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Transcriação como plagiotropia1

Marcelo Tápia

Resumo:
O artigo procura apontar o conceito de plagiotropia, proposto pelo poeta, tradutor e
ensaísta brasileiro Haroldo de Campos, como o mais adequado para definir suas con-
cepções acerca da tradução poética, identificada por ele como transcriação, bem como
para caracterizar sua produção criativa e tradutória.

Palavras-chave: Transcriação, Tradução poética, Poesia brasileira, Haroldo de Campos,


Plagiotropia

Abstract:
The article seeks to point out the concept of plagiotropy, proposed by the Brazilian poet,
translator and essayist Haroldo de Campos, as the most adequate to define his
conceptions about poetic translation, identified by him as transcreation, as well as to
characterize his creative and translational production.

Keywords: Transcreation, Poetic translation, Brazilian poetry, Haroldo de Campos,


Plagiotropy

1
Este artigo foi publicado em: Cercel, L.; Agnetta, M.; Lozano, M. T. A. (Hrsg.). Keativität und Hermeneutik in der Translation.
Tübingen: Narr Francke Attempto, 2017, p. 149-160.
1
Em meu posfácio para o livro Haroldo de Campos – Transcriação (2013: 215–
232), procurei refletir sobre a preponderante qualificação identificativa da formulação
teórica do ensaísta sobre tradução poética como “antropofágica”. Dizia eu, no referido
artigo:
Admitida toda a coerência que tal proposição pode encerrar, creio ser pertinente,
contudo, a reflexão sobre a escolha de se priorizar a ideia da Antropofagia como
foco para apresentação e representação da teoria tradutória haroldiana. Ou seja:
apesar de toda a importância que a fundamentação da proposta antropofágica de
Oswald [de Andrade] adquire no exercício teórico de Haroldo e na própria teori-
zação da poesia concreta e do que dela advém, vale questionar seu uso “ilimitado”,
ou, de certo modo, além dos próprios limites em que o propositor da transcriação
dele se utiliza [...]. (ibid.: 222)

Ao embrenhar-me no assunto, recorri a diversas fontes a fim de buscar sustentação para


a ideia de que a Antropofagia não se bastaria como “rótulo” para a teoria da trans-
criação; talvez tenha logrado algum resultado nesse sentido. Em lugar dessa identifi-
cação – que se projetou, por meio de trabalhos altamente meritórios a ela dedicados,
entre estudiosos da tradução fora do Brasil (cf. Vieira 1994: 38; 19992; Gentzler 2008) –
da contribuição teórico-tradutória de Haroldo, distingui um conceito formulado pelo
autor como o potencial definidor da transcriação, por seu caráter diferenciador e funda-
dor: o de plagiotropia, ligado à ideia da tradução como referência central para a teori-
zação da literatura. Antes de o focalizar, no entanto, considero oportuno reiterar algo
registrado no final do referido posfácio, e sugerir, pela própria via do pensamento con-
siderado “antropofágico”, que seria chegada a hora, há tempo, de se “digerir”, dentro e
fora do Brasil, o pensamento haroldiano, e, não, apresentá-lo por meio da “redigestão”
diacrônica de uma proposta surgida nas primeiras décadas do século XX, por mais rele-
vante que seja ela para a própria história da cultura e da literatura brasileiras. A projeção
internacional que a contribuição ensaística do autor tem alcançado deve-se à sua con-
sistência – como também, claro, ao empenho e à competência dos pesquisadores a ela
dedicados –, e, creio, tanto mais seu papel se mostrará relevante no contexto geral da
teoria da tradução e da própria teoria literária quanto emergirem, para consolidação de

2
O artigo concentra reflexões desenvolvidas por Vieira em sua tese de doutorado (Por uma Teoria
Pós-Moderna da Tradução, Belo Horizonte, UFMG, 1992).
2
sua identidade, formulações que lhe sejam intrínsecas e diferenciadas, não apenas por
meio do contexto sociocultural e artístico brasileiro ao qual se pode vinculá-lo.
Isso posto, voltemos, então, à plagiotropia: sob essa visão, a tradução se relaciona-
ria com o próprio “processo literário”, cuja natureza seria eminentemente derivativa:

A plagiotropia (do gr. plágios, oblíquo; que não é em linha reta; transversal; de la-
do) [...] se resolve em tradução da tradição, num sentido não necessariamente reti-
líneo. Encerra uma tentativa de descrição semiótica do processo literário como
produto do revezamento contínuo de interpretantes, de uma “semiose ilimitada” ou
“infinita” (Peirce; Eco), que se desenrola no espaço cultural. Tem a ver, obviamen-
te, com a ideia de paródia como “canto paralelo”, generalizando-a para designar o
movimento não-linear de transformação dos textos ao longo da história, por deri-
vação nem sempre imediata. Conjuga-se com minha concepção da operação tradu-
tora como o capítulo por excelência de toda possível teoria literária (e toda literatu-
ra comparada nela fundada). (Campos 1981: 75s.)

A “transformação dos textos ao longo da história” associar-se-ia, portanto, à ideia de


paródia, entendida, sob o ponto de vista etimológico, como “canto paralelo”, modo pelo
qual Haroldo de Campos postula a natureza da tradução (veja-se o artigo “Tradução,
ideologia e história”, Campos 2013: 37–46), cuja natureza dialógica foi por ele proposta
desde seu primeiro artigo substancial acerca do assunto, “Da tradução como criação e
como crítica”.
O modo de ver a tradução e a criação literárias como operações intrinsecamente
ligadas é identificável na produção haroldiana como um todo: em sua própria poesia, em
suas transcriações e em sua escrita ensaística. Sobre esta, diga-se que apresenta, como
uma possível marca em sua elaboração, ao longo dos anos, a especial característica de
revelar sua busca incessante de fundamentação e estabelecimento de relações entre fon-
tes de reflexão a fim de consubstanciar e consolidar um projeto que se demonstra coe-
rente desde o princípio: seu objetivo de “apropriar-se da tradição” para reinventá-la per-
passa todo o seu propósito de releitura do legado poético universal, desde as
formulações da poesia concreta e da programática revisão crítica de autores sob um
ponto de vista diverso do “cânone”, até a sua poesia construída explicitamente como

3
reescritura, caso do emblemático poema “Finismundo: a última viagem”, que será obje-
to de nosso interesse mais adiante, neste texto.
É notável o desenvolvimento do constructo teórico de Haroldo de Campos acerca
da tradução, cujas postulações iniciais de mostram coerentemente associadas ao pensa-
mento exposto nas fases posteriores de sua ensaística; segundo ele próprio, em suas “su-
cessivas abordagens do problema, o próprio conceito de tradução poética foi sendo
submetido a uma progressiva reelaboração neológica” (do texto “Da transcriação: poéti-
ca e semiótica da operação tradutora”, in: Campos 2013: 77–104). Se, inicialmente,
buscou apoio nas concepções de “sentença absoluta”, de Albrecht Fabri, e de “infor-
mação estética”, de Max Bense, para, mais tarde, adotar as formulações de Roman Ja-
kobson (uma “física da tradução”) como referência central de seu entendimento da lin-
guagem e da tradução poéticas, e, também notadamente, as ideias apresentadas por
Walter Benjamin em seu famoso ensaio “A tarefa do tradutor” (uma “metafísica da tra-
dução”), além das reflexões de Paul Valèry, entre outros, a sucessiva expansão de suas
fontes conceptivas revela-se um contínuo harmoniosamente integrado a partir do fio
condutor de seu próprio pensamento, capaz de realizar leituras operacionalizadoras que
também ampliam o próprio alcance das obras a que se refere.
Algo especialmente digno de nota, porque – acredito – menos notado na evolução
das reflexões do autor, é sua escolha de valer-se de conceitos de Wolfgang Iser para
explicitar aspectos de sua própria obra poético-tradutória, em dois artigos: “Tradução,
ideologia e história” (1993), e “Da tradução à transficcionalidade” (1989, depois deno-
minado “Tradução e reconfiguração: o tradutor como transfingidor”). Seu ponto de par-
tida se dará segundo um dos “conceitos-chave” que, para Iser, “constituem os conceitos
de orientação central na análise da literatura”: um modo de abordagem do texto baseado
em sua estrutura, modo este correspondente ao primeiro entre outros dois identificados
por Iser. O segundo é voltado à função do texto, um conceito que permite compreender
a “relação do texto com seu contexto” (Iser 1983: 371), e, portanto, atenta para sua his-
toricidade – este ponto de vista, centrado no conceito de função, privilegia a origem, a
“gênese do texto”, enquanto aquele visto primeiramente, ao considerar a estrutura do
texto e sua inserção em outro tempo e lugar, ressalta a “validade do texto” (ou seja, sua
“vida” após as condições históricas em que nasceu), que prevê “um modelo de interação

4
entre texto e leitor”:3 tal interação diz respeito ao terceiro modo referido, voltado à co-
municação. A abordagem de Campos, que considera ser na estrutura do texto que “atua
por excelência” a transcriação, aponta também para esse terceiro conceito: enfatizar a
estrutura do texto e sua interação com o leitor permitirá um desapego da ideia de re-
construir um mundo passado (uma vez que este se modifica pelo mundo presente no ato
da leitura e da recriação), indo ao encontro do conceito “make it new” (tornar novo, re-
novar) do poeta norte-americano Ezra Pound (1885–1972). Concentrando-se na lingu-
agem e nas “necessidades do presente da criação”, será possível a um criador ou tradu-
tor optar por outros parâmetros formais que considere adequados (com base em seus
próprios conceitos estéticos) à produção do poema em seu novo contexto.
Tal explicitação operacional consolida uma óptica presente em todo o percurso re-
flexivo de Haroldo de Campos, manifestada, pode-se dizer, na síntese que apresenta no
texto “Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora” das concepções de
Roman Jakobson acerca da tarefa da tradução poética, identificando pragmaticamente
de suas etapas:

Pedagogicamente, o procedimento do poeta-tradutor (ou tradutor-poeta) seria o se-


guinte: descobrir (desocultar) [...] o código de “formas significantes” [pelo qual] o
poema representa a mensagem [...] (qual a equação de equivalência, de comparação
e/ou contraste de constituintes, levada a efeito pelo poeta para construir o seu sin-
tagma); em seguida reequacionar os constituintes assim identificados, de acordo
com critérios de relevância estabelecidos “in casu”, e regidos, em princípio, por um
isoformismo icônico, que produza o mesmo sob a espécie da diferença na língua do
tradutor (paramorfismo, com a ideia de paralelismo [...] seria um termo mais preci-
so [...]. (Campos 2013: 93)

Como um possível exemplo ilustrador dos procedimentos e resultados da transcriação


haroldiana, veja-se sua tradução da última estrofe do poema “The Raven”, de Edgar
Allan Poe, apresentada em artigo seu4 no qual analisa o poema (baseado na análise que

3
Campos, no referido artigo “Tradução e reconfiguração: o tradutor como transfingidor”, cita Iser, pa-
ra quem “o modelo da interação entre texto e leitor é fundamental para o conceito de comunicação”
(1983: 365).
4
Cf. “O texto-espelho (Poe, engenheiro de avessos)” (Campos 1976: 23–41).
5
dele fizera Jakobson) e diversas traduções dele ao português; sobre seu trabalho, diz
Haroldo:

Tendo lido e meditado a análise de Jakobson, procurei fazer, por meu turno, uma
versão da estrofe em destaque [...]. Trata-se de uma tentativa de, conscientemente,
reproduzir, quanto possível, no âmbito de nossa língua, os principais efeitos
fônicos e mesmo a escrita regressiva do autor de “The Raven”:

E o corvo, sem revoo, para e pousa, para e pousa


No pálido busto de Palas, justo sobre meus umbrais;
E os olhos têm o fogo de um demônio que repousa,
E o lampião no soalho faz, torvo, a sombra onde ele jaz;
E minha alma dos refolhos dessa sombra onde ele jaz
Ergue o voo – nunca mais!
(Campos 1976: 30)

Acerca de sua própria tradução, Haroldo explicita, no referido artigo, a procura de cor-
respondência rítmico-métrica com o original, assim como de “replicar ao original” com
“efeitos” por ele obtidos, assinalados em itens. Em seu modo de operar, o tradutor, –
assim digo eu – após desvendar (do ponto de vista de uma leitura que re-conhece não
apenas o plano de conteúdo, mas sua inseparabilidade do plano da expressão) a configu-
ração das relações entre som e sentido do poema, passa a re-configurá-la, valendo-se
também de suas próprias referências e escolhas, de modo (como é evidente) a que o
texto represente e substitua o original na língua para a qual este foi traduzido.
Mas abordemos em seguida, a fim de demonstrar o procedimento plagiotrópico
orientador da obra haroldiana como um todo, o poema seu a que já me referi, emblemá-
tico da reescritura do autor dedicada à tradução da tradição, de modo a reinventá-la.

Confronto com o impossível5

5
O trecho do presente artigo sob este título incorpora, com alterações, fragmentos de texto homônimo
de minha autoria, publicado na revista on-line Circuladô 2016/5, veiculada no site do museu Casa das
Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, São Paulo, Brasil.
6
A última viagem do herói grego Odisseu é também a viagem que, de meu ponto de vis-
ta, Haroldo de Campos realiza mais plenamente até o porto transitório do enfrentamento
do impossível, propulsor de sua própria criação poética. Refiro-me ao poema “Finis-
mundo: a última viagem”, originalmente publicado como livro em 1990, e posterior-
mente incluído no volume Sobre “Finismundo: a última viagem”, de 1997,6 e na co-
letânea de poemas Crisantempo, de 1998.
Odisseu-Ulisses é o símbolo que reúne sua leitura da tradição por um viés do novo,
do inusitado; por uma tradução da tradição que implica a apropriação de sua historici-
dade para que seja recriada.7 Incitado por seu desejo de desafio constante, em busca de
contribuir para a explicitação da gênese da poesia e da renovação de sua própria poética,
Haroldo ilumina a evidência de que o poema se constrói por movimento derivativo de
reinvenção, associando as ideias, as palavras, a sensibilidade estética e a consciência da
linguagem:

[...] no final do ano passado [1989], que foi quando comecei a escrever Finismundo
[...] eu estava fazendo um balanço desses [meus] 40 anos de produção poética. E o
problema que se colocava, àquela altura, que, de resto, se tem colocado através de
toda a minha carreira poética, é aquele problema que está quase na raiz de meu tra-
balho: o enfrentamento constante que o poeta acaba tendo com o fazer poético.
(Campos 1997a: 13)
[...] há uma constante tentativa de se [...] colocar novamente diante da questão do
enfrentamento com a dificuldade de fazer o novo. (Ibid.: 15)

A dificuldade de fazer o novo aponta para a dificuldade de realizar o impossível, tal


como teria intentado Odisseu em sua última viagem, relatada por Dante no canto XXVI
do Inferno, em que busca ultrapassar a fronteira do permitido aos homens. Nas palavras
de Haroldo:

6
Cf. Campos (1997a). O volume contém a transcrição de uma palestra ministrada pelo autor como en-
cerramento do Seminário sobre o Manuscrito, organizado pelo setor de Filologia da Fundação Casa de
Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 1990.
7
Diz Haroldo, em seu artigo “Tradução, ideologia e história”, acerca da tradução criativa: “no caso do
que eu chamo ‘transcriação’, a apropriação da historicidade do texto-fonte pensada como construção
de uma tradição viva é um ato até certo ponto usurpatório, que se rege pelas necessidades do presente
da criação” (Campos 2013: 39).
7
No canto XI da Odisseia, quando Tirésias se pronuncia sobre o fim de Ulisses, a
frase do vaticínio [...], no texto grego, se presta a mais de uma interpretação. Pode-
se entender thánatos eks halós como uma morte para longe doo mar salino, ou co-
mo uma morte que procede do mar salino. Então não estava claro na tradição se
Ulisses morreria por causa do mar, ou seja, no mar, num naufrágio, ou se Ulisses
acabaria morrendo em paz, em Ítaca, longe do mar salino. (Ibid.: 17)

“Finismundo” se gera, segundo o autor, a partir da leitura de um ensaio:

[...] o embrião que me permitiu concretar, realizar o texto do Finismundo foi, cu-
riosamente, [...] um estudo [do crítico D’Arco Silvio Avalle] intitulado “L’ultimo
viaggio d’Ulisse”, onde esse autor italiano se detém sobre o canto XXVI do In-
ferno, canto no qual Dante propõe a solução para um enigma que vinha da tradição
clássica, o enigma do fim de Ulisses. (Ibid.: 17)
[...] Dante está propondo um fim para Ulisses, na carência do fim homérico [...] O
ultrapassar, a travessia das fronteiras permitidas do mundo, que eram as colunas de
Hércules. A busca de alguma coisa que estivesse mais além, busca que correspon-
dia a um afã de curiosidade, um desejo de conhecimento, àquilo que em grego se
chama húbris: essa desmesura orgulhosa com que o ser humano intenta, de certa
maneira, confrontar-se com o impossível, no caso de Ulisses colorida pelo tema da
velhice, porque é o velho Ulisses que vai fazer essa viagem. (Ibid.: 18)

Curiosa mas muito coerentemente, os limites do novo são buscados, por Haroldo, na
recriação da tradição,8 tomada como origem, gênese de seu poema; neste caso, a viagem
refazedora recai sobre o naufrágio do herói grego, cuja gesta ultrapassou e ultrapassa os
limites das gerações:

O risco da criação pensado como um problema de viagem e como um problema de


enfrentamento com o impossível, uma empresa que, se por um lado é punida com

8
O enfrentamento do desafio da poesia e do impossível certamente poderá ser visto como uma húbris (ou
hýbris) do poeta, consubstanciada na apropriação e na recriação da tradição, à semelhança daquela pro-
posta por Haroldo relativamente à tarefa do “tradutor-transpoetizador”: “Transformar, por um átimo, o
original na tradução de sua tradução; reencenar a origem e a originalidade através da ‘plagiotropia’” (“O
que é mais importante: a escrita ou o escrito? Teoria da linguagem em Walter Benjamin”, Campos 2013:
154). Ousadia (re)criadora, desmedida visando ao enfrentamento pleno da tarefa.
8
um naufrágio, por outro é recompensada com os destroços do naufrágio que consti-
tuem o próprio poema. (Ibid.: 15)

Relembre-se o trecho final da primeira parte de “Finismundo”:

Ele foi –
Odisseu.
Não conta a lenda antiga
do Polúmetis o fado demasiado.
Ou se conta
desvaira variando: infinda o fim.
Odisseu foi. Perdeu os companheiros.
À beira-vista
da ínsula ansiada – vendo já
o alcançável Éden ao quase
toque da mão: os deuses conspiraram.
O céu suscita os escarcéus do arcano.
A nave repelida
abisma-se soprada de destino.
Odisseu não aporta.
Efêmeros sinais no torvelinho
acusam-lhe o naufrágio –
instam mas declinam
soçobrados no instante.
Água só. Rasuras.
E o fado esfaimando. Última
Thánatos eks halos
morte que provém do mar salino
húbris.
Odisseu senescente
da glória recusou a pompa fúnebre.
Só um sulco
cicatriza no peito de Poséidon.
Clausurou-se o ponto. O redondo
oceano ressona taciturno.

9
Serena agora o canto convulsivo
o doceamargo pranto das sereias
( ultrassom incaptado a ouvido humano ).

Finismundo é, penso, um texto referencial da produção poética haroldiana em si mesma,


como o é relativamente a suas produções ensaística e tradutória. Quanto à própria poesia
do autor, o poema encarna conceitos que permeiam sua trajetória criadora, como: a sín-
tese (levada ao “minimalismo”, no dizer de Haroldo, na fase da poesia concreta, nos
anos 1950 e 1960); a estruturação inventiva; a riqueza, a precisão e a criação vocabula-
res; a espécie de mescla – única e marcante – de construtivismo e certo barroquismo
peculiar; a utilização de recursos incorporados ao verso e seu sentido, como a espaciali-
zação das linhas; e, ainda, entre outras características notórias, a inserção absolutamente
realizada de sua poesia no contexto da – por ele proposta – “pluralização das poéticas
possíveis”, característica da “poesia pós-utópica”, porque posterior a toda utopia e toda
possibilidade desta, que era própria das vanguardas (em que todos os criadores se enga-
jam num propósito comum),9 caso do movimento da poesia concreta. Isso, não só pela
múltipla face semiótico-poética do texto – marcada pelo emprego do verso num espaço
amplo de significação, no qual os elementos de associação paradigmática se configuram
ao mesmo tempo livre e exatamente, evocando toda a história da poeticidade –, mas
também pela apropriação de aspectos da dicção de Manuel Odorico Mendes (revivido
pelo autor como revalorização de procedimentos que lhe eram característicos),10 bem
como de citações e referências, e da própria mítica do herói grego, cujo fim é mencio-
nado em Homero e recontado em Dante: no próprio poema, portanto, espelha-se o plano
pós-utópico da pluralidade linguística e literária, que abrange a formação vária nos pla-

9
Refiro-me às proposições apresentadas por Haroldo de Campos em seu artigo “Poesia e modernida-
de: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico”, Campos: 1997b: 243–273. Nesse texto,
afirma Haroldo: “Em seu ensaio de totalização, a vanguarda rasura provisoriamente a diferença, à
busca da identidade utópica. Aliena a singularidade de cada poeta ao mesmo de uma poética persegui-
da em comum [...] Sem a perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido. Nessa
acepção, a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não porque seja moderna ou an-
timoderna, mas porque é pós-utópica. Ao projeto totalizador da vanguarda [...] sucede a pluralização
das poéticas possíveis.” A “poesia da presentidade” – conceito afinado com a conceituação de Octavio
Paz de uma poesia do “agora” – envolveria “a admissão de uma ‘história plural’” que incitaria “à
apropriação crítica de uma ‘pluralidade de passados’” (ibid.: 266–269).
10
“Eu queria, na primeira parte do poema, fazer uma homenagem a uma certa tradição [...]: a notável
contribuição tradutória do poeta maranhense Odorico Mendes [...]” (Campos 1997a: 19).
10
nos formal e semântico, incorporando-se a temática de um ensaio alheio voltado à hera-
nça da poesia ocidental.
Em “Finismundo”, duas partes, dois tempos – um mítico, outro secular – dialetizam
a sincronicidade.11 Diz Haroldo:

[...] na primeira parte do meu trabalho, esta situação do herói homérico, eu a trato
em modo sério-estético, ou seja, trabalhando sobretudo com determinadas estrutu-
ras de linguagem que retomam um certo teor épico, utilizando a visualidade do tex-
to, uma herança da poesia concreta, para marcar como que o movimento das ondas,
o balanço do poema [...] E na segunda parte, isso é posto em questão de um modo
derrisório [...] O polúmetis, o poliardiloso, o Odisseu que tem tantos engenhos, vira
Ulisses, um factótum, aquele que faz tudo, uma palavra do latim usada pejorativa-
mente no jargão forense [...] O poema são os salvados no naufrágio. Isto não é dito,
mas isto está exposto no estar-aqui do poema, na sua existência e subsistência. [...]
Esses salvados do naufrágio entre um passado onde, por exemplo, foi possível um
gesto épico, e um presente onde as sereias viraram sirenes e os escolhos, que ame-
drontavam os nautas homéricos no seu desafio ao mar aberto, viraram acidentes de
tráfego [...]. (Campos, 1997a: 22)

Segue-se o trecho final da segunda parte do poema, em que a grandeza heroica se ape-
quena e banaliza no dia-a-dia de uma metrópole contemporânea:

Capitula
( cabeça fria )
tua húbris. Nem sinal
de sereias.
Penúltima – é o máximo a que aspira
tua penúria de última
Tule. Um postal do Éden:
com isso te contentas.

11
O conceito de “sincronicidade” permeia a proposta (plagiotrópica) do autor relativa a suas obras
criativa, tradutória e ensaística. No dizer de Márcio Seligmann-Silva, “Haroldo de Campos construiu a
sua concepção não-linear da história, da tradução como corte sincrônico e criador de nexos históricos,
com base num modelo intertextual tanto da literatura como da história” (Seligmann-Silva 2005: 200).

11
Açuladas sirenes
cortam teu coração cotidiano.
(Campos, 1997a: 44)

Diferentes tratamentos poéticos presentificam, em relação complementar que configura


um conjunto construído de modo intemporal (porque feito de camadas sobrepostas de
tempo e de texto, convertido este em índice sintético de um itinerário poético), o jogo de
refeitura do eterno episódio odisseico-ulissíaco, que deverá sobreviver às possíveis no-
vas releituras e recriações da morte do herói engenhoso.
Tal poema do autor representa modelarmente o processo de apropriação recriadora
e revivificadora da tradição poética, que assume o risco da criação como enfrentamento
do impossível.
Ao tomar o “movimento plagiotrópico” como seu modo de entender e produzir lite-
ratura, Haroldo de Campos instaura, com a aura da plagiotropia, um conceito cujo al-
cance se estende à universalidade e à intemporalidade da (re)criação literária.

Bibliografia

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Ouro Preto.
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Letras.
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Seligmann-Silva, Márcio (2005): O Local da Diferença. São Paulo: Ed. 34.

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13

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