L ín gu a e L ite ra tu ra , n° 23, p. 269-271, 1997.
Luciano. D iálogos dos M ortos. Versão bilingüe Grego/Por
tuguês. O rganização e Tradução: Henrique G. M urachco. São Paulo, Edusp / Editora Palas Athene, 1996.
Elisa Guimarães *
Ainda que a teoria e a prática da tradução abundem em pro
blem as complexos, o leitor do texto Diálogos dos Mortos, de autoria de Luciano de S am ósata e traduzido por Henrique G. M urachco, desfruta da com odidade de u m a leitura am ena, agradável, das m ais enriquecedoras. Ao tra d u to r cabe a tarefa de fazer equivalerem sis tem as lingüísticos diferentes - o que implica o percurso de cam i nhos particularm ente árduos. Não são difíceis de im aginar, portanto, os escolhos oferecidos por um texto d essa n atu reza a quem se proponha traduzi-lo. Nem por isso, contudo, a obra deixa de exibir um resultado que revela hábil m anejo da pena do bom tradutor: a descoberta, no vernáculo, senão de equivalências, ao m enos de aproxim ações d a queles lances de espelham ento ou consubstancialidade entre sig nificado e significante p resen tes no texto original. Aliás, este é o propósito sob cuja luz o trad u to r confessa ter-se colocado, quando declara: “O trad u to r (...) deve ficar n a som bra e fazer a luz incidir onde deve, isto é, sobre a obra como o au to r a criou” (p. 39). O texto traduzido acum plicia-se, pois, com um criterioso tra balho de fidelidade ao original, n u m a tentativa consciente de debe lar o tem or subconsciente de haver traído o autor. A reprodução, n a íntegra, do original em Grego clássico em cotejo com o texto traduzido apresenta, n u m a prim eira versão p ara a Língua Portuguesa, os Diálogos dos Mortos - pequenas obras-pri m as onde o a u to r Luciano enfeixa m atéria de sum o interesse.
(*) Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, FFLCH/USP.
970 LUCIANO. Diálogos dos Mortos. Versão bilingüe Grego/Português, por Elisa Guimarães. Língua e Literatura, n° 23, p. 269-271, 1997.
M atéria cuja essência é habilm ente m anipulada pela compe
tência do trad u to r que penetra nos m eandros da mensagem, atinge o âmago d a idéia e a traz de volta revestida de roupagem nova. E a tradução p assa a ser vista como cópia transform ada, muito m ais do que como resultado de um m om ento criador. Sabe-se que não b a sta ao trad u to r unicam ente o domínio do léxico, da sintaxe e da sem ântica da língua de partida. Faz-se ne cessário amplo conhecim ento da cu ltu ra e civilização que produziu tal língua. Eloqüente ilustração desse princípio são a s considerações tecidas n a introdução da obra, bem como as notas esclarecedoras dos efeitos visados no original, p ara as quais o trad u to r remete o leitor. Tem-se aí um precioso m anancial de informações, a come çar por dados biográficos do autor dos Diálogos - apresentado, a um tempo, como reform ador de idéias e criador de formas. Panfletário, m oralista, polêmico, Luciano inclina-se a explo ra r tem as sugeridos por acontecim entos ou incidentes do dia-a- dia, bem como por su a s m uitas leituras ou entretenim entos com amigos. A esses dados o trad u to r acopla elucidativos com entários so bre História Verdadeira - obra satírica O A sno ou Lúcio - novela picaresca -, Acusado d uas vezes - obra em que o réu é o próprio Luciano, acusado pela Retórica por a ter abandonado, e pelo Diálogo por o ter traído e deformado. Com pletam ain d a o ato tradutório que, segundo Ortega y Gasset, “é um cam inho até a obra original”1 as notas de referência no final de cada diálogo, que dinam izam um a espécie de segundo contexto - um contexto implícito, tão im portante quanto o contexto explícito, p ara explicar as dificuldades do texto e p ara supri suas eventuais lacunas. Cercam -se essas n otas de rica variedade de assuntos, ofere cendo ao leitor o deleite de recapitular conhecim entos de História e Mitologia Grega, de Geografia, de Etimologia, de Filologia, de
(1) “Miséria y Esplendor de la Traducción” In: Misión dei Bibliotecário. Madrid,
Revista do Ocidente, 1967, 2 a ed., p. 130. L ín g u a e L ite ra tu ra , n° 23, p. 269-271, 1997. 271
Versificação, e até mesmo de Botânica, como se lê no verbete “eléboro
ou heléboro: p lan ta d a família das liliáceas - com um n a Europa; - o rizoma dela contém um vermífugo e purgativo drástico. Os antigos atribuíam a essa p lan ta a cu ra da loucura” (p. 83). A variedade e a riqueza das no tas situam o trabalho do tra d u tor no âm bito da tran slação - term o criado pelos editores da Revista alem ã “TexTconTexT” p a ra designar ao mesmo tem po tradução e interpretação. São freqüentes as n o tas interpretativas, como se pode obser var n a seguinte passagem : “Luciano joga m uito com o senso co m um . Aqui ele se serve de dois provérbios m uito conhecidos: “não se tira de quem não tem ” - “saco vazio não pára em pé” (p. 56). Sente-se, pois, o tra d u to r dando conta do contexto situativo- cu ltu ral em que se en q u ad ra a obra original, conscientizando-se de todas essas dim ensões de situação, por meio das quais se m anifes ta o sentido no texto. Dispõe por isso de condições p ara estabelecer a equivalência ideal de sentido entre o texto-fonte e o texto em tradução. A fidelidade ao original, a introdução e as no tas explicativas fazem da trad u ção de H enrique G. M urachco um trabalho de erudi to, u m a lição de professor cuja com petente dedicação seus alunos d a Universidade de São Paulo m uito têm a louvar e a agradecer. A form ação teórico-prática do trad u to r reflete-se em toda a obra - esta alicerçada em sólida base científica - o que a aponta como guia indispensável, não só para os que se iniciam nesse campo, como ain d a p a ra aqueles que se dedicam já h á algum tem po às tarefas de tradução.