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Resenhas de Traduções 265

ção, de Lourdes Santos Machado,


Ensaio sobre a Origem das conta com uma introdução de Paul
Línguas, de Jean-Jacques Arbousse-Bastide e notas de
Rousseau. Tradução de Fulvia M. Lourival Gomes Machado e foi
L. Moretto. Campinas: Editora da reproduzida em edição de 1978 na
UNICAMP, 1998, 198 pp. Col. Os Pensadores, da Abril Cul-
tural. Ao que tudo indica, esta
mesma tradução foi reeditada al-
A última tradução para a lín- gumas vezes, primeiro pela Abril
gua portuguesa do Essai sur Cultural e depois, já na década de
l’origine des langues de Jean- noventa, pela Nova Cultural. Resta
Jacques Rousseau, de 1998, apa- dizer que o leitor brasileiro pode
rece em uma edição de 198 pági- contar ainda com uma edição por-
nas, 102 das quais dedicadas a uma tuguesa, de 1981 (Lisboa: Edito-
apresentação, um ensaio, de Ben- rial Estampa). Todas as edições
to Prado Jr.: “A força da voz e a brasileiras do Essai aparecem jun-
violência das coisas”. Esta apre- to a outros textos de Rousseau (Du
sentação, que não trata em abso- Contrat Social, Discours sur
luto de questões filológicas, é lei- l’origine et les fondements de
tura para não-leigos (lingüistas, l’inégalité parmi les hommes,
filósofos, literatos) e tenta circuns- Discours sur les sciences et les
crever, no sistema de pensamento arts). A primeira vez que este tex-
do filósofo das luzes, o lugar, o to conhece edição individual é nes-
estatuto e a originalidade da sua ta tradução de Fulvia M. L.
teoria da linguagem. A ausência Moretto.
de um comentário filológico, de- A apresentação de Bento Pra-
sejável num texto como este, é sa- do Jr. que, segundo o próprio au-
nada, em parte, remetendo o lei- tor, também (grifo do autor) pode
tor a edições críticas em língua ser lida como uma introdução ao
estrangeira (francês e italiano). Essai é amplamente anotada, en-
Também é lembrada, para este efei- quanto o texto de Rousseau em si
to, a primeira tradução brasileira conta apenas com as notas origi-
do texto (1958), incluída nas nais, o que pode dificultar a leitu-
Obras Completas de Rousseau, que ra. Em certas passagens, o texto
ficou inacabada, pela extinta Edi- necessita de notas explicativas (cf.
tora Globo. Esta primeira tradu- por exemplo página 114). Certo,
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não é uma edição crítica, mas o a complexidade dos temas ali abor-
leitor não dispõe nem da referên- dados e o estilo acadêmico do tex-
cia do texto original a partir do to têm um efeito contrário,
qual se fez a tradução (razão pela desencorajando o leitor que se vê
qual escolhemos duas edições face a face com Rousseau e sua
francesas confiáveis para as neces- teoria da gênese das línguas hu-
sárias comparações: ROUSSEAU, manas sem nenhuma contextua-
J.-J. (1970) Essai sur l’Origine des lização temática ou histórica.
Langues. Bordeaux: Ducros e O Essai sur l’origine des
ROUSSEAU, J.-J. (1983) Essai langues é um texto polêmico, cuja
sur l’Origine des Langues: publicação póstuma data de 1781.
chapitres I a IX e chapitre XX. Ignora-se a data exata de sua reda-
Paris: Hatier). Ora, sendo esta a ção e a importância que lhe atri-
primeira edição individual do tex- buía o autor. Não sem polêmica,
to setecentista em língua portugue- especialistas situam a data de re-
sa, iniciativa que supõe um inte- dação definitiva do Essai entre
resse particular e um desejo legíti- 1753 e 1756. Da pena do próprio
mo de tornar este texto de Rousseau, sabe-se que o Essai nas-
Rousseau mais conhecido entre nós, ce esboçado no famoso Discours
além da especificidade do público sur l’origine et les fondements de
a que se destina, a ausência de no- l’inégalité parmi les hommes do
tas críticas é lamentável. Outras qual será depois excluído (“trop
particularidades desta edição cha- long et hors de place”), servindo,
mam a atenção do leitor atento: mais tarde, como ponto de partida
na capa, figura apenas o título, para um texto independente. Em
sem o subtítulo que o acompanha um projeto de prefácio para um
desde sempre. Já a apresentação de livro que agruparia o Essai e ou-
Bento Prado Jr. divide as atenções tros escritos, Rousseau lembra as
com o próprio Essai, merecendo circunstâncias de composição do
destaque na segunda folha de ros- texto, suas dúvidas quanto a
to. A primeira impressão registra publicá-lo separadamente ou não
dois textos independentes, de mes- e sua intenção de utilizá-lo como
ma relevância para esta edição es- uma resposta às críticas de J. -Ph.
pecífica. Mas o texto de Prado Jr. Rameau com relação aos verbetes
pretende ser uma apresentação ao sobre música por ele redigidos para
texto de Rousseau. Apesar disso, a Enciclopédia (cf. edição crítica
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do Essai de 1970, com prefácio e medida, à hoje chamada função


notas de Charles Porset e edição conativa da linguagem). Condillac
de G. Ducros, Bordeaux). Não dotava essas inflexões de variações
obstante, os especialistas ainda não musicais de timbre e altura.
chegaram a um acordo sobre sua Rousseau, como Condillac, defen-
gênese. de a hipótese de que as primeiras
Para Rousseau, a aparição da línguas tenham soado como melo-
língua se dá com o desejo de co- dias. É esta gênese, o caminho da
municar a um outro seu pensamen- linguagem-música à linguagem
to. E sua originalidade está em não articulada, forçado pelas socieda-
ser a necessidade a força que im- des tornadas complexas, que
pulsiona esta aparição. Sua lingua- Rousseau nos faz percorrer em seu
gem não tem fins utilitários, mas Essai.
nasce das paixões: não foi a fome Mas uma análise deste texto
nem a sede mas o amor, o ódio, a tornado célebre tardiamente não é
piedade, a cólera que lhes arran- nosso objetivo aqui. Penso aqui,
caram (dos homens) as primeiras principalmente, em Derrida e no
vozes (1998: 117). Antes de se- seu já classico De la
rem exemplos acabados de um sis- grammatologie de 1967 e no não
tema lógico-gramatical (como quer menos famoso Les mots et les
a lingüística “científica” desde a choses de Foulcaut (1966). Levi-
Idade Média), as línguas foram Strauss (1962) também inspira-se
cantantes e apaixonadas. Daí a no Essai para o texto J.-J.
identidade colocada entre fala e Rousseau, fondateur de sciences de
música e a razão de o Essai tam- l’homme. Esta resenha propõe-se
bém ser um tratado sobre a melo- apenas ao modesto exercício de
dia. A fonte de inspiração primei- analisar alguns pontos da tradução
ra de Rousseau foi Condillac, com realizada por Moretto que, pela
seu Essai sur l’origine des complexidade do tema e a origi-
connaissances humaines, no qual nalidade das idéias de Rousseau
defendia a idéia de que as primei- (apesar de mais de dois séculos nos
ras falas seriam constituídas por separarem de sua primeira edição),
inflexões vocais orientadas para a longe está de uma empreitada fácil.
ação: advertência, pedidos de aju- O Essai é composto de vinte
da, gritos de dor ou felicidade capítulos, em sua maioria bastan-
(algo que equivaleria, em certa te pequenos (alguns comportam
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apenas dois ou três parágrafos), tradução de Moretto, que atraves-


cada um abordando um tópico es- sa o texto, e não só por isso é im-
pecífico relacionado ao assunto portante (o item lexical em ques-
central. Alguns são claramente ar- tão é fundamental para o entendi-
ticulados, outros podem ser lidos mento de tópicos centrais, cf. ca-
com alguma independência. pítulos IV, V e VII): traduzir voix
Em termos de seleção lexical, (voz, vozes) por “vogais”. Esta
o todo é bastante coerente, res- escolha acaba comprometendo sen-
guardando um certo estilo precio- sivelmente a compreensão das idéi-
so adequado ao original. Muitos as do autor:
leitores não poderão dispensar o Quiconque étudiera l’histoire
dicionário ao encontrarem termos et le progrès des langues verra
como “lustros”, “astrágalo”, que plus les voix deviennent
“efígie” ou “messe”, o que, neste monotones plus les consonnes
contexto, não é propriamente um se multiplient, et qu’aux
defeito. Em outras passagens, o accens qui s’effacent, aux
literalismo desvirtua o sentido do quantités qui s’egalisent, on
texto original. É o caso de le génie supplée par des combinaisons
des langues (págs. 41, 67) tradu- grammaticales et par des
zido por “o gênio das línguas” nouvelles articulations [...]
(págs. 116, 128) em lugar de “o (pág. 55)
espírito das línguas” ou “o caráter
das línguas”. Há ainda la durée des Quem quer que estude a histó-
peuples (pág. 61), traduzido por ria e o progresso das línguas
“a duração dos povos” (pág. 126) verá que, quanto mais as vogais
quando “a antigüidade dos povos” se tornam monótonas, mais as
consoantes multiplicam-se e que
seria mais adequado. Do ponto de
os acentos que desaparecem, as
vista semântico, encontramos al-
quantidades que se igualam são
gumas combinações insólitas
substituídas por combinações
como a escolha de traduzir “une gramaticais e por novas articu-
autre émotion” (pág 35) por “uma lações [...] (pág. 123)
emoção bem melhor” (pág. 113).
Tais pontos não chegam, no en- Quando Rousseau quer falar de
tanto, a comprometer o todo. Há, vogais em seu texto, ele utiliza o
porém, ainda em relação à seleção termo voyelle sem nenhuma am-
vocabular, uma característica da bigüidade. Em algumas passagens
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o texto original não deixa dúvi- sigamos delinear a lógica desse sis-
das, aparecendo inclusive os dois tema de escolhas. Muito embora a
termos, voix e voyelles, num mes- tradução de voix não seja, por ve-
mo parágrafo ou frase: zes, transparente ou fácil, pela
Comme les voix naturelles
própria complexidade do tema tra-
sont inarticulées, les mots tado (em algumas passagens, por
auraient peu d’articulations; exemplo, talvez fosse mais apro-
quelques consonnes interposées priado traduzir o termo por “fala”)
effaçant l’hiatus des voyelles surpreende a inconsistência das
suffiraient pour les rendre escolhas e a alternância surpreen-
coulantes et faciles ‘a dente entre “vozes” e “vogais”
prononcer. En revanche les para traduzir o mesmo termo. No
sons seraient très variés, et capítulo V, por exemplo,
la diversité des accents intitulado “Da Escrita”, voix é tra-
multiplieraient les mêmes duzido por “vogais” enquanto
voix. (pág 51) organe (“órgão”, aqui fazendo
E mesmo em trechos como referência inequívoca aos órgãos
este a tradutora escolheu utilizar fonadores) é traduzido por “voz”.
O texto de Rousseau, não obstante,
o termo “vogais”, tanto para
é claro: trata-se aqui da maior ou
voix quanto para voyelles,
menor sensibilidade do falante em
indistintamente:
perceber as possíveis nuanças no
Como as vogais naturais são chamado espaço vocálico, diferen-
inarticuladas, as palavras teri- ças essas incorporadas
am poucas articulações; algu- fonologicamente ou não pelas lín-
mas consoantes interpostas, eli- guas, com conseqüências para o
minando o hiato das vogais, bas- estabelecimento da escrita. E a sen-
tariam para torná-las correntes sibilidade do órgão fonador será
e fáceis de pronunciar. Em com- maior ou menor em função da uti-
pensação, os sons seriam muito lização ou neutralização de tais
variados e a diversidade dos
diferenças em sua língua.
acentos multiplicaria as mes-
Do ponto de vista sintático, al-
mas vogais; (pág. 121)
gumas passagens mereceriam uma
Em outros momentos, voix re- revisão mais cuidadosa, principal-
cupera seus correspondentes mais mente no que concerne à tradução
óbvios (voz, vozes), sem que con- de pronomes. De fato, construções
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anafóricas cujos referentes são mal norado na tradução e, por alguma


recuperados acabam por truncar razão, o verbo compter (“contar”)
períodos inteiros. Apenas dois foi traduzido por “possuir”, alte-
exemplos: rando consideravelmente o senti-
Ceux qui ne comptent que cinq
do original da passagem. Arrisco
voyelles se trompent fort: les aqui uma explicação: não recupe-
Grecs en écrivaient sept, les rando o referente de en na expres-
premiers Romains six, Mrs. são en comptent, a tradutora pre-
de Port-Royal en comptent feriu traduzi-lo por “contam com”,
dix, M. Duclos dix-sept, e je que em português pode ser equi-
ne doute pas qu’on en trouvât valente a “possuem”. Sabemos que
beaucoup davantage [...] (pág. Mrs. de Port-Royal, ou seja A.
65) Arnauld e C. Lancelot, autores da
famosa Grammaire générale et
Os que possuem apenas cinco raisonnée (1660), mais conhecida
vogais se enganam muito: os como Grammaire de Port-Royal,
gregos escreviam sete, os pri- e seu comentador, Charles Pinot
meiros romanos, seis: os Se- Duclos, não poderiam “possuir”
nhores de Port-Royal possuí- vogais, senão contá-las ou atestá-
am dez, o Sr. Duclos, 17; e las. Dois outros exemplos para
não duvido de que não se pu-
encerrarmos nosso exame desta
desse encontrar ainda mais
tradução:
[...] (pág. 127)
En devenant fugitif Caïn fut
Nesta passagem, o pronome en
bien forcé d’abandonner
tem como referente o termo l’agriculture; la vie errante des
voyelles imediatamente anterior. A descendants de Noé dut aussi
elipse do verbo, um recurso per- la leur faire oublier; (pág 97)
feitamente normal em francês as-
sim como em português, torna tam- Ao tornar-se fugitivo, Caim
bém elíptico o pronome que o foi de fato forçado a abando-
acompanha, como o testemunha a nar a agricultura; a vida er-
construção: les premiers Romains rante dos descendentes de
six. No trecho seguinte (Mrs. de Noé também deve ter-lhe feito
Port-Royal en comptent dix, M. esquecer. (pág 142)
Duclos dix-sept), no entanto, o en O exemplo acima comprova o
refere-se a voyelles, o que foi ig- quanto a recuperação equivocada
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do referente do pronome leur - no dentes de Noé deve também ter-


caso, os descendentes de Noé e não lhes feito esquecê-la”.
Caim, como quis a tradutora – Enfim, como encerrar esta re-
compromete todo o sentido da pas- senha que acabou por levantar pro-
sagem. Além disso, a não-consi- blemas importantes na tradução
deração do pronome la, referin- examinada? Não há dúvida de que
do-se a agricultura, acaba por tor- a tradução de textos fundamentais,
nar a tradução sem sentido. O tre- como este de Rousseau, merece
cho toma seu sentido, como não todo o estímulo de especialistas e
poderia deixar de ser, em relação leitores que, por razões diversas,
ao contexto maior do parágrafo no não têm acesso a edições em lín-
qual se insere, sendo um argumen- gua estrangeira. Reconhecendo o
to a favor do que Rousseau tenta valor e a importância do trabalho
provar: que os primeiros homens de tradução já realizado, espera-
não foram agricultores. Assim, mos que os problemas aqui apon-
traduzindo adequadamente os pro- tados já tenham sido alvo de revi-
nomes e seus referentes teríamos: são, para o bem de futuras edições.
“[...] a vida errante dos descen- Claudia Borges de Faveri
UFSC

tério utilizado para a seleção de


autores e dos trabalhos a serem
O médico e o monstro, de Robert
editados é, de acordo com a edito-
Louis Stevenson, tradução de
ra, aquele “já estabelecido pela tra-
Pietro Nassetti. São Paulo: Martin
dição e pela crítica.” (p. 10). O
Claret, 2001, 127 pp.
conto de Robert Louis Stevenson
foi selecionado devido à sua “pro-
sa rica e sutil [que] dá à história
A proposta da editora Martin um profundo sentido de beleza li-
Claret é oferecer aos leitores bra- terária e tensão.” (p. 11) O
sileiros as produções literárias mais enfoque dessa resenha será concen-
significativas de autores reconhe- trado, então, na apreciação destas
cidos, daí o nome da coleção “A características no texto traduzido.
obra-prima de cada autor”. O cri-

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