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Lícia Heine
(UFBA – 2021.1)
A linguística hindu, pois, provém dos textos sagrados, escritos na língua sânscrita,
considerada a língua perfeita, que “deixou de ser falada três séculos antes da nossa era cristã,
sendo substituída pelo dialeto prakrit” (KRISTEVA, 1969, p. 104). Fez-se necessário, então,
decifrar esses textos sagrados para as gerações futuras, tarefa árdua realizada por diferentes
gramáticos hindus, dentre os quais o mais célebre é Pãnini (cerca do séc. IV a. C.), cuja
gramática é comumente denominada de Oito Livros (ROBINS, 1979, p. 109). Vale ressaltar
que os gramáticos hindus, diferentemente dos greco-latinos da Antiguidade Clássica, “[...] que
estiveram intimamente ligados à preocupação com a interpretação dos textos dos poetas antigos,
sobretudo dos célebres poemas épicos Ilíada e Odisséia, atribuídos a Homero no século IX ou
VIII a. C.”, penderam para uma abordagem funcional da linguagem (MATEUS; VILLALVA,
2006, p. 32). Esse pendor justifica-se pelo olhar sistemático para o processo de oralização da
escrita (MARCUSCHI, 2001), que tem como base a leitura de textos escritos, uma vez que os
textos sagrados, reunidos no Veda,1 eram transmitidos, através do médium da linguagem oral,
por sujeitos de carne e osso. Pãnini e seus pares buscaram incentivar uma leitura, com extremo
acuro, voltada para os modos e pontos de articulação dos segmentos (consoantes e vogais)
presentes nos textos religiosos, a fim de possibilitar uma prolação perfeita desses segmentos
para preservação dos hinos védicos de forma exata, sem perda de qualquer magia religiosa. A
oralização da escrita, embora seja predominantemente leitura do texto escrito, deve ser
reconhecida como uma das realizações da língua falada híbrida (MARCUSCHI, 2001, p. 38),
na medida que se entrecruzam tanto aspectos da língua falada, quanto da língua escrita. Além
disso, é preciso registrar que a leitura dos hinos védicos é feita por sujeitos concretos que, ao
se apropriarem da linguagem, realizam gestos diversos, imprimindo vozes que geram sentidos
ligados à magia da literatura védica. Daí ser possível considerar as reflexões linguísticas hindus
um dos precursores lato sensu da língua falada.
Da Antiguidade, passemos para a transição entre final da Idade Média e o início do
Renascimento, momento profícuo em que se observa, dentre as diversas contribuições da
Filosofia Escolástica, um olhar para a valorização do latim vulgar que, a título de ilustração,
mencionamos Alexandre de Villedieu (século XIII), com o seu trabalho Doctrinale, de base
didática, que, de acordo com Robins (1979, p. 50), parece que foi escrito em latim vulgar e não
no latim clássico, como ocorrera no período precedente, seguindo as bases da Téchné
grammatiké, de Dionísio da Trácia, (século II a. C.). Esse pendor para o latim vulgar, língua
coloquial e viva, contribuiu para a valorização da língua falada.
Ressaltamos ainda, de acordo com Mounin (1982, p. 22-23) que, em fins do período
medieval, um homem se interessou de maneira ímpar pelos problemas de linguagem, pouco
1
Denominam-se Vedas a compilação de textos religiosos, que ocorreu na Índia entre 1500 e 900 a.C.
trabalhados pela tradição greco-latina. Trata-se do italiano Dante Alighieri (1265-1321), o
poeta-gênio que, através da sua grande obra De Vulgari Eloquentia (1301), identificou 14
dialetos, dentre os quais se tem hoje a língua oficial da Itália, exaltando, assim, a língua falada,
frequentemente à margem das pesquisas linguísticas.
O Renascimento, marco inaugural do mundo e da história modernos, ocorrido entre o
século XVI e o XVII, é tido, na linguística, como um movimento constituído de duas faces:
uma voltada para o passado, para o pleno redescobrimento e revalorização do mundo greco-
latino; outra, olhando para a frente, para o futuro excitante (ROBINS, 1979, p. 74), que
representa a orientação definitiva para o estudo das línguas modernas. A partir da sua segunda
face, com o descobrimento do Novo Mundo por Colombo (1942), e a criação da imprensa pelo
alemão Gutemberg (1398-1468), passaram a estudar as línguas modernas, voltando-se
sobretudo para as línguas vernáculas europeias e não europeias, determinando, pois, o estudo
das línguas vivas, precisamente o estudo das línguas particulares, mas não houve pesquisas
circunscritas à oralidade, salvo pesquisas de cunho empirista que deram importância aos
estudos da fonética, contribuindo, de modo singular, com a valorização da língua falada (MIRA
MATEUS; VILLALVA, 2006, p. 34).
Do século XIX, período em que as línguas passaram a ser vistas como um fenômeno
evolucionista, centradas numa abordagem eminentemente diacrônica (ROBINS, 1979),
destaca-se o posicionamento de William Von Humboldt (1767-1835), linguista que ultrapassou
a abordagem diacrônica da linguagem ao apresentar ideias que hoje se inserem na chamada
linguística moderna. Dentre as quais, cita-se um trabalho em que ele focalizou as línguas dos
nativos americanos — “Sobre a língua Kawi na Ilha de Java”, no qual pretendeu mostrar a
relação necessária entre língua e cultura, enfatizando o papel que aquela estabelece sobre a
transmissão cultural.
No final do século XIX, registramos alguns dos posicionamentos basilares dos
neogramáticos, último quartel de pesquisadores desse século. A denominação de
“Neogramáticos” foi dada inicialmente de forma pejorativa ao grupo de jovens Karl Brugman
(1849-1919) e H. Osthoff (1847-1909), pelo fato de terem discordado de alguns dos
pressupostos tradicionais dos seus predecessores historicistas, como afirma Faraco (2004):
O fato social é geral, exterior e coercitivo, podendo, apenas, ser explicado pelo
social. É, pois, o social pelo social. Dessa definição do objeto, compreende‐se
que a sua concepção de sociedade não é a soma de indivíduos, mas o produto
que é externo a qualquer consciência individual. O fato social é produção da
coletividade e não de indivíduos particulares (SOBRINHO, 2013, p. 8).
Marcuschi (2008) também registra essa transição teórica que amplia de modo produtivo
os estudos da ciência da linguagem:
[...] paralelamente a toda análise formal da língua, foram surgindo, nos anos
60 do século XX, novas tendências que fugiam à linguística hegemônica.
Eram linhas de trabalho que buscavam observar a linguagem em seus usos
efetivos. Tratava-se do que se chamou de a guinada pragmática, motivada em
parte pela filosofia analítica da linguagem impulsionada tanto por
Wittgenstein (1889-1951) como por Austin. A partir dos anos 1960, surgiram
a pragmática, a sociolinguística, a psicolinguística, a análise de discurso, a
análise da conversação, a etnolinguística e, neste contexto, também a
Linguística Textual. (MARCUSCHI, 2008, p. 39)
A visão dinâmica da língua acima referida representa o elemento central dessa linha de
estudo, o que lhe capacita a considerar a sincronia, não em termos estáticos, tal como a delineou
Saussure nos primórdios do século XX, mas, sobretudo, no eixo dinâmico, porque a língua,
mesmo num determinado estado linguístico permanece constantemente em ação. Traço que, na
acepção de Martinet (1994), se constitui a diferença singular entre os enfoques linguísticos
anteriores, comumente denominados de formalismo linguístico, e a prática funcionalista da
linguagem.
Portanto, considerando as nossas reflexões anteriores, podemos dizer que, no século
XX, as pesquisas linguísticas, na tradição, vêm sendo representadas por meio de dois grandes
paradigmas: o paradigma formal da linguagem e o paradigma funcional da linguagem, o que é
inadequado, pois os estudos da análise de discurso do Michel Pêcheux não se encaixam em
nenhum desses paradigmas. Sugere-se, então, neste artigo, que, no século XX, considerem-se
não apenas o paradigma formal e o funcional da linguagem, mas também um terceiro paradigma
aqui denominado de “Paradigma ideológico-discursivo”.
Na década de 1990, no Brasil, deu-se início ao estudo do funcionalismo de modo mais
sistemático, quando nos deparamos com a divisão entre funcionalismo e formalismo,
constituindo-se foco de polêmica e controvérsias a respeito dos seus objetos de estudo, e,
sobretudo da necessidade de fazer, na Linguística, a escolha de uma linha de pesquisa em
detrimento da outra, ou seja, o pesquisador formalista necessariamente deveria negar a validade
dos estudos funcionais e vice-versa. Esse posicionamento radical encontra-se em Votre e Naro
(1989) que propuseram considerar formalismo e funcionalismo como enfoques linguísticos
distintos e excludentes entre si. Em réplica ao texto daqueles autores, Nascimento (1991)
manifesta-se contra a proposta dos referidos linguistas, argumentando que, formalismo e
funcionalismo possuem objetos de estudo diferentes, não havendo, pois, a necessidade de se
fazer a escolha de uma delas em detrimento da outra. Em 1991, Dillinger, refletindo sobre essas
discussões, analisa melhor as propostas desses paradigmas linguísticos, chegando à seguinte
conclusão: formalismo e funcionalismo tratam do mesmo objeto de estudo – a linguagem
humana, que é estudada através de diferentes fenômenos, tal como se verifica nas abordagens
em análise. Portanto, Dillinger (1991, p. 403) “frisa que o estudo de um e outro aspecto são
complementares e igualmente necessários”. Essa posição moderada não foi aceita pela maioria
dos linguistas nos anos subsequentes, visto que se instalaram antinomias que sustentaram o
debate teórico entre os dois paradigmas. Contudo, a posição atual é reconhecer que “[...] os
enfoques funcionalista e formalista tratam de diferentes fenômenos do mesmo objeto, não há
nenhuma necessidade de discutir se um é mais importante que o outro: as diferentes
perspectivas para o estudo da linguagem são complementares e igualmente necessários.”
(PEZZATI, 2004, p. 176).
Pezatti (2004, p. 168), ao discorrer sobre o termo “funcional”, apresenta “a concepção
de linguagem como um instrumento de comunicação e de interação social”, aspecto nuclear do
funcionalismo, como já se fez registrou anteriormente. Trata-se do seu traço básico que o
caracteriza enquanto um paradigma linguístico, deixando claro que o mesmo não contempla
pesquisas de cunho abstrato, inerentes ao formalismo linguístico. No estruturalismo, por
exemplo, Saussure, considerando que a linguagem se constitui de dois fatores – a língua e a fala
–, definiu o seu objeto de estudo – a língua, da seguinte forma: “a língua é para nós a linguagem
menos a fala” (SAUSSURE [1917] 1961 p. 92). No funcionalismo, haja vista a sua base
filosófica – a Pragmática, a linguagem é vista na sua totalidade, enquanto uso e enquanto ação
(MARCONDES, 2004, p. 49), sendo, portanto, heterogênea já que são analisadas no seio do
processo comunicativo. Quando se fala em pragmática, fala-se numa vertente filosófica, tal
como se depreende em Paveau e Sarfati (2006), no texto a seguir:
Em seu início, a reflexão de tipo pragmática não estabelece, por assim dizer,
nenhuma ligação com a reflexão linguística, já que ela se origina em uma série
de interrogações essencialmente filosóficas. Mesmo se, na maioria dos casos,
ela tenha acabado por se fundir e confundir-se com os estudos linguísticos, a
pragmática nasceu da filosofia da linguagem. (PAVEAU; SARFATI, 2006, p.
215)
A pragmática nasce a partir de uma crise filosófica, ocorrida durante a transição dos
séculos XIX e XX, momento em que diferentes ramos da filosofia e correntes do pensamento
debruçaram-se a questões da linguagem, estabelecendo, pois, investigações filosóficas que se
distanciavam, de forma incisiva, da ortodoxa filosofia clássica, voltada, principalmente, para
reflexões abstratas, como a explicação da essência do mundo, da realidade, do ser, do
conhecimento, dentre outros (COSTA, 2007, p. 12-13). No final do século XIX, instaura-se
uma crise filosófica, caracterizada sobretudo pela retomada dos posicionamentos críticos de
Kant em relaçao à filosofia da abstração, o que determinará o surgimento da cognominada
filosofia analítica. Trata-se de um movimento, constituído por pesquisadores de diferentes
linhas de pensamento, mas tendo um ponto como comum que lhes une: o olhar para a análise
do significado dos enunciados, centro das discussões a partir final do século XIX. Portanto, as
indagações da filosofia analítica posicionam-se contra as questões da metafísica, tendo como
foco os debates referentes ao significado. Em linhas gerais, de acordo com Marcondes (2009,
p. 23), destacam-se duas grandes vertentes da filosofia analítica: a Escola Analítica de
Cambridge2 e a Escola Analítica de Oxford. A pragmática se erige exatamente desta última
vertente, pautada sobremododo na linguagem ordinária, linguagem utilizada no dia a dia para a
comunicação efetiva entre os homens. Dentre os principais mentores, citam-se Wittgenstein
(1889-1951), em sua segunda fase “Investigações filosóficas” (1952), para o qual “é necessário
examinar a linguagem a partir de seu uso, considerando os jogos de linguagem, seu contexto
[...]” (MARCONDES, 2004, p. 42), e Austin (1911-1960), um dos seus principais
representantes que vai fortalecer a linguagem ordinária, tendo a teoria dos Atos de Fala, como
uma das principais obras de uma linguística discursiva. Assim, “concebe a linguagem como
uma atividade construída pelos interlocutores, ou seja, é impossível discutir linguagem sem
considerar o ato de linguagem, o ato de estar falando em si – Assim, a linguagem não é assim
descrição do mundo, mas uma ação” (AUSTIN [1962] apud PINTO, 2001, p. 57).
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Designa as pesquisas originadas da filosofia de Cambridge, na qual estavam presentes, dentre outros, a lógica de
Frege (1848-1925), o seu fundador, Russel (1872-1970) e Wittgenstein (1889-1951), em sua primeira fase com a
obra Tractatus Lógico-philosophicus (1921), incluindo também o positivismo lógico do Círculo de Viena. Essa
vertente é comumente denominada de “filosofia da linguagem ideal” e/ou “semântica clássica”, que tem como
mentor o alemão Frege, que concentrou no problema do significado das sentenças, tendo como foco a relação entre
linguagem e realidade.
comtemplem elementos que coocorrem com a fala, sendo, pois, constitutivos da língua falada,
que “estavam excluídos da agenda de pesquisa da linguística, diferenças na qualidade
de voz, expressões faciais, direções do olhar, gestos manuais e todas as estratégias
improvisadas pelos participantes para tornar a interação bem sucedida” (McCLEARY;
VIOTTI, 2017, p. 17).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio dessas breves reflexões sobre o funcionalismo linguístico, tivemos por
objetivo evidenciar o seu foco nos estudos discursivos, consequentemente, a valorização dos
estudos da língua falada. E ao concluir este texto, pretendemos dar um voo panorâmico nas
inquirições sobre a língua falada a partir dos retóricos (século V a. C.) até o funcionalismo
linguístico. Embora exíguo, esperamos ter fornecido uma síntese sobre essa modalidade do
sistema linguístico, capaz de conduzir os alunos, em especial, à busca de pesquisas mais
acuradas a respeito da referida modalidade, haja vista a sua importância singular no que tange
ao ensino de línguas de um modo geral.
REFERÊNCIAS
BORGES NETO, José. Ensaios de filosofia da linguística. 2004. São Paulo: Parábola
Editorial.
______. Produção textual, análise de gênero e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.
MCCLEARY, L. E.; VIOTTI, E. C. Fundamentos para uma semiótica de corpos em ação. In:
FIORIN, J. L. (org.). Novos caminhos da linguística. São Paulo: Contexto, 2017.