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ESTRUTURALISTAS E POS-
E S T R U T URALIS TAS
Thoma's Bonnici r
As NOVAS !DEIAS
É interessante notar que, à semelhança das "provocações" dos formalistas russos, as abordagens
dos estruturalistas desafiamcertos conceitos arraigados no leitor. Para muitos a obra lit-êr~ria é o
produto da criatividade do autor e expressa o seu íntimo. Ou seja, o texto é o lugar ondecomungamos '.'
os pensamentos e os sentimentos do autor. Outros assumem que o texto do romance ou da peça
teatral nos revela como são as coisas realmente. Não se pode, todavia, prescindir da forma e, mais
ainda, da estrutura. Parece que a arte exige forma e estrutura. Por mais próximo que um romance
esteja da realidade, é o produto e o resultado de muitas decisões, que envolvem a forma e a estrutura
com que o "material" seria apresentado ao leitor. Para os formalistas, a forma está intimamente
ligada ao significado. Para os estruturalistas, a estrutura é a condição para que o significado seja
compreendido. Em outras palavras, a estrutura contribui para que o significado do texto literário
venha à tona.
Enquanto os formalistas russos desenvolviam seus trabalhos literários sobre a forma,
iniciava-se talvez o derradeiro esforço literário para o controle e a explicação da realidade
histórica. Yeats, Eliot,Pound, Joyce, Lawrence insistiam sobre o antropocentrismo da literatura
e da compreensão exaustiva da realidade através do texto literário.
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~ A perspectiva humanista de análise textual faz com que o leitor fique quase alheio às estruturas
1 que funcionam na formação do significado. Tem-se a impressão de que o autor e o leitor criam
o significado. Não é verdade que criamos o significado quando queremos expressar algo através
da linguagem, da música, da pintura, da coreografia? Parece que o significado é criado por nós e
jamais pela estrutura fria, intocável e invisível. Apesar dessas indagações, a "morte" do autor já
foi declarada pelos estruturalistas, os quais também afirmam que o discurso literário carece do
conceito "verdade". Os estruturalistas opõem-se a todas as formas de crítica literária nas quais o
indivíduo é a fonte e a origem do significado literário, ou seja, jamais pode expressar-se nos textos
literários.
o Estruturalismo é, portanto, uma prática interpretativa que procura certa ordem e inteligibilidade
nas inúmeras possibilidades de padrões do texto. O crítico estruturalista é capaz de isolar os padrões
significativos de signos a partir dos quais poderá chegar a conclusões sobre o significado e a cultura que
estão sep:Çl~·.Hansmitidos
..• ",,,
. "
e pesquisados. .,.:t' .
A BASE LINGUÍSTICA
O Estruturalismo tem sua origem na obra do línguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-
1913), que revolucionou o estudo da linguagem no início do século XX. A linguística do século
XIX consistia em trabalhos filológicos, ou seja, estava interessada na história das línguas naturais
e formulava as leis que regiam os processos de alterações linguísticas. Seu interesse, portanto,
consistia em reconstruir a maneira pela qual as várias línguas europeias se desenvolveram
diacronicamente. No mesmo século houve também o trabalho dos gramáticos, que sistematizavam
as regras gramaticais que usamos inconscientemente quando falamos ou escrevemos. Os gramáticos
analisavam instâncias individuais da linguagem (mais tarde chamadas de parole por Saussure)
para obter as regras gramaticais. A abordagem de Saussure era algo completamente diferente.
A abordagem diacrônica foi abandonada e a linguagem começou a ser tratada do ponto de vista
a-histórico e abstrato. Perguntava-se: Como é que a langue funciona? É a pergunta fundamental
de Saussure, a qual deu início à línguística moderna. A finalidade de Saussure, portanto, era
proporcionar entendimentos que seriam válidos para todas as línguas e para todos as funções da
língua.
Os princípios básicos da linguística saussuriana são: (1) a linguagem deve ser concebida
corno um sistema de significantes (Saussure não usou o termo estrutura); (2) os significantes são
arbitrários, já que o significado não lhes dá uma forma específica; (3) os significantes têm a atual
forma devido à sua diferença de outros significantes. Vamos entender melhor esses princípios. Os
significantes são as palavras faladas ou escritas: livro, cão, ilha. Sabe-se que essas palavras, referentes
a objetos conhecidos no nosso dia-a-dia, são diferentes em outras línguas (book, dog, island, em
inglês; livre, chien, fie, em francês). Compreende-se, portanto, que é arbitrária a ligação fundamental
entre o significante e o significado. Isso significa que o modo de dizer ou escrever ilha não é uma
necessidade. Na realidade, essa ligação arbitrária tornou-se uma convenção porque, na mesma
língua, há um relacionamento padrão entre, por exemplo, o significante ilha e "terra cercada por
água de todos os lados".
Se não há relação entre as palavras e o significado, de onde se origina o significante? Saussure
responde que vem da diferenciação: o sistema de linguagem está baseado nas diferenças. Nas
palavras p.0rta, morta, torta, corta, aorta, apenas o primeiro fonema é diferente. As palavras, portanto,
funcionam 'nüm sistema que usa a diferença para criar seus componentes. Porém encontramos
aqui a genialidade da teoria de Saussure, quando diz que o princípio da diferença não apenas cria
os significantes (palavras), mas também seu sentido. Nesse ponto, a lógica exigiria que os objetos
no mundo real em que vivemos dessem às palavras o seu sentido. Os objetos deveriam dar o
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TEORIAS ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTURALISTAS
sentido às palavras. Isso não acontece. Se fosse assim, as palavras não difeririam de uma língua
para outra.
SIGNIFICADO
~
SIGNIFICANTE REFERENTE
/kaza/ (o objeto real
chamado casa
em português)
Quadro 1. Esquema linguístico de Saussure
Para Saussure, o significante (a forma) e tu significado (o sentido) não podem ser separados.
Se trocarmos porta por aorta, teremos não apenas outro significante (outra forma, ou palavra)
mas também um significado completamente diferente. O princípio diferenciador não funciona
apenas para distinguir as palavras, mas, ao mesmo tempo, diferenciar os significados. Uma
mudança, por menor que seja, no significante, produz novo significado. .-.. ·_·_~':~~·T-;.c·
o ESTRUTURALISMO ANTROPOLÓGICO
Os princípios analisados acima são fundamentais para que se compreendam as várias abordagens
no campo da literatura que formam o Estruturalismo literário desenvolvido nas décadas de 1960 e
1970. Serão ainda mais indispensáveis para compreender o Pós-estruturalismo. Será com tal intuito
que analisaremos alguns aspectos do Estruturalismo antropológico desenvolvido na década de 1940
pelo francês Claude Lévi-Strauss (nascido em 1908). Embora o Estruturalismo antropológico exercessc;
apenas influência indireta nos estudos literários, sua compreensão e adaptação pelos estrutll~~listas e
pelos pós-estruturalistas sãograndemente significativas. .
Um dos princípios mais importantes no Estruturalismo antropológico consiste na concepção
saussuriana deque a linguagem é um sistema de signos regido pela diferença. O Estruturalismo
antropológico alargou a aplicação desse princípio, estendendo-o à antropologia, ou seja, ao
estudo das culturas "primitivas". O encontro e a colaboração entre Roman J akobson (1896-
1982) e Claude Lévi-Strauss, na New School of Social Research em Nova York, a partir de
PROPP LÉVI-STRAUSS
Estudo sobre os contos populares russos ~ Os rriitos são variações do mesmo padrão de narrativa.
O significado é o produto da diferença --> Os fenômenos culturais (costumes de alimentação, tabu sobre
a menstruação, ritos de iniciação, parentesco) formam um
sistema sígnico
-l.-
oposições binárias:
natureza I cultura
luzi escuridão
em cima I embaixo
-l.-
presença I ausência
(esse binarismo será o fundamento do Pós-estruturalismo
dos anos 1970)
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T E O -R I A S E S T R U T U R A L 1ST A S E r Ó 5 - E 5 T R U T U R A L 1ST A 5
É mister frisar que; apesar de realçar a inter-relação entre a mente humana e o ambiente, o
Estruturalismo antropológico continua adotando a posição antl-humanista, ou seja, sua indiferença
pelo indivíduo. O Estruturalismo nega que os indivíduos sejam autônomos: os membros de uma
tribo primitiva não têm uma intenção subjetiva ou uma função individual, mas a contribuição de cada
um tem sentido apenas no contexto geral do universo deles. O Estruturalismo é também a-histórico,
porque resume todas as culturas e todas as versões culturais anteriores a um conjunto de dados não-
mutáveis, de número limitado. Diacronicamente, somente existem variações do mesmo padrão básico
de oposições binárias.
A SEMIÓTICA
A partir da análise estruturalista dos mitos primitivos realizada por Lévi-Strauss, desenvolveu-se
uma investigação estruturalista de todos os fenômenos culturais. Em 1957, Roland Barthes (1915-1980)
publicou Mythologies, no qual aplicou o método estruturalista a fenômenos culturais contemporâneos.
O método de Barthes consiste em desmontar os elementos constituintes (signos) de uma certa
estrutura. Em seguida, analisa o modo como el<:;,sadquirem sentido pelas suas diferenças com outros
elementos na sequência. O Estruturalismo cultural é extremamente produtivo para se saber como as
culturas e as subculturas funcionam. Um senhor alto, uniformizado, usando óculos grandes de sol,
educadíssimo, ppra o motorista, vestido de calça comprida e camiseta, na estrada. O fato de que o
policial rodoviário usar uniforme já é um sinal de autoridade e de poder. Uma criança que frequenta a
escola também usa uniforme, mas nem por isso tem poder ou autoridade. Quer dizer, (1) o uniforme
em si não tem nenhum sentido inerente: seu sentido aparece em decorrência da diferença; (2) o
relacionamento entre o signo e o sentido é arbitrário: dependendo das circunstâncias, o uniforme tem
conotação de poder e de autoridade; (3) o uniforme do policial funciona de acordo com as oposições
básicas do Estruturalismo: dominação/submissão.
.-
Conjunto de peças de vestuário as quais não podem Justaposição de elementos diferentes com o mesmo
ser usadas ao mesmo tempo para cobrir a mesma parte estilo de roupa: saia, blusa e blazer.
do corpo. Sua .variação corresponde a urna mudança
de significado da roupa (chapéu, boné, gorro) .
.} .}
A moda não é vista como expressão pessoal ou O vestuário que se usa numa determinada ocasiao '-
estilo individual, mas como sistema de vestimenta constitui sentença específica dita por um indivíduo por
que funciona como a linguagem. um objetivo específico (fala e sua competência na fala).
CULINÁRIA
Conjunto de alimentos com afinidades e diferenças, A sequência de pratos específicos escolhidos nurna
do qual o indivíduo escolhe os pratos com o objetivo refeição.
de inculcar significação.
Podemos dizer que, conscientes da função dos signos das coisas, começamos a enxergar os signos
em tudo o que vemos ou experimentamos (por exemplo, o status que certo tipo de carro nos dá).
Essa abordagem serniótica ou semiológica em que os signos em si não têm nenhum sentido, mas o
adquirem a partir de sua função dentro de uma estrutura, é de suma importância. O ponto de vista
estruturalista da cultura é muito funcional em estudos literários e é por isso que atualmente a análise
literária inclui a cultura em geral no ensino da literatura e na crítica literária.
o ESTRUTURALISMO LITERÁRIO
Bremond (1973) sugere as possibilidades lógicas da narrativa, baseadas num modelo padrão
com três fases: (1) a virtualidade, ou a possibilidade de realização de uma ação; (2) a realização, ou
a passagem ao ato; (3) o resultado, o melhoramento ou a degradação. A fase 1 é básica: a narrativa
prepara um quadro que oferece uma possibilidade de ação. Em todas as narrativas há uma expectativa
de que algo vai acontecer. Na fase 2, pode haver elementos que levam (presença) ou não levam
(ausência) à ação. Se esta última opção acontece, a narrativa para; se a primeira opção é escolhida, há
o desenvolvimento da narrativa. Se há o desenvolvimento da narrativa, pode haver o melhoramento
ou a degradação. O novo estado servirá como um novo ponto de partida, uma nova virtualidade,
especialmente se uma degradação aconteceu.
sucesso
(objetivo alcançado)
processo de atualização__ --l
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TEORIAS ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTURALISTAS
Tebas Édipo
ação para
ajudar \
processo de processo de
melhoria deterioração necessidade
de oráculo
ação para
obter oráculo
oráculo necessidade de
obtido punir assassino
ação punitiva
1. Situação inicial.
2. Proibição.
3. A proibição é violada.
4. O agressor tenta conseguir um esclarecimento.
5. O agressor recebe uma informação.
6. O agressor procura enganar a vítima com a mentira.
7. A vítima deixa-se enganar.
8. A falta do agressor,
9. A falta é divulgada e o herói fica sabendo.
10. O herói consente em agir.
11. Início da ação na qual o herói parte.
12. Primeira função de um doador.
13. Reação do herói.
14. Um objeto mágico é dado ao herói.
15. O herói se desloca e se aproxima do objeto da busca.
16. .O herói e o agressor se enfrentam.
17. O herói se distingue no combate.
18. O agressor é vencido.
19. A má ação inicial é reparada.
20. Volta do herói.
21. O herói é perseguido.
22. O herói é socorrido.
23. O herói chega incógnito (sem ser reconhecido).
24. Um falso herói se apresenta.
25. É dada ao herói uma tarefa difícil.
26. O herói cumpre a tarefa .
.27. O herói é reconhecido .
.28. O falso herói é desmascarado.
29. O herói tem nova aparência.
30. O falso herói é punido.
31. O herói casa e ascende ao trono.
Por exemplo, ao final da Odisséia, aplicam-se as funções 20-31, porque revelam a volta de Ulisses à
sua casa em Ítaca; seu encontro com os pretendentes de Penélope; a competição com o arco e a flecha;·.
o desfecho vitorioso; a morte dos príncipes; o reencontro do casal após a separação de tantos anos.
Pode-se deduzir que as funções acima encontram-se não apenas em contos populares russos, mas em
comédias, mitos, épicas e romances em geral.
Como, porém, as funções proppianas têm grande simplicidade arquetípica, uma certa sofisticação
é necessária quando essas funções são aplicadas a textos mais complexos. No mito de Édipo, Édipo
consegue desvendar o enigma da Esfinge, o herói é reconhecido, casa-se e ascende ao trono. Édipo,
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TEORIAS ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTURALISTAS
contudo, é também à falso herói e o vilão (ele mata seu pai e casa-se com a mãe); portanto, é
desmascarado e se pune.
Propp acrescentou sete esferas de ação ou papéis às trinta e uma funções: vilão, doador, ajudante,
objeto da procura, mandatário, herói, falso herói. ''A mesma composição pode servir de base para
enredos diferentes. Se o dragão rapta a princesa, ou o diabo rapta a filha de um camponês, ou do pope
[sacerdote ortodoxo], é indiferente do ponto de vista da composição" (PROPP, 1984, p. 104).
Em Sémantique structurale (1966), Algirdas-J ulien Greimas (1917-1992) elaborou a teoria dePropp-
'" Não se restringi rido a um único gênero literário dos contos maravilhosos populares, Greimas queria
chegar a uma gramática universal da narrativa. Portanto, aplicou à narrativa a análise semântica da
estrutura da oração. Substituiu as esferas de ação por três pares de oposições binárias que incluemos
seis papéis, chamados actantes:
Poder
Auxiliar ~ Sujeito ~ Oponente
,j,
Querer
Destinador ~ Objeto ~ Destinatário
Saber
'.
Quadro 7. O esquema actancial de Greimas (1966)
Os elementos básicos são os actantes, dos quais dois são mais fundamentais do que os outros:
o sujeito e o objeto. Portanto, em nível de querer ou de desejo, há o binário sujeito-objeto. O sujeito
(geralmente uma pessoa) é o elemento central na fábula e o objeto é a finalidade que o sujeito deseja
alcançar. Esse desejo dá o impulso aos eventos e os faz mover. Em nível de saber 'oude éc:iinUrtídlçã5;
encontra-se o binário destinador / destinatário. O binário auxiliar / oponente pertence ao nível-do poder,
ou de auxílio ou de impedimento. É importante notar que Greimas distingue actante de personagem
(acteur): enquanto os personagens são muitos, o número de actantes é limitado, O mesmo actante
pode ser manifestado por vários personagens isincreiismo actancial) e o mesmo personagem pode ser
caracterizado por vários actantes (sincretismo atoriab,
Para Greimas, os actantes e as relações imutáveis entre eles formam o modelo básico de todas as
narrativas. Contudo, não se pode aplicar esse modelo como se fosse uma matriz interpretativa para analis'if
os textos literários ou não. Em muitas ocasiões, é o leitor que escolhe se um personagem funciona como
auxiliar ou oponente. Ademais, em romances complexos há muitas subfábulas e, portanto, o modelo
greimasiano deve ser aplicado várias vezes ao mesmo texto. Pode acontecer que Um personagem-dê
função auxiliar numa subfábula exerça função oponente numa outra. Esse modelo ajuda o leitor a olhar o
o MODELO DE TODOROV
Todorov (1973) compilou sua teoria a partir dos trabalhos de Propp (1984) e de Greimas (1966).
Em primeiro lugar, as regras sintáticas da linguagem são utilizadas para analisar a narrativa. A unidade
mínima da narrativa é a proposição, a qual poderia ser agente (pessoa) ou predícado (ação). Na oração
"Édipo I casa-se com Jocasta sua mãe", a primeira proposição refere-se ao agente; a segunda refere-
se ao predicado, que funciona ou como acljetivo (proposição estática) ou como verbo (proposição
dinâmica).
A partir dessa unidade mínima, Todorov (1973) descreve dois níveis superiores de organização:
a sequêruia e o texto. Um conjunto de proposições forma uma sequência. A sequência fundamental é
2
feita de cinco proposições (equilibriov.jorça', desequilibric.jorça", equilíbrío ), descrevendo a violação de um
estado e o restabelecimento do mesmo, embora com certas modificações. Finalmente, as sequências
formam o texto. O texto, então, é formado pelas sequências organizadas por encaixamento (uma fábula
dentro de outra fábula; digressões), encadeamento (justaposição de diferentes histórias ou uma série
de sequências) e aliernãncia (duas fábulas são contadas ao mesmo tempo, interrompendo ora uma
ora outra, para retomá-Ia na interrupção seguinte). O primeiro e o segundo tipos projetam as duas
relações sintáticas de subordinação e de coordenação. O terceiro tipo é o mais distante da literatura
oral (TODOROV, 1973).
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T E O n I A S E S T R U T UnA L 1ST A S E PÓS - E S T n U T u n x L I S i-Á S
A NARRATOLOGIA
A teoria da narrativa teve seu grande expositor em Gérard Genette (nascido em 1930), especialmente
em Discurso da narrativa, publicado em 1972. Maiores detalhes já foram expostos e analisados nó Capítulo 2
e apenas um esquema sucinto será desenvolvido aqui. A partir da distinção formalista entrejàbula (eventos)
e syuzhet (trama ou discurso), Genette(1982) divide a narrativa em três níveis: (1) a fábula (histoire) , a
.ordem cronológica dos eventos; (2) o discurso (récit), o~ eventos e as ações como apresentados no texto; (3)
narração (narration), o próprio ato de narrar.
~ pode ser subdividida em distância e perspectiva. A distância se refere a recontar a fábula (diegese) ou
• representá-Ia (mimese).
A grande inovação de Genette (1982) consiste na categoria perspectiva, que vai além daquilo que
tradicionalmente se chama foco narrativo ou ponto de vista. Faz-se, em primeiro lugar, a abordagem
binária entre o narrador (Quem narra?) e o focalizador (Quem vê?). O narrador é capaz de falar e
ver, e pode realizar as duas ações ao mesmo tempo. Todavia, um narrador pode narrar o que uma
outra pessoa está vendo ou tem visto. Narrar e ver, a narração e a focalização, portanto, podem ser
atribuídas ao mesmo agente ou ã agentes diferentes. Podemos resumir as distinções entre o narrador
e o focalizador: "
1) Em princípio, a narração e a focalização são atividades distintas;
2) Em narrativas "terceira pessoa", o centro de consciência é o focalizador, e o narrador é terceira
pessoa;
3) A focalização e a narração são atividades distintas também em narrativas "primeira pessoa" de
narração retrospectiva;.
4) No que diz respeito à focalização, não há nenhuma diferença entre o centro de consciência
"terceira pessoa" e a narração "primeira pessoa" de narração retrospectiva. O focalizador é uma
personagem na narrativa. A única diferença é a identidade do narrador;
5) Em certas ocasiões, a focalização e a narração podem coincidir.
O narrado r que está fora da narrativa (ou seja, não é uma personagem diegética) é um narrador
extradiegético. Por outro lado, se o narrador é também uma personagem diegética, ele é um narrador
intradiegético. O narrador intradiegético e o narrador extradiegético podem contar a própria história
ou a história de outrem. O narrado r heterodiegético conta a história de outra personagem (não a
história dele próprio); o narrador que conta a própria história ou, de algum modo, participa na
narrativa, é chamado narrador homodiegético, O grau de participação de narradores homodiegéticos
(quer extradiegéticos quer intradiegéticos) pode variar muito. Às vezes o narrador tem o papel
principal e narra a sua própria narrativa (é um narrador autodiegético), como o velho Bentinho,
atualmente Dom Casmurro, o narrador de Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis; às vezes.
o seu papel é apenas de testemunha, como Nick, em The Great Gatsby (1925), de Francis Scott
Fitzgerald. Tom Jones, de Fielding, Sons and Lovers, de D.H. Lawrence e Pêre Goriot, de Balzac,
têm narrador extradiegético e heterodiegético. Em Great Expectations, de Charles Dickens, e em
Dom Casmurro, de Machado de Assis, os narradores Pip e Casmurro respectivamente podem ser
chamados extradiegéticos e homodiegéticos. Podem ser chamados simplesmente autodiegéticos.
Xerazade é uma narradora intradiegética e heterodiegética, porque ela é uma personagem ficcional
que está ausente nas histórias que conta. Lockwood, em Wuthering Heíghts, e Nick, em The Great
Catsby, são narradores intradiegéticos e homodiegéticos, porque narram histórias nas quais são
apenas personagens-testemunhas.
Narrador
142 -T E o R I A LITERÁRIA
TEORIAS ESTRUTURALISTAS E rÓS-ESTRUTURALISTAS
Agora, A [...] entrou no quarto pela porta interna que dá para o corredor central. Ela não olha
pela janela escancarada, por onde, desde a porta, veria este canto da varanda, Voltou-se agora
para a porta a fim de fechá-Ia. [...]
O grosso corrimão da balaustrada quase não tem mais pintura na parte superior. O cinzento
da madeira aparece, estriado de pequenas fendas longitudinais. Do outro lado do corrimão, a
dois bons metros abaixo do nível da varanda, começa o jardim,
Mas o olhar que, vindo do fundo do quarto, passa por cima da balaustrada, só vai encontrar
a terra muito mais longe, no lado oposto do pequeno vale, entre as bananeiras da plantação.
Não se vê o chão entre seus penachos espessos de grandes folhas verdes. Não obstante,
como o cultivo desse setor é bastante recente, ainda se pode acompanhar distintamente o
cntrccruzamcnto regular das fileiras de mudas. Isso aconteceu também em quase toda essa
parte visível da concessão [...] (ROBBE-GRILLET, 1986, p. 7-8),
Narrador-focalizador
Exterior da narrativa
r Percebe objeto de fora (as manifesrações externas do focalizado)
Focalizador
L Percebe objeto de dentro (sentimentos e pensamentos do focalizado)'" ....~""..,.,.
Com referência à narração, no interior da fábula pode haver várias narrativas: um personagem
pode narrar outra fábula, a qual pode conter outro personagem narrando outra. As narrativas
dentro de narrativas produzem uma estratificação de níveis a partir da qual uma narrativa interna
está subordinada à narrativa na qual está encaixada. O nível mais alto está ocupado pela narração
(nível extradiegético em Genette). É o nível do narrador de Contos de Caniuária (1387), de Geoffrey
Chaucer (1343-1400), que apresenta os peregrinos. Imediatamente vem o nível diegético, ou seja,
os eventos: a romaria dos peregrinos ao santuário de São Thomas à Becket, em Cantuária. Nesses
eventos pode haver narrativas de personagens, as quais constituem narrativas de segundo grau em
nível hipodiegético.
NARRADOR NÍVEL
As narrativas hipodiegéticas têm várias funções dentro das narrativas nas quais estão encaixadas.
(1) Através dafunfão actional a narrativa hipodiegética simplesmente causa o avanço da primeira
narrativa. Em Mil e uma noites, a vida de Xerazade depende de suas narrativas, cuja única finalidade
é manter a atenção do sultão. A narrativa hipodiegética pode desempenhar umafunfão explícativa: o
nível hipodiegético explica o nível diegético. Frequentemente responde à pergunta: Quais foram
os episódios que causaram a presente situação? Em Absalom, Absalom! (1936), Thomas Sutpen
narra eventos de sua infância ao general Compson. A finalidade dessa narrativa é explicar como
Sutpen tornou-se um mau caráter. A narrativa hipodiegética pode ter ainda umafimfão temática:
as relações entre os níveis diegético e hipodiegético são analógicas, de semelhança ou contraste.
EmThe Real Life of Sebastian Knight (1941), o personagem V tenta alcançar o moribundo Sebastian
porque tem certeza de que este vai dizer algo importantíssimo para ele (nível diegético). Em
nível hipo-hipodiegético, todavia, Sebastian escreve um romance no qual há um agonizante que
guarda um segredo e morre antes de poder contá-lo e mudar a vida de muita gente. Contudo,
numerosos romances contemporâneos contêm muitos níveis narrativos, justamente para
problematizar a fronteira entre a realidade e a ficção ou para sugerir que não há outra realidade
além da narrativa.
Quando se refere ao texto, em Palimpsestos (1982), Genette discute os problemas da
transtextualidade,ou seja, a relação entre determinado texto e os outros textos existentes. São
cinco os fatores que compõem esse relacionamento. (1) A intertextualidade é a presença efetiva
de um texto dentro de outro; (2) a paratextualidade é a relação do texto com tudo o que o
acompanha, como título, prefácio, ilustrações, notas, epígrafes; (3) a metatextualidade consiste
no comentário ou crítica de um texto por outro texto; (4) a arquítextualidade é a relação que une
o hipertexto a um texto anterior chamado hipotexto . Enquanto a transformação (pela paródia) e
a imitação (pelo pastiche) de uma narrativa por outra caracterizarão a teoria de Júlia Kristeva,
a reescrita de obras canônicas será uma das estratégias mais importantes do pós-colonialismo
(Capítulo 14).
144 - T E O R I A LITERÁRIA
ESTRUTURALISTAS E
Entre o fim dos anos 1960 e o início da década de 1970, muitos adeptos do Estruturalismo, baseados
principalmente em teóricos franceses, tentaram ir além das ideias de Propp, Todorov e Genette. O Pós-
estruturalismo é a continuação do Estruturalismo e, ao mesmo tempo, a rejeição dele. A aceitação, pelo
Pós-estruturalismo, das posições mais contundentes do Estruturalismo e o surgimento do primeiro,
no final dos anos 1960, quando o Estruturalismo ainda se desenvolvia, mostram que as duas correntes
são, de fato, bifurcações do movimento linguístico anti-humanista. Como nessa época ainda vigorava
nos estudos literários a ideia humanista tradicional, os críticos e teóricos contemporâneos acharam
que o hurnanismo clássico e o essencialismo (pelo qual se pretende conhecer a essência das coisas) não
eram mais sustentáveis e tornaram-se o principal alvo dos pós-estruturalistas. Ao mesmo tempo, a
crítica feminista, nas vertentes não-marxista e marxista, admitia ser possível uma concepção precisa e
verdadeira da realidade do mundo. Segue-se que, embora muitos críticos aceitem os postulados contra
-c·---------------os·
essencialistas, há outros que defendem a' crítica -humanista (Nova 'Crítica, a crítica conforme os
parâmetros de Leavis, certa crítica feminista e afro-americana). Enfim, todos são conscientes de que
cada perspectiva é problemática e sujeita a questionamentos. De fato, será difícil proferir a última
palavra sobre o texto literário.
DIFERENÇA
146 - T E o R I A LITERÁRIA
• !~
TEORIAS ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTURAL~ISTAS
ESTRUTURALISMO PÓS-ESTRUTURALISMO
1. anti-humanismo 1. anti-humanismo
2. antiessencialismo 2. antiessencialismo
3. a língua é chave do conhecimento 3. a língua é chave do conhecimento
4. há estruturas subjacentes que explicam a 4. o indivíduo é formado por estruturas sobre os
condição humana quais ele não tem controle .... ~.'.
5. pode-se Ir além do discurso e analisar 5. o texto é ambíguo e o significado é relaÚ\To;'
objetivamente qualquer situação há múltiplas interpretações e a interpretação
- definitiva é impossível
6. a leitura é o consumo passivo do produto 6. a leitura é desempenho através da pluralidade__ de
significados dados pelo leitor
7. o texto é uma sensibilidade estética 7. o texto é uma construção com estratégias de poder
e controle
Quadro 14. Semelhanças e diferenças principais entre o Estruturalismo e o Pós-estruturalismo
Y
!- significantes e não a significados definitivos. Esse conceito, chamado díjférance por Derrida (1976), e
traduzido por "deferimento do significante" ou "o jogo incessante do significante", é o elemento-
chave da desconstrução, que é basicamente uma crítica pós-estruturalista. O Capítulo 10 retomará
com mais detalhes o problema da desconstrução.
148 - T E o R I A LITERÁRIA
'-'~'~~TEORIAS ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTUI\ALISTAS
(1975) chama esse texto de legível (lisible). Outros textos (os romances modernos) dão ao leitor o
máximo de liberdade para produzir significados. Isso acontece porque colocam o leitor em contato
com a pluralidade dos outros textos. Esse segundo tipo de texto é escrevível (scriptible) porque é uma
"galáxia de significantes e não uma estrutura de significados; [...] temos acesso a ele através de várias
entradas e nenhuma delas pode ser considerada a principal".
-. 7..: -e ":'!-
Texto legível
v."
Texto escrevível
(significado fixo) (pluralidade de significados) .-""-"
Barthes (1975), em vista disso, introduz cinco códigos que determinam a legibilidade do texto
narrativo. O código hermenêutico se refere ao questionamento, aos enigmas e às perguntas no início
de qualquer discurso, tais como:' O que está acontecendo? Qual é o impedimento? Quais são as
finalidades do herói? Essas questões podem ser resolvidas ou deixar de ser resolvidas na fábula. O
código sêmico se refere aos temas eàs conotações na caracterização (por exemplo, riqueza, feminilidade,
objetificação). O código simbólico diz respeito às polaridades e às antíteses que permitem a multivalência
(por exemplo, os padrões do relacionamento sexual e psicológico que os personagens adotam). O
código proairético (escolhas ou ações) estuda a sequência de ações, acontecimentos e comportamento.
O código cultural engloba todas as referências de conhecimento produzidas pela sociedade ou seus
pressupostos ideológicos (por exemplo, o conhecimento físico, médico, psicológico, literário etc.).
O quadro abaixo toma como exemplo o conto Bliss, de Katherine Mansfield (1888-1923), utilizando
certas frases e aplicando os cinco códigos barthianos.
"
O título Bllss (Êxtase), embora enigmático, é um resumo da narrativa, Quem experimenta o êxtase?
Código Em quais circunstâncias? Que resultados? No código hermcnêutico revelam-se, no processo dá'
hermenêutico leitura, certos descortinamentos parciais, demoras e arnbiguidades, A frase "esperando algo [",]
divino para acontecer" é a sinalização que inevitavelmente mostrará outras revelações.
A palavra êxtase mostra um estado emocional e a frase inicial "Embora Bcrtha Young tivesse tI'in~a
Código sêmico anos", ligada a outras informações sobre caráter e expressões específicas formam um conjunto de semes
que resultam na totalidade do personagem.
"Por que nos é dado um corpo se temos de rnantê-lo guardado numa mala, como um violino
muito, muito raro", Baseado em antíteses, o código simbólico opõe o exteriorc o interior, o
Código simbólico
fechamento e a abertura, o calor (a queirnação 11,0 peito) e o frio (dos quartos), Segundo Barrhcs,
o lugar de encontro desses opostos se dá no corpo (no corpo de Bertha em Bliss) .
"Ela ainda tinha momentos iguais a este," Procede a coleção dessas ações em grupos que movem
Código proaerético
a narrativa até o final.
A sua idade (30 anos) pertence ao vasto armazém de saber pelo qual interpretamos a nossa
Código cultural
experiência.
Grande parte do trabalho de Kristeva é baseado no sistema psicanalítico e no processo pelo qual tudo
o que é ordeiro e racional está continuamente ameaçado pela heterogeneidade e pelo irracional.
O pensamento ocidental sempre teve a necessidade de um "sujeito" que tem o conhecimento e que
unifica a consciência. O meio pelo qual o sujeito percebe os objetos e a verdade é a sintaxe que requer
uma mente ordeira. Porém a razão ~empre foi ameaçada pelo prazer, pelo sorriso, pela dança e pela poesia.
Diga-se de passagem que Platão alertava contra essas influências perigosas, as quais podem ser resumidas na
palavra desejo. A ruptura poderá acontecer, não apenas no nívélliterário mas também no nível social.
Kristeva (1974) mostra o relacionamento entre o normal e o poético. No início de sua vida, o ser
humano é o espaço pelo qual transitam ritmicamente os impulsos psíquicos e físicos. Aos poucos,
esse fluxo indefinido de impulsos é ordenado pelos ditames da família e da sociedade (identificação de
gênero, a distinção entre o público e o privado, e outros). No estágio pré-edípico o fluxo de impulsos se
concentra namãe e na demarcação de partes do corpo humano e suas relações. Um fluxo desorganizado
e pré-linguístico de movimentos, gestos, ritmos e sons forma o semiótíco, que permanece ativo sob o
desempenho linguístico maduro do adulto. Kristeva (1974) usa o termo semiôtico porque descreve um
processo significante não-organizado (a ilógica dos sonhos parece mostrar esse fato). Com o tempo,
o semiôtico fica regulamentado e transforma-se na sintaxe lógica e coerente e na racionalidade do
adulto. Kristeva chama simbólico a linguagem falocêntrica, enquanto o semiôtico continua representando
o aspecto feminino e reprimido da linguagem. Usando o 'semiótico e dominando-o parcialmente, o
simbôlico coloca as coisas ordenadamente e dá aos sujeitos a própria identidade. Contudo, o semiôtico é
sempre capaz de subverter o simbólico.
Kristeva (1974), portanto, considera a poética como o lugar privilegiado de análise, porque está
equilibrada entre os dois palas do sistema e porque, em muitas ocasiões, se abre aos impulsos básicos
do desejo e do medo que funcionam fora dos sistemas racionais. Se constatamos que a mudança social
acontece quando há o rompimento dos discursos autoritários, é através da subversão do semiótico que
a linguagem poética abala a ordem simbólica e fechada da sociédade. Para Kristeva, a linguagem poética
irrompe dentro da e contra a ordem social, especialmente quando se trata do semiótico como associado ao
corpo feminino. O anarquismo (a concretização do semiótico) é a posição filosófica e política adotada pelo
feminismo para acabar com a predominância do falogocentrismo. Nos Capítulos 12 e 18 sobre o gênero,
essas teorias serão retomadas e discutidas no contexto do feminino e da literatura feminina e feminista.
150 - T E O R I A L I T E R A R J A
TEORIAS ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTURALISTAS
IMPLICAÇÓES DO PÓS-ESTRUTURALISMO
Em seu livro Culture and Anarchy, publicado em 1869, Matthew Arnold, um dos críticos ingleses
mais renomados e influentes do século XIX, fabrica uma oposição binária entre a cultura (sinônimo de
coerência e ordem) e a anarquia. °
termo cultura é definido de modo específico como "alta cultura", a
cultura de uma elite específica. ] amaisArnold refere-se à cultura no sentido antropológico ou sociológico,
como se faz atualmente. Para acadêmicos do final do século :xx e do início do século XXI, a cultura
também se refere ao modo de viver e ao Weltanschauung da classe operária, algo incompreensível para
Amold. A classe baixa e os empresários ávidos, fabricantes de uma economia desumana e utilitária, só
seriam capazes de criar anarquia, ou seja, a antítese de qualquer cultura.
A oposição entre a "alta cultura" (a literatura é incluída nessa categoria) e as "culturas" das
classes baixas permeia praticamente toda a crítica literária ocidental, inclusive a de nações jovens
influenciadas pelo Ocidente. A consolidação do cânone literário brasileiro é um caso eloqüente. O
escritor e crítico anglo-americano T. S. Eliot (1888-1965) culpa "a dissociação de sensibilidade" no
final do século XVII, a qual cria a anarquia contra o mundo ordeiro do Renascimento. Em meados
do século:XX, F. R. Leavis (1895-1978) escreveu The Great Tradition (1948), retomando a posição
de Eliot e afirmando que a civilização tecnológica e a industrialização produziram esse hiato entre
a "alta cultura" e as várias "culturas". A "alta cultura" assume, portanto, uma posição proselitista
e, ao mesmo tempo, uma atitude de defesa, já que se considera cercada por todos, prontos para
destruí-Ia. É interessante notar que a "alta cultura", avessa à "cultura da classe baixa" e à "cultura
de massa", jamais se mostrou interessada em conhecê-Ias e examiná-Ias (CUI,-LER, 1999).
A publicação de The Uses ofLiteracy, em 1957, de Richard Hoggart (nascido em 1918), e Culture
and Sodety 1780-1950, em 1958, de Raymond Williams (1921-1988), provocou uma reviravolta.
Embora I-Ioggart analisasse a cultura do ponto de vista humanista e Williams da perspectiva marxista,
ambos insistiam sobre os valores das culturas, especialmente a cultura da classe operária, condenada
categoricamente pela "alta cultura". Apesar de insistir no final de Culture and Society sobre a necessidade
de uma cultura comum, Williams sabe que, na sociedade, sempre haverá várias culturas. "Em nossa
cultura como um conjunto há uma interação constante entre esses modos de vida [culturas] e uma
área que pode ser considerada comum ou subjacente a ambas" (WILLIAMS, 1961, p. 313). Williams,
portanto, dá à cultura uma dimensão antropológica, sem desmerecer o papel da literatura:
Além da literatura são várias as maneiras pelas quais recorremos a outra experiência. No caso
da experiência formalmente presente recorremos não apenas à fonte riquíssima da literatura,
mas também à história, à arquitetura, à pintura, à música, à filosofia, à teologia e à teoria
social, às ciências físicas e biológicas, à antropologia e, de fato, a todo o conjunto do saber. Se
somos sábios, recorremos também à experiência presente nas instituições, nos costumes, no
comportamento e nas memórias das famílias" (WILLIAMS, 1961, p. 248).
152 - T E o R I A LITERÁRIA
T E O· R I A 5 E 5 T R U T U R A L 1ST A 5 E PÓS - E 5 T R U T U R A L 1ST A 5
SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS
Nas décadas de 1980 e 1990, surgiram nos Estados Unidos da América e na Inglaterra duas
modalidades de críticas históricas vigorosas influenciadas principalmente pelas teorias de Foucault.
O Novo Historicismo e o Materialismo Cultural nasceram, respectivamente, nos Estados Unidos e
na Inglaterra. A finalidade de ambas é detectar e trazer à tona as relações de poder e os processos de
construção ideológicos e culturais. O Materialismo Cultural diferencia-se do Novo Historicismo,
talvez, unicamente em sua busca de instâncias de dissidências, subversão e transgressão que sejam
relevantes na luta política contemporânea e em seu compromisso de transformar a ordem social que
explora as pessoas através da raça, gênero e classe.
As duas correntes introduzem nas análises tradicionais (inicialmente sobre o Renascimerito inglês,
de modo especial, nos estudos shakespearianos e depois em todas as épocas literárias) parâmetros
marxistas e pós-estruturalistas. Concentram-se nas noções pós-estruturalistas sobre o sujeito.va
construção da identidade, o discurso, o poder, os discursos como meio de poder. Embora haja diferenças
conceituais entre o Marxismo e o Pós-estruturalismo, a tendência do Materialismo Cultural (termo
cunhado por Raymond Williams em 1977 com a publicação de Marxism and Literature) gira em torno
de esquemas marxistas, focalizando a ideologia, a função das instituições, a dissidência e a subversão.
O Novo Historicismo e o Materialismo Cultural têm em comum os seguintes princípios:
1. Ambos rejeitam a autonomia do autor e do texto literário, este último visto como inseparâvel de
seu contexto histórico. O papel do autor é determinado por circunstâncias históricas. "A obra
de arte é o produto de um acordo entre o artista ou classe de artistas, munidos de um conjunto
de convenções, compartilhado pela comunidade, e as instituições e práticas da sociedade"
(GREENBLATT, 1989, p. 12).
2. O texto literário está envolvido num amplo conjunto formado por elementos históricos,
culturais, políticos, econômicos e sociais. O texto literário está imerso numa construção verbal
ligada a um período e a um lugar específicos, os quais sempre têm conotações políticas. Como
discurso ideológico, o texto literário veicula o poder e participa positivamente na construção
e na consolidação de discursos e ideologias. Ele também é um instrumento na construção de
identidades individuais e coletivas (por exemplo, de nações). A literatura e qualquer outrot"êxtü"'C.
religioso, político, histórico, portanto, fazem a história, desenvolvem a ideologia e-iniciam a
hegemonia.
Em meados da década de 1980, o Novo Historicismo e o Materialismo Cultural estenderam
o âmbito de seus estudos e começaram a abranger todas as correntes e épocas literárias. O rápido
desenvolvimento dos Estudos Feministas e a consolidação dos Estudos Pós-coloniais no início dos anos
1990 fizeram com que as linhas divisórias entre o Materialismo Cultural e o Historicismo Cultural
se apagassem. Consequentemente, o final do século XX e o começo do século XXI viram as quatro
correntes como um conjunto coesa de crítica acadêmica tentando efetivar as mudanças políticas num
mundo globalizado.
o Novo HISTORICISMO
O termo Novo Historicismo foi cunhado por Stephen Greenblatt, em 1980, na publicação de
Renaissance Selflashioning: From More to Shakespeare. O Novo Historicismo é definido como "uma
interpretação crítica que privilegia as relações de poder, [...] uma prática de crítica que apresenta os
textos literários como um espaço no qual tornam-se visíveis as relações de poder" (BRANNIGAN;"'~-
1998, p. 6). O Novo Historicismo, portanto,
154 - T E o R I A LITERÁRIA
TEORIAS ESTRUTURALISTAS E PÓS-ESTRUTURALISTAS
o MATERIALISMO CULTURAL
o Materialismo Cultural estabeleceu-se como crítica literária em meados dos anos 1980, e seus
maiores expoentes foram os ingleses Jonathan Dillimore, Catherine Belsey, Alan Sinfield e John
Drakakis. O termo cultura (no adjetivo cultural) é usado analiticamente, já que procura descrever todo
o sistema de significações através das quais uma sociedade compreende a si mesma e suas relações
com o mundo. Inclui-se a pesquisa sobre as culturas dos subalternos, marginalizados, música popular
-e outras manifestações. Nesse caso, cultura não tem-a conotação valorativa, ou seja, mantenedora da
"alta cultura" com seus valores superiores e uma sensibilidade refinada. Contrapondo-se ao idealismo,
o termo materialismo mostra que a cultura não pode transcender as forças materiais e as relações de
produção. O Materialismo Cultural, portanto, estuda as implicações dos textos literários na história.
O Materialismo Cultural propõe-se como uma alternativa à prática tradicional da crítica literária.
O envolvimento do contexto histórico, método teórico, compromisso político e análise literária com
o texto proporcionará ao crítico mais ferramentas em sua crítica literária. Em primeiro lugar, o contexto
histórico subverte o sentido tradicional dado ao texto literário e recupera seu próprio histórico. O método
teórico distancia o texto de uma crítica imanente cuja tendência é se reproduzir e se perpetuar. O
compromisso socialista efeminista desafia as categorias conservadoras que até então foram predominantes
.na crítica literária. A análise textual cerceia a crítica das abordagens tradicionais. Três aspectos éIoi)rocess~'
histórico e cultural são proeminentes e investigados pelo Materialismo Cultural: (1) a consolidação se
refere aos meios ideológicos pelos quais uma posição dominante se perpetua; (2) a subversão mostra
a transgressão e as tentativas de solapar essa ordem; (3) a contenção revela a repressão às pressões'
subversivas.
O Materialismo Cultural acentua que no âmago do texto literário encontram-se indícios eficazes de
subversão e de dissidência. Em outras palavras, embora muitos fatores no discurso literário indiquem
apoio à hegemonia ou à ideologia contemporâneas, os materialistas culturais admitem que a cultura
dominante sempre está sob pressão de pontos de vista alternativos. A coerência do discurso é apenas
aparente e a ordem está constantemente ameaçada em seu interior por contradições internas e por
tensões que o discurso tenta esconder. Na Carta, de Caminha, escrita em 1500, abundam episódios de
visão panótica do colonizador português, de seu fitar objetificador, de sua superioridade cultural diante
da nudez dos nativos. O discurso, porém, revela inúmeras tensões, ou seja, traços de insubordinação
(a recusa de alguns indígenas para depor as armas), indiferença (o modo sem-cerimônia como dois
nativos brasileiros embarcam no navio de Cabral; o velho indígena com grande cocar), cortesia ardilosa
(imitação de atividades dramáticas na primeira missa, no levantamento da cruz, nas atitudes da jovem
tupiniquim), todas indicativas de contradições num texto hegemônico.
Sinfield (1992) chama essas contradições internas de falha tectõnica, a qual, por sua vez, produz
a potencialidade dissidente. (1) As falhas tectõnlcas encontram-se em todas as culturas e, evidentemente,
em textos literários. Embora sob controle ideológico, a literatura abre espaço onde as col)tradiç.(}~,~,ç:-"
as tensões podem ser localizadas e trabalhadas. Mesmo nos textos mais reacionários, o Materialismo
Cultural detecta pontos de dissidência que permitem ouvir a voz dos indivíduos socialmente
marginalizados e expõe o sistema ideológico responsável pela exclusão. (2) O Materialismo Cultura)
investiga como a recepção de textos literários ofusca a presença de falhas tectônicas ideológicas. Essa
cumplicidade entre o texto e a crítica literária pode ser vista, por exemplo, na presença de Iracema
(1865), de José Alencar, na crítica literária brasileira. O romance mostra as primeiras relações entre
colonizadores brancos e indígenas brasileiros na terra recém-aberta aos colonizadores portugueses
e a chegada da cultura branca, cristã, ocidental. A luta pela terra e a aniquilação da cultura indígena,
entretanto, são relativizadas e deslocadas para o fundo da cena, significativamente no contexto da
afirmação e na consolidação da subjetividade da nação brasileira no período pós-independência.
Legitimam-se, portanto, as leituras alternativas e subversivas. (3) As leituras dissidentes do Materialismo
Cultural desafiam a crítica tradicional e conservadora de estudos acadêmicos e daqueles que controlam
instituições de cultura (currículo das escolas secundárias, dos cursos de Letras nas universidades)
para efetivar mudanças políticas na atualidade a partir dos pontos de vista socialista ou feminista.
t A constataçâo da supressão ("ausência") da voz da mulher negra na literatura brasileira até o século
XIX provoca discussões sobre as causas e, mais ainda, sobre a situação da mulher na literatura e nas
práticas sociais contemporâneas. "Contrariamente à crítica consolidada, o Materialismo Cultural não
mistifica sua perspectiva como a interpretação natural, óbvia e correta de um texto, mas registra seu
compromisso na transformação de uma ordem social que explora as pessoas através de argumentos
de raça, sexo e classe" (DOLLIMORE; SINFIELD, 1989, p. viii). Por isso, o Materialismo Cultural
focaliza episódios de dissidência, subversão e transgressão em textos literários, já que sua relevância
influencia a luta política (feminista, pós-colonial, de minorias) contemporânea.
O Materialismo Cultural analisa como a literatura canônica (por exemplo, os relatos de
viagens nos séculos XVI e XVII, os poemas de Gregório de Matos, a épica de Santa Rita Durão
e de Basílio da Gama, os romances de Alencar e de Machado de Assis) foi utilizada em épocas
diferentes, a ênfase dada nos exames vestibulares, as seleções mais antologizadas. Analisa não
apenas a literatura não-canônica, intencionalmente deixada ao esquecimento e sistematicamente
menosprezada, mas também discursa sobre quem se apoderou e se privilegiou da perpetuação
dessa seleção e
da sua colocação no currículo escolar. Os materialistas culturais (DOLLIMORE;
SINFIELD, 1989) descobriram que as peças de Shakespeare foram apropriadas pela direita
política para mostrar a superioridade da literatura inglesa em detrimento das culturas de povos
colonizados pelos ingleses. Certas peças ou atos específicos foram inclusive utilizados para
conter as aspirações de classes subordinadas dentro da Inglaterra (irlandeses, galeses, os fora-
da-lei) e de povos não-europeus. Elizabeth I reclamou que a peça Ricardo II (provavelmente de
Shakespeare) foi encenada quarenta vezes nas ruas e nas casas particulares antes da sublevação de
1601 contra a sua autoridade (apud DOLLIMORE; SINFIELD, 1989, p. 8). A rainha percebeu
que a identificação do personagem Richard com ela, a repetitividade da encenação e a aniquilação
da ficcionalidade causada pela apresentação nas casas serviam à causa da rebelião contra o estado
inglês. Macbeth (1603) foi também utilizada por representantes do império inglês para consolidar
a legitimidade da realeza e mostrar a punição implacável de quem se levanta contra ela. A rebeldia
de Calibã, Trínculo e Stefano em A tempestade (1611) foi realçada para mostrar a incapacidade de
povos marginalizados de organizar um governo e para ridicularizar as pessoas que, na periferia da
sociedade, tentam fazer ouvir a sua voz de protesto e de resistência.
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REFERÊNCIAS I~
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156 - T E O R I A LITERÁRIA
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