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Estudos da Tradução:

uma introdução

Profa. Antonia de Jesus Sales


Estudos da Tradução: uma introdução1
Figura 1: A tradução além do dicionário.

Fonte: https://pixabay.com/pt/photos/l%C3%ADngua-aprendizagem-livros-educa%C3%A7%C3%A3o-2345801/

1
Antonia de Jesus Sales - Natural de Pentecoste-CE. Doutoranda em Estudos da Tradução pela Universidade
Federal de Santa Catarina (PGET-UFSC), pesquisando os aspectos paratextuais em uma obra de Clarice
Lispector. Mestra em Estudos da Tradução pela Universidade Federal do Ceará (POET-UFC), pesquisando o uso
de atividades de tradução no ensino de línguas estrangeiras. Especialista em Impactos da Violência na Escola
(FIOCRUZ/2017) e em Tecnologias Digitais na Educação Básica (UECE/2018). Licenciada (2011) e Bacharela
(2018) em Letras-inglês pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e em Tecnologia em Hotelaria pelo
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE/2015), sendo que um semestre deste foi
cursado na Confederation College, no Canadá. Pesquisadora do grupo de pesquisa - Núcleo de Estudos Teórico-
Críticos em Escrita Literária e Interações Linguísticas (IFCE). Desta forma, atua, principalmente, nos seguintes
temas: Estudos da Tradução, Ensino de Línguas e Tecnologias Digitais. Atualmente, é professora efetiva do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE (Campus Tauá).
1. Apresentação.

Caros participantes,

Sejam bem-vindos ao curso introdutório em Estudos da Tradução!

Neste curso, você é convidado a adentrar no mundo instigante da Tradução. Vamos


lá!!!

Imagine que você está lendo uma obra literária russa pela primeira vez. Imagine, por
exemplo, que lê “O Idiota” de Fiodor Dostoieviski. Ao terminar a leitura do longo livro, você
ganha de presente o mesmo livro em língua inglesa. Ao ler a obra em língua inglesa, você
percebe que os nomes próprios variam sobremaneira: Em Português, você conhece a
personagem Nastássia Filíppovna Baráchkov. Já em inglês, você encontra Nastasia Philipovna
Barashkof. Do mesmo modo, em português, você encontra Zaliójev e em língua inglesa,
Zaleshof.

Suponhamos que no mesmo ano, você realize o sonho de ir de férias para a Rússia.
Chegando lá, descobre que os nomes próprios tem uma particularidade quanto às
terminações destes. Assim, a terminação “ov”, “ova”, “ev” e “eva” 2 , dentre outras
terminações similares, indicam, no sobrenome, a origem familiar. Assim, os sobrenomes, no
livro fonte3, seriam um marcador cultural relevante para contextualizar os personagens da
obra em sua origem.

Assim, a partir destas reflexões, construídas a partir de uma leitura, você começa a
compreender, na verdade, você não leu Dostoieviski. O que você leu, na verdade, foram
duas traduções da obra, traduções estas, que como você percebeu, têm suas características
próprias. Eis alguns aspectos inerentes à tradução literária!

Mas, hipoteticamente, imagine que não se conformando com o que tais reflexões lhe
causaram, você decide assistir ao filme “O Idiota”, filme este baseado no livro, para ver
como foram retratadas as lindas paisagens russas que você tanto adorou ver/ler no livro. Ao

2
Para saber mais, confira: https://br.rbth.com/educacao/83961-sobrenomes-russos-terminados-off. Acesso
em: 08 out. 2020.
3
Utilizaremos, sempre, o termo obra-fonte, pois ao falarmos “obra/texto original”, pode dar a ideia de
desvalorização do texto traduzido, o que não é nosso intento, uma vez que a obra traduzida também tem o seu
valor.
buscar o filme, você descobre que existem várias adaptações (traduções) da obra literária
para o cinema. Você escolhe umas três opções que lhe parecem mais interessantes. Após
assistir aos filmes, você fica impressionado com o número de leituras/interpretações
(traduções) que a famosa obra russa suscita. Você, provavelmente, não sabia, mas as
adaptações fílmicas são um dos tipos de tradução, denominada Tradução Intersemiótica.

As reflexões, acima, são uma prova da complexidade dos Estudos da Tradução. Estes
e outros tópicos serão discutidos neste curso. Espero que você seja curioso, pois teremos
muito a desvendar!

Sigamos!

Profa. Antonia de Jesus Sales


Figura 2: Bem-vindo em diversas línguas.

Fonte: https://br.freepik.com/vetores-gratis/composicao-de-palavras-de-boas-vindas-em-diferentes-
idiomas_2567169.htm#page=1&query=tradu%C3%A7%C3%A3o&position=25
2. O surgimento dos Estudos da Tradução

Quando surgiram, na década de 70, como disciplina, os Estudos da Tradução eram


considerados um ramo de pesquisa da Literatura Comparada. Atualmente, a relação é
invertida e a Literatura comparada passa a ser um dos ramos de pesquisa no campo dos
Estudos da Tradução. Com a abrangência da disciplina, desenvolve-se uma relação dos
Estudos da Tradução com diversos outros ramos de pesquisa, além dos estudos literários,
como a Linguística, os Estudos Culturais, e a filosofia, por exemplo, deixando de ser
considerado um campo de conhecimento de relevância secundária e sem qualquer valor
científico (BASSNETT, 2003).

Os primeiros indícios de traduções escritas, que se tem notícia, são os targumim (de
300 a.C.). Estes textos eram traduções de textos sagrados (em hebraico, originalmente)
feitas para o aramaico (a língua dos judeus), preconizando, neste período a fidelidade ao
texto original. Outro marco relevante deste período inicial foi a tradução, para o latim, da
obra Odisséia, de Homero, do grego. Tais fatos marcam a história da tradução no ocidente
(POLCHLOPEK e ZIPSER, 2008). Neste sentido, o que se coloca é: como teríamos acesso aos
textos clássicos gregos se não tivéssemos o auxílio da tradução?

Outro registro de tradução, que temos, é a Pedra da Roseta, um bloco de granito,


encontrado no Egito, na cidade de Roseta, em 1799 e que nos proporcionou a compreensão
do sistema hieroglífico. Antes desta pedra, a história do Egito Antigo era baseada em
achismo, por não terem conseguido traduzir os códigos, símbolos estampados nas paredes
dos templos egípcios. A grande dificuldade de se traduzir a Pedra da Roseta está no fato de
que ela foi escrita em três línguas: hieróglifos (uma mistura de elementos simbólicos e
iconográficos), demótico (a língua popular no Egito) e o grego (a língua administrativa do
Egito Antigo). Jean-François Champollion, linguista francês, trabalhou de 1822 a 1824,
comparando as três línguas para chegar à tradução do decreto do faraó Ptolomeu V. A partir
desta tradução, foi possível traduzir outros textos da época.
Figura 3: Pedra de Roseta.

Fonte: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-e-a-pedra-de-roseta/

Tanto o “original” – texto fonte – como a tradução são percebidos como produtos
criativos. Cada um a seu modo, autor e tradutor, produzem algo único em forma de texto.
Ademais:

“(...) O tradutor é visto como um libertador, alguém que liberta o texto dos signos
fixos da sua forma original, acabando com a subordinação ao texto de partida, mas
procurando visivelmente fazer a ponte entre o autor e o texto originais e os
possíveis leitores da língua de chegada (...)”. (BASSNETT, 2003, p. 10).

Na introdução do livro Tradução, Reescrita e Manipulação da Fama Literária,


Lefevere e Susan Bassnett afirmam que:

A tradução é certamente, uma reescritura de um texto original. Toda reescritura,


qualquer que seja sua intenção, reflete uma ideologia e uma poética e, como tal,
manipula a literatura para que ela funcione dentro de uma sociedade determinada
e de uma forma determinada. Reescritura é manipulação, realizada a serviço do
poder, e em seu aspecto positivo pode ajudar no desenvolvimento de uma
literatura e de uma sociedade. Reescrituras podem introduzir novos conceitos,
novos gêneros, novos artifícios e a história da tradução é também a da inovação
literária, do poder formador de uma cultura sobre outra. Mas a reescritura pode
reprimir a inovação, distorcer e conter, e, em uma era de crescente manipulação
de todos os tipos, o estudo dos processos de manipulação da literatura,
exemplificado pela tradução, poderá nos ajudar a nos tornarmos mais atentos ao
mundo em que vivemos (BASSNETT e LEFEVERE, 2007, p. 12).

Falar do início da tradução é algo complexo, uma vez que sempre se traduziu. Desde
os escribas (exímios tradutores) da Mesopotâmia, passando pelos copistas até chegar aos
tradutores literários, como os tradutores da bíblia, por exemplo, alguns destes, a partir de
suas traduções, postularam formas gramaticais, dando formas fixas aos idiomas em que
atuavam.

CURIOSIDADE!

A bíblia é a obra literária mais traduzida e mais vendida no mundo.

O Antigo Testamento foi escrito entre os séculos XIV e IV a.C. No século III a.C. surge
a primeira tradução deste para o grego, surgindo assim a Septuaginta – a primeira tradução
do Antigo Testamento. Reza a lenda que 72 tradutores (“sábios judeus”) foram convocados
para traduzir o Antigo Testamento do hebraico (língua-fonte) para o grego, por volta de 200
a.C. a mando do rei Ptolomeu II em Alexandria. No Brasil, a tradução da bíblia chega em
1753 através da tradução feita por João Ferreira de Almeida.

Com um percurso tradutológico tão longo e complexo mediado por tantos tradutores
e perpassando tantas línguas diferentes, é fácil acreditar que muitos erros tradutórios
tenham ocorrido. Um exemplo simples que reverberou na arte.

Em Roma, você vai encontrar uma famosa escultura de Moisés feita por
Michelangelo. Nesta escultura, Moisés aparece com dois chifres. Tal fato ocorreu porque
São Jerônimo confundiu uma palavra hebraica que tinha dois significados: “raio de luz” e
“chifre”. Assim, ao invés de dizer que Moisés tinha o rosto iluminado, São Jerônimo disse
que ele tinha o rosto chifrudo. Tal erro ocorreu na tradução dos capítulos 34 e 35 do livro
Êxodo, pois em hebraico não se usam as vogais, então tal fato colaborou para a confusão
entre palavras. Erro este, corrigido em versões posteriores.

Figura 4: Escultura de Moisés.

Fonte: https://pixabay.com/pt/photos/mois%C3%A9s-com-chifres-est%C3%A1tua-601732/

1.1 Os artesãos da língua

A tradução se torna um componente fundamental na história da língua alemã. No


contexto da Reforma Protestante. Martinho Lutero (1483-1546) publica sua tradução da
bíblia (o Novo Testamento em 1522 e a bíblia completa em 1534) e tal tradução incentiva
uma padronização da língua alemã, já que esta não era uma língua unificada naquele
período. Era como se toda a Alemanha fosse composta de dialetos. Ademais, antes da
tradução de Lutero, já existiam outras traduções da bíblia. No entanto, estas eram baseadas
na tradução feita por São Gerônimo (em latim). Lutero faz sua tradução baseando-se nas
línguas originais do texto bíblico – o grego no Novo Testamento e hebreu no Velho
Testamento.

“(...) Ao traduzir, Lutero sempre levava em consideração a língua falada. Como um


pregador, ele estava na posição de observar a reação direta de sua audiência e
julgar sua habilidade para digerir suas palavras; ele usou esta experiência no seu
4
trabalho de tradução (DELISLE E WOODSWORTH, 1995, p. 48, tradução nossa) .

A primeira gramática da língua alemã, publicada no século XVI por Valentin


Ickelsamer e Fabian Franck, foi fortemente influenciada pela tradução da bíblia proposta por
Lutero. Segundo Delisle e Woodsworth (1995, p. 50):

Através de sua tradução da bíblia, Lutero ajudou a promover o enriquecimento e a


padronização do léxico alemão, o desenvolvimento de uma sintaxe balanceada
usando meios formais como a posição do verbo e conjunções, assim como instituiu
as letras maiúsculas dos substantivos. Sua contribuição principal, no entanto, está
no campo da estilística. Claridade, compreensibilidade geral, simplicidade e nitidez
foram os aspectos estilísticos mais importantes de sua tradução da bíblia, no qual
mesmo hodiernamente serve como um modelo para a boa escrita. (DELISLE e
WOODSWORTH, 1995).

Uma das teorias sobre o início da tradução é encontrada na bíblia, o texto sagrado do
Cristianismo. No livro de Gênesis (capítulo 11), temos:

1 Era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala.


2 E aconteceu que, partindo eles do oriente, acharam um vale na terra de Sinar; e
habitaram ali.
3 E disseram uns aos outros: Eia, façamos tijolos e queimemo-los bem. E foi-lhes o
tijolo por pedra, e o betume por cal.
4 E disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos
céus, e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de
toda a terra.
5 Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens
edificavam;
6 E o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o
que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que eles
intentarem fazer.
7 Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua
do outro.
8 Assim o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda a terra; e cessaram de
edificar a cidade.
9 Por isso se chamou o nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de
toda a terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra.
Fonte: https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/11?q=genesis

4
No texto fonte: “(...) When translating, Luther Always took the sound of the spoken language into account. As
a preacher, he was in a position to observe the direct reaction of his audience and judge their ability to digest
4
his words; he drew on his experience in his translation work. (DELISLE E WOODSWORTH, 1995, p. 48)
De acordo com este capítulo de Gênesis, a existência de variadas línguas se dá por
uma torre construída na Babilônia pela descendência de Noé. Estes tinham como objetivo
construir uma torre que pudesse alcançar o céu. Deus viu tal ação como um ato de ambição
e decidiu castigá-los, confundindo as línguas.

Figura 5: Torre de Babel.

Fonte: A Torre de Babel. Obra de Pieter Bruegel, 1563. Museu Kunsthistorisches de Viena.
https://www.khm.at/objektdb/detail/323/

Jakobson (1975) postula três formas de interpretação/tradução de um signo verbal:

 Tradução intralingual/reformulação – interpretação de signos verbais através de


signos oriundos da mesma língua (quando você usa um dicionário para pesquisar
uma palavra em português, por exemplo);
 Tradução interlingual – tradução de signos por signos de outra língua (quando você
busca a tradução de uma palavra estrangeira usando um dicionário bilíngue ou o
Google Tradutor, por exemplo) e;
 Tradução intersemiótica/transmutação – a interpretação/tradução de signos verbais
através de signos não-verbais (quando seu livro preferido vira filme ou história em
quadrinhos, por exemplo).

A seguir, exemplos dos tipos de tradução mencionados:


 Intralingual – quando um advogado precisa explicar para seu cliente os termos de
uma petição; quando um livro escrito em português antigo é reescrito em português
atual; quanto uma criança pergunta a mãe o que é uma palavra e esta mãe precisa
explicar com outras palavras mais simples; quando a bíblia é adaptada para o público
infantil; o dicionário monolíngue – aquele que você pesquisa os sinônimos do
português, por exemplo.
 Interlingual – a construção de um dicionário bilíngue ou de uma ferramenta
tecnológica que ajude na tradução.
 Tradução Intersemiótica – uma pintura que virou quadro, uma poesia que vira
música.

Outro ponto a se considerar é que a interpretação está relacionada às práticas orais


de tradução. Assim, o tradutor volta-se, geralmente, para o texto escrito e o intérprete para
a prática oral da tradução (como a interpretação simultânea ou a consecutiva, por exemplo).
No entanto, no cotidiano, tradutor e intérprete são usados de forma análoga.

Figura 6: Filme – O intérprete.

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Interpreter

Outro profissional bem conhecido é o tradutor juramentado. Se você precisa


oficializar um documento em outra língua, você, possivelmente, recorrerá a este
profissional. Ele é um profissional, geralmente concursado pela junta comercial de cada
estado brasileiro, com o objetivo de validar documentos estrangeiros.
Imaginemos que num filme inglês apareça uma cena em que uma criança pergunta
para a mãe o que tem em cima da mesa e a mãe responde: It’s a piece of cake! – É um
pedaço de bolo! Nesse caso, o legendista ou o tradutor das falas para o português fará a
tradução de forma literal – é um pedaço de bolo!

Num outro contexto, numa cena de um romance, também escrito em inglês, um


garoto querendo impressionar uma garota que gosta de esportes, diz para ela que, para ele,
surfar it’s a piece of cake! (= É moleza). Nesse caso, a tradução não é literal. O tradutor
deverá seguir pelo sentido (a semântica) da expressão e não pela forma. Perceba que não
traduzir ao pé da letra é respeitar a intenção do texto e assim, ser mais “fiel” ao sentido, em
detrimento da forma.5 Já é comum, entre quem teoriza ou pratica a tradução que traduzir é
uma negociação constante entre significados e formas. Negociação seria assim, (...) um
processo com base no qual se renuncia a alguma coisa para obter outra – e no fim as partes
em jogo deveriam experimentar uma sensação de razoável e recíproca satisfação à luz do
áureo princípio de que não se pode ter tudo (ECO, 2011, p. 17). Nesse sentido, Eco (2011, p.
15) afirma que:

Nos últimos anos, muitos foram os textos de teoria da tradução, devido ao fato de
que se multiplicaram os grupos de pesquisa, os cursos e departamentos dedicados
ao problema, além das escolas para tradutores e intérpretes. As razões para o
crescimento dos interesses tradutológicos são muitas e convergentes:
primeiramente, os fenômenos da globalização que cada vez mais põem em contato
grupos e indivíduos de línguas diversas; em seguida, o desenvolvimento dos
interesses semióticos, para os quais o conceito de tradução é central mesmo
quando não explicitado (basta pensar nas discussões sobre a definição do
significado de um enunciado como aquilo que, teoricamente, deveria sobreviver na
passagem de uma língua para outra), e, enfim, a expansão da informática, que leva
muita gente a tentar e a apurar cada vez mais modelos de tradução automática
(onde o problema tradutológico torna-se crucial não tanto quando o modelo
funciona, mas justamente quando demonstra que não funciona em regime pleno).

O traduzir como ponte para promover o ensino remonta ao período da Grécia antiga.
Como exemplo, temos Lívio Andrônico. Originário de Tarento, Grécia, chegou a Roma (em
272 a.C.) como escravo. Anos depois, ao ser libertado pelo seu senhor, escreveu várias obras
e dentre estas, Lívio atuou como tradutor. Lívio traduziu a Odisséia de Homero. A Odisséia
foi o primeiro texto que se tem notícia que foi traduzido (tradução feita por volta de 250

5
O termo “fidelidade” é algo complexo, uma vez que, em uma tradução, já se considera o sentido mais
relevante do que a forma expressa.
a.C.) e foi utilizado no ensino. Lívio Andrônico utilizou o referido texto épico, em suas aulas,
quando era preceptor em Roma. Tessaro (2012, p. 33) afirma que:

Desde os tempos de Homero, a tradução é considerada, sobretudo, como forma de


transposição de uma língua para outra, oportunizando àqueles que desconhecem
determinada língua o acesso ao conteúdo de um texto original, ampliando, dessa
maneira, o seu conhecimento de mundo. Contudo, como técnica didática, a
tradução é pouco reconhecida, apesar de sua contribuição, no período clássico da
história, como técnica didática no ensino da retórica.

De maneira geral, a tradução ficou por muito tempo sob um status secundário, uma
vez que era vista como algo relacionado estritamente ao ensino de línguas. Com o aumento
do número de traduções e de pesquisadores voltados para esta área é que a disciplina toma
corpo como um campo autônomo.

1.2 Algumas teorias representativas do campo

Para ter uma base das teorias representativas dos Estudos da Tradução,
recorreremos às mais atuais por compreender que estas nos trazem um retrato da área no
momento hodierno:

 A teoria dos Polissistemas de Evan Zohar – implica, primordialmente, os textos


literários. No entanto, alcançava também a dublagem, a legendagem, os estudos
culturais dentre outras áreas, questionando, assim, o caminho de um texto em
determinada cultura receptora. Para Zohar o texto literário não se encerra em si
mesmo, mas está implicado em um sistema literário que sofre influência e interage
com outros sistemas. Evan Zohar fez parte do Grupo de Tel Aviv6, juntamente com
Gideon Toury.
 Funcionalismo – preconizam o contexto de uso na tradução. “Surgido na Alemanha, o
funcionalismo tem como princípio a tradução enquanto ação, interação
comunicativa, ou seja, uma atividade que detém um propósito baseado em um texto
de origem destinado a um leitor final” (ZIPSER e POLCHLOPEK, 2008, p. 59). Até a

6
Escola de Tel Aviv” - encabeçadas por Even-Zohar e Gideon Toury no desenvolvimento dos Estudos Descritivos
da Tradução – EDT, onde os estudiosos voltam-se para descrever as traduções observando como estas são
feitas)
década de 70, a tradução era vista pelo viés da equivalência. A partir do
funcionalismo, a tradução volta-se para a compreensão de aspectos externos ao
texto, como os aspectos sócio-culturais. Nesta visão, sobressaem os teóricos
Katherina Reiss e Hans Vermeer. Para Hans Vermeer (skopostheory), “(...) o propósito
da tradução é o que determina os métodos e metodologias a serem empregados
para se produzir um resultado funcionalmente adequado, isto é, que comunique sem
descaracterizar os textos como original e tradução (ZIPSER e POLCHLOPEK, 2008, p.
61).

Bassnett (2003) e Lefevere (2007) defendem a tradução como uma reescrita. Para
Bassnett:

A tradução tem sido entendida como uma atividade secundária, como um processo
mais “mecânico” do que “criativo”, ao alcance da competência de quem quer que
tenha um domínio básico de uma língua diferente da sua; em suma, como uma
ocupação de baixo estatuto. Também o debate sobre os produtos da tradução
tendeu, com bastante frequência, a manter-se a um nível não muito elevado: os
estudos que proclamam debater a tradução “cientificamente” são, a maior parte
das vezes, pouco mais do que juízos de valor idiossincráticos sobre traduções,
escolhidas ao acaso, da obra de grandes escritores como Homero, Rilke, Baudelaire
ou Shakespeare. Nesses estudos apenas o produto é analisado, o resultado final do
processo de tradução, não o próprio processo. (BASSNETT, 2003, p. 22)

Nesse sentido, para Bassnett “(...) A língua é, assim, o coração do corpo da cultura, e
é a interacção entre as duas que assegura a continuação da energia vital.” (BASSNETT, 2003,
p. 36). Bassnett faz uma analogia com o trabalho do cirurgião, que não pode operar o
coração, sem considerar o corpo que contém este órgão, da mesma forma, o tradutor não
pode considerar um texto separado da cultura que o contém.

Humberto Eco – escritor e tradutor italiano – na introdução do livro Quase a mesma


coisa: experiências de tradução (2011, p. 7) questiona o seguinte:

O que quer dizer traduzir? A primeira e consoladora resposta gostaria de ser: dizer
a mesma coisa em outra língua. Só que, em primeiro lugar, temos muitos
problemas para estabelecer o que significa “dizer a mesma coisa” e não sabemos
bem o que isso significa por causa daquelas operações que chamamos de
paráfrase, definição, explicação, reformulação, para não falar das supostas
substituições sinonímicas. Em segundo lugar, porque diante de um texto a ser
traduzido, não sabemos bem o que é a coisa. E, enfim, em certos casos é duvidoso
até mesmo o que quer dizer.
1.3 Os variados campos dos Estudos da Tradução (E.T.)

Os campos de atuação dos E.T. são diversos, como: tradução literária, tradução
comentada, pesquisa em tradução, tradução intercultural, tradução juramentada, história da
tradução, tradução e ensino de línguas – tradução pedagógica, tradução automática,
tradução audiovisual, dentre outros. Assim, no campo dos E.T. variadas áreas de pesquisa e
investigações surgem, por exemplo, sobre os métodos e técnicas implicados, os espaços do
tradutor e do leitor e o que ocorre durante o processo tradutório, dentre outros pontos de
visão (ZIPSER e POLCHLOPEK, 2008). Esta área se consolida como disciplina autônoma na
década de 70 do século passado. Antes disso, os E.T. eram vinculados à área de literatura
comparada.

Uma área crescente dentro dos Estudos da Tradução é a análise sistematizada das
falas sobre tradução feitas pelos profissionais tradutores, considerando variados aspectos
temporais e espaciais, observando, por exemplo, os espaços de fala dos tradutores em
obras, como os prefácios ou notas. Tais análises nos permitem compreender o caminho que
o tradutor resolver seguir em seu trabalho e como tal caminho reflete a concepção de
tradução que esse profissional tem.

Quando estudamos uma língua estrangeira é comum perguntarmos ao professor o


significado de determinadas palavras, geralmente soltas sem apresentar o contexto de uso
destas. No entanto, sem o contexto de uso fica complicado traduzir, uma vez, que conforme
vimos, anteriormente, as palavras podem ter significados variados a depender também da
relação entre a língua de partida e a língua de chegada. Assim, não é tão simples traduzir,
pois transpor de uma língua para outra significa muito mais do que saber uma língua
estrangeira, implica uma negociação de significados que permeiam a cultura dos povos
envolvidos. Assim, se traduzir fosse algo simples, não existiria a figura do profissional
tradutor, nem as ferramentas de tradução automática.

Imagine, agora, um chá. Mas aí você estará tomando o chá, que poderá ser um de
sachê ou um produzido pela infusão das folhas da planta. E este poderá ser acompanhado
por açúcar comum ou açúcar em cubos, algo comum em outros países e diferente do Brasil.
E poderia ainda, este chá, estar em uma xícara pequena ou em uma xícara grande, tipo
caneca. Ou ainda, poderia ser um chá misturado com leite, algo comum na cultura britânica,
por exemplo. Você poderia estar tomando este chá numa cafeteria próximo da sua casa ou
na calçada de um bistrô na França, poderia estar sozinho ou em um grupo de amigos.

Figura 7: A xícara de chá em diversos contextos.

Fonte: https://br.freepik.com/vetores-gratis/design-realista-de-embalagem-de-cha-
verde_6405570.htm#page=1&query=ch%C3%A1&position=12

Quanto aos aspectos detalhados em torno de uma xícara de chá podemos fazer uma
analogia com o contexto de tradução, a situação comunicativa (contexto situacional) e que é
extremamente relevante no momento de se traduzir. Assim, não basta apenas ter um vasto
conhecimento da língua estrangeira para se traduzir, é preciso também ter estratégias
tradutórias, além de um amplo conhecimento da cultura de partida e de chegada, pois
língua e cultura não podem ser considerados indissociáveis.

Outra área que está em amplo crescimento em quantidade de pesquisas no campo


dos Estudos da Tradução é a relação entre tradução e intermidialidade, que aborda as
relações entre mídias no contexto dos E.T. No contexto do curso de Letras, Artes ou
Comunicação, esta área tem sido amplamente explorada, pois riqueza de abordagens. No
caso do curso de Letras, as relações interartes podem ser utilizadas, por exemplo, em
disciplinas como: Aspectos/Fundamentos da Tradução, Literatura inglesa traduzida,
Literatura Comparada, dentre outras.

Para finalizar, trago aqui uma analogia pertinente proposta por Rosemary Arrojo, em
seu livro Oficina de Tradução (2003). Arrojo traz a seguinte situação: um concurso de
fantasias é realizado em São Paulo, na década de 20, para eleger a pessoa com a
caracterização mais fiel da rainha Cleópatra. Se pudéssemos ver o ganhador do concurso, é
certo que notaríamos características inerentes à década do concurso. Assim, aspectos como
a maquiagem, o penteado e até aspectos corporais desta “Cleópatra” “estariam
inevitavelmente marcados pelo estilo e pela moda dos anos 20, revelando, na verdade, um
parentesco muito maior com sua própria época do que com a época da “verdadeira”
Cleópatra” (ARROJO, 2003, p. 39). Mesmo que a intenção inicial fosse produzir trajes da
época da Cleópatra, o traje produzido foi feito com tecidos e por alguém dos anos 20.
Ademais, se pudéssemos comparar o mesmo traje feito em outros países na mesma época,
ainda assim, é quase certo que perceberíamos grandes diferenças. A analogia de Arrojo
serve para refletirmos a tradução feita em diversas épocas. Se tivermos a oportunidade de
ler uma obra clássica em sua primeira tradução para o português e em uma tradução atual,
perceberíamos algumas diferenças pelos aspectos discutidos neste curso.

O que vimos até aqui nos permite ver a tradução como um processo complexo. E se
você tem dúvida da relevância deste campo, ao observar as referências bibliográficas deste
texto, perceba que quase todos os textos são traduções. Daqui em diante, espero que você
tenha um novo olhar quando assistir a um filme legendado ou quando assistir ao filme que
se baseou no seu livro preferido. Pense nisso!
PENSANDO A TRADUÇÃO NA PRÁTICA!

As reflexões, a seguir, visam promover uma discussão prática acerca dos pontos
discutidos até aqui.

1. Caetano Veloso musicou o poema “pulsar” do poeta Augusto de Campos (de 1975). Veja
que o poeta substituiu as letras “e” e “o” por ponto e estrela, respectivamente. Assim,
procure observar como tais mudanças nos signos do poema foram representadas por
Caetano Veloso no gênero música.

Figura 8: Poema Pulsar de Augusto de Campos.

Fonte: http://culturafm.cmais.com.br/radiometropolis/lavra/augusto-de-campos-o-pulsar

2. A seguir, temos uma matéria jornalística da Reuters, uma agência de notícias


internacional. Observe as omissões e os acréscimos feitos na tradução, analise se o
vocabulário foi adequado ao gênero textual (artigo jornalístico). Baseado nos pontos
discutidos pense nas razões destas omissões e acréscimos.

UK judge rejects extraditing Julian Assange to U.S. over 'suicide risk'

By Michael Holden

LONDON (Reuters) - A British judge ruled on Monday that WikiLeaks founder Julian Assange
should not be extradited to the United States to face criminal charges including breaking a
spying law, saying his mental health problems meant he would be at risk of suicide.

The United States said it would continue to seek the extradition of Australian-born Assange
and U.S. prosecutors are set to appeal Monday’s decision to London’s High Court.

The U.S. authorities accuse Assange of 18 offences relating to the release by WikiLeaks of
vast troves of confidential U.S. military records and diplomatic cables which they say put
lives in danger.

Assange’s lawyers will seek bail on Wednesday for their 49-year-old client, who has spent
most of the last decade either in prison or self-imposed confinement.

Fonte: https://www.reuters.com/article/us-britain-assange/uk-judge-rejects-extraditing-julian-assange-to-u-s-
over-suicide-risk-idUSKBN299005

Juíza do Reino Unido rejeita extradição de Assange para os EUA

By Michael Holden

LONDRES (Reuters) - Uma juíza britânica determinou na segunda-feira que o fundador do


WikiLeaks, Julian Assange, não deve ser extraditado aos Estados Unidos para enfrentar
acusações criminais, incluindo violação de uma lei de espionagem, dizendo que ele estaria
sob risco de suicídio devido a problemas de saúde mental.

Autoridades norte-americanas provavelmente apelarão da decisão à mais alta corte de


Londres. Em última análise, o caso poderia ir para a Suprema Corte do Reino Unido.
Os Estados Unidos acusam o australiano Assange, de 49 anos, de 18 crimes relacionados à
divulgação pelo WikiLeaks de uma vasta coleção de registros militares confidenciais dos EUA
e documentos diplomáticos que, segundo promotores, colocaram vidas em perigo.

Fonte: https://www.reuters.com/article/reinounido-assange-negado-idBRKBN2991GD-OBRWD

Ao observar o texto, acima, vemos que, primeiramente, não temos o nome do


tradutor que verteu o texto para a língua portuguesa, o que pode ser um indicativo de que a
tradução foi feita por um programa de tradução automática, possivelmente. Observamos,
também, que no segundo parágrafo (de apenas duas linhas) alguns fatos, na língua
portuguesa, acabam sendo omitidos, por exemplo o fato de a decisão de “segunda” e o
“australiano Assange” aparece apenas no texto-fonte. Na parte seguinte, também
encontramos outras omissões. O que se deve refletir é se tais omissões prejudicam a
compreensão da ideia principal do artigo e por qual razão estes dados podem ter sido
omitidos. É relevante observar como o título muda nos dois textos. Tais fatos nos dá uma
visão de que quem fez a tradução do texto preferiu enfocar em outro ponto da notícia.
Percebam que a preposição “by” indicando o responsável pela matéria não é traduzido no
texto em português. Ao visitar os textos nos respectivos sites, observamos que a foto do
artigo muda de um site para outro. O título também difere sobremaneira.
Figura 9. Nuvem de palavras - Traduções.

Fonte: https://www.jasondavies.com/wordcloud/#%2F%2Fwww.jasondavies.com%2Fwordcloud%2Fabout%2F
Bibliografia básica do curso:

ARROJO, R. Oficina de tradução. 4 ed. São Paulo: Ática, 2003.

BASSNETT, Susan. Estudos de tradução - Fundamentos de uma disciplina. Tradução de


Vivina de Campos Figueiredo, revisão de Ana Maria Chaves. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2003.

DELISLE, Jean; WOODSWORTH, Judith. Translators through history. John Benjamins


Publishing Company, 1995.

ECO, Humberto. Quase a mesma coisa. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro, BestBolso,
2011.

JAKOBSON, Roman. Aspectos Linguísticos da Tradução. In. Linguística e Comunicação.


Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1975.

LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução de Cláudia


Matos Seligman. Bauru, SP: EDUSC, 2007.

ZIPSER, Meta Elisabeth; POLCHLOPEK, Silvana Ayub. Introdução aos Estudos da Tradução.
Florianóppolis: LLE/CCE/UFSC, 2008.

Bibliografia complementar:

DOSTOIEVISKI, Fiodor. O idiota. Tradução de José Geraldo Vieira. Coleção A Obra-Prima de


Cada Autor. Martin Claret, 2004.

Cadernos de Tradução: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/traducao

Meta: https://meta.erudit.org/

Tradurre: http://rivistatradurre.it/ Palimpsestes: https://palimpsestes.revues.org/

Revista da Anpoll: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/issue/view/48/showToc


O campo dos Estudos da Tradução tem se desenvolvido,
sobremaneira, nas últimas décadas, considerando,
primordialmente, o contexto brasileiro. Diante desta
constatação, o presente curso visa apresentar tal campo
para interessados e, principalmente, alunos da
graduação que se interessem em conhecer esse
universo heterogêneo e complexo alavancado pela
amplidão das pesquisas neste campo nas últimas
décadas no âmbito brasileiro. O Brasil tem tanto
consumido quanto produzido traduções, o que faz
emergir uma série de questionamentos quanto ao
espaço que os Estudos da Tradução ocupam no âmbito
acadêmico e em outros espaços, assim como na
formação de tradutores e leitores.

http://poca.ufscar.br/

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