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qualitativa se torna inevitável. Se


http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968.
2014v1n33p354 bem é verdade que o autor fran-
cês teve um exercício prolífico
Meschonnic, H. Poética do tra- como poeta e como tradutor –
duzir. Trad. Jerusa Pires Ferrei- publicou e foi premiado por vá-
ra e Suely Fenerich. São Paulo, rios livros de poesias e traduziu
Perspectiva: 2010. 279 p. o Antigo Testamento -, enquanto
a primeira parte do livro consta
de 79 páginas, distribuídas em 6
capítulos, a segunda parte consta
O livro Poética do traduzir, de de 179 páginas, divididas em 10
Henri Meschonnic (1932-2009), capítulos no total. Houve, ao que
traduzido por Suely Fenerich e parece, uma necessidade maior
Jerusa Pires Ferreira, que tam- de desenvolver mais exemplos na
bém escreve o prefácio nesta narrativa dessa segunda parte, A
edição, está organizado em duas teoria: É a prática. Trata-se de
partes dialeticamente conectadas uma abordagem mais pormeno-
abordando a relação entre teo- rizada das questões envolvidas
ria e prática no ato de traduzir, nessa relação de teoria e prática.
procurando estender a apreciação Deve-se destacar que Mes-
poética da tradução no campo dos chonnic toma o poema na sua
sentidos frasais e sua oralidade, concepção mais abrangente, quer
para além da dramaturgia. Sua dizer, como sinônimo de toda a
tessitura se inicia na crítica à lin- literatura e não apenas para di-
guística tradicional, que o autor ferenciar um gênero de outro.
afirma estar trancada no dualismo Embora pela via negativa, logo
do signo. É preciso lembrar que introduz uma primeira definição
Meschonnic era professor de lin- de poética na acepção que ele usa
guística e literatura em Paris VII. no livro, pois tem uma preocupa-
Mas interessante é reparar que no ção em deslindar a ideia de poéti-
livro há uma questão quantitativa ca como sinonímia da estilística,
um tanto curiosa, cuja incidência reduzindo assim seu campo de
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significações e criando até confu- estilo individual, postura que,


sões conceituais. Estabelece, en- para ele, também abrange os
tão, uma diferença entre “poética profissionais da tradução quan-
do traduzir”, onde se privilegia o do lançam mão da gramática
seu resultado final, com “poética contrastiva. Lembra que a tradu-
da tradução”, onde se privilegia ção automática surgiu durante a
o fazer. Segunda Guerra Mundial e está
Na relação da sociedade com ligada à linguística tradicional.
o sistema da linguagem, o autor Menciona, no entanto, que no
sustenta que se misturam cultura, século XX a tradução passou
literatura, um povo, uma nação da língua ao discurso e ao texto
e indivíduos. Então, segundo como unidade. Observa, porém,
ele, para compreender o que se que diante da disjuntiva do ato da
faz com a linguagem e a teoria tradução ser uma ciência ou uma
da linguagem, a literatura e a arte, traduzir textos literários
tradução são duas atividades vul- sempre será uma arte, porque ela
neráveis e estratégicas. Devido é colocada na crítica do gosto e
a isso, critica os linguistas, por seus problemas tornam-se, por-
serem surdos precisamente à lite- tanto, verdadeiros mistérios. Já
ratura. O autor considera a teoria sobre as transformações episte-
e a prática literárias dois modos mológicas ocorridas ainda nesse
de transformação do sujeito, tan- século, o autor afirma:
to na política quanto no pensa-
mento, transformações que agem Começa-se a descobrir a oralida-
sobre o ato mesmo da tradução e de da literatura, não somente no
cuja atividade principal é a orali- teatro. (...) Descobre-se que uma
dade. Segundo Meschonnic, o re- tradução de um texto literário deve
al modo de significar, muito mais fazer o que faz um texto literário,
do que no sentido das palavras, pela sua prosódia, seu ritmo, sua
está no ritmo. significância, como uma forma de
O autor do livro discorda da sua individuação, como uma for-
concepção empirista ligada ao ma-sujeito (p. XXIV).
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No livro, o poeta argumenta trabalham com a linguagem, mas


que uma tradução é um ato da separando-a da literatura. Expli-
linguagem, que ela não pode se ca, então, que a teoria crítica sur-
fazer passar nunca pelo original gida por alguns representantes da
nem eliminar sua poética e que Escola de Frankfurt é uma teoria
é como um trabalho de palimp- que toca o social, a sociedade, tal
sesto. Critica as noções de língua o caso da linguagem, a literatura
de partida e língua de chegada, e a tradução. A poética do tra-
além da equivalência, fidelidade, duzir, segundo o autor, permite
transparência, apagamento, mo- distinguir os problemas filológi-
déstia do tradutor, interpretação, cos dos poéticos e permite situar
separações entre sentido e estilo, a tradução numa teoria do sujeito
e entre sentido e forma, pois são, e do social, reconhecendo que a
nas suas palavras, as que cons- identidade só acontece pela alte-
tituem os alicerces de uma má ridade.
tradução. Para ele, o modo de Meschonnic aborda também a
significar está no ritmo, não no questão da pragmática e as argu-
sentido das palavras, por isso, mentações linguísticas sobre o in-
traduzir deve passar pela escuta traduzível, as quais não chegam
do contínuo rítmico, prosódico e a oferecer respostas teóricas.
semântico. Explica, então, que na sinoní-
Na primeira parte do livro, A mia se confunde o signo com o
Prática: É a Teoria, Meschonnic referente, o que leva à oposição
aduz que a tradutologia supõe ser entre conotação e denotação.
uma ciência, enquanto ele defen- Meschonnic postula ainda que a
de uma poética do traduzir, o que política de traduzir e a ética da
implica uma teoria crítica como linguagem estão na poética, e
conjunto da linguagem, da his- que traduzir contém uma poética
tória, do sujeito e da sociedade. e uma política do pensamento,
Desta forma, conclui o autor, se no qual o estatuto do sujeito tem
impede o vício maior das teorias uma função predominante. Ele
linguísticas contemporâneas, que explica logo o percurso do pen-
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samento da linguagem ao longo Se aceitamos que o poema seja


dos séculos, mas que a noção de substituído somente pelo enuncia-
discurso, algo frágil ainda, data do do que ele diz, ao qual ele não
apenas dos anos de 1930. se reduz, é porque os critérios da
A realização máxima do dis- tradução literária são então mais
curso, segundo expõe, é a li- frouxos que os da tradução téc-
teratura e a oralidade, que não nico-científica. (...) A primeira e
oculta o paradoxo entre a escrita última traição que a tradução pode
e a verbalização. No entanto, é a cometer é a de lhe roubar aquilo
partir da literatura que a teoria da que a faz literatura... (pp. 26 e 30)
tradução pode exercer um papel
crítico. Por isso, toma distância A questão do ritmo parece ser
dos que consideram que para trascendental para Meschonnic,
traduzir é preciso compreender, pois em todo texto há ritmo e a tra-
ergo interpretar. Neste ponto, a dução deve levá-lo em conta. Em
exposição sobre a teoria da tra- sua opinião, o ritmo transforma
dução dialoga com a filosofia, toda a teoria da linguagem, renova
pois a poesia está no coração de- a tradução e constitui um critério
la. “Há sem dúvida uma filoso- para seu valor, sua poética e sua
fia espontânea da linguagem e da poeticidade. “É na poesia e para a
literatura no tradutor”, diz Mes- poesia que eu trabalho a poética da
chonnic. A literatura é a prova da tradução”, diz. Note-se que apare-
tradução, afirma o autor, embora ce aqui uma diferença significativa
as traduções técnicas e científicas entre poética da tradução e poéti-
sejam as mais antigas e divulga- ca do traduzir, tal como figura no
das. Mas logo critica a necessida- título do livro, diferença que ele
de de se precisar de um químico, mesmo frisou entre produto finali-
por exemplo, para traduzir um zado e fazer o produto.
texto da química, enquanto um Como a tradução literária co-
filólogo está por si só, apto para loca as literaturas em contato e
traduzir literatura, o que mostra não as línguas, o autor francês
uma contradição. Então, conclui: mais uma vez condena as más
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traduções (traduções-língua) em pensamento da linguagem e cri-


oposição às traduções-texto. E tica logo o ecletismo de Eugene
logo retoma a noção de ritmo, Nida, porque parte de uma en-
seguindo as pistas de Émile Ben- velhecida teoria da informação.
veniste, ao entender o ritmo co- Afirma que Nida toma um pouco
mo a organização (da prosódia à de todas as doutrinas, incluída a
entonação) da subjetividade e a gramática gerativa, a qual não
própria operação do sentido do conhece mais o discurso, e me-
discurso. A Bíblia, em sua opi- nos ainda a literatura, reforçando
nião, parece ser o grande desafio sua postura de predominância do
da teoria tradicional e a teoria ritmo discursivo, da oralidade e
crítica da tradução, porque ela da poeticidade do texto filosófico
apresenta uma organização única e literário.
do discurso pelo ritmo, o que si- Sem o propósito de esquema-
multaneamente, leva a distinguir tizar, pois elas estão ainda na me-
o oral do falado. tade de um livro que
Nessa mesma linha, na qual o discute dialeticamente cada
ritmo transforma o modo de signi- assunto, Meschonnic lança mão
ficar, o autor incorpora ao poema do recurso do contraste, entre a
o texto filosófico. Destaca, então, má e a boa tradução no âmbito da
que as traduções do sentido, limi- poética. Sustenta que é má aque-
tadas à filologia e à língua, se fa- la tradução que substitui a poética
zem numa ausência de poética, o do texto pela ausência de poética;
que mostra que não basta o saber ou que substitui o ritmo e a ora-
da língua, mas o saber poético lidade pelo descontínuo do signo;
que se ativa no fazer da tradução, que substitui a organização de um
pois sempre que tiver um efeito sistema do discurso pela destrui-
poético, haverá um problema po- ção desse sistema; que substitui
ético na sua tradução. a subjetivação máxima da lín-
Meschonnic lembra Benevis- gua pelas garantias da língua e
te, Bronislaw Malinóvski e Lu- do gosto ambiente; que substitui
dwig Wittgenstein ao referir o a alteridade pela identidade, e a
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historicidade pelo historicismo ela é, enquanto sua poética é a


ou a des-historicização. Em con- ausência mesmo de poética.
trapartida, é boa aquela tradução Toma logo novos exemplos
que inventa sua própria poética, de Shakespeare e sua tradução à
que substitui as soluções da lín- língua francesa, destacando as di-
gua por problemas do discurso, ficuldades para resolver questões
que tendo o texto como unidade, relacionadas com o uso dos neu-
guarda a alteridade como tal. tros, dos passivos, das invenções
Na segunda parte do livro, A verbais e neologismos, além de
Teoria: É a Prática, Meschon- outras criações de escritura. Dos
nic parte do pressuposto de que tradutores afirma que François-
o teatro é uma arte do efêmero e -Victor Hugo visa a exatidão, em-
aborda o desafio permanente que bora elimine muitas metáforas;
supõe traduzir o texto de Hamlet. André Gide gosta dos arcaísmos
Analisa a crítica da literatura, da e escapa da invenção verbal, em-
tradução, das artes da linguagem bora edulcore as metáforas mais
e do espetáculo na imprensa. Diz ousadas; Yves Bonnefoy procura
que ela é uma crítica do gosto, o alexandrino, mas cai no clichê,
subjetiva e passional, uma críti- no apagamento das metáforas e
ca distinta, na qual se confunde a no academicismo dos versos. E
cultura com o cultural, e faz pas- diz que em todos os casos, se
sar por verificação e análise algo nota que o sentido das palavras
que resvala na impostura. “A crí- não se liga necessariamente ao
tica distinta pode-se disfarçar em ritmo do sentido. Para o autor,
argumentos”, diz o autor e acres- as traduções de Shakespeare que
centa: “a retórica da persuasão é contam vieram dos poetas e não
cumulativa”. Afirma, então, que das universidades, porque os po-
não há simetria entre o elogio e a etas são capazes de encontrar a
rejeição, mas que só esta é supe- importância do ritmo para além
rior. A teoria da linguagem desta da sintaxe.
crítica é a teoria tradicional, que A modo de conclusão é pos-
procura manter a sociedade como sível dizer que a abordagem do
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assunto tratado no livro é de uma ponto de partida esse postulado


peculiaridade singular pela sua implícito. Talvez por isso lança
prosa e porque dialoga com uma mão da dramaturgia, na qual a
enorme diversidade de autores e intensidade da expressão inter-
disciplinas que, por momentos, pretativa se torna central, para
cria até uma certa incômodo de- discutir a tradução de poesia. A
vido a seu tom irônico e algo du- relação entre a prática e a teoria
ro. A relevância dada à questão se trata para Meschonnic de uma
do ritmo é muito bem trabalhada, unidade inseparável, o que tor-
tanto quanto à oralidade, lhe dan- na seus argumentos mais sólidos
do transcendência à concepção do ponto de vista da raiz experi-
do texto literário, em especial mental na qual se sustentam. É
ao que se refere à literatura em um livro, sem dúvida, que con-
versos. Os exemplos nos quais tribui muito para os Estudos da
se conjuga a presença da alitera- Tradução e de leitura inevitável
ção e do movimento rítmico, por para aqueles que pesquisam tra-
exemplo, são bastante contunden- dução de literatura e, nela, tra-
tes para entender melhor o ato de dução de poesia.
traduzir e a poética inserida nele,
considerando que, finalmente, Pablo Daniel Andrada
esses versos serão declamados, Universidade Federal da Paraíba
muito mais do que lido em silên-
cio. Ele pensa a Bíblia como um
texto a ser lido em voz alta e, sob
essa perspectiva, pensa numa po- Recebido em: 14- 01-14
ética do traduzir que leve como Aceito em: 03-04-14

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