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À NOVA LEXICOGRAFIA 1 i

A Lexicografia é urna das ciencias do lCxico, assim como a Lexi-


cologia e a Terminologia. Enquanto disciplina cientifìca, ela pode ser
defìnida como a cikncia que tem como objeto de estudo os problema
teoricos e praticos relativos à elaborasiio e produsiio de dicionirios. A
teoria do dicionario, ou seja, a reflexao sistematica sobre o fazer lexi-
cogrifìco tem uma historia relativamente recente, visto que o interesse
objetivo pela atividade lexicogrifìca comesa a surgir em meados do
sécuio XX, quando surgem as primeiras reflexoes qbe v50 dar lugar à
emancipasiio da cikncia lexicogrifìca.
c a produsi50 de dicionirios é, no entanto,
A pratica l e x i c ~ g r ~ de
muito anterior à sua consolidasi50 enquanto ciencia. Enquanto técni-
ca de produsiio de dicionirios, a Lexicografia é, portanto, bem mais
antiga e goza de uma longa tradisiio.
A hstoria dos dicionarios modernos e da Lexicografia no Oci-
dente comesa no século XVI, com o surgirnento dos primeiros dicio-
nirios e o nascimento da nosiio de dicionirio moderno, entendido
como obra de cariter diditico que procura descrever sistematicamente
o léxico de uma lingua na sua totalidade. Contrariamente ao que pos-
sa pensar o leitor comum, os primeiros dicionirios forarn bilingues. A
partir do sécuio XVI, a prodqiio de dicionirios bilingues ou muitilin-
gues predominou o cenirio lexicogrifico e marcou o inicio da Lexi-
cografia moderna. 0 s primeiros dicionirios monolingues produzidos lexicais trilingues que datam do sécuio VI1 a.C. e tabelas l e x i c ~ g r ~ c a s
no Ocidente surgem no sécuio XVII. que datam de 4.500 anos.
A existtncia de produtos de cariter lexicografico bem anterio- Esses primeiros repertorios lexicais de que se tem noticia apre-
res a esse periodo revela que, na verdade, as origens dos dicionirios sentam-se sob forma de listas de palavras quantitativamente pouco
, modernos sao muito antigas e que a necessidade de elaborar reperto- significativas e destinadas a um publico letrado que, na verdade, cons-
r i o ~lexicais sempre esteve presente, historicamente, na vida pritica timia uma parcela muito reduzida da popuiagio. Nesse periodo, o
e intelectual das mais antigas sociedades. Essas primeiras realizagoes desenvolvimento de relagoes comerciais e cuiturais entre povos de
lexicogrificas, por n50 pertencerem à Lexicografia tal como ela se en- diferentes linguas criou urna necessidade objetiva de comunicagao c
tende hoje, constituem o que se poderia considerar a pré-historia dos entendimento nos diversos h b i t o s das relagks sociais. Dessa neces-
dicionirios. sidade pritica surgem listas lexicais bilingues ou muitilingues que, nas
As condig0es de possibilidade de registros lexicais em sociedades diferentes sociedades, respondiam a necessidades especificas: forma-
muito antigas definiram-se, materialmente, com o desenvolvirnento $50 de futuros administradores, tradugio de termos comerciais, admi-
da escrita e, consequentemente, com a invengio do papel que, juntos, nistrativos, diplomiticos, religiosos o u poéticos (BÉJOINT, 1994, p.
constituem a primeira condiqao material necessaria para o surgimento 92). O cariter geralmente bilingue desses repertorios lexicais autoriza
dos dicionirios. Béjoint (1994, p. 92) levanta a possibilidade de que, alguns autores a dizer, de uma forma generalizada, que os dicionirios
em sociedades mais antigas, sem tradigao escrita, possa haver existido bilingues sao os ancestrais dos dicionirios monohgues. Na verda-
ccdicionirios" orais, objetos de recitasiio. Essa hipotese é uma mera de, esses repertorios lexicais compreendiam um numero limitado de
especuiagio, dada a impossibilidade de comprovagio da existtncia de unidades lexicais que representavam, em certos campos das relag6e-s
repertorios lexicais dessa natureza em sociedades t50 remotas. Quanto sociais entre comunidades de diferentes linguas e culturas, algum tipo
às condigoes materiais necessirias para o surgimento historico dos de dificuidade de comunicagio e interagio. N i o se tratava, portanto,
dicionarios modernos (sécuios XVI e XVII), podemos dizer que elas de dicionhios propriamente ditos, uma vez que n i o procuravam des-
se definirao, na verdade, com a invengio da imprensa, no inicio dos crever sistematicamente o léxico de uma lingua.
tempos modernos, permitindo a reprodugio mais ripida de livros, a Apesar da existtncia de registros lexicais muito antigos, cuja ori-
pregos mais acessiveis e em maior quantidade. É preciso lembrar que, gem se perde no tempo e cujo objetivo era assentar equivaltncias entre
na Idade Média, os livros eram verdadeiros artigos de luxo. Copiados as linguas de diferentes civilizagoes em contato, considera-se tradicio-
a m i o pelos monges, transformavam-se numa obra de arte, cuja copia nalmente que os ancestrais dos dicionirios modernos s i o os glossi-
levava meses e até anos. rios, que historicamente preparam o caminho para o desenvolvimento
Segundo um estudo historico realizado por G. Matoré (1968), da Lexicografia moderna. Dessa forma, os dicionarios bilingues, por
h i registro de listas lexicais em cuituras muito mais antigas do que constituirem os primeiros produtos da Lexicografia moderna, sio os
a civilizagio greco-latina. Ele cita, em seu livro, descobertas arqueo- descendentes diretos dos glossirios.
logicas feitas no Egito e em algumas regi8es do Oriente Médio que 0 s glossirios eram geralmente bilingues e seu aparecimento deu-se
datam de milhares de anos. Dentre elas, encontram-se muita inscri- na Antiguidade, prolongando-se durante toda a Idade Média. Eles cor-
g8es bihgues e trilingues. No Egito, h i registro de listas de palavras respondiam a obras que muitas vezes resuitavam da compilagio de glosas
que datam de 1750 a.C.. Na Mesopothia, foram encontradas listas que, por sua vez, eram anotagGes,,comentarios e explicagb de cariter
LINGUAGENS EM I N T E R A ~ A O111: ESTUDOS DO LÉXICO

nitidamente pedagogico feitas nas entrelinhas e margens de textos com o rista dos eruditos e gramiticos da época, o cariter de lingua perfeita,
intuito de ajudar a interpretar palavras ou passagens que representavam simbolo de uma tradiqao cuitural e de vaiores universais.
dificuidades de leitura o u aprendizagem. As glosas consistiam, muitas O contexto intelectuai da época n50 havia mudado muito com
vezes, em tradqoes. A necessidade sistematica desses suportes pedago- relaqao ao periodo anterior: o numero de pessoas letradas e de pessoas
gicos levou a uma formuiaq50 mais elaborada que viria a dar origem aos que tinham acesso a uma educaq5o formal continuava muito restrito;
glossirios, que constidam um conjunto de glosas de um texto. os livros, escritos a mao, eram poucos e caros. As escolas eram manti-
Na Antiguidade, a preocupaqao diditica sempre esteve presente das pelos mosteiros e destinadas à formaqao de monges. Responsiveis
na elaboraqao dos glossirios tanto na Grécia, onde essa tradiqao é pela conservaqao d o saber, aos monges se deve a preservaqao de mui-
mais antiga, quanto em Roma. Na Grécia, a valorizaqao dos textos tos dos conhecimentos e da literatura dos romanos. Eles compilavam
clissicos, sobretudo a partir do reinado de Alexandre Magno (336- e estudavam manuscritos antigos tanto cristaos como pagaos. Assim,
323 a.C.), levou os eruditos e gramiticos a produzirem comentirios o ensino e a preservaqao da cultura estavam nas mios da Igreja que re-
sistemiticos que explicavam palavras raras o u de acepcao particular, presentava um dos redutos da esfera social em que o latim apresentava
utilizadas pelos autores clissicos. Essa preocupaqao resuitaria em 1é- maior resistencia com relaqao à expansao das linguas vulgares. Todos
xicos e glossirios consagrados à linguagem desses autores, sobretudo esses fatores explicam o fato de que grande parte dos glossirios pro-
de Homero, além da compilaqao de termos técnicos e dialetais. A duzidos nessa época esteja voltada à preocupaqao em suprir lacunas
necessidade de elaboraqao de glossirios de cariter bilingue devia-se à de conhecimento tanto dos monges e sacerdotes quanto daqueles por
diversidade diaietal e à presenqa de paiavras de diferentes dialetos, em- cujo ensino e formaqao intelectual eram responsiveis.
pregadas sobretudo nos textos literirios. Seguindo o mesmo caminho, Durante o longo processo de estruturaqao da sociedade medievai,
também foram produzidos, em Roma, muitos léxicos e glossirios as linguas vulgares viio, pouco a pouco, ganhando terreno frente ao la-
consagrados à lingua dos grandes escritores tanto romanos quanto tim, lingua da Igreja e de cultura. As primeiras manifestaqoes literirias
gregos. O interesse pela cultura grega levou à elaboraqao de glossirios em lingua vulgar sao anteriores ao século XII e, ji no sécuio seguinte,
que traduziam para o latim tanto termos correntes quanto termos essas linguas tem um papel importante na institucionaiizaq50 da vida
especificos a certos escritores gregos, além de fragmentos de textos publica e privada, à medida que o latim n50 atende satisfatoriamente
(MATORÉ, 1968, p. 39-44). às necessidades discursivas das sociedades em transformaqao. Essas
Na Idade Média, a produqao de glossirios também se deve a pre- mudanqas dao lugar, por um lado, a uma situaqao de bilinguismoj
ocupaqoes pedagogicas, ligadas às transformaqoes e mudanqas socio- entre as pessoas mais cuitas, que se estende até a aurora dos tempos
economicas e politica~que marcaram o periodo. As invasoes birbaras modernos e, por outro lado, a urna defasagem de competencia que
sucessivas que sofreram os territorios que, na Antiguidade, constidam tornava o discurso latino cada vez mais obscuro (MATORÉ, 1968,
o Império Romano acarretaram uma verdadeira onda de instabilida- p. 45). Assim, podemos considerar, de uma forma geral, que o surgi-
de. Na Europa, a decadencia d o ensino e a deterioraqao progressiva mento dos glossirios, assim como das primeiras listas lexicais de que
d o latim clissico favorecem o desenvolvimento dos faiares popuiares e se tem noticia, se deve, em grande parte, às exigencias impostas por
espontbeos que, relegados à comunicaq50 cotidiana e familiar, eram uma simq50 de bilinguismo que, segundo Dubois (1971, p. 34), tem
considerados formas deterioradas e corrompidas d o latirn, ao qual se um cariter determinante no surgirnento historico dos dicionirios de
atribuia, no h b i t o de uma concepqao estritamente normativa e pu- uma forma gerai.
LINGUAGENS E M INTERAÇÁO 111: ESTUDOS D O LÉXICO

Geralmente bilíngues, os glossários consistiam na tradução de da atividade l e ~ i c o g r ~ c aa elaboração


: de uma equivalência entre os
palavras latinas para uma língua nativa, a fim de facilitar a leitura de elementos de um léxico e uma formulação verbal destinada a revelar
textos literários e manuais de gramática destinados ao ensino, de tex- os seus significados (REY, 1977, p. 14).
tos jurídicos destinados a um público restrito de letrados (adrninis- O século XVI marca um grande momento da história da Lexico-
tradores, escribas, estudantes), ou de textos religiosos por parte dos grafia, que é a passagem dos glossários aos dicionários bilíngues, que
monges e sacerdotes que não tinham uma formação clássica suficiente surgem como os primeiros produtos da Lexicografia moderna e as
que permitisse uma compreensão adequada desses textos (MATORÉ, primeiras tentativas de descrição sistemática do léxico (REY, 1970, p.
1968, p. 50). 19). Nesse período, foram produzidas muitas obras l e x i ~ o g r ~ cqueas
Essas condiçóes sócio-históricas concorrem para justificar a utili- confrontavam duas o u mais línguas. Segundo Matoré, a diversidade
dade social dos glossários tanto para o ensino da gramática, da litera- dessas obras torna difícil estabelecer o mérito e a originalidade parti-
tura e de textos jurídicos quanto para as necessidades hermenêuticas cular de cada uma delas, sobretudo porque o período se caracterizou
de interpretação dos textos sagrados por parte dos religiosos menos por uma prática constante de plágio.
letrados. Matoré (1968, p. 50-51) cita como exemplos de obras desti-
Naquele tempo, as relações comerciais entre diferentes povos in-
nadas ao ensino o Dictwnarius d o inglês John of Garland (1225), que
tensificam-se com a expansão marítima e comercial empreendida pelas
corresponde a uma lista de vocábulos latinos e à primeira atestação do
novas naçóes europeias. Esse contexto favorece a multiplicação de re-
uso do termo latino dictionarius, e o conjunto de glosas reunidas pelo
pertórios lexicais que procuram estabelecer equivalências entre diferen-
italiano Hugutio, no final do século XIII, em sua obra Liber Deriva-
tes línguas, dando lugar ao surgimento dos primeiros vocabulários bi-
twnum. Como exemplo de glossário voltado à necessidade de colocar
língues de muitas línguas europeias. O objetivo desses repertórios não
textos religiosos ao alcance de fiéis e sacerdotes, o autor cita o Glossário
era constituir um cmpus que testemunhasse o uso da época, mas facili-
de Reichenau (século VIII), elaborado para acompanhar a tradução
tar o estudo de uma língua estrangeira, oferecendo uma nomenclatura1
latina da Bíblia.
constituída basicamente de palavras que representavim dificuldades de
Muitos dos glossários produzidos nessa época se perderam. Ou- tradução de uma língua para outra. Datam desse período o Dictwnaly
tros são de origem duvidosa ou de autor desconhecido. Tributários de of thesfraenchand english toygues, de Cotgrave (1611) e o Tréw des de=
imperativos pedagógicos, eles procuraram estabelecer uma classifica- languessfraançaiseet espagnole, de César Oudin (1607).
ção das unidades tratadas, mas, muitas vezes, não apresentavam urna
No mesmo século também foram produzidos pelos missionário;
organização sistemática. Outras vezes, eram até mesmo ininteligíveis.
europeus repertórios lexicais bilíngues que confrontavam as língua
Desde a Antiguidade, as primeiras realizaçóes de caráter lexico- europeias com as línguas d o novo continente. Esses repertórios lexi-
gráfico apresentam-se, portanto, como uma atividade motivada por cais não eram resultado de um interesse natural pelas línguas ameríil-
necessidades práticas de comunicação. Os primeiros registros dessa
dias, mas motivados por necessidades comunicativas orientadas por
atividade consistem em listas parciais de palavras de várias línguas. Os
uma ação colonizadora que se institucionaliza pelo processo da cate-
glossários também consistiam em listas parciais de unidades lexicais
quizaçáo. No Brasil, os primeiros dicionários português-tupi foram
que não tinham como objetivo uma análise completa e ordenada d o
produzidos pelos missionários jesuítas em meados d o século XVI.
léxico. N o entanto, a forma de apresentação desses primeiros reper-
................................ --,......,................
tórios lexicais representa uma primeira grande herança das origens i Conjunto de formas repertoriadas que devem constituir objeto de descrição.
LINGUAGENS EM INTERAÇAO 111: ESTUDOS DO LÉXICO

Nesse período, muitas produções bilíngues ou multilíngues fo- Os dicionários bilíngues ou multilíngues desse período recebem
ram concebidas como formas de acesso ao latim, com a preocupa- como legado das produçóes lexicográficas anteriores uma estrutura se-
ção de preservar o uso ameaçado das línguas mortas. A essa categoria mântica definida desde a Antiguidade e Idade Média, construída sobre
pertencem dicionários como o Dictwnnaire JCiançais-latin (1539) de um princípio de equivalência passível de se estabelecer entre as formas
Robert Estienne, ao qual se atribui o uso, pela primeira vez, da pa- de um determinado sistema linguística e formas simples ou perifrásticas
lavra francesa dictionnaire, o Vocabulario espa6ol-latim (1495) de Elio de um outro sistema (REY, 1977, p. 14). Os dicionários monoiíngues
Antonio de Nebrija e o dicionário português-latim de Jerônimo Car- surgem posteriormente com base na evolução do mesmo princípio, ma-
doso (1562). Embora dicionários como esses revelem as primeiras nifestado no interior de um mesmo sistema, sob a forma de substituição
manifestações de um interesse pelas línguas maternas, as condições do procedimento de tradução pela descrição por meio de enunciados
que presidiram a sua produção contribuem para acentuar a precarie- provenientes da mesma língua: "notre idée centrale du dictiunnaire, lhe
dade metodológica de sua descrição, uma vez que a nomenclatura wdonnée dJunités-stgnesdémites par des émcés provenant du même code,
desses dicionários era constituída em função do latim. Na verdade, o est &c issue de la disparition d'une démrcbe traductrice" (REY, 1977, p.
dicionário de R. Estienne (1539) é uma inversáo do seu Dictionarium 87). Por isso, é importante dizer que, segundo Wagner, os dicionários
latimgallicurn (1538) e o dicionário de Nebrija (1495) é uma inver-
monolíngues das línguas ocidentais não são resultado de uma simples
são do seu Diccionario latino espa6ol (1492).
tradução ou adaptação dos dicionários monolíngues latinos que os an-
Com a mesma preocupação de preservar o passado das línguas tecederam (tbesauus), mas de uma lenta evolução das versóes bilíngues
mortas, ameaçadas de desaparecimento, o século XVI também foi o anteriores (apud DUBOIS, 1971, p. 36).
período de produçáo dos tbesaurus, procuraram fornecer reper-
O surgimento dos primeiros dicionários monolíngues do Ocidente
tórios completos tanto do grego quanto do latim. Como exemplos,
no século XVII marca um outro grande momento da história da Lexi-
podemos citar o Dictionariurn seu lingum latinm tbesauus (1531)
cografia. Isso não se deu como resposta a uma necessidade social súbita,
de Robert Estienne (cuja tradução resultou, em 1538, no seu Dictio-
mas como consequência das transformações sociais que preparavam a
narium latinogallicum) e o Tbesaurusgrmcae linguae, publicado em
formação dos Estados europeus modernos. Uma série de fatores con-
1572, por Henri Estienne. Embora os tbesaurus fossem obras mono-
correm para definir o contexto sociocultural que deu origem à necessi-
língues, na verdade, eles náo representaram as primeiras produçóes da
dade de um novo tipo de dicionário: o dicionário monolíngue.
Lexicografia monolíngue moderna porque se destinavam a descrever
as línguas clássicas e não a língua materna dos usuários aos quais s~e No século XVI, consolida-se a expansão comercial e marítima
destinavam. Além disso, da mesma forma como os primeiros dicionai- das nações europeias, a Europa vive o Renascimento, formam-se as
rios bilíngues ou multilíngues dos tempos modernos, os t/~esaurusnão monarquias nacionais, as línguas vulgares começam a impor-se como
respondiam às exigências de uma descriçáo objetiva da língua e nem is símbolo de uma identidade. O nascimento dessa identidade linguís-
necessidades comunicativas concretas de seus usuários que, na verda- tica coincide com o nascimento de um sentimento de unidade que
de, eram falantes de outras línguas. Em outras palavras, subordinados está intimamente ligado a todo o processo histórico de formação das
a uma necessidade prática, destinavam-sea transmitir e perpetuar m a nações europeias modernas.
herança cultural socialmente valorizada por uma elite intelectual, pro- A formaçáo das monarquias nacionais, o interesse econômico e po-
curando enriquecer o conhecimento de locutores que habitualmente lítico de consolidar uma soberania nacional e de garantir a expansão de
se expressavam numa outra língua (REY, 1977, p. 19). uma política imperialista sáo elementos importantes para o nascimento
entre as novas nações de uma compreensão de si mesmas enquanto uni- de descrição do léxico, os prefácios dos dicionários eram muito sucin-
dades político-econômicas. Esse sentimento de identidade e de unidade tos e pouco elucidativos. Por não explicitarem, de forma satisfatória,
política e econômica leva gradativamente a um interesse ideológico pe- as premissas nas quais se baseava sua técnica de descrição, muitos lin-
las línguas nacionais que surgem como instrumentos de representação guistas deploraram que a Lexicografia não tivesse erigido, de forma
simbólica do prestígio e do poderio das grandes nações, como formas explícita, uma problemática coerente que poderia contribuir para um
de legitimação do poder e da cultura dos novos impérios. melhor conhecimento das estruturas semânticas de uma língua.
Mas o interesse pelas línguas nacionais não se deu de uma forma Os primeiros trabalhos de tipologia, descrição, análise e crítica
objetiva que considerasse a diversidade de seus usos sociais. Pelo con- lexicográficas marcam um outro momento importante na história da
trário, esse interesse teve uma orientação normativa e purista herdada Lexicografia. Eles vão dar origem à metalexicografia, que surge para
dos séculos anteriores, baseada numa concepção de superioridade de preencher uma dívida epistemológica da Lexicografia, visto que, ao
determinados usos sociais da linguagem. E isso vai explicar que os lado de uma diversidade e um dinamismo em termos de produção
primeiros dicionários monolíngues inauguram uma Lexicografia ba- lexicográfica desde as origens da Lexicografia moderna, o lexicógrafo
seada num c q u s altamente seletivo que procura impor uma norma decidido a conceber e produzir um dicionário se via, até recentemen-
social: o discurso literário. Assim, como afirma Lara (1997, p. 46), os te, diante da dificuldade de constituir um referencial teórico que lhe
dicionários do século XVII eram, antes de tudo cccatálogossimbólicos, fornecesse explicitamente modelos e métodos de descrição, além de
pm Ia
representativos, de lu calidad de1 vocabulario litmio, restrttrtn8ido I
um aparelho metalinguístico que formulasse as implicações teóricas e
idea de lu lengua imperante, que verdadeias obras de consultagetzerales". práticas do seu trabalho. A partir do final de 1960 e início de 1970,
Segundo o mesmo autor (1997, p. 47), para a imensa maioria da po- trabalhos importantes realizados por R. Wagner, J. Rey-Debove, J.-C.
pulação, praticamente analfabeta, os dicionários não tinham nenhum Dubois, B. Quemada e G. Matoré fornecem as bases dos conhecimen-
sentido. De qualquer forma, segundo Quemada, no final do século I tos teórico-metodológicos e históricos em Lexicografia, procurando
construir um objeto de estudo e uma problemática coerente.
XVII já estão definidas as formas essenciais que constituem as carac-
terísticas técnicas principais dos dicionários modernos e, depois disso, A longa tradição prática de produção de dicionários encontra seu
não convém falar em criação, mas sim em evolução (apud LEHMANN, componente teórico na metalexicografia e juntos formam o aspecto
1995, p. 5). científico e aplicado do fazer lexicográfico. Mas a Lexicografia não pode-
Foi preciso esperar, no entanto, até a metade do século XX para ria limitar-se a esse duplo aspecto. O advento da informática surge como,
se assistir ao surgimento de um interesse objetivo pelo estudo do fazer um outro grande momento da história da Lexicografia. Ele permitiu o
lexicográfico. Até então, os trabalhos de natureza crítica a respeito surgirnento da Nwa LexicograN, que corresponde à Lexicografia d o r -
dessas obras, que deveriam abrir caminho para uma teoria dos dicio- matizada e traz consigo uma verdadeira transformação nas condições
nários, eram raros e, quando existiam, consistiam em comentários que de trabalho dos lexicógrafos (facilidade, rapidez e novas possibilidades
visavam muito mais à sua promoção social do que a uma análise perti- de produção material dos dicionários), mas também uma evolução nas
nente do objeto. Além disso, a atividade lexicográfica era o privilégio formas de pensamento e nas práticas lexicográticas a&.
de intelectuais artesões que não se preocupavam em comentar seu tra- Diante das novas possibilidades de coleta, análise, tratamento e
balho. Além da inexistência de trabalhos objetivos que descrevessem a I armaxnamento de dormações oferecidas pela informática, Quemada
prática lexicográfica e justificassem as soluções adotadas no processo (1987). Chama a atenção para o surgimento de uma Lexicografia sem
dicionário, que ele chama de Lexicografia propriamente dita, em opo-
sição à dicionarística. Diferentemente de seu sentido usual, esse con-
ceito estrito de Lexicografia engloba todo trabalho de levantamento, BEJOINT, H. Tradition and innovatzon in modern en.lish dictwnaries.
descrição, análise, tratamento e armazenagem de dados lexicológicos New York: Oxford University Press, 1994.
sob a forma de banco de dados lexicográficos disponibilizados para a
DUBOIS, J.; DUBOIS, C . Introductwn a h lexicodraphie. Paris: La-
produção de obras lexicográficas, podendo resultar ou não na produ-
rousse, 1971.
ção de unl dicionário. Para o autor, a dicionarística, por sua vez, com-
preende toda a problemática relativa à produção material de dicioná- HWANG, Á. D. Le Robevt Mirra: possibilidades e dijicuidada para a
rios enquanto produtos comerciais, o que engloba questões de ordem conrtruçáo e recuperaçáo de infmações por parte h usuár% ertratyeiro
técnica, material e econômica, mas não se limita a isso, uma vez que a falante de línjua portuduesa. São Paulo, 2003, 280p. Tese (doutorado
produção de uma obra lexicográfica também envolve a formulação de em Letras). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Uni-
um projeto l e x i ~ o g r ~ ce,ocom ele, a confrontação de teorias e op- versidade de São Paulo.
ções metodológicas que, em seu conjunto, permitem a configuração LARA, L. E Teoria de1 diccionario monolin~ik.México, DF: E1 Colegio
de um modelo de descrição específico. de Mexico, 1997.
Essa Lexicografia que preexiste ao dicionário e que está interessa-
LEHMANN, A. Présentation. Langue Française, Montrouge, n. 106,
da em coletar e explorar um corpus linguístico com a preocupação de
p. 03-07, 1995.
formar bancos de dados lexicográficos.informatizados é a evoluçáo de
uma tradição que a Lexicografia já conhecia desde o século XVII, uma MATO&, G. Hhoire des dictionnairesfrançais.Paris: Larousse, 1968.
vez que a preocupação em constituir corpus já era conhecida dos pri- QUEMADA, B. Note sur lexicographie et dictionnairique. Cabiers de
meiros dicionários monolíngues. É fácil imaginar como os recursos Lexicolo~ze,Paris, v. 51, n. 2, p. 235-242, 1987
da informática vêm transformar um trabalho, antes manual e sujeito
a equívocos, erros e imprecisões. O surgimento dessa Lexicografia REY, A. La lexicolo~ie.Paris : Klincksieck, 1970.
é uma consequência do próprio desenvolvimento da Linguística de . Le hxique. Imdes et mo&hs. Paris: Librairie Armand Colin,
Cmpus que surge no final do século XX como uma área de conheci- 1977.
mento interdisciplinar cuja preocupação é fornecer as bases metodoló-
. Du discours au discours par l'usage: pour une problématique
gicas para a coleta e exploração de colpora textuais, com a finalidade de
de I'exemple. Landue Franfaise, Montrouge, n. 106, p. 95-120, 1995.
constituir bancos de dados informatizados para pesquisas linguísticas,
fazendo um uso amplo de ferramentas computacionais. .Le Robert Micro. Dictionnaire d 'apprentissge de la lavyuefran-
çaise. Paris: Le Robert, 1998.
REY, A.; DELESALLE, S. Problèmes et conflits lexicographiques.
Lang.uefrançaise, Paris, n. 43, p. 4-26, 1979.
REY-DEBOVE, J. Etude linguisrigue et sémiotique des dzctwnnaires
pançais contemporains. The Hague/Paris :.Mouton, 1971.

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