Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
M
uitas vezes a leitura do Curso de Lingüística Geral1 (doravante
CLG) é antecedida ou até substituída pela leitura de obras
introdutórias ou manuais que abordam o CLG nos cursos de
graduação.
Surge então a dúvida: serão elas correspondentes aos temas aborda-
dos no curso? Trarão elas o registro do quanto o pensamento Saussuriano
é complexo e fora sendo reformulado pelo autor ao longo dos seus cur-
sos? A noção de autoria atribuída a Saussure repercute numa leitura
homogeneizadora das idéias do mesmo? Abordarão os manuais a interfe-
rência (se há) dos organizadores do CLG e suas conseqüências? Quais
noções são priorizadas pelos manuais e de que forma?
Enfim, muitas outras questões podem ser levantadas a respeito dessa
maneira de “apresentar” as idéias do mestre genebrino aos estudantes de lin-
güística e áreas afins, parece ser relevante e pertinente, portanto, que se lance
um olhar mais detido a essas obras, ainda que de uma forma singela e breve.
1
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. 27ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
Henge, Gláucia da Silva.
118 ObrasintrodutóriasàleituradeSaussure: o que falam e como falam do CLG?
O autor e a obra
As edições brasileiras do CLG trazem em suas primeiras páginas o
quadro biográfico de F. de Saussure. Neste quadro são apresentados os prin-
cipais fatos da pouco conhecida vida do estudioso, obras publicadas, uni-
versidades em que ensinou e as datas dos cursos de lingüística geral minis-
trados em Genebra; a saber: 1907 (1o curso), 1908/1909 (2o curso) e 1910/
1911 (3o curso).
Logo em seguida, o CLG traz os prefácios às 1a, 2a e 3a edições da
obra escritos pelos seus organizadores Charles Bally e Albert Sechehaye.
O prefácio à 1a edição, ainda que sucinto, é de capital importância, uma
vez que expõe a metodologia empregada pelos organizadores na confec-
ção do CLG, além de algumas preciosas informações.
No primeiro parágrafo os organizadores pontuam um aspecto mui-
to importante dos cursos ministrados por Saussure: “as necessidades do
programa o obrigaram a consagrar a metade de cada um desses cursos a
uma exposição relativa às línguas indo-européias, sua história e sua des-
crição, pelo que a parte essencial do seu tema ficou singularmente reduzi-
da”.2 Isto já deixa evidente a incompletude dos cursos quanto às idéias
inovadoras de Saussure, uma vez que este possuía apenas brechas para a
inserção de suas reflexões, talvez num verdadeiro esforço de adequá-las
ao programa conforme seu andamento...
Mais adiante, os organizadores comentam a expectativa de que pos-
suíam após a morte do professor Saussure de encontrar em seu acervo
pessoal “a imagem fiel, ou pelo menos suficientemente fiel de suas geniais
lições”3 para que, simplesmente unindo as notações dos estudantes e os
manuscritos do professor, obtivessem uma publicação. Bally e Sechehaye
2
SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística geral 27ed. São Paulo: Cultriz, 2007, p1
3
Idem, p. 1.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 117-135, 2008 119
4
Idem, p 1.
5
Idem, p 3.
6
Idem, p 3.
7
Idem, p 3.
8
Idem, p 4.
Henge, Gláucia da Silva.
120 ObrasintrodutóriasàleituradeSaussure: o que falam e como falam do CLG?
9
CULLER, Jonathan. As idéias de Saussure. São Paulo: Cultrix, 1979.
10
Idem, p. 1.
11
Idem, p. 3.
12
Idem, p. 3.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 117-135, 2008 121
de “maior interesse para os leitores deste livro [As idéias de Saussure] que os
debates acerca da natureza precisa das distinções e categorias lingüísticas de
Saussure”.13
O primeiro capítulo do livro é intitulado O homem e o curso, e é, sem
dúvida, uma tentativa feliz de Culler em situar quem foi Saussure e o por-
quê do curso ser o que é. Inúmeras informações acerca da infância e da
juventude de Saussure são trazidas, deixando claro o interesse precoce do
estudioso por línguas e sua inserção nos estudos de lingüística histórica.
O autor comenta a dissertação sobre o Primitivo Sistema das Vogais nas
Línguas Indo-européias, a repercussão e o reconhecimento de seu conteú-
do. Mas traz também a “decente obscuridade provinciana” em que Saussure
passou a viver em Genebra e seu desprazer com a terminologia da Lin-
güística de seu tempo.14 O resgate da biografia de Saussure que Culler faz,
ainda que sucinta, é esclarecedora e dá conta de situar o leitor da comple-
xidade do texto com se defrontaria ao ler o CLG. Ao tratar do modo em
que o curso foi confeccionado, comenta que Bally e Sechehaye, “colegas
que não haviam assistido eles próprios às conferências” decidiram tentar
uma síntese, sendo esta decisão “grandemente responsável pela influência
de Saussure”.15
Culler ainda brinca com o fato de que dificilmente um professor gosta-
ria de ter suas aulas publicadas desta maneira, extremamente sujeito a falhas e
equívocos; mas reconhece que “o Cours de Linguistique Générale, tal como
foi criado por Bally e Sechehaye, é a fonte da influência e da reputação de
Saussure (...). Foi o Cours mesmo que influenciou sucessivas gerações de lin-
güistas”.16
De uma maneira bem didática, Culler ainda se preocupa em trazer
pontos em que comparar as notações dos alunos publicadas somente a
partir de 1967 com o texto do curso pode evidenciar distorções ou falsi-
ficações do pensamento saussuriano por conta dos organizadores. Culler
enumera os problemas do texto do CLG: “sua ordem de apresentação
13
Idem, p. 4.
14
Idem, p. 9.
15
Idem, p. 10
16
Idem, p. 10.
Henge, Gláucia da Silva.
122 ObrasintrodutóriasàleituradeSaussure: o que falam e como falam do CLG?
17
Idem, p. 10.
18
Idem, p. 10.
19
Idem, p. 11.
20
CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
21
Idem, p. 13.
22
Idem, p. 15.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 117-135, 2008 123
23
Idem, p. 25.
24
Idem, p. 25.
25
SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística geral. 27 ed. São Paulo: Cultriz, 2007, p. 2.
Henge, Gláucia da Silva.
124 ObrasintrodutóriasàleituradeSaussure: o que falam e como falam do CLG?
de a ter uma visão mais clara da logicidade seguida por seu mestre durante o
curso, entre outros fatores. Já o trabalho de Bally de Sechehaye fora muito
mais árduo, complexo e meritório exatamente por não terem sido
freqüentadores dos cursos, possuindo concretamente apenas as informações
que lhes chegaram pelos “filtros” dos estudantes.
Ao definir o CLG quanto à sua confecção, Carvalho apenas afirma “Tra-
ta-se, portanto, de obra póstuma e inacabada, calcada em anotações colhidas em
aula por seus alunos e, como tal, explicam-se as possíveis obscuridades e contra-
dições das idéias de Saussure”.26 Em seguida o autor retoma o contexto históri-
co de Saussure atribuindo-lhe o mérito de, pela sua metodologia, propor uma
linguagem unívoca, de um padrão lingüístico, uma metalinguagem27 para a Lin-
güística como ciência.
Citando um trecho do capítulo 1 da introdução do CLG, Carvalho usa
o termo geral “Lingüística” como objeto da crítica de Saussure “jamais se
preocupou em determinar a natureza do seu objeto de estudo (...)”.28 Na
verdade, o texto do CLG critica a Escola Comparatista de Schleicher e Bopp
e passa a determinar de Lingüística “propriamente dita, que deu à compara-
ção o lugar que exatamente lhe cabe, [aquela que] nasceu do estudo das
línguas românicas e das línguas germânicas” com os estudos de Diez e
Whitney.
O manual deixa de fazer alusão a toda a reflexão trazida pelo capítulo
do CLG Visão Geral da História da Lingüística, refazendo o percurso do argu-
mento de Saussure quanto à necessidade de delimitação do objeto da Lin-
güística. A leitura do manual pode passar a impressão de que Saussure ape-
nas resolveu fazer o que não havia sido feito, sendo que ele estava a
redimensionar algo que os neogramáticos apenas tateavam em seus estudos:
“não se pode dizer que [a escola dos negramáticos] tenha esclarecido a tota-
lidade da questão, e ainda hoje, os problemas fundamentais da Lingüística
Geral aguardam uma solução”.29
26
CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure, 14 ed. Petrópolis: Vozes,
2003, p. 25.
27
Idem, p. 26.
28
SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística geral 27 ed. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 10.
29
Idem, p. 12.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 117-135, 2008 125
30
Idem, p. 115.
31
CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 14 ed. Petrópolis: Vozes,
2003, p. 27.
Henge, Gláucia da Silva.
126 ObrasintrodutóriasàleituradeSaussure: o que falam e como falam do CLG?
32
CULLER, Jonathan. As idéias de Saussure. São Paulo: Cultrix, 1979, p. 14.
33
Idem, p. 15.
34
SAUSSURE, F. de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 79, 80, 81.
35
CULLER, Jonathan. As idéias de Saussure. São Paulo: Cultrix, 1979, p. 15.
Henge, Gláucia da Silva.
128 ObrasintrodutóriasàleituradeSaussure: o que falam e como falam do CLG?
Mais adiante, o autor pontua “o signo é arbitrário por não haver nenhum elo
intrínseco entre significante e significado” e segue refutando uma dedução que
se poderia ter a partir dessa noção que há significante e significado unidos
pelo signo. Isto o próprio Saussure pontuou quando disse ser fácil fazer da
bíblica ação de Adão em dar nome às feras, uma explicação da natureza verda-
deira da língua. Culler segue na direção do pensamento Saussure e acrescenta
que se acaso existissem de fato conceitos universais aos quais apenas haveria
significantes distintos conforme línguas distintas seria fácil traduzir de uma
língua para outra, e aprender uma nova língua não seria tão difícil como é.36
Aproximando-se mais do mestre genebrino quando enfatizava com o axio-
ma da língua como sistema (de signos) e não como nomenclatura de referentes do
mundo, Culler afirma “Cada língua articula ou organiza o mundo diferentemente.
As línguas não nomeiam simplesmente categorias existentes: articulam as suas
próprias categorias”37 e segue ainda trazendo mais argumentos que rebatem a
visão da língua como simples nomenclatura.
Bastante distanciado do texto do CLG, Culler segue sua abordagem da
arbitrariedade do signo deduzindo que “O fato de que a relação entre
significante e significado é arbitrária significa, então, que como não exis-
tem conceitos universais fixos, o significado em si é arbitrário, assim,
como o significante. (...) ambos, significante e significado, são entidades
puramente relacionais ou diferenciais”.38
Culler estabelece aqui um ponto importante, que invocaria
a abordagem da noção de valor (que ele não o faz), pois ele
percebe a dupla arbitrariedade vislumbrada por Saussure: a
arbitrariedade do significante (entre o conceito e imagem
acústica) e a arbitrariedade da língua (entre um termo e os
outros termos do sistema) conforme esclarece Bouquet
(BOUQUET, pág. 233). Talvez este seja o mérito de Culler,
ainda que sucinto e extremamente seletivo quanto ao texto
do CLG, este busca retomar, de fato, as idéias de Saussure e
aproxima-se muito (ainda nos anos 70) de pontos
significativos, como um leitor atento do CLG.
36
Idem, p. 15.
37
Idem, p. 16-17.
38
Idem, p. 18.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 117-135, 2008 129
39
CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure 14 ed. Petrópolis, vozes, 2003 p. 30.
40
DE MAURO, Tullio. As notas à edição francesa do CLG. In: ______. Cours de Linguistique
generale. Édition critique préparée par T. Mauro. Paris: Payot, 1972. Polígrafo (trad.port.).
41
DE MAURO, Tullio. As notas à edição francesa do CLG. in: ______. Cours de Linguistique
generale. Édition critique préparée par T. Mauro. Paris: Payot, 1972, p. 6.
Henge, Gláucia da Silva.
130 ObrasintrodutóriasàleituradeSaussure: o que falam e como falam do CLG?
42
CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 14 ed. Petrópolis: Vozes 2003, p. 30.
43
Idem, p. 32
44
Idem, p. 33.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 117-135, 2008 131
* —————————— a
Objetos * —————————— b Nomes
* —————————— c
enquanto que verdadeira figuração é: a – b – c, fora de todo (conheci-
mento de uma relação efetiva com * —————— a, fundada sobre um
objeto)”.45
Ao abordar pontualmente a noção de arbitrariedade do signo
lingüístico Carvalho cita o trecho do CLG “o signo lingüístico é arbitrá-
rio” (CLG, pág. 81) e mais uma vez não faz menção alguma à esclarecedora
nota 136 de Tullio de Mauro, que esclarece ser todo o parágrafo uma
mistura feita pelos editores de diferentes aulas e que nos manuscritos na
verdade encontrava-se “o vínculo que une o significante ao significado é
radicalmente arbitrário”.46 O autor ignora também todo o capítulo dois
de Bouquet, que pontua e reforça tratar-se o arbitrário de “duas relações
bem distintas: ele vale, de um lado, para a relaçào interna ao signo, entre
significante e significado; vale, de outro lado, para a relação que une en-
tre eles os termos do sistema de uma língua dada”.47
Carvalho reproduz os mesmos exemplos do texto do curso (mar,
boeuf/böf/oks) acrescentando um exemplo não muito claro dos ver-
bos depoentes latinos. Não tece nenhuma crítica ao exemplo clássico
do boi de cada lado da fronteira, ainda que seja um exemplo amplamen-
te criticado, refutado, comentado etc., e chega a sintetizar que qualquer
significante é válido,48 não havendo significante “verdadeiro”. Entre-
tanto, no subitem que traz as críticas ao princípio de arbitrariedade,
Carvalho transcreve a crítica de Benveniste à Saussure, e esclarece acer-
tadamente que os críticos não apreenderam o pensamento saussuriano
45
DE MAURO, Tullio. As notas à edição francesa do CLG. In: _____. Cours de Linguístique
generale. Edition critique préparée par T. Mauro. Paris: Payot, 1972, p. 3.
46
Idem, p. 5.
47
BOUQUET, Simon. Introdução à Leitura de Saussure. São Paulo: Cultrix, 2000, p.
234.
48
CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 14 ed. Petrópolis: Vozes
2003, p. 34.
Henge, Gláucia da Silva.
132 ObrasintrodutóriasàleituradeSaussure: o que falam e como falam do CLG?
49
Idem, p. 49.
50
Idem, p. 36 a 37.
51
Idem, p. 39.
52
Idem, p. 153.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 117-135, 2008 133
também as reflexões de Bouquet (que ele cita como fonte bibliográfica, disto
pode-se lembrar sempre) sobre a importância do valor em Saussure. Não há
qualquer menção ao fato que pela leitura exclusivamente do texto do CLG infe-
re-se que o arbitrário absoluto se dá no signo, entre o significante e o significa-
do, e que o arbitrário relativo se dá na língua, entre os elementos do sistema. A
seguir, Carvalho dedica três páginas às reflexões de Pierre Guirand acerca da
motivação e sobre isto, haveria muito a ser dito, acabando por compor um outro
artigo completo, fica aqui, portanto, apenas o registro.
Por fim, o autor aborda a linearidade do significante e valendo-se do
exemplo de Martinet sobre “bata” e “pata” discorre sobre unidades discretas
da língua e sua sucessão temporal como definição dessa linearidade. Interes-
sante notar que Carvalho ressalta ser a linearidade apenas do significante e
não do significado (como se pudessem existir independentemente) e associa a
noção de significado à de pensamento dizendo que “do enunciado saussuriano
depreendemos que somente a parte material do signo – o significante – é
linear e que o pensamento, em si mesmo, não tem partes, não é sucessivo, só
o sendo quando se concretiza através das formas fônicas lineares do
significante” e mais adiante associa ainda a noção de estrutura profunda de
Chomsky ao pensamento funcionando como uma força estruturante.53 Há
aqui uma confusão com o que é abordado no CLG no capítulo quatro da
segunda parte sobre o valor lingüístico, quando o papel da língua é apresenta-
do como intermediário entre o pensamento e o som; por certo, não é disso
que fala o curso quanto à linearidade do signo. Além disso, fica a dúvida se
cabe realmente falar em gerativismo (e de uma forma tão superficial) em uma
obra que se dispõe a ser um manual introdutório à leitura de Saussure.
Considerações finais
A leitura dos dois livros aqui realizada permite distingui-los em alguns
aspectos. Sem dúvida alguma se trata de obras de natureza diferentes. En-
quanto As idéias de Saussure busca trazer elementos gerais do pensamento
saussuriano como fundamento para reflexões em diversas áreas das ciências
humanas, evidenciando em seu texto um caráter mais generalizante e pouco
detido em caracterizações e definições amplamente abordadas no CLG, Para
53
Idem, p. 45 e 46.
Henge, Gláucia da Silva.
134 ObrasintrodutóriasàleituradeSaussure: o que falam e como falam do CLG?
ABSTRACT
Recebido em 10/12/2007
Aprovado em 5/06/2008