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curso, comparando todas as versões, chegar até o pensamento do
qual tínhamos apenas ecos, por vezes discordantes” (CLG, Prefácio
à primeira edição, p.2). Considerando essas e outras dificuldades, o
objetivo dos editores era: “tentar uma reconstituição, uma síntese,
com base no terceiro curso, utilizando todos os materiais de que dis-
púnhamos, inclusive as notas pessoais de Saussure. Tratava-se, pois,
de uma recriação” (Ibid., p.3).
Posteriormente, o CLG sofreu duras críticas desencadeadas após
Robert Godel publicar, a partir de 1941, em números sucessivos dos
“Cahiers Ferdinand de Saussure”, outras fontes do CLG que não fo-
ram consultadas pelos editores, além de anotações inéditas de Saus-
sure que começaram a ser divulgadas nos “Cahiers” a partir de 1954.
Em 1957, Robert Godel publica o livro “Les sources manuscrites du
Cours de linguistique générale” (As fontes manuscritas do Curso de
Linguística Geral), que confrontava o CLG com as anotações dos
alunos, mostrando que as fontes consultadas pelos editores e a forma
de reconstrução dos cursos ministrados não se correspondiam entre
si, e o CLG não correspondia a nenhuma delas. Bouquet e Engler
(2012) questionam o rótulo “fontes” atribuído por Godel ao corpus
recenseado se uma grande parte desses documentos não serviu de
fonte para a elaboração do texto editado por Bally e Sechehaye.
Mais tardiamente, em 1996, oito décadas após a publicação do
CLG, foram encontrados os manuscritos de Saussure em um anexo
de sua residência e também um livro ainda não concluído, “Da dupla
essência da linguagem”3, revelado em 2002, nos “Écrits de Linguisti-
que Générale” (Escritos de Linguística Geral), organizado por Simon
Bouquet e Rudolf Engler. A partir do estudo das notas saussurianas,
estudiosos como Simon Bouquet insistiram sobre o ponto de que a
tese defendida no CLG não corresponderia à tese de Saussure. No
que diz respeito ao arbitrário do signo, por exemplo, Simon Bouquet
(2004) afirma com veemência que os editores não só criaram enun-
ciados que não têm registro em nenhuma das fontes manuscritas
como também tais enunciados se contrapõem às ideias de Saussure.
Um dos pontos mais discutidos desde a publicação do CLG, que
acompanha o desdobramento das discussões com a publicação das
notas dos alunos e também das notas saussurianas, é a temática do
arbitrário do signo. Trata-se de uma discussão que remonta às pri-
meiras reflexões sobre a linguagem e que continua a instigar diver-
gências entre aqueles que se aventuram a estudar esse objeto tão fu-
gidio que a Linguística tomou para si como seu objeto de estudo, a
língua.
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“O princípio da arbitrariedade do signo não é contestado por nin-
guém” (CLG, p. 82)
A maior parte das críticas ao CLG é direcionada ao princípio da ar-
bitrariedade do signo, sobre o qual se afirma, curiosamente, que não há
contestações, o que, segundo Arrivé (2010), é essencialmente exato na
época de Saussure. No entanto, segundo esse mesmo autor, essa afir-
mação implica o esquecimento de opiniões contrárias que, em muitos
momentos da história da reflexão sobre a linguagem, foram formuladas
sobre o arbitrário do signo. Essa questão da arbitrariedade é um dos as-
pectos da teoria de Saussure que mais gera debate e continua sendo um
ponto de divergência entre os estudiosos. O ponto de discórdia está no
exemplo escolhido para ilustrar o princípio da arbitrariedade do signo.
As discussões em torno desse exemplo apontam para o fato de que ele
estaria em flagrante contradição com a definição de signo, isto é, esse
exemplo estaria apontando para uma concepção de língua enquanto
nomenclatura, rejeitada por Saussure, e que acabaria implicando deslo-
camento da relação arbitrária entre o significado e o significante para a
relação entre o signo e o referente.
Quem vai dar início a esse debate é Benveniste, referido por vários
estudiosos como um dos primeiros a questionar o princípio da arbitra-
riedade. Segundo Normand (2009), Benveniste
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implica deslocamento da relação da arbitrariedade entre significado e
significante, para uma relação do signo com algo que lhe é exterior, que
é o objeto. Desse modo, é o referente que se mantém, enquanto o signo
varia de uma língua para outra, por exemplo, quando um francês diz
mer (mar) e um inglês diz sea, eles estão se referindo a uma mesma
realidade. Portanto, para Benveniste, “o arbitrário só existe aqui em rela-
ção com o fenômeno ou objeto material e não intervém na constituição
do próprio signo” (Benveniste, 1995 [1988], p.57), ou seja, o arbitrário
não está no signo em si, mas na relação do signo com a realidade. No
entanto, a negação da arbitrariedade do signo não diminui o mérito de
Saussure, pois segundo Benveniste:
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termináveis sobre a questão do arbitrário, que começaram em 1916 e
duraram meio século” (Id., 2004, p.237). Segundo Bouquet (1997), ao
referir esse exemplo, Saussure estava tematizando, de forma estrita, a
respeito da teoria do valor linguístico, uma vez que essa noção ainda
não havia sido desenvolvida junto a seus alunos. Nesse sentido, Saussure
estava ciente das possíveis complicações desse exemplo e, ao contrário
do que aparece no Cours, o exemplo polêmico foi usado somente para
ilustrar o princípio da arbitrariedade do significante, isto é, ilustrar a
tese convencionalista da arbitrariedade, e, para isso, uma concepção
ingênua de língua como nomenclatura era perfeitamente suficiente
(Ibid.). Desse modo, o autor atribui à ingenuidade voluntária do exem-
plo ao fato de que a teoria do valor ainda não havia sido desenvolvida,
o que fez com que o princípio da arbitrariedade do significante fosse
dado, inicialmente, como evidente para, posteriormente, ser retomado
e desconstruído. O que, para Bouquet (Ibid.), pode ter “enganado” Ben-
veniste é a formulação do CLG que ele cita no início de seu artigo: A
ligação entre o significante e o significado é arbitrária ou simplesmente
o signo lingüístico é arbitrário”, a qual, segundo Bouquet (Ibid.), não
se baseia em nenhuma das notas dos alunos. Bouquet (Ibid.) questiona
Benveniste pelo fato de que, mesmo conhecendo as condições de elabo-
ração do CLG, ele insiste em se dirigir a Saussure como autor do CLG.
Isso, ainda hoje, é dado como uma evidência que se cristalizou, embora
nunca tenha sido omitida a forma como o CLG foi elaborado. Bouquet,
a partir dos textos originais de Saussure, os quais se chegou a acreditar
que talvez nunca fossem encontrados ou talvez nem existissem, vem
tentando insistentemente desassociar o CLG das ideias de Saussure.
No entanto, nem todos que tiveram conhecimento dos textos origi-
nais saussurianos partilham do mesmo posicionamento de Bouquet e
tampouco acreditam que a crítica de Benveniste seja infundada. Arrivé
(2010), por exemplo, assume uma postura oposta a de Bouquet (Id.),
sendo que, para ele, pouco importam “as invectivas contra os editores
de 1916, [ou] as lamentações a respeito de outros projetos de edição”
(Arrivé, 2010, p.23). Para esse autor, o CLG, em relação a Saussure, seria
“o que são os Evangelhos apócrifos em relação à Verdade revelada” (op.
cit.)5.
Quanto à polêmica em torno do princípio da arbitrariedade, Arrivé
(Ibid.) considera que o exemplo dado no CLG é fiel à formulação inicial:
“a ideia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência
de sons m-a-r que lhe serve de significante” (CLG, p.81)6. Se não existe
uma relação natural entre a ideia de “mar” e a sequência de sons “m-a-r”,
pressupõe-se que o significado “mar” poderia estar associado a outro
significante existente na língua, mas qual seria, se a noção de valor im-
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plica oposição entre os signos da língua? Desse modo, essa relação arbi-
trária entre o significado e o significante só poderia ser percebida a par-
tir da comparação entre línguas diferentes. E assim, Saussure continua:
Além disso, em nota, Arrivé (Ibid.) destaca que a citação usada por
Benveniste não encontra correspondente no CLG. Sobre a crítica de
Benveniste, Arrivé (Ibid.) faz uma única ressalva quanto à relação ne-
cessária entre o significado e o significante defendida por Benveniste.
Para Arrivé (Ibid.), a análise realizada por Benveniste é incontestável,
o que pode ser discutível é em que medida essa demonstração sustenta
a tese da relação necessária entre significado e significante, porque, na
visão de Arrivé (Ibid.), a análise de Benveniste é neutra em relação à
questão do arbitrário ou da necessidade. Sendo assim, se, por um lado,
Saussure não consegue demonstrar o princípio da arbitrariedade do sig-
no, por outro, Benveniste também não consegue demonstrar a relação
necessária entre significado e significante.
Roman Jakobson, que foi um dos primeiros a citar Saussure em outra
língua que não o francês (Gadet, 2000), também vai entrar nessa dis-
cussão sobre a arbitrariedade do signo, no texto “À procura da essência
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da linguagem”. Diferentemente dos autores já citados, Jakobson (1969)
não discute se o signo linguístico é ou não arbitrário, suas críticas são
direcionadas à pretensão de novidade da interpretação saussuriana so-
bre o signo linguístico. Sempre com uma postura crítica em relação às
dicotomias saussurianas, Jakobson (Ibid.) também vai colocar em cau-
sa a originalidade das noções cardinais e dos princípios introduzidos
por Saussure (Gadet, 2000). Para Jakobson (Ibid.), o grande legado de
Saussure não poderia ser o princípio da arbitrariedade do signo, pois
essa concepção, inclusive a terminologia adotada por Saussure, remonta
à doutrina dos estóicos, que data de aproximadamente dois mil anos
atrás. Dessa forma, Jakobson (Ibid.) procura mostrar que o princípio da
arbitrariedade constitui um problema recorrente nos estudos da lingua-
gem desde a Antiguidade, sendo que Saussure é apenas mais um que se
dedica ao estudo da conexão entre som e significado. Dentre os auto-
res que trabalharam com uma doutrina similar a de Saussure no sécu-
lo XIX, Jakobson (Ibid.) aponta Humboldt, cujos trabalhos apontavam
para a conexão apenas aparente entre o som e o significado, e também
destaca Whitney (1867, 1874), que, por sua vez, definia a língua como
um sistema de signos arbitrários e convencionais, doutrina essa que, in-
clusive, vai ser retomada no CLG e passa a ocupar um lugar importante
na teoria saussuriana. Em se tratando de originalidade, para Jakobson,
“o pensador mais inventivo e universal foi provavelmente Charles San-
ders Peirce” (Ibid., p.99), uma vez que
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Considerações finais
O CLG continua suscitando discussões polêmicas, seja pelas contra-
dições do Cours em si, seja pelas discordâncias entre as anotações dos
alunos, ou ainda pelo distanciamento do CLG em relação aos escritos
saussurianos originais. Sobre esses pontos, muitos estudiosos vêm to-
mando diferentes posições, a saber, ou considera-se o CLG como uma
farsa, na medida em que os editores teriam atribuído a autoria do CLG
a Saussure sem que, no entanto, o CLG tenha uma única afirmação que
esteja de acordo com as notas manuscritas do mestre, ou, ainda, prefe-
re-se uma posição que defende a autoria do CLG como de Saussure e
propõe um olhar para as próprias contradições do Cours, independente-
mente da sua coerência com os escritos saussurianos originais. Haveria
ainda uma terceira posição, a que consideraria os escritos originais na
medida em que eles poderiam apontar para uma melhor compreensão
do CLG em si, sem desautorizá-lo.
Apesar de o legado de Saussure ser apenas uma aproximação de seu
pensamento, as suas reflexões foram muito profícuas e continuam a des-
pertar debates e discussões na contemporaneidade. Se a língua é um
objeto inatingível e a questão da arbitrariedade continua sendo tema
de discussões intermináveis, não há como negar a importância da con-
tribuição de Saussure não só para a Linguística, mas também para as
ciências humanas. Nesse sentido, procuramos orientar nosso trabalho,
mobilizando essas discussões sem, no entanto, tomar partido de uma ou
de outra, pois entendemos que a essência do pensamento saussuriano
continua sendo um enigma, uma vez que se trata de uma reflexão que
não chegou a ser concluída. Não nos preocupamos em saber qual des-
ses estudiosos está com a verdade, até mesmo porque os linguistas não
se ocupam da verdade, interessa-nos apenas a riqueza da profundidade
do empreendimento saussuriano e a repercussão de seus estudos ainda
hoje. Assim, entendemos que o linguista aprendeu a conviver com o
desconforto e a inquietação provocados pela natureza fugidia do objeto
da Linguística e o que move as constantes reflexões sobre a linguagem
é essa questão mal resolvida entre a Linguística e seu objeto, discussão
essa que remonta sempre a Saussure.
Notas
1 Esse texto foi escrito inicialmente para avaliação da disciplina “Seminário Avançado
em Saussure”, do Curso de Mestrado em Letras – Estudos Linguísticos (UFSM), durante
o primeiro semestre de 2010, disciplina essa ministrada pela Professora Dr. Amanda
Eloina Scherer. Agradeço à Professora Dr. Amanda Scherer, não só pela orientação e
pelas importantes contribuições para a escritura desse texto, mas também pelo incenti-
vo para levar adiante o desafio de estudar Saussure, esse grande linguista cujas reflexões
nunca cessam.
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2 Acadêmica do segundo semestre do Curso de Doutorado em Letras – Estudos Lin-
guísticos da Universidade Federal de Santa Maria – Santa Maria (RS-Brasil); E-mail: ira-
ciscosta@yahoo.com.br. Bolsista CAPES. Orientanda da Professora Dr. Amanda Eloina
Scherer.
3 Na verdade, trata-se de um texto que “continua a ser, como dizer isso?, um rascunho,
desde que se retire do termo rascunho toda e qualquer conotação pejorativa” (Arrivé,
2010, p.45). Esses documentos foram encontrados também em 1996 e agrupados por
Bouquet e Engler “sob o título de ‘Da essência dupla linguagem’, eles provêm, em sua
grande maioria de um grande envelope que contém maços de folhas da mesma natu-
reza e do mesmo formato, sendo que várias delas trazem a menção: ‘Da dupla essência
da linguagem’, ‘Dupla essência’ ou ‘Essência dupla (da linguagem)’”. (Bouquet e Engler,
2002, p.16)
4 “illustrer comment la critique de Saussure par Benveniste se construit sur fond d’une
perspective en trompe-l’oeil. Cette perspective en trompe-oeil, c’est celle du Cours de
linguistique générale (ci-après CLG)” (Bouquet, 1997, p.107)”.
5 Isaac Salum faz uma analogia semelhante no prefácio do CLG onde ele afirma que
“Saussure - como Sócrates e Jesus - é recebido de ‘segunda mão’” (CLG, Prefácio à edição
brasileira, p. XVI).
6 Estamos considerando aqui a 27ª edição brasileira do CLG. Cabe ressaltar, uma vez
que a edição que Arrivé cita traz a palavra “irmã” como exemplo no lugar de “mar”.
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