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AULA 3

O ENSINO DA GRAMÁTICA
NO CONTEXTO ATUAL

Prof. Eugênio Vinci de Moraes


CONVERSA INICIAL

Cara aluna, caro aluno, seja bem-vinda, seja bem-vindo!


A essa altura você já percebeu que só se pode falar em gramática no plural.
Existem as gramáticas normativas, escolares, pedagógicas, descritivas. As
descritivas podem ser estruturalistas, funcionais, de uso, multissêmicas entre
outras. Este é um quadro do século XXI, que foi se formando aos poucos, sobretudo
a partir do século XIX. Vamos conhecer como isso aconteceu e também as
perspectivas e propostas dessas gramáticas por meio destes tópicos:

1. Filólogos, gramáticos e linguistas


2. O ensino tradicionalista de gramática
3. Autores do cânone atual: Rocha Lima, Evanildo Bechara e Celso Cunha
4. O ensino de gramática com um viés linguístico
5. Gramáticas do Português Brasileiro: de Maria Helena Moura Neves, Mário
Perini, Ataliba Castilho e Marcos Bagno.

CONTEXUALIZANDO

Você certamente já ouviu estes nomes: Bechara, Celso Cunha, Cegalla,


Rocha Lima entre outros. Autores de gramáticas que por muitos anos povoaram
a imaginação de estudantes, sobretudo do ensino médio. Muitos de vocês talvez
conheçam outros profissionais ligados ao estudo ou ao ensino de língua
portuguesa, como Pasquale Cipro Neto, Sérgio Nogueira ou mesmo youtubers.
Mas nomes como Ataliba Castilho, Maria Helena Moura Neves, Marcos Bagno,
Sírio Possenti só circulam entre estudantes universitários da Linguística ou Letras.
O que diferenciam esses três grupos?
Os membros do primeiro fazem parte da tradição dos estudos gramaticais.
Boa parte do que você estudou e estuda sobre gramática resulta das obras deles.
A turma do segundo é, em geral, de professores-comunicadores. Divulgam, para
o bem e para o mal, a gramática de língua portuguesa na mídia. Os últimos são
os linguistas. São conhecidos nas universidades e consultados pelos veículos de
comunicação quando surgem novidades ou polêmicas sobre a língua.
Houve e há muita crítica da turma do terceiro grupo à do primeiro e muita
briga entre os do terceiro e do segundo. Crítica porque é uma discussão que
ocorre no campo da ciência, sobre teorias e métodos de pesquisa e ensino. Briga
porque os linguistas consideram o trabalho do pessoal midiático um desserviço
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ao ensino da língua, com raras exceções. Esse cenário ilustra bem como se
organiza o campo de estudos e ensino da gramática no Brasil.
Você reparou nisso? O que você acha que está por trás desse quadro? Por
que as críticas, qual a razão das brigas? Nesta aula, tentaremos encontrar
algumas respostas para essas perguntas.

TEMA 1 – FILÓLOGOS, GRAMÁTICOS E LINGUISTAS

Quando lemos obras sobre língua, ou assistimos a (raras) reportagens sobre


temas linguísticos, encontramos diferentes nomes para os pesquisadores de língua
portuguesa. Além de professores, ouvimos e lemos nomes como filólogos,
gramáticos, linguistas, e ainda lexicógrafos, sintaticistas, semiologistas etc.
Essa diversidade se explica ora pelas mudanças de abordagem nos estudos sobre
a língua que aconteceram ao longo da história, ora pela diversificação e
especialização dos estudos das ciências da linguagem que se deram do século XX
até hoje. Para estudarmos o ensino da gramática no Brasil é preciso saber
diferenciar pelo menos os papéis de três tipos de pesquisadores: os filólogos, os
gramáticos e os linguistas.

1.1 Filólogos e gramáticos

O filólogo é um estudioso da língua escrita. Não foi o primeiro a pensar a


língua, como vimos na Aula 1, pois os filósofos fizeram isso antes. Mas é o primeiro
estudioso “especialista” na língua. Falamos sobre eles quando nos referimos à
história das origens da gramática.
Os filólogos estão ligados, na origem, ao estabelecimento de textos
clássicos. Estabelecer um texto quer dizer buscar entre várias versões uma que
seja a mais fiel ao texto original. Isso parece simples, mas em relação às obras
antigas era e é uma tarefa bastante complexa.
Os autores da Antiguidade não assinavam suas obras, nem publicavam em
editoras, nem mesmo as escreviam. Boa parte de seus textos foi criada e
transmitida oralmente. Aos poucos e em tempos e lugares diferentes foram sendo
documentadas por escrito. Assim, obras como a Bíblia, a Odisseia e até mais
recentes como a Divina Comédia, de Dante, tinham (e ainda têm) várias versões.
Quando você lê um desses textos hoje, esteja certo que um longo e minucioso
trabalho de consulta às fontes originais dessas obras foi feito. Para chegar a isso,

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o filólogo devia e deve ser um erudito, ou seja, conhecer várias línguas, ter
conhecimento de história, literatura, paleografia e outras áreas que auxiliam na sua
pesquisa.
Por razão de seu ofício, o filólogo também tornou-se um estudioso da
estrutura da língua. Para decidir que passagem do texto deve ser a mais fiel ao
espírito original, esse “especialista-erudito” deve saber descrever a língua em
questão, ou seja, conhecer a sua gramática. Isso implica reconhecer a grafia e a
composição das palavras, a ordem dos termos na sentença de modo a ajudá-lo a
estabelecer o texto final deste ou daquele autor. Segundo Carlos Faraco e Ana
Maria Zilles,

O estudo criterioso dos textos levou os filólogos alexandrinos a


descrever e comentar a língua que ali encontravam: aspectos de métrica,
ortografia e pronúncia; a distribuição das palavras por classes (nomes,
pronomes, verbos, advérbios, conjunções etc.); a estrutura sintática da
oração simples (sujeito, predicado, complementos, adjuntos) e dos
períodos (coordenação e subordinação); o uso das figuras de linguagem,
as características da individualização estilística, e assim por diante.
Com o tempo, esses estudos passaram a constituir um ramo autónomo do
conhecimento: a gramática (Faraco; Zilles, 2017, p. 87)

Assim, a gramática é um desenvolvimento da filologia. Dionisio, o Trácio, e


Apolônio Díscolo, mencionados na Aula 1, são exemplos de filólogos-gramáticos.
O gramático vai demorar para se desligar do filólogo. Com o surgimento
das línguas derivadas do latim – o francês, português, espanhol, entre outras –,
os gramáticos tornam-se figuras mais independentes e importantes dada a
necessidade de se descreverem as novas línguas. Com o tempo, torna-se o
estudioso que descreve e normatiza a língua e se desliga do papel de estabelecer
textos ou fazer crítica textual como os filólogos. O gramático volta-se para a
descrição e a formulação – com base na descrição – do “bom uso” da língua.
Como herdeiro da filologia, o gramático descreve a língua escrita. Ou
descrevia, até o século XX, pois no século XXI aparecem gramáticas fundadas na
língua falada. Mas é a descrição da língua escrita que vai gerar o modelo da “boa
escrita” e também da “boa fala”. Esses modelos – hoje quase um consenso entre
os gramáticos – servem apenas para a produção da escrita padrão, formal ou
monitorada, ou seja, a que se usa na escola, no trabalho e nas instituições
públicas de modo geral. Para Faraco, “o gramático diz como certos
comportamentos linguísticos devem ser em determinados contextos” (Faraco;
Zilles, 2017, p. 90)

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Mas as gramáticas não são escritas só por gramáticos. São escritas por
filólogos como Celso Cunha, por exemplo. São escritas por linguistas, como
Ataliba Castilho. E são escritas por professores, geralmente com finalidade
didático-pedagógica. Resumindo, gramático puro sangue é raro. O que existe é a
gramática, ora escrita por filólogos, ora por linguistas, ora por professores, ora por
gramáticos.

1.2 O linguista

O linguista, por sua vez, é aquele que se interessa por todos os assuntos
ligados à linguagem: desde a língua escrita até a língua falada, passando pela
linguagem visual (ainda que essa seja hoje objeto mais específico da semiótica e
da semiologia). Ele emprega métodos científicos de análise, ou seja, ele parte da
“observação dos fatos, formula hipóteses e estuda seu objeto sistematicamente
mediante experimentação e uma teoria adequada” (Petter, 2005, p. 13).
Esse estudioso é uma figura que surge no século XIX e vai se firmar no
início do século XX com a publicação do Curso de Linguística Geral, do suíço
Ferdinand Saussure, em 1916.
A linguística surge quando o conhecimento de diversas línguas se amplia
e a ideia de compará-las se desenvolve. Com isso, constata-se que as línguas se
modificam de acordo com motivações internas, de forma regular e por condições
históricas. Mattoso Câmara Jr. sintetiza bem este “nascimento”:

A abordagem “histórica” da linguagem [...] começou no século XVIII por


um esforço em comparar e classificar as línguas de acordo com sua
origem hipotética. Nesse esforço a linguagem veio a ser vista
nitidamente através de uma linha histórica de desenvolvimento, na qual
uma língua antiga dá origem a uma ou várias línguas novas. Esta
concepção está subjacente à linguística histórico-comparativa que se
desenvolveu no século XIX. (Câmara Jr., 1975, p.31)

No século XX, a linguística se torna autônoma, ou seja, não precisa passar


recibo para “a lógica, a filosofia, a retórica, a história, ou à crítica literária” (Petter,
2005, p. 13). Atualmente, concentra seus estudos na língua falada. Essa opção
se explica porque a fala é a modalidade universal da língua, ou seja, a modalidade
de língua que todos os povos empregam, e onde se manifestam mais visivelmente
as recorrências, as mudanças e as variações em suas modalidades não
monitoradas ou não-padrão. Por uma questão de tradição e de metodologia, os
linguistas não escreviam gramáticas, que como vimos se restringiam à língua
escrita. Hoje escrevem, como veremos mais adiante.
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TEMA 2 – A TRADIÇÃO GRAMATICAL NO BRASIL

Na aula anterior, vimos como se desenrolou o debate sobre o português


brasileiro. Também vimos como a defesa e o ataque a ela estiveram ligados ao
desejo de os nacionalistas se distinguirem de Portugal, por um lado, e ao desejo da
elite em se diferenciar do mestiço, o que levou os primeiros a defenderem o
português brasileiro e os segundos o português europeu. Essa polêmica envolveu
escritores, juristas e políticos – Rui Barbosa e Joaquim Nabuco entre eles. Os
estudiosos da língua participaram desse debate, mas em geral estritos à questão
da língua, ainda que ideologicamente estivessem afinados com este ou aquele
ponto de vista. Da perspectiva do conhecimento, empregavam metodologias
ligadas a escolas de estudos filológicos e linguísticos que disputavam seu lugar ao
sol no século XIX. Isso continua no século XX, chegando até hoje.
Nesses poucos mais de quinhentos anos de história do Brasil, diferentes
perspectivas dirigiram os estudos sobre língua no Brasil. Ricardo Cavaliere
(2001), professor da Universidade Federal Fluminense, propõe uma divisão em
quatro períodos: 1. Período embrionário (origens-1802); 2. Período racionalista
(1802 a 1881); 3. Período científico (1881 a 1941); e 4. Período linguístico (1941-
até hoje). Vamos a eles.

2.1 Das origens até o fim do século XIX

Nesse arco estão os períodos embrionários e o racionalista. O primeiro é


importante por causa da formação de uma tradição de estudos sobre a língua.
São pesquisas e trabalhos feitos Brasil, em geral por europeus, como o espanhol
José de Anchieta, autor da A arte de gramática da língua mais usada na costa
do Brasil (1595), uma descrição da língua tupi; ou por padres como Antônio de
Araújo, Luis Figueira, Luís Vicêncio Mamiami e Pedro Dias, que escreveram sobre
as línguas indígenas e africanas faladas no Brasil. Como se pode ver, são todos
trabalhos escritos por estrangeiros ou religiosos, nenhum deles sobre a língua
portuguesa. De todo modo, são estudos produzidos no Brasil e fundamentados
no contexto sociocultural brasileiro.
O marco divisório que separa os dois períodos, segundo Cavaliere, é o
trabalho escrito pelo carioca Antônio de Morais Silva, Epítome da grammatica
portuguesa (1802/6). Nesta obra, marco inicial do período racionalista, Morais
aplica ao português os modelos da gramática latina, seguindo o que se fazia em

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Portugal no período. Livro de caráter didático (epítome significa resumo), cujo
objetivo era “[...] o ensino da norma literária na escola de nível elementar”
(Cavaliere, 2001, p. 58). A tradição que se seguiu à obra de Morais manteve o
viés didático e racionalista, o que implicou, como já vimos na Aula 1, um
distanciamento do português brasileiro e uma aproximação do português europeu.
Gramáticas escritas por brasileiros, algumas já publicadas no Brasil, descreviam
como a “boa língua”, não o PB, mas o PE: “a rigor volumes de cunho meramente
didático, pautados pela concepção da gramática como repositório de normas do
bem-dizer.” (Cavaliere, 2001, p. 51)

2.2 Do fim do século XIX aos dias de hoje

Nesse intervalo, Cavaliere viu dois grandes períodos: o científico e o


linguístico. O científico ganha força e sobrepõe-se ao viés racionalista. Em boa
parte influenciado pelos estudos comparativistas do século XIX, de acordo com
os quais as línguas deixam de ser contempladas como espelho do pensamento e
passam a ser analisadas e comparadas entre si, compreendidas como um
fenômeno empírico e ao mesmo tempo universal. A metodologia dessa escola
chega ao Brasil só no fim do século XIX. O marco, segundo Cavaliere, é a
gramática do mineiro Júlio Ribeiro (1845-1890), publicada em 1881: Grammatica
portugueza. Mais conhecido por seu romance A carne (1888), Ribeiro e outros
gramáticos se dedicaram a estudos de etimologia e à descrição do português
contemporâneo. Nesse momento, firma-se no Brasil a autoridade dos brasileiros
em face da língua portuguesa. Ou seja:

O gramático brasileiro do século XIX, ao assumir a produção de um


saber linguístico-gramatical que não é mera reprodução do saber
português, passa, então, a ocupar um lugar de autoridade frente a
produção desse saber e de responsabilidade como intelectual na
construção da identidade (linguística) nacional (Costa, 2016, p. 62).

Outro estudioso importante do período gramatical é Said Ali (1861-1953),


que irá trazer para o Brasil os métodos de grandes filólogos europeus, o que faz
aprofundar os estudos comparatistas, agora ligados à busca detalhada das
formas, construções e expressões em língua portuguesa, “de tal sorte que se
distingam as dignas de uso em norma elevada, por serem as mais abonadas pelo
texto literário” (Cavaliere, 2001, p. 61). Aqui se firmará uma das tradições mais
arraigadas das gramáticas no Brasil: fundamentar os usos da norma padrão
escrita nos textos de escritores portugueses (a princípio) e brasileiros (mais

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adiante). Outro aspecto decisivo na passagem do século XIX para o XX é a
relação muito forte entre professor – ensino, portanto – e gramáticos, dado que é
nesse período que se dá a institucionalização da língua portuguesa como
disciplina escolar. (Costa, 2016, p. 62)
Quatro décadas mais tarde, em 1941, um livro importante introduziria os
modernos estudos sobre a língua, representada pela Linguística: Princípios de
linguística geral, de Joaquim Mattoso Câmara Jr. A linguística firma-se como um
ramo autônomo no reino das ciências humanas e das letras, graças a forte
influência e repercussão do Curso de Linguística Geral, de Ferdinand Saussure.
Essa autonomia se mostra pelo emprego de métodos mais abstratos e voltados
para a forma pelas quais as partes da língua se articulam de modo a constituir um
sistema com leis e regras universais. Ou seja, cada unidade passa ter um valor
estrutural ou funcional, como no caso das oposições entre as consoantes /p/ e /b/
e as conjugações ou tempo verbais. Isso significa que ao usar a forma /p/ constituo
o segmento sonoro pato – substantivo masculino – e a /b/ constituo o segmento
verbal bato. Com a troca de um elemento por outro formam-se significados
diferentes. Assim como as palavras amava e amou, em que as desinências
diferentes opõem dois tempos verbais distintos: passado imperfeito (am-ava) e
passado perfeito (am-ou). Essas análises prescindem de outros campos teóricos,
como o histórico, o literário entre outros. Daí a autonomia da linguística.
Essa abordagem criou uma divisão no Brasil, que opôs filólogos e
linguistas:

Nessa primeira fase do período linguístico, cria-se uma atmosfera densa


e hostil, que encobre uma "guerra" de interesses e prestígio entre
filologia e linguística no Brasil. Os membros do "grupo filológico"
mantiveram o domínio do pensamento gramatical no ensino elementar,
como era de supor, até meados dos anos 1970. Dele participaram,
dentre outros, grandes nomes da descrição gramatical, que hoje são
frequente e indevidamente citados como membros da “tradição
gramatical brasileira” (Cavaliere, 2001, p. 65)

Dessa divisão duas vertentes se consolidam: a dos filólogos-gramáticos e


dos linguistas propriamente ditos. Curiosamente, ambos produzirão gramáticas,
mas diferentes, cada qual atendendo sua metodologia. Os primeiros seguem os
estudos descritivistas de língua escrita, produzindo material didático escolar
seguindo os modelos parecidos com os do período científico, ou seja, buscando
no texto literário trechos para exemplificar os fatos gramaticais do português,
empregando-os como modelos de bom uso em gramáticas escolares e não
escolares. Entre filólogos e gramáticos importantes desse grupo, estão Francisco
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da Silveira Bueno (1898-1989), Serafim da Silva Neto (1917-1960), Carlos
Henrique da Rocha Lima (1915-1991), Celso Ferreira da Cunha (1917-1989) e
Evanildo Bechara (1928).
Os linguistas, por sua vez, a partir da década de 1970, aprofundam os
estudos de língua falada com a criação do NURC – Norma Urbana Culta –; e do
projeto que deriva dele: a Gramática do Português Falado, coordenado por Ataliba
Castilho, iniciado em 1988. O NURC produz um imenso corpus extraído de
gravações de diálogos, entrevistas e aulas/ conferências com falantes
escolarizados dos centros urbanos do país. Segundo Cavaliere, “focaliza-se a
pesquisa no melhor entendimento de uma norma urbana culta, por ser ela a
expressão mais evidente da língua em termos nacionais” (Cavaliere, 2001, p. 65).
Centenas de pesquisas derivam desse projeto, incluindo gramáticas descritivas –
que veremos adiante –, mas com outras bases teóricas.

TEMA 3 – AUTORES DO CÂNONE ATUAL: ROCHA LIMA, EVANILDO BECHARA


E CELSO CUNHA & LINDLEY CINTRA

Quando falamos em cânone, talvez venha a sua mente outra palavra mais
corrente entre nós: canonizar. Esta significa incluir alguém no cânone dos santos,
ou seja, na “lista dos santos reconhecidos pela Igreja” (Houaiss, 2017). Quando
usamos esta palavra fora do campo da religião, seu sentido se amplia para o
conjunto de obras que são o modelo de uma determinada área. Ou seja, as
melhores obras segundo a escolha dos homens e mulheres de sua época. Assim,
as gramáticas que serviram de suporte para o ensino de língua portuguesa a partir
da segunda metade do século XX e início do XXI – o “cânone” – foram a Gramática
Normativa da Língua Portuguesa (1957, 1972, 1992), de Rocha Lima, a Moderna
Gramática Portuguesa (1961, 1997, 2009), de Evanildo Bechara, e as Gramática
do Português contemporâneo (1970), Gramática da Língua Portuguesa (1972), e
a Nova Gramática do Português Contemporâneo (1985, 2001), de Celso Cunha
(a última contou com a colaboração do filólogo português Lindley Cintra [1925-
1971]).
Embora não escritas para o uso em sala de aula, foram recomendadas a
nossos alunos até pelos menos a década de 1960, quando pouco a pouco foram
sendo trocadas pelos livros didáticos, fenômeno ligado à expansão da oferta
escolar havida a partir das décadas de 1960 e 1970. De todo modo, ainda são as
gramáticas que servem de apoio aos autores desses livros – os quais pouco a
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pouco começam a usar também materiais produzidos pelos cursos de Linguística
e Língua Portuguesa de todo Brasil, incluindo gramáticas com outros perfis
teóricos, como veremos mais adiante.
Esses três autores participaram de importantes momentos de formalização
do ensino e da língua portuguesa no Brasil, como a elaboração da Nomenclatura
Gramatical Brasileira, a NGB (1959), e a Reforma Ortográfica da Língua
Portuguesa (1990). Todos eles ligados, uns mais outros menos, à tradição
filológica brasileira. Foram eles que tomaram para si o papel de descrever e
normatizar a língua escrita, enquanto os linguistas se voltavam para a análise
científica da língua.

3.1 (Carlos Henrique da) Rocha Lima (1915-1991)

Carlos Henrique da Rocha Lima, ou Rocha Lima como ficou conhecido por
causa, sobretudo, de sua gramática. Era carioca, fez quase toda sua carreira no
Rio de Janeiro e escreveu quase 40 obras, entre estudos filológicos e textos
didáticos. Sua gramática, desde o nome – Gramática normativa da língua
portuguesa – pretende-se normativa e é baseada nos textos dos cânones literários
português e brasileiro. É a mais conservadora das três. Segundo Cláudio Cezar
Henriques, Rocha Lima diz que “as regras da gramática normativa se
fundamentam nas obras dos grandes escritores, ‘em cuja linguagem as classes
ilustradas põem o seu ideal de perfeição, porque nela é que se espelha o que o
uso idiomático estabilizou e consagrou’” (Lima, 1977, p. 7 citado por Henriques,
2003, p. 45)
Rocha Lima buscava mostrar como as normas provinham de “fatos da
língua”, os quais eram ratificados por meio dos textos dos escritores dos cânones
português e brasileiro. Os quase dois mil exemplos (“fatos de língua”) que ele
distribui pelas páginas de sua gramática foram extraídos das obras de 150
autores. Destes, quase 30% são portugueses; e os demais, 70%, brasileiros.
Neste ponto, sua gramática inclui-se na tradição de reafirmar o português
brasileiro em face do europeu. Mas no que se refere à modernidade dos autores
escolhidos, sua gramática prefere a estabilidade e um certo conservadorismo,
empregando exemplos majoritariamente do século XIX: 99 autores desse século
contra apenas 19 do século XX (Henriques, 2003, p. 51). A sua gramática adotou,
como muitas outras dessa época, a ordem que depois foi estabelecida pela NGB:

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começando pela Fonética/ Fonologia, seguida pela Morfologia e terminando na
Sintaxe, com um capítulo a mais voltado para a Estilística.

3.2 Evanildo Bechara (1928)

O pernambucano Evanildo Bechara escreveu talvez a gramática mais


consultada e indicada no país, a Moderna Gramática Portuguesa. Publicada em
1961, foi reeditada 36 vezes até 1999, quando foi reformulada. Essa nova edição
– a 37ª – foi revista e ampliada em 2006. Se na primeira edição ainda se valeu da
gramática tripartida conforme o modelo da NGB, nesta última modificou-a
completamente, rompendo de vez com um paradigma que atravessou toda a
segunda metade do século XX. Bechara separou a Fonética e a Fonologia do
campo da gramática, ao qual deu o nome de gramática descritiva e normativa.
Essa parte da gramática foi dividida em três partes: 1. Formas e funções; 2.
Estrutura das unidades: análise mórfica; e 3. Estrutura do enunciado ou período:
a oração e a frase. A separação da fonética/ fonologia da gramática mostra “[...] o
alinhamento de [Bechara] à concepção de língua como sistema de estruturas
abstratas, em que o som apenas funciona como revestimento material, de tal sorte
que se possibilite a comunicação” (Cavaliere, 2011, p. 198). Ou seja, o
alinhamento a uma concepção saussuriana de língua, ou seja, à divisão clássica
entre langue e parole, em que a primeira, a langue, corresponde ao sistema
abstrato da língua, o único em relação ao qual é possível fazer ciência linguística.
Essa postura justifica também o adjetivo moderna acrescido ao nome
gramática. Isso significa que conquistas da linguística vão sendo incorporadas à
gramática que, embora bem assentada ainda no modelo filológico, vai se
afastando dos modelos do século XX. Isso lemos no prefácio, onde Bechara diz
incluir um “tratamento novo para muitos assuntos importantes que não poderiam
continuar a ser encarados pelos prismas porque a tradição os apresentava”
(citado por Henriques, 1998, p. 45). Entre suas fontes teóricas mais importantes
estão os linguistas Eugenio Coseriu, José Herculano de Carvalho e Joaquim
Mattoso Câmara Jr.
Bechara chama sua gramática de descritiva e normativa, sem pretender
nesse segundo aspecto ser prescritiva:

A orientação aqui adotada resulta da nossa convicção de que ela


também pode oferecer elementos de efetiva operacionalização para uma
proposta de reformulação da teoria gramatical entre nós, especialmente
quando aplicada a uma obra da natureza desta Moderna Gramática

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Portuguesa, que alia a preocupação de uma científica descrição
sincrônica a uma visão sadia da gramática normativa, libertada do ranço
do antigo magister dixit e sem baralhar os objetivos das duas disciplinas.
(Bechara, 2009, p. 7 – grifo nosso)

Uma gramática normativa, segundo Bechara, deve apresentar os usos


linguísticos mais recomendados extraídos de exemplos da língua para serem
empregados em situação concretas de convívio social. Até aqui, concorda com o
conceito de norma culta que vimos na Aula 1. A diferença se dá neste ponto: para
o gramático pernambucano, a gramática normativa “recomenda como se deve
falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos
gramáticos e dicionaristas esclarecidos” (Bechara, 2009, p. 37). Para Carlos
Faraco (2017), como vimos, a norma não deve vir da autoridade mas da descrição
da língua falada (e escrita) pelo cidadão escolarizado dos centros urbanos. Mas
ambos – Bechara e Faraco – condenam o prescritivismo e o purismo linguísticos.

3.3 Celso Cunha (1917-1989)

O mineiro Celso Cunha escreveu três gramáticas: Gramática do português


contemporâneo (1970), Gramática da língua portuguesa, 1972) e Nova gramatica
do português contemporâneo (1985), está escrita em conjunto com o filólogo
português Lindsey Cintra. O que chama a atenção de imediato é o adjetivo
contemporâneo. Talvez, por causa do moderna usado na gramática de Bechara,
Cunha e editores tenham escolhido o termo mais forte, o qual vincula sua
gramática ao português do século XX. Segundo o levantamento de Cláudio Cezar
Henriques (2004), dos 205 autores citados por Cunha e Cintra na Nova Gramática
do Português contemporâneo,104 são do século XIX; 91 do século XX. Nesse
sentido, torna-se uma gramática mais próxima do leitor culto brasileiro e português
em geral.
Outro aspecto importante em relação à sua Gramática é a ideia de norma,
segundo a qual falar ou escrever corretamente é fazê-lo de acordo com o que é
esperado pela comunidade linguística, ao passo que o “erro em linguagem”,
citando Jespersen, “equivale a desvios desta norma, sem relação alguma com o
valor interno das palavras ou formas” (Cunha, 1985, p. 6). Por exemplo, quando
alguém fala “Eu conheci ele” é um desvio da norma “Eu o conheci”, como vimos
na aula anterior, mas não contém nenhum problema formal. Cunha defende,
agora baseado em Coseriu, que a norma não corresponde ao que se pode ou se
deve dizer mas sim “ao que já se disse e tradicionalmente se diz na comunidade

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considerada” (Cunha, 1985, p. 7). Nesse sentido, a ideia de correção muda de
aspecto, está mais próxima da ideia de adequação. O viés antiprescritivista de
Cunha e Cintra é bem claro, pois para eles é preciso uma descrição detalhada
das

variedades cultas, seja na forma falada, seja na escrita. Sem


investigações pacientes [...] nunca alcançaremos determinar o que no
domínio da nossa língua ou de uma área dela é de emprego obrigatório,
o que é facultativo, o que é tolerável, o que é grosseiro, o que é
inadmissível; ou, em termos radicais, o que é e o que não é correto”
(Cunha, 1985, p. 8).

Essa visão de Cunha era tão forte que ele se engajou no projeto NURC, no
qual trabalhou na seção do Rio de Janeiro. Projeto esse que foi a base para a
elaboração de novas gramáticas, com viés mais linguístico do que filológico.

TEMA 4 – O ENSINO DE GRAMÁTICA COM UM VIÉS LINGUÍSTICO

Dois acontecimentos de ordem diferente suscitaram a médio e longo prazo


mudanças importantes no ensino no Brasil e em particular no ensino de língua
portuguesa: a expansão do ensino público e a inclusão da disciplina de Linguística
nos cursos superiores de Letras na década de 1960.
A ampliação da rede pública de ensino levou para as salas de aula um novo
público: os cidadãos mais pobres ausentes até então dos benefícios providos pelo
Estado. Filhos de cidadãos analfabetos ou semianalfabetos em sua maioria, esses
novos alunos mal conheciam a língua escrita como a conheciam os estudantes
de escolas públicas, como D. Pedro II, no Rio de Janeiro, Caetano de Campos,
em São Paulo. Muitos desses estudantes foram alunos de Rocha Lima, Celso
Cunha e Evanildo Bechara.
De 1960 em diante, não só os alunos eram outros, mas os professores
também. Muito destes ingressam nos cursos de Letras e passam a ter contato
com as disciplinas de linguística. Rodolfo Ilari mostra que três grandes linhas se
impuseram nos primeiros anos: o estruturalismo, o gerativismo, e as disciplinas
ligadas à linguística externa: sociolinguística, pragmática e psicolinguística (Ilari,
2003, p. 95-96). Outra linha teórica importante fora da lista de Ilari é a
funcionalista. Faraco e Castro chamam a atenção para o impacto da entrada dos
estudos linguísticos na universidade:

Ao apontar as fragilidades encontradas no ensino tradicional ao lidar com


as diferenças culturais e linguísticas dos novos alunos que se integraram

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à escola pública brasileira, por conta de sua expansão nos governos
militares, os linguistas deram um novo tom à discussão, redirecionando
o debate a partir, principalmente, da inserção do tema da variação
linguística e suas decorrências, seja quanto ao conceito de gramática,
seja quanto à funcionalidade das variantes. (Faraco; Castro, 1999, p. 1)

Uma das consequências desses novos olhares sobre a língua foi, segundo
Ilari, levar o professor de língua portuguesa a “desautomatizar a visão corrente
dos fatos de língua”, ou seja, não aceitar de pronto o que estava na gramática
tradicional. Outro aspecto foi a possibilidade desse mesmo professor praticar o
método de investigação científica (Ilari, 2003, p. 10). Mas o que o “cientifico” da
linguística tem de diferente do método cientifico dos filólogos que mencionamos
nesta aula alguns temas atrás? Na verdade, mudam as teorias, as quais exigem
outros métodos. Ilari, nas entrelinhas, está opondo o método científico da
linguística aos gramáticos prescritivistas ou a perspectivas dogmatizantes que
ignoram a língua real empregada pelos brasileiros.
A diferença que os linguistas procuraram marcar em relação ao ensino
prescritivista ou normatizante era de que a Linguística não confundia a língua com
a gramática. Era preciso não desconsiderar “a realidade multifacetada da língua”,
como dizem Faraco e Castro (1999, p. 1). Ou seja, considerar a heterogeneidade
da língua como uma petição de princípio e colocá-la no centro dos estudos
linguísticos é um divisor de águas – em temos teóricos – entre a linguística e a
tradição gramatical normativa. Não que essa diversidade não fosse aceita. Foi
Bechara quem cunhou a expressão que todos devemos ser “poliglotas na mesma
língua”, ou seja, conhecer e dominar o melhor possível as variantes do Português.
Mas esse gramático, assim como outros, não as incorporaram como um princípio
norteador de suas gramáticas.
Outra diferença de postura é a determinação da linguística em descrever
“os falares de camadas sociais desprestigiadas” (Ilari, 2003, p. 19), algo que ainda
aparece na gramática de Bechara, por exemplo, como vícios de linguagem
(Bechara, 2010, p. 487).
Do ponto de vista da escrita, os linguistas ampliaram esse universo,
incluindo o exame de textos não-literários. Postularam, portanto, uma outra
relação com o texto, retirando da literatura o lugar de autoridade e ratificação dos
usos linguísticos. Em vez disso, investigam diferentes textos que passarão a
chamar de gênero textual ou gênero do discurso. Sem entrar no mérito de suas
definições, gêneros do discurso pressupõem e implicam a ideia de interação, ou
seja, são produzidos de acordo com as necessidades de comunicação e de

14
propósito entre interlocutores. Trata-se de incluir a sociedade e o contexto na
investigação da linguagem:

Deve-se à linguística a descoberta de que a linguagem é frequentemente


utilizada para criar e modificar situações interpessoais [e] não pode ser
separada da consciência de que nossas orações só são adequadas e
interpretáveis em contextos determinados; um traço fundamental do que
chamo aqui “contexto” são representações que os locutores fazem uns
dos outros alterando-se essas representações, frequentemente o
sentido real de um enunciado muda, mesmo que o sentido literal
permaneça inalterado (Ilari, 2003, p. 101-102).

Outro aspecto importante trazido pelos linguistas foi a revisão da


metalinguagem e da análise da descrição da língua feita pelos gramáticos-
filólogos. Ilari mostra, por exemplo, como a definição de substantivo dada pela
Gramática do MEC não respeitava a análise da estrutura da língua feita em níveis
independentes. Segundo o ex-professor da Unicamp, o substantivo é mais bem
descrito pelas suas propriedades sintáticas ou distribucionais, “[...] ou seja pela
forma como se opõe às demais classes gramaticais (núcleo do sujeito, não núcleo
do predicado) e não pelo sentido como o define a gramática filológica: ‘a palavra
que indica o ser’” (2003, p. 100). Dessas premissas, surgem algumas linhas e
propostas de ensino do português brasileiro. Vejamos algumas.

4.1 Propostas de ensino com viés linguístico

A ideia de expandir as habilidades de comunicação e expressão dos novos


ingressantes das escolas públicas foi uma das primeiras premissas do ensino de
português com viés linguístico. O linguista, professor e gramático gaúcho Celso
Luft, por exemplo, defendia o estímulo às habilidades comunicativas com as quais
todos nascemos: “Isto nos sugere que as aulas de linguagem não sejam
treinamento forçado, carregamento de fora para dentro, mas criação de condições
e estímulo para que se liberem capacidades internas inatas” (1995, p. 53). Luft
acreditava que o falante poderia aprender todas variantes sem precisar decorar
regras, “que apenas o confundem e tornam esse processo ineficaz, frustrante”
(Luft, 1995, p. 53). Aliás, perspectiva que segue os Parâmetros Curriculares
Nacionais que mencionamos na Aula 1, que foram escritos já sob o influxo dos
estudos linguísticos.
Outro aspecto é estimular e ensinar professores e alunos a refletirem sobre
a linguagem por meio da observação dos fenômenos linguísticos dados em um
contexto. Segundo essa perspectiva, o estudo da metalinguagem gramatical se

15
faz mediante “o produto da observação do funcionamento das unidades
linguísticas em contextos que incluem os sujeitos falantes, a situação espaço-
temporal e a própria língua” (Flores, 2006, p. 11). Trata-se de deixar as regras de
lado e estimular e exercitar a percepção de fatos linguísticos a partir dos textos. E
é o texto o grande protagonista de novas propostas do ensino da língua, uma vez
que nele a língua se manifesta de forma mais viva, dado que só nos comunicamos
por meio dele.

4.2 Do texto ao gênero textual ou discursivo

Carlos Faraco e Geraldo Castro, em um artigo publicado em 1999,


perguntavam “se o ensino de linguagem não se dá [...] calcado no eixo normativo,
como ele deve ser, se aceitarmos a crítica dos linguistas?”. Os dois linguistas não
hesitam em responder: no lugar do formalismo gramatical, coloca-se o texto “na
medida em que ele é, de fato, a manifestação viva da linguagem” (Faraco; Castro,
1999, p. 2). Para eles, não se trata apenas de uma mudança de objeto – da frase
para o texto –, mas de pressuposto teórico. Ou seja, o ensino deve supor que a
linguagem se dá por meio de “uma ação linguística viva que se constrói no
complexo jogo das relações humanas” (Faraco; Castro, 1999, p. 7). O veículo
dessa ação é o enunciado, conceito formulado pelo linguista e crítico russo
Mikhail Bakthin. Para ele, o enunciado é uma “unidade de comunicação verbal”.
Nós, segundo Bakthin, não trocamos palavras, mas enunciados, pois estes se
constituem num contexto de interlocução verbal num plano maior que o das
palavras e orações, no qual há propósito, lugar, tempo, valores e os interesses
dos interlocutores envolvidos no ato de comunicação. Essa concepção vai dar no
conceito de gênero de discurso, que nada mais é do que as formas linguísticas
relativamente estáveis que a sociedade cria para se comunicar: post, notícia,
sermão, reza, SMS, e-mail, carta, tese de doutorado, sentença judicial etc. Todos
são constituídos de formas linguísticas que se compõem de modo relativamente
permanente conduzidas pelos propósitos que as criaram. Ressalta-se que estão
incluídos aí os gêneros orais, reunindo, então, numa mesma perspectiva texto
escrito e fala.

TEMA 5 – AS NOVAS GRAMÁTICAS DO PORTUGUÊS (BRASILEIRO)

16
Da teoria, os linguistas foram à gramática. Percebendo que a crítica à
gramática tradicional ou à dos filólogos, e a indicação de como a língua deveria
ser pensada ou descrita não eram suficientes, alguns linguistas resolveram
colocar a mão na massa e escrever novas gramáticas. Isso começa a acontecer
na década de 1980 com a Gramática da Língua Portuguesa, de Mira Mateus e
outras (1983), prosseguindo nos anos 1990 com a Gramática descritiva do
português, de Mário Perini (1996), até chegar à primeira década do século XXI,
quando esse processo toma fôlego com as gramáticas de Maria Helena Moura
Neves, Mário Perini Ataliba Castilho e Marcos Bagno:

• 2000 – Gramática de Usos do Português, de Maria Helena Moura Neves


• 2010 – Gramática do Português Brasileiro, de Mário Perini
• 2010 – Gramática do Português Brasileiro, de Ataliba Teixeira Castilho
• 2011 – Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, de Marcos Bagno

Se você está lembrado, as gramáticas dos filólogos incluíam em seus


títulos os adjetivos normativo, contemporâneo e moderno. No caso das
gramáticas dos linguistas, a novidade não vem estampada com as palavras de
traço temporal, mas com a locução adjetiva “de Usos”, o adjetivo brasileiro, e
mais outro, pedagógica, na última delas. Expressões e palavras que já as
circunscrevem num campo teórico diferente das suas antecessoras.

5.1 Gramática de usos do Português

A gramática da professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp),


Maria Helena de Moura Neves, pretende mostrar como a língua portuguesa vem
sendo usada no Brasil na ocasião de sua pesquisa e publicação. A proposta é
examinar de que modo os usuários da língua vêm empregando os itens
linguísticos do português no Brasil para produzirem sentido. Assim, ela define o
objetivo da Gramática: “[...] prover uma descrição do uso efetivo dos itens da
língua compondo uma gramática referencial do português” (2000, p. 14). Moura
Neves usou uma base de 70 milhões de ocorrências levantada e guardada no
campus de Araraquara da Unesp. Os exemplos são de textos escritos – literários,
jornalísticos, técnicos, dramáticos – contemporâneos.
A obra emprega metodologia diferente daquela usada pelos gramáticos
filólogos, uma vez que parte do uso da língua transparece em textos literários e
não-literários. Não pressupõe o uso e depois o exemplifica com texto de uma

17
autoridade literária; ao contrário, a partir do uso analisa o produto linguístico
realizado pelo usuário.
A teoria também é outra. O texto é a unidade maior de funcionamento da
língua, ou seja, “a interpretação das categorias linguísticas não pode prescindir
da investigação de seu comportamento na unidade maior – o texto –, que é a real
unidade de função” (2000, p. 15).
Além disso, os itens gramaticais devem ser vistos em todas as suas
dimensões funcionais. Ou seja, ao analisar a ocorrência de um artigo definido
não basta verificar seu papel no nível do sintagma, mas também seu papel
referencial, o que muitas vezes implica levar em conta aspectos do contexto
extralinguístico como em “O guarda mete o dinheiro no bolso e vai saindo (UC)”,
em que o referente (o guarda) está presente no momento da enunciação, condição
necessária para o estabelecimento de sentido (Neves, 2000, p. 391).

5.2 Gramáticas do português brasileiro: Mário Perini, Ataliba T. Castilho e


Marcos Bagno

Dois aspectos são centrais nas gramáticas de Perini, Castilho e Bagno: o


português brasileiro e a língua falada. Ataliba Castilho conta no prefácio de sua
gramática o percurso que o levou a escolher o título:

Há mais de quinhentos anos a língua portuguesa foi trazida ao Brasil.


Nos séculos XVI a XVIII foi rotulada como o português no Brasil, pois
era inteiramente lusitana, e não tinha superado as línguas indígenas. A
partir do século XIX, a língua portuguesa tornou-se majoritária, começou
a distanciar-se do português europeu, sendo então denominada
português do Brasil. A partir dos anos 80 do século XX, suprime-se a
preposição do, e começamos a falar em português brasileiro” (Castilho,
2010, p. 31)

Quanto à língua descrita ou pensada, ambos enfatizam a língua falada. O


professor da UFMG, Mário Perini, assim explica essa opção:

Vamos estudar aqui a gramática da língua falada no Brasil por mais de


187 milhões de pessoas [hoje mais de 200 mi]. E isto nos leva a outro
ponto em que este livro difere das gramáticas comumente adotadas em
nossas escolas. A língua que falamos (nós todos, operários,
professores, mecânicos, médicos e manicures) é bastante diferente da
língua que escrevemos (isto é, aqueles dentre nós que têm a formação
necessária para a tarefa de escrever). Assim, na cantina dizemos me dá
um quibe aí, mas na língua escrita isso seria dê-me um quibe. [...] as
duas variedades existem, vão continuar a existir e, principalmente, não
podem ser trocadas: escreve-se uma tese em português padrão escrito,
pede-se um quibe em português falado. A esse português falado se dá
em geral a designação de português falado do Brasil, ou PB. Este livro
é uma gramática do PB” (Perini, 2010, p.19)

18
Perini não ignora o português padrão (a língua escrita formal), mas acredita
que se deve estudar a língua mais usada por seus usuários, pois o padrão: “só se
usa em situações especiais, relativamente raras: escrevendo textos para
publicação, fazendo discursos de formatura, coisas assim. O padrão nunca é
usado na fala cotidiana [...]” (Perini, 2010, p.20). Seu método é o descritivo, por
meio do qual pretende mostrar o que ocorre no PB, como ele o chama. Perini
ainda enfatiza o caráter científico de sua gramática nos termos que vimos no tema
anterior e na aula sobre norma culta: “O linguista, cientista da linguagem, observa
a língua como ela é, não como algumas pessoas acham que ela deveria ser”
(Perini, 2010, p. 21). Esse é um mantra dos linguistas, não?
A diferença de objeto em relação ao da gramática dos filólogos produz
também uma diferença na teoria e metodologia empregadas. Com isso, Perini
introduz conceitos novos, reexplica os tradicionais, e propõe modificações na
Nomenclatura Gramatical Brasileira.
A gramática de Ataliba T. Castilho, o ex-professor das três maiores
universidades de São Paulo (Unesp, Unicamp e USP), é seguramente a mais
ousada, exaustiva e complexa. Mas não se assuste: é escrita de forma clara e,
até em muitos momentos, coloquial. A sua gramática considera a língua como um
objeto dinâmico. Nesse sentido, difere-se das gramáticas de Moura Neves e
Perini, que, mal ou bem, partem de um produto linguístico acabado.
No caso da gramática do professor paulista, a “intensa atividade”
desencadeada pela fala é enfrentada por uma teoria que encara todos esses
processos ao mesmo tempo: a teoria multissêmica. Trocando em miúdos, uma
teoria que analisa o fenômeno linguístico considerando simultaneamente quatro
aspectos: o léxico, a semântica, o discurso e a gramática. Não separadamente,
mas “tudo junto ao mesmo tempo”, como se diz por aí.
Por exemplo, quando ele vai estudar o sujeito, Castilho levanta do seu
corpus exemplos e os discute segundo suas propriedades gramaticais
(fonológicas, morfológicas e sintáticas), discursivas, e semânticas. Claro que cada
item linguístico vai demandar uma ênfase maior neste ou naquele aspecto, mas o
que salta aos olhos nessa gramática é a extensão da análise, que parece
pretender percorrer tudo que é possível observar em cada caso proposto.
Ataliba Castilho enfatiza que a gramática deve analisar desde a língua do
analfabeto até a do “escritor laureado”, por isso examina tanto o texto escrito
quanto o falado. Para ele, as “regularidades que as gramáticas identificam devem

19
fundamentar-se no uso comum da língua, quando conversamos, quando lemos
jornais, como cidadãos de uma democracia” (Castilho, 2010, p. 32). Por fim, indica
sua gramática para pesquisadores, professores, alunos de letras e curiosos. Não
é, portanto, uma gramática escolar. No entanto, em 2012 lançou uma gramática
escolar com a professora Vanda Maria Elias, disponível em nossa Biblioteca
Virtual.
Já a gramática de Marcos Bagno, como informa seu título, é pedagógica.
Ainda que não se destine a alunos e alunas, é orientada para uso de professores
do ensino fundamental e médio, “como um auxiliar para a tarefa de promoção da
reflexão sobre a língua e linguagem em sala de aula” (Bagno, 2011, p. 26). Para
isso, o professor da Universidade de Brasília (UnB) descreve as características
básicas do português brasileiro, usa exemplos contemporâneos e autênticos,
além de propor “atividades práticas para levar seus aprendizes a conhecer melhor
o funcionamento da língua que falam e escrevem e para se apoderar do que é um
português brasileiro contemporâneo urbano culto” (Bagno, 2011, p. 26).
O viés pedagógico está presente em outros aspectos. No começo da obra,
Bagno sugere leituras da gramática tradicional aos seus leitores professores, pois
são um pressuposto para entender a sua gramática. Ele indica as gramáticas de
Cunha e Bechara, que estudamos aqui, comentando suas características, além
de recomendar a Gramática Houaiss da Língua Portuguesa, de José Carlos de
Azevedo (2008). Entre outros aspectos importantes, Bagno enfatiza que incorpora
formas do português urbano culto à gramática, considerando-as como “já
devidamente implantadas no nosso sistema linguístico” (2011, p. 27). Muitas delas
vimos na discussão sobre o português brasileiro em aula anterior. Assim,
descreve uma “norma que já existe”, como também defendem Neves, Perini e
Castilho.

FINALIZANDO

Você acompanhou nesta aula o percurso que define o atual quadro do


ensino de gramática no Brasil. Ele começa com um viés conservador, devido aos
gramáticos racionalistas, que viam a língua como um reflexo do pensamento.
Produziram obras importantes mas deram fundamentos para os conservadores
imporem uma agenda prescritivista.
No fim do século XIX, gramáticos descritivistas tomam à frente e se afastam
dos gramáticos portugueses, impondo uma gramatologia nacional. Assentados no

20
Brasil, os estudos gramaticais adotam critérios científicos, boa parte herdados dos
métodos da linguística histórica e comparada, correntes que fundaram a
linguística. Isso aprimorou e muito a descrição da língua.
Quase na metade do século XX, a linguística chega ao Brasil com a obra
de Joaquim Mattoso Câmara Jr. e dá o impulso à linguística. Daí em diante,
filólogos, linguistas e gramáticos vão conviver, brigar e muitas vezes ocupar dois
ou três papéis desses ao mesmo tempo. Com a expansão do ensino e a
consolidação dos estudos linguísticos no Brasil, novas concepções ganham
espaço, sobretudo depois da criação do Projeto NURC, que permitiu que os
estudos de língua falada se desenvolvessem a ponto de possibilitar a redação de
gramáticas da língua falada do português brasileiro. Ataliba Castilho resume bem
– e de forma conciliadora – o cenário atual em que vivemos:

Por fim, pretendo com esta gramática acrescentar um elo a mais na


longa tradição das gramáticas de referência, mesmo quando delas me
afasto. Esta é uma atividade duas vezes milenar na civilização ocidental,
velha de quase meio milênio no domínio da língua portuguesa, quando
Fernão de Oliveira publicou, em 1536, nossa primeira gramática.
Deixando de lado uma repulsa aos achados da Gramática tradicional,
este livro mostra como as pesquisas linguísticas, na verdade,
aprofundaram e enriqueceram esses achados, operando a partir de
princípios e aplicando uma metodologia segura. Ou seja, a oposição
"linguista versus gramático", bastante cultivada nas décadas de 1960 e
1970, fase em que a Linguística moderna se implantou no Brasil, foi
superada pela pesquisa científica. Gramáticos aprimoraram sua
formação. Linguistas passaram a ocupar-se com a redação de
gramáticas. E todos viveram felizes para sempre. (2010, p. 33)

LEITURA OBRIGATÓRIA

Texto de abordagem teórica

BECHARA, E. Sistema, norma e tipo linguístico. In: _____. Moderna gramática do


português. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. p. 28-30. Arquivo em
PDF.

CASTILHO, A. T. A língua é um conjunto de usos bons: gramática prescritiva. In:


_____. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. p. 90-94.
Disponível na Biblioteca Virtual.

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português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. p. 35-107. Disponível na
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contemporâneo. 7. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2017, p. 1-8. Disponível na
Biblioteca Virtual.

FARACO, C.; CASTRO, G. Por uma teoria linguística que fundamente o ensino
de língua materna (ou de como apenas um pouquinho de gramática nem sempre
é bom). Educar em revista, v. 15, n. 15, 1999. Disponível na internet.

FARACO, C.; ZILLES, A. M. Norma, descrição e prescrição. In: _____. Para


conhecer a norma linguística. São Paulo: Contexto, 2017. Disponível na
Biblioteca Virtual.

PETTER, M. Linguagem, Língua e Linguística. In: Fiorin, J. L. (Org.). Introdução à


linguística. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2005. p. 11-23. Disponível na
Biblioteca Virtual.

Saiba mais

Assista ao programa A gramática na escola, quinto programa da série Um mundo


de letras: práticas de leitura e escrita, do programa "Salto para o Futuro",
apresentado pela TV Escola. Participam do programa os professores José Carlos
de Azeredo (UFF), Luiz Carlos Travaglia (UFU) e Profª. Dra. Edair Gorsky (UFSC).
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FL-qbf0udq8>. Acesso em:
21 out. 2022.

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REFERÊNCIAS

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Paulo: Contexto, 2012

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Revista de Linguística, v. 45, p. 49-69, 2001.

COSTA, T. de A. da. Evanildo Bechara e a(s) moderna(s) gramática(s)


portuguesa(s): autoria, (re)produção, (re)formulação e circulação de dizeres
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