 2013. Lignes d’anthropologie post-structurale.
leitor ativo envolvido tanto com o passado de São Paulo, ano II, n. 62, 16-08-1981b, MESCHONNIC, Henri. Les cinq rouleaux. Paris: PUF, 2009.

22 23
Notas

1 São os versos finais de “Sailing to Byzantium”:

“Or set upon a golden bough to sing / To lords and ladies

of Byzantium / Of what is past, or passing or to come”.

2 Haroldo chegou a verter a primeira parte do

ensaio para o português, que está hoje disponível em

2013: 2011-4.

3 Sobre esse ponto complexo do texto, cf. “Poéti-

ca sincrônica” em A arte no horizonte do provável (1972).

4 Haroldo de Campos faz um interessante resu-

mo dos termos que usou até transluciferação (2013: 78-

9): “Desde a ideia inicial de recriação, até a cunhagem de

termos como transcriação, reimaginação (caso da poesia

chinesa), transtextualização ou — já com timbre metafori-

camente provocativo — transparadisação (transluminação)

e transluciferação, para dar conta, respectivamente, das

operações praticadas com Seis Cantos do Paraíso de Dante

(Fontana, 1976) e com as duas cenas finais do “Segundo

Fausto” (Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, Perspectiva,

1981). Essa cadeia de neologismos exprimia, desde logo,

uma insatisfação com a ideia “naturalizada” de tradução,

ligada aos pressupostos ideológicos de restituição da ver-

dade (fidelidade) e literalidade (subserviência da tradução

a um presumido “significado transcendental”do original) —

ideia que subjaz a definições usuais, mais “neutras” (tra-

dução “literal”), ou mais pejorativas (tradução “servil”), da

operação tradutória”.

5 Numa estadia como poeta residente na Casa

das Rosas, consultei e fotografei na Biblioteca Haroldo de

Campos vários trechos de livros de Meschonnic anotados

por Haroldo.

Capa da 1ª edição independente de Finismundo: a última viagem, publicação da Tipografia


do Fundo de Ouro Preto, 1990.

24 25

Você também pode gostar