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< ok-cao Debates

Diiigiilii por S. Guinsburg


« .MIM-HHI Hdítorial: Anatol Rosenfeld (1912-1973), Anita No-
vinsky, Aracy Amaral, Augusto de Campos, Bóris Schnaider-
inan, Carlos Guilherme Mota, Celso, Lafer, Dante Moreira Leite,
( Ü t a K. Guinsburg, Haroldo de Campos, Leyla Perrone-Moisés,
l.úcio Gomes Machado, Maria de Lourdes Santos Machado,
Modesto Carone Netto, P. E. Saltes Gomes, Regina Schnai-
derman, Robert N. V. C. Nicol, Rosa R. Krausz, Sábato Ma-
naldi, Sérgio Miceli, Willi Bolle e Zulmira Ribeiro Tavares.

SBD-FFLCH-USP

130544

jean starobinski
AS PALAVRAS
SOB AS PALAVRAS
os anagramas de ferdinand de saussure

Kquipe de realização — Tradução: Carlos Vogt; Revisão: Mary


Amazonas Leite de Barros; Produção: Lúcio Gomes Machado; ^%£ EDITORA PERSPECTIVA
Capa: Moysés Baumstein.
m
PREFÁCIO
Ferdinand de Saussure começou muito provavel-
mente sua pesquisa sobre os anagramas em 1906, e
levou-a adiante até os primeiros meses de 1909. Gastou
um tempo considerável, a julgar pelo número de cadernos
que dedicou a este problema. É verdade que esses
cadernos são de espessura bastante variável, e que suas
páginas não estão todas preenchidas. A soma de tra-
balho é, assim mesmo, impressionante.
Esses cadernos, classificados por Robert Godel, en-
contram-se na Biblioteca Pública de Genebra. Estão
distribuídos em oito caixas, cada uma designada por
um registro diferente:
Ms. f r. 3962. Versos saturninos (17 cadernos e um
maço de papéis).
M.v. /r 3963. Anagramas: Homero (24 cadernos). remos, a não ser excepcionalmente, dos termos rasu-
Mx. Ir. 3964. Anagramas: Virgílio {19 cadernos), rados.
Lucrécio (3 cadernos), Sêneca e Horácio As pesquisas sobre os Niebelungen, em que Saus-
(l caderno), Ovídio (3 cadernos). sure esforçou-se para encontrar a prova de que os per-
M x Ir. 3965. Anagramas: autores latinos (12 cader- sonagens e os acontecimentos lendários tinham funda-
nos). mentos nos personagens e acontecimentos históricos
M x. Ir. 3966. Anagramas: Carmina epigraphica (12 (principalmente nas dinastias dos francos e dos borgui-
cadernos). nhões), ocupam duas caixas catalogadas Ms. fr. 3958
M x. fr. 3967. Hipogramas: Ângelo Policiano (77 ca- (8 cadernos) e Ms. fr. 3959 (10 cadernos e numerosas
dernos). folhas distribuídas em dois envelopes). Estas pesquisas
Ms. Ir. 3968. Hipogramas: Traduções de Thomas continuavam em 1910, como atesta a data (out. 1910)
Johnson (13 cadernos). que figura excepcionalmente na etiqueta de um destes
Ms. jr. 3969. Hipogramas: Rosati, Pascoli (quadros cadernos. Delas extraímos a maior parte das reflexões
escritos em grandes folhas). teóricas de caráter geral: elas permitem captar a ana-
logia surpreendente que marca as duas pesquisas onde
Podem ainda ser acrescentados 26 cadernos dedi- Saussure, a partir de textos poéticos, se esforçou por
cados à métrica védica (Ms. fr. 3960 e 3961). estabelecer a intervenção de palavras, de nomes ou de
fatos antecedentes. Caberia perguntar se as dificuldades
Para os fragmentos que comentamos, não nos res- encontradas na exploração da longa diacronia da lenda,
tringimos a fazer uma descrição paleográfica de nossos e curta diacronia da composição anagramática, não con-
documentos. Só mencionamos a numeração e a pagi- tribuíram, como reação, para incitar Saussure mais reso-
nação dos cadernos quando as encontramos. Conten- lutamente ao estudo dos aspectos sincrônicos da língua.
lamo-nos em assinalar o título do caderno e, de maneira Convém aqui assinalar que o Cours de linguisíique Gê-
sumária, o aspecto da capa, de modo a facilitar a tarefa nérale, exposto entre 1907 e 1911, é em boa parte
de localização para os futuros pesquisadores. posterior à pesquisa sobre os anagramas.
O essencial desses cadernos é ocupado por exercí- O presente volume, acrescido de vários textos iné-
cios de decifração. Citamos aqui um vaticínio saturnino, ditos de Saussure, retoma e reorganiza a substância de
duas passagens de Lucrécio, um texto de Sêneca, um cinco de nossos artigos:
poema neolatino de Policiano, tais como aparecem nos
cadernos de Saussure, com a análise fônica que os l.° Lês Anagrammes de Ferdinand de Saussure. Mer-
acompanha. O que representa tão-somente uma pequena cure de France, fevereiro de 1964, pp. 243-262.
parte das leituras anagramáticas: podem, entretanto, 2.° Lês mots sous lês mots. To honor Roman Jakob-
servir de exemplo para todas as outras. son. Haia, Paris, Mouton, 1967, pp. 1906-1917.
A exposição teórica tomou uma forma acabada no 3.° Lê texte dans \s texte. Tel Quel, n. 37, pp. 3-33.
l'remier cahier à lire préliminairement (Ms. fr. 3963).
Klü poderia ter sido preparado visando a uma publi- 4.° "Lê nom cachê". Uanalyse du langage théologique.
aição, — à qual Ferdinand de Saussure preferiu re- Lê nom de Dieu. Paris, Aubier, 1969, pp. 55-70
nunciar. Outros textos, de caráter muito provisório e 5.° La puissance d'Aphrodite et lê mensonge dês cou-
l'iri|üentemente cheios de rasuras, estão dispersos no lisses. Ferdinand de Saussure lecteur de Lucrèce.
c o n j u n t o dos cadernos. Ocupam freqüentemente as Change, 6, Paris, 1970, pp. 91-118.
|i.i)'.iii;is de proteção do início ou do fim. O grande inte-
irssc desses textos nos incitou a publicá-los em sua
i|iusf totalidade, incluindo mesmo fragmentos redigidos
.r. |ncss;is. Para não complicar a leitura, não nos ocupa-
AS PALAVRAS SOB AS PALAVRAS
Numa folha rasgada, não datada, encontra-se esta
nota de Ferdinand. de Saussure:

absolutamente incompreensível se eu não fosse obrigado a con-


fessar-lhe que tenho um horror doentio pela pena, e que esta
redação me causa um suplício inimaginável, completamente des-
proporcional à importância do trabalho.
Para mim, quando se trata de lingüística, isto é acrescido
pslo fato de que toda teoria clara, quanto mais clara for, mais
inexprimível em lingüística ela se torna, porque acredito que não
exista um só termo nesta ciência que seja fundado sobre uma
idéia clara e que assim, entre o começo e o fim de uma frase,
somos cinco ou seis vezes tentados a refazê-la 1 .

(1) Texto interrompido, Ms. f r. 3957/2: Rascunhos de cartas de


F. de Saussure.

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f. i>rrci.w guardar na memória estas confissões e tulada a realidade da língua, evidencia-se que todos os
<• v/i/ Irnxe interrompida, no momento de percorrer os discursos se constróem a partir da língua e de seus ele-
i iiilernox da pesquisa dos anagramas, naquilo que ofe- mentos materiais esparsos. . . "Assegurar um elo entre
n-tfin ile trabalhoso e inacabado. Saussure sente a cla- dois conceitos que se apresentam revestidos da forma
i <•;.<! excapar-lhe vendo-a, no entanto, oferecer-se tão lingüística", é um ato que só pode ser concluído pela
l>ru\ima. A evidência não é suficiente, é preciso ainda utilização de um material. Ê um emprego ao mesmo
lonniilar-lhe, adeauadamente, a lei. Ora, a Lingüística tempo livre e regrado. Um "jogo" que tem valor de
nmi l/ic parece ainda possuir sua verdadeira linguagem. "operação".
(Stiuxxure ia empenhar-se em dar-lhe uma no Cours que Ê preciso, pois, procurar as leis constitutivas da
nprexentaria a seus alunos entre 1907 e 1911. Mas sabe- utilização. A passagem dos "conceitos isolados" ao dis-
\c não ter sido ele mesmo quem deu forma de livro a curso não é apenas interessante em si mesma: ê o modelo
xeux cursos.) que permite compreender outras atualizações. Quando
O que é mais evidente, por exemplo, que o discurso? Saussure reflete sobre a evolução da lenda, aí descobre
Mas definir o discurso é uma tarefa árdua. Saussure, um problema de elo e de organização a partir de mate-
cm um texto isolado, apresenta assim o problema: riais primitivos. Estes são então designados pelo termo
A língua só é criada com vistas ao discurso, mas o que
símbolo. Abrindo um de seus cadernos inéditos que
separará o discurso da língua ou o que, num dado momento, exploram a lenda dos Niebelungen, encontra-se esta nota,
permitirá dizer que a língua entra em ação como discurso? muito importante mesmo em suas imperfeições e incer-
Conceitos variados estão aí disponíveis na língua (isto é, tezas:
revestidos de uma forma lingüística) tais como boeuf, lac, ciei,
rouf>e, triste, cinq, fendre, voir. Em que momento, ou em — A lenda se compõe de uma série de símbolos com um
virtude de qual operação, de qual jogo que se estabelece entre sentido a ser especificado.
elas, de quais condições, formarão estes conceitos o discurso?
A seqüência destas palavras, por mais rica que seja pelas — Estes símbolos, sem que disso suspeitem, são subme-
idéias que evoca, não indicará jamais a um ser humano que tidos às mesmas vicissitudes e às mesmas leis que
um outro indivíduo ao pronunciá-las, queira significar-lhe alguma todas as outras séries de símbolos, por exemplo, os
ioisa. O que é preciso para que tenhamos a idéia de que que- símbolos que são as palavras da língua.
remos significar alguma coisa, usando termos que estão dis- — Eles todos fazem parte da semiologia.
poníveis na língua? £ um problema idêntico ao de saber o — Não há método algum para supor que o símbolo deva
que é o discurso, e à primeira vista a resposta é simples: o permanecer fixo, nem que deva variar indefinidamente,
discurso consiste, ainda que de modo rudimentar ou por cami- ele deve provavelmente variar em certos limites.
nhos que ignoramos, em afirmar um elo entre dois dos con- — A identidade de um símbolo não pode nunca ser fixada
ceitos que se apresentam revestidos de forma lingüística, en- desde o momento em que ele é símbolo, isto é, derra-
i|u;mto a língua previamente apenas realiza conceitos isolados, mado na massa social que lhe fixa a cada instante o
i|iie esperam ser relacionados entre si para que haja signifi- valor.
i-nção de pensamento2.
Assim a runa Y é um "símbolo".
Sua IDENTIDADE parece uma coisa tão tangível e quase
Mas o que é a língua separada do discurso? O ridícula para melhor assegurá-la consiste nisto3: ela tem a
anterior ao discurso é realmente a língua, ou não seria forma Y; ela se lê Z; ela é a oitava letra do alfabeto; ela é,
ti<• preferência um discurso antecedente? A língua, sim- misticamente, chamada zann, enfim algumas vezes ela é citada
l>lex repertório de conceitos isolados, separada do dis- como a primeira da palavra.
i-urxo (da fala) é uma abstração. A audácia de Saussure No fim de algum tempo:... ela é a. décima do alfabeto...
mas aqui ELA já começa a supor uma unidade que
t tnisixtc em tratar esta abstração como um material
Onde está agora a identidade? Geralmente respondemos
t «inretii. uma matéria-prima. Não teria havido língua com um sorriso, como se fosse uma coisa efetivamente curiosa,
/'</;•</ <> lingüista — se os homens não tivessem ante- sem observar o alcance filosófico da coisa, que não é nada
i n >t mente discursado. Mas no momento em que é pos- menos que dizer que todo símbolo, uma vez posto em circulação

(: i Mi ti Caderno escolar, sem título. (3) Frase incoerente. Citação textual.

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oiii. i i r i i l i i i m símbolo existe senão porque é posto em cir- graus. Ver se, sim ou não, uma outra concentração5 histórica,
i iilavao c neste instante mesmo absolutamente incapaz de diferente da que tentamos, seria também capaz de explicar a
. l i / r i nu que consistirá sua identidade no instante seguinte. lenda em seus elementos, é uma prova extremamente interes-
l (k-iilio deste espírito geral que abordamos qualquer pro- sante para a nossa tese, uma dessas provas que, na ausência de
i i l r m a de lenda, porque cada um dos personagens é um símbolo qualquer demonstração rigorosa possível em semelhante domí-
.Io i | n . i l se pode variar, — exatamente como para a runa — a) nio, pode passar pelo menos por um gênero de verificação
i i nome; h) a posição diante dos outros; c) o caráter; d) natural e não negligenciável6.
.1 liuicão, os atos. Se um nome é transposto, pode ocorrer que
uma parlo dos atos sejam transpostos, e reciprocamente, ou que N.B. Entre todas as coisas mutáveis, ou sujeitas a modificação,
i i u l i i o ilrama mude por um acidente deste gênero. que a lenda contém, se encontra a Título Idêntico o motivo das
ações. Assim como, devido ao fato de o motivo permanecer o
Jíntão, em princípio, deveríamos simplesmente renunciar a mesmo, vemos muitas vezes mudar a natureza do ato, — por
piiisscKiiir, visto que a soma das modificações não é calculável. exemplo.
l)i- fato, vemos que se pode relativamente esperar prosseguir,
mesmo com grandes intervalos de tempo e de distância4. Os dois gêneros de modificações históricas da lenda que
podem provavelmente ser considerados como os mais difíceis de
se admitir são:
O que aqui é sublinha/do por Saussure é a maneira
[>ela qual a relação (a colocação em\ circulação, a imer- 1.° A substituição de nomes.
são na "massa social") torna relativa a identidade dos 2.° Permanecendo uma ação a mesma, o deslocamento
de seu motivo (ou f i m ) .
elementos atualizados. Os personagens históricos, pre-
sume Saussure, foram arrebatados pela lenda. Em se- — A todo instante, por falta de memória dos precedentes
ou por outra razão, o poeta que recolhe a lenda só
guida, as narrativas lendárias se transmitem e se trans- guarda desta ou daquela cena os acessórios no sentido
formam. No agenciamenio narrativo, o símbolo-matéria mais propriamente teatral do termo; quando os atores
não é somente utilizado, ele sofre uma modificação. deixaram a cena, permanece este ou aquele objeto, uma
Pois o agenciamenio é modificáve}, e torna-se, ele pró- flor no chão, um [ ]7 que permanece na
prio, modificante. Basta fazer variar as relações "exter- memória, e que diz mais ou menos o que se passou,
mas que, sendo somente parcial, deixa margem a
nas" do material primitivo para que os caracteres apa- — Sobretudo não se deve .jamais desconfiar, salvo caso
rentemente "intrínsecos" se tornem diferentes. A iden- particular, da intenção do autor ou do narrador de
tidade do símbolo se perde na vida diacrônica da lenda. seguir aquilo que era dito, antes dele, na medida em
A relação, que Saussure presume existir entre os que isto é possível, e é neste sentido que uma profunda
tendência conservadora reina em todo o mundo da
acontecimentos históricos e sua transposição lendária lenda.
/ircfigura aquilo que ele suporá existir entre o hipo- Mas Imaginação sobre lacuna de memória é o principal
xrama (ou palavra-íema) e o texto poética desenvolvido. fator de mudança com vontade de permanecer de outro modo
/•,'/« ambos os casos a pesquisa se orienta não para uma na tradição.
faculdade psíquica geradora (a imaginação) mas para um No domínio lingüístico, vê-se florescer exatamente do
lato (verbal, histórico) antecedente: mesmo modo toda uma categoria de formações engenhosas pro-
vocadas pela falta de memória. Trata-se de domínios lexico-
gráficos como aqueles dos nomes de plantas, nomes de minerais,
Ninguém pensa em supor uma perfeita coincidência da nomes de bichinhos: conhecidos somente [ ]8 sendo
Iriula com a história, ainda que tivéssemos as mais seguras pro- apenas parcialmente aprendidos pela massa dos falantes e então,
vas de que foi um grupo definido de acontecimentos que lhe sem que o nome deixe de ser transmitido, é submetido a uma
ilcii origem. O que quer que se faça, e por evidência, somente lei de transmissão completamente diferente daquela da palavra
i crio iirau de aproximação pode aqui intervir como decisivo comum, e que resulta nas séries de etimologias populares com-
r convincente. Mas vale muito a pena examinar a escala destes pacttU^,

Ml Ms. fr. 3958/4. Uma folha destacada (Ms. fr. 3959/11) resu- (M Esla palavra, — concentration (no original) substitui plextts,
i n l i í i n» cniuliLsõcs que Saussure acreditará poder tirar de suas pesquisas: t iscada.
"IIIIMII nflimiicilo [...] é particular e precisa, e sem sistema. Um livro (6) Ms. fr. 3958/1. Caderno escolar intitulado Niebelungen.
• i i i i i r i u l u MI r., r u m a s de Teseu, e somente as aventuras de Teseu, foi (7) Espaço em branco no texto.
n linir ih um ilns iirandes ramos da lenda heróica "germana". O resto (8) Espaço em branco no texto.
• ' • ' ' li iiiln <• ilr uma outra fonte, esta puramente germãnjca, e até (<» Ms. fr. 3959/3. Caderno escolar intitulado TptorctK II.
iilitiirlftmtnli ttrmânlca pelos próprios acontecimentos que relata".

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Uma lei de indeterminação formula-se num frag- duplicação consciente e calculada. Uma carta de 14 de
mento mais elaborado, que insiste particularmente na julho de 1906 anuncia com alegria a constatação sur-
aproximação que se deve estabelecer entre a vida da preendente.
língua e a vida da lenda.
Aquilo que faz a nobreza da lenda como a da língua é que, Vufflens, 14 de julho de 1906.
condenadas uma e outra a se servir apenas de elementos colo- Caro Senhor
cados diante delas e com um sentido qualquer, elas os reúnem
e tiram deles continuamente um sentido novo. Uma séria lei Obrigado por suas linhas sobre o que outro dia lhe escre-
governa, e nela seria bom pensar antes de concluir pela falsi- via. Antes mesmo de responder às observações muito justas
dade desta concepção da lenda: não vemos, em parte alguma, que o senhor faz, posso lhe anunciar que obtive êxito em todos
florescer algo que não seja a combinação de elementos inertes, os sentidos. Passei dois meses a interrogar o monstro e a operar
e não vemos em parte alguma que a matéria seja outra coisa apenas às cegas contra ele, mas há três dias que só ando a
senão o alimento contínuo que o pensamento digere, ordena, tiros de artilharia pesada. Tudo o que eu escrevia sobre o
comanda, mas sem poder dele prescindir. metro datílico (ou melhor, espondaico) subsiste, mas agora é
Imaginar que uma lenda começa por um sentido, que ela pela Aliteração que cheguei a obter a chave do Saturnino, mais
teve desde sua primeira origem o sentido que ela tem, ou complicada do que parecia.
melhor, imaginar que ela não pôde ter um outro sentido qual- Todo fenômeno da aliteração (e também das rimas) que
quer, é uma operação que me espanta. Ela parece realmente se observava no Saturnino é tão-somente uma parte insignifi-
supor que através dos séculos jamais foram transmitidos ele- cante de um fenômeno mais geral ou melhor, absolutamente
mentos materiais sobre esta lenda; pois, dados cinco ou seis wtal. A totalidade das sílabas de cada verso Saturnino obedece
elementos materiais, o sentido mudará no espaço de alguns a uma lei de aliteração, da primeira à última sílaba; e sem que
minutos se eu pedir, a cinco 11ou seis pessoas trabalhando sepa- uma única consoante, — nem uma única vogai a mais, — nem
radamente para combiná-los . uma única quantidade de vogai a mais, seja escrupulosamente
levada em conta. O resultado é tão surpreendente que somos
Ê preciso pois considerar o sentido como um pro- levados a nos perguntar, antes de tudo, como os autores desses
duto — como o produto variável do emprego combina- versos (em parte literários como os de Andronicus e Naevius)
podiam ter tempo para se dar a este tipo de quebra-cabeça:
tório — e não como um dado prévio ne varietur. pois o Saturnino é um verdadeiro jogo chinês, independente-
Em poesia, é evidente que as leis da utilização não mente de qualquer consideração sobre a métrica. Eu precisaria
interessarão somente às unidades verbais ("conceitos re- de uma epístola considerável para alinhar exemplos, mas bastam-
me duas linhas para dar a lei:
vestidos de uma forma lingüística") e os símbolos; os
1) Uma vogai não tem o direito de figurar no Saturnino
fonemas são eles próprios utilizados segundo regras par- a não ser que tenha sua contravogal em um lugar qualquer do
ticulares. E essas regras podem variar segundo os gê- verso (a saber, a vogai idêntica e sem transação sobre a quan-
neros, as épocas, as tradições. tidade: há somente transação para o timbre entre £ breve — T
breve; 8 breve —• ti breve; 2) algumas vezes ê : ei; 3) algumas
Quando Saussure se volta para os problemas da vezes õ : U11.
métrica do verso saturnino, não pode restringir-se por Resulta disso que, se o verso não tem um número ímpar
muito tempo às considerações que tocam a função pre- de sílabas < ora é preciso contar toda sílaba sem se preo-
ponderante do acento ou da quantidade. Ele procurava, cupar com as elisões bastante raras, aliás, que exige o metro >,
as vogais se ligam exatamente duas a duas e devem sempre
além disso, outras regras, e as que lhe apareciam, eram, ter como resto: zero, com número par para cada espécie de
em sentido estrito, regras de utilização, de distribuição vogais: por exemplo: 2 ã, 4 e [ = í], 6 8 [ = B], 2 %—. Se as
de um primeiro material. Ele percebe primeiro a lei de sílabas do verso são em número ímpar como 11, 13, 15, sobra
"acoplamento", que pretende que seja redobrado, no necessariamente uma vogai sem contravogal. Ver mais abaixo
o que acontece com ela.
interior de cada verso, o emprego de toda vogai e de 2) Lei das consoantes. Ela é idêntica e não menos estri-
toda consoante utilizadas uma primeira vez. A alite- ta, e nenhuma consoante, mesmo entre as implosivas como
ração deixa de ser um eco ocasional; repousa numa
( I I ) A confusão de Ifí e Í5/B talvez não seja absoluta e seria
(10) Ms. fr. 3959/10, p. 18. Faremos um paralelo com Pascal, preciso ter tempo para ver. através da inspeção de todos os versos, se =
Ptnséts (ed. Brunschvicg, fr. 22 e 23): "Que não me digam que eu há uma diferença entre o r de vfcttu = xí e o de Cereris = xV da mesma
nSo disse nada de novo: a disposição das matérias é nova"... etc. forma entre o B de lubens = xí e o de cum = xí; — provisoriamente
não encontrei. dificuldade estabelecendo a equivalência geral e=Y, o—u.

16 17
stabant, e entre as finais como Loucana/n, não é levado em primeiro escreveu "texto" depois riscou essa palavra
conta menos rigorosamente que o último ^ ou K da série vocá- para substituí-la por "tema". Ele portanto pensou num
lica. Há sempre um, número par para toda consoante e sobre-
tudo é preciso não esquecer as consoantes que aparecem nos texto sob o texto, num pré-texto, no sentido lato do
gíupos: assim a palavra qvod será certamente seguida no verso: termo.
1.° de um, outro q ou c; 2.° de um outro v; 3.° de um outro
d; e somente de um único q-c; de um único outro v, de um único
outro d; — a menos que não haja 4, 6 ou 8 delas fazendo Recapitulação
sempre par.
Mas a coisa vai tão longe que: Resumamos as operações que, se os resultados que obti-
3) Se há um resíduo irredutível qualquer, quer nas vogais, vemos forem verdadeiros, deveria fazer um versificador em
o que acontece necessariamente se o número das sílabas do poesia Saturnina para a redação de um elogium, de uma ins-
verso for ímpar; quer nas consoantes, o que pode acontecer crição qualquer, funerária ou de outra natureza.
facilmente com grupas de consoantes com não importa que 1. Antes de tudo, impregnar-se das sílabas e combinações
número de sílabas, — bem contrariamente ao que se poderia fônicas de toda espécie que poderiam constituir seu TEMA.
crer, nada se perde deste resíduo, ainda que fosse um simples Este tema, — escolhido por ele mesmo ou fornecido por aquele
% ou um simples / num grupo com, // já aliterante com /; mas que pagava a inscrição —, é composto apenas de algumas
o poeta toma nota deste & ou deste /, e vemo-lo então reapa- palavras, quer seja unicamente de nomes próprios, quer seja
recer no verso seguinte como novo resíduo correspondente à de uma ou duas palavras anexadas à parte inevitável dos
sobrecarga do precedente. Aqui está a mais divertida verifi- nomes próprios.
cação da lei, da qual tenho todos os exemplos desejados, tanto O poeta deve, então, nesta primeira operação colocar diante
nos textos epigráficos como nos textos literários, onde,12 infeliz- de si, tendo em vista seus versos, o maior número possível de
mente, é raro que possuamos dois versos consecutivos . fragmentos fônicos que ele pode tirar do tema; por exemplo,
se o tema, ou uma das palavras do tema é Hercolei, ele dispõe
Saussure irá até o ponto de anotar em um de seus dos fragmentos - lei -, ou - co -; ou com um outro corte
das palavras, dos fragmentos - tfl -, ou êr; por outro lado, de
"cadernos" com letra maiúscula: rc ou de cl etc.
2. Deve então compor seu trecho introduzindo em seus
versos o maior número possível desses fragmentos, por exemplo
"NUMERO DEUS PARI GAUDET13" afleicta para lembrar Herco-lei, e assim por diante.
Entretanto, esta é tão-somente a parte mais geral de sua
tarefa ou a matéria fônica ger^al que ele deve levar em conta
Mas as pesquisas sobre o verso saturnino levariam e de que deve se servir. É necessário que, especialmente em
a outras suposições: o poeta atualiza na composição do um verso ou ao menos em uma parte de verso, a seqüência
verso o material fônico fornecido por uma palavra-tema. vocálica que se encontra em um tema como Hércolei ou Cor-
nZHus, reapareça quer na. mesma ordem, quer com variação.
A produção do texto passa necessariamente por um vocá- [...]
bulo isolado — vocábulo que se relaciona com o desti- 3. A necessidade de dedicar um outro verso ESPECIAL
natário ou com o assunto' da passagem — via de acesso à seqüência consonântica do TEMA é, em princípio, provável,
e reserva de fonemas privilegiados sobre os quais se mas apenas provada parcialmente pelos exemplos.
apoiará o discurso poético acabado. Um estudo inti- 4. Tanto quanto possível, é preciso que o poeta garanta
tulado recapitulação (mas cujas numerosas rasuras pro- ao mesmo tempo a RIMA DOS VERSOS ou^ RIMA DOS
HEMISTIQUIOS: de modo algum considerada em todo caso
vam que ele não é ainda senão um estágio e não o como secundária. [ . . . ]
resultado da pesquisa) tenta reagrupar o conjunto das 5. Poderíamos crer que aí terminam as obrigações e as
regras técnicas da composição. O termo hipograma ou restrições de toda espécie impostas ao poeta. É somente aqui
anagrama não aparece ainda, mas é exatamente disto que elas começam.
que se trata. Entre as rasuras, uma das mais significa- Na realidade, é preciso agora:
tivas concerne ao antecedente da palavra tema; Saussure a. Que a soma das vogais contidas em cada verso se eleve
exatamente a 2a, 2Y, 2õ etc. (ou 4a, 4" 45 etc., 6a, 6" 65 etc.)
mas que não haja número ímpar para uma dada vogai.
(12) Ms. fr. 3962. Um rascunho da carta de 30 de julho de 1906 Ou então, se o número das sílabas do verso for 11, 13, 15,
(destinatário desconhecido) desenvolve considerações análogas sobre as
homofonias nos poemas homéricos (Ms. f r. 3957/2). implique forçosamente um resto, que a vogai que permanece
( 1 3 ) Ms. fr. 3962. Caderno escolar sem título. isolada seja compensada no verso seguinte.

18 19
Podemos, aliás, também através de uma licença comum, iiu |iiH-iii Ialino, seja por nossa conta, colocaria tudo em questão
compensar com o verso seguinte, mesmo não sendo um caso mi i n i i ile um espaço de 5 ou 6 versos, porque infelizmente par
de f orça. maior. Mas o que não é permitido é confundir uma mi iniiHir depende de uma única unidade, e de um único erro
longa qualquer com sua breve, e compensar seja onde for, 5 n.i iMirncão do versificador. [.. .]
por Jf, ê por e" etc. K Quanto aos literatos propriamente ditos, compondo
b. O versificador teria que fazer em seguida a mesma I H H - I I I Í I S seguidos como Andronicus, Naevius, ou o autor do
conta com as consoantes. < ,111111-1» l'riami, escolhiam provavelmente a seu bel-prazer uma
Aqui também é preciso que cada consoante seja compen- imliivra-tipo ou um par de palavras-tipo — não, sem dúvida,
sada antes do fim do verso seguinte, mesmo com o risco de iniiii um único verso, mas válidas para o dístico15. [ . . . ]
remeter novamente a este mesmo verso. Na maioria dos casos,
a compensação é quase total já pelo primeiro hemistíquio do A teoria revestirá uma forma mais completa em
verso seguinte; entretanto, reciprocamente, há algumas vezes l uni IOHRO texto cuidadosamente passado a limpo, que
consoante, ou mesmo 2, que esperam e só encontram ao final <><iil>a um caderno de escolar (sem capa) intitulado
de vários versos a consoante compensatória.
1'ii-inicr cahier à lire préliminairement.
c. Enfim, o versificador tinha de começar a mesma conta
para os HIATOS, toda palavra como meli-or, su-a, exigindo
sua compensação, ou por uma outra palavra deste gênero ou
por hiatos entre as palavras como atque idem. I. TERMINOLOGIA
6. Mas, — ao menos no que concerne às consoantes —,
uma outra condição devia ser preenchida. Há sempre nas Servindo-me da palavra anagrama, não penso fazer inter-
inscrições um resíduo consonântico, e segundo nossa hipótese i'ir u escritura nem a propósito da poesia homérica, nem a
acima desenvolvida, este resíduo é desejado e destinado a repro- lunpósito de qualquer outra velha poesia indo-européia. Ana-
duzir as consoantes do TEMA inicial, escrito abreviadamente lniiiii seria mais justo, na minha maneira de ver: mas este
para os nomes próprios e por extenso para os outros. i i i i i m o termo, se nós o criamos, parece antes apto a prestar um
Ou — o que significa a mesma coisa —, o poeta leva em nutro serviço, a saber, o de designar o anagrama incompleto,
conta, na parte versificada, aquilo que está escrito, ou poderia <|iu- se limita a imitar certas sílabas de uma palavra dada sem
estar escrito, no início ou no fim da inscrição, fora dos próprios sn obrigado a reproduzi-la inteiramente.
versos (entretanto com inicial pura para todos os nomes pró- A nnafonia é portanto para mim a simples assonância a
prios ou as palavras comumente abreviadas). Assim, supondo u m , i palavra dada, mais ou menos desenvolvida e mais ou
por TEMA — ou, o que dá quase no mesmo, por TITULO: menos repetida, mas não formando anagrama na totalidade das
Diis Manibus Luci Corneli Scipionis Sacrum, é preciso que a Mlahas.
peça de poesia deixe livres, isto é, em número IMPAR no Digamos ainda que "assonância" não substitui anafonia,
total, as letras D.M.L.C.S./R./ porque uma assonância, por exemplo no se'ntido da antiga
A saber: as quatro primeiras, porque para os nomes pró- poesia francesa, não implica que haja uma palavra que se
prios e para as fórmulas consagradas como Diis Manibus, só iinilc.
a INICIAL é que conta — A última (R), porque Sacrum é
para ser tomada, ao contrário, com todas as letras. Mas nem No dado onde existe uma palavra a imitar distingo, pois:
S, nem C, nem M de Sacrum podem se exprimir, uma vez que o anagrama, forma perfeita;
estas três letras estão já em D.M.L.C.S. — e porque se juntás- a anafonia, forma imperfeita.
semos um novo S, ou C, ou M à peça em verso, todas estas l'or outro lado, no dado que deve igualmente ser considerado,
letras se veriam suprimidas pelo número par. [...] cinile as sílabas se correspondem sem, no entanto, se relacio-
7. Se não deixei passar nada — e o contrário não me narem com uma palavra, podemos falar de harmonias fônicas,
espantaria, tendo em vista as condições de estrutura verdadei- o que compreende toda coisa como aliteração, rima, asso-
ramente hierática do [ ]", nada mais resta depois nância etc.1(S
disso para o versificador realizar: isto é, só lhe resta ocupar-se
agora do METRO e evitar que esses versos não possam, fora O campo de pesquisa está assim delimitado: não se
de todas as condições precedentes, escandir-se regularmente.
Seria desnecessário repetir que a certeza e o valor dessa tratará de poesia "moderna". Além disso, a pesquisa
lei repousa antes de tudo, ou mesmo totalmente, em nossa apre- ii-nl apenas uma relação de longínqua analogia com o
ciação, no fato da compensação desde o verso seguinte, e nniif>nima tradicional, que não funciona senão com os
desaparecia em grande parte sem esta lei subsidiária e prote- .\ÍKHI>X f>ráficos. A leitura, aqui, se aplica em decifrar
tora. Pois, de outra forma, a menor inexatidão, seja por conta
<IM Ms. fr. 3962. Caderno escolar sem título
(14) Lacuna no texto. (1(>) Ms. fr. 3963. Caderno sem capa.

20 27
combinações de fonemas e não de letras. Não se tratará, de Samnio cêpit que é inicial de um grupo onde quase toda
portanto, de redistribuir conjuntos limitados de signos palavra Scípío aparece. — Correção de — cêpi — pelo — cT
— de CTsauna)1''.
visuais que se prestariam ao enunciado ortograjicamente
correto de uma "mensagem" considerada primitiva; não Mors perfêcit tua ut essênt —
nos esforçaremos por ler o poema como se o autor tivesse Este é um meio-verso anafônico que toma por modelo as
vogais de
começado a escrever, com as mesmas letras, um outro Cornêfíus
verso. (Sabemos que Tristan Tzara acreditou poder atri- e que começa por reproduzi-las em sua ordem estrita
buir a Villon este método de composição.) Além disso,
õ-ê-r-ü
o anagrama fonético percebido por Saussure não é um
anagrama total: um verso (ou mais) anagramatizctm uma A única imperfeição, o e breve de perf —, mas que não
se distancia em todo caso do timbre e.
única palavra (em geral um nome próprio, o de um deus Depois de o-ê-"í-u vem, com interrupção de a, o vocalismo de
ou de um herói), restringindo-se a reproduzir-lhe antes üt essênt que fica na anafonia.
de tudo a "seqüência vocálica". Não se trata de soli- (O 8 ou é signo de interrupção, ou é alusão a Cornêliã
citar todos os fonemas constitutivos de um verso: seme- [gens].)is
lhante reconstrução fonética não seria senão uma varie-
Em um dos cadernos sobre Homero, encontramos
dade do trocadilho. Escutando um ou dois versos satur-
a seguinte nota:
ninos latinos, Ferdinand de Saussure ouve levantarem-
se, pouco a pouco, os fonemas principais de um nome Em um sistema onde nenhuma palavra poderia ser
próprio, separados uns dos outros por elementos joné- mudada sem dificultar19, a maior parte do tempo, muitas
ticos indiferentes: combinações necessárias no que se refere ao anagrama, em um
tal sistema não se pode falar dos anagramas como de um
II. Que base existe a priori para imaginar que a poe- jogo acessório da versificação, eles se tornam a base, quer
sia homérica tenha podido conhecer alguma coisa como o ana- o versificador queira ou não,
grama ou a anafonia? que o crítico de um lado e o versificador de outro
Isto se liga a um conjunto de estudos que são para mim queiram ou não. Fazer versos com anagrama é, for-
partes do verso saturnino latino. çosamente, fazer versos segundo o anagrama sob o
Fora das questões levantadas pela métrica desse verso, domínio do anagrama20.
acreditei reconhecer, através de todos os restos de poesia satur-
nina, os vestígios de leis FÔNICAS, das quais a aliteração, que Um caderno termina nestas linhas, onde reconhe-
sempre admitimos como um de seus caracteres, não seria senão cemos um novo projeto de introdução:
uma manifestação particular, e uma das mais insignificantes
manifestações, como é preciso acrescentar.
Não somente, em minhas conclusões, a aliteração não
seria ligada a uma acentuação da inicial — o que foi sempre O HIPOGRAMA
um grande embaraço para julgar o metro do saturnino, ou
para se decidir entre uma interpretação rítmica ou métrica;
mas a aliteração inicial não possui nenhuma importância par- ou gênero de anagrama a reconhecer
ticular, e o erro foi de não ver que todas as sílabas aliteram nas literaturas antigas.
ou assonam, ou são compreendidas em uma harmonia fônica
qualquer. Seu papel na poesia e na prosa latinas.
A dificuldade vem de que os gêneros de harmonia fônica
variam, e variam desde o anagrama e a anafonia (formas que 1. Por que não anagrama.
se dirigem a uma palavra, a um nome próprio) até à simples 2. Sem ter motivo [para manter}21 particularmente o
correspondência livre, fora do dado de imitação de uma palavra. termo hipograma, no qual me detive, me parece que a palavra
Como indicação sumária desses tipos, uma vez que não
posso de modo algum esperar expor aqui minha teoria do (17) Nota na margem desta passagem: "Samnio está no ablativo
Saturnino, cito: (locativo) como suspeitáramos sem prestar atenção nos anagramas.
Taurasia CTsauna Samnio cêpit (18) Ms. fr. 3963. Caderno sem capa.
(19) F. de Saussure rabiscou troubler (dificultar) e o substituiu
por créer un trouble (criar uma dificuldade.)
Este é um verso anagramático que contém completamente o (20) Ms. fr. 3963. Caderno escolar sem título.
nome de Scipio (nas sílabas c7 + pi* + ia, além disso em 5 (21) Riscado no manuscrito.

22 23
não responde demasiadamente mal ao que deve ser designado. Ê estranho que Saussure, que se preocupou com a
Não está em desacordo muito grave com os sentidos de diferença entre a aliteração e as "regras" seguidas pelo
{nroypátptivt Woypacpij, íwóypa,a/xa etc., se excetuarmos o sentido
de assinatura que não é senão um dos que ele toma. verso saturnino, não tenha fixado por mais tempo sua
seja fazer alusão; atenção sobre a paronomásia. Talvez temesse, mais ou
seja reproduzir por escrito como um escrivão, um secre- menos conscientemente, que esta "figura de palavras"
tário, colocasse em perigo todo o aspecto de descoberta ligado
ou mesmo (pensávamos neste sentido especial mais divul- para ele à teoria dos anagramas. Talvez lhe parecesse
gado) sublinhar por meio de pintura os traços do rosto22. essencial distinguir a imitação fônica que aparece livre-
Quando o tomarmos mesmo no sentido mais difundido, mente no decorrer do texto (a paronomásia) e a imi-
ainda que mais especial, de sublinhar por meio de pintura os
traços do rosto, não haverá conflito entre o termo grego e tação obrigatória que, segundo ele, regula a gênese.
nossa maneira de empregá-lo; pois, trata-se ainda no "hipo- A terminologia de Saussure varia pois no decorrer
grama" de sublinhar um nome, uma palavra, esforçando-se por de seu trabalho. Vemos aparecer, fugitivamente, a noção
repetir-lhe as sílabas, e dando-lhe assim uma segunda maneira
de ser, fictícia, acrescentada, por assim dizer, à forma original de paratexto. E eis outras sugestões ainda:
da palavra23.
A segunda utilidade de Logograma ao lado de antigrama
Em um dos cadernos que dedica a Lucrécio, Saus- é — além de marcar o antigrama tomado nele mesmo —
poder aplicar-se à soma de antigramas quando há, por exemplo,
sure sugere — sem ater-se a ela — uma outra deno- dez, doze, quinze que se sucedem em uma passagem em torno
minação: de uma mesma palavra. Há logogramas que se decompõem
em múltiplos antigramas e que têm, entretanto, uma razão
O termo anagrama é substituído, a partir deste caderno, por para serem ditos de uma só palavra porque giram em torno
este, mais justo, paragrama. de uma só palavra —. Indica assim a unidade do tema, do
Nem anagrama, nem paragrama, querem dizer que a poesia motivo26, e, deste 'ponto de vista, deixa de ser chocante na
se dirige para essas figuras segundo os signos escritos; mas sua parte Logo — que não precisa mais ser tomada necessaria-
substituir -grama por -fono em uma ou outra destas palavras mente no sentido de palavra fônica, nem mesmo de palavra:
levaria justamente a fazer crer que se trata de uma espécie é um ''grama", ipámia, em torno de um assunto que inspire
de coisa espantosa. o conjunto da passagem e é mais ou menos o logos, a unidade
Anagrama, por oposição a Paragrama, será reservado ao razoável, o comentário.
caso em que o autor se contenta em dispor num pequeno Uma passagem é caracterizada por este ou aquele logo-
espaço, como aquele de uma palavra ou duas, todos os elemen- grama, o que não impede de falar de preferência de antigrama
tos da palavra-tema, aproximadamente como no "anagrama" quando se chega ao detalhe da correlação com a palavra a
segundo a definição; — figura de importância absolutamente reproduzir27.
restrita no meio dos fenômenos oferecidos ao estudo, e que
representa em geral apenas uma parte ou um acidente do O "discurso" poético não será, pois, senão a se-
Paragrama24.
gunda maneira de ser de um nome: uma variação desen-
E preciso salientar também estas notas fugitivas volvida que deixaria perceber, por um leitor perspicaz,
cujas frases permanecem inacabadas: a presença evidente (mas dispersa) dos fonemas condu-
tores.
Introduzir paramimia desculpando-se por não colocar pa- O hipograma desliza um nome simples na dispo-
ronímia. — Há no meio do dicionário uma coisa que se chama
paronomásia, figura de retórica que — sição complexa das sílabas de um verso; a questão é
A paronomásia se aproxima muito por seu princípio de reconhecer e reunir as sílabas condutoras, como Isis
A paráfrase pelo som-fônico25 reunia o corpo despedaçado de Osíris.
Isto eqüivale a dizer que, apoiando a estrutura do
(22) Na margem: "não há nenhum sentido de vTrffypaQfLv
de assinar, colocar sua assinatura".
exceto o verso sobre os elementos sonoros de um nome, o poeta
(23) Ms. fr. 3965. Caderno de tecido amarelo intitulado Cicéron
Pline, lê jeune, iin. (26) Saussure riscou thème (tema) para substituí-lo por motii
(24) Ms. fr. 3964. (motivo).
(25) Ms. fr. 3966. Caderno coberto de tecido cor de laranja, inti- (27) Ms. fr. 3966. Caderno violeta intitulado Flaute anagr. et Carmina
tulado Carmina Epigraphica Fim Lê Passage Tempus erat Ausone. Epigr.

24 25
impunha a si mesmo uma regra suplementar acrescida à elementos entre si, por pares ou por rimas), ora externa, isto
do ritmo. Como se um tal acréscimo de cadeias não é, inspirando-se na composição fônica de um nome como Scipio,
fosse suficiente, Saussure não esquece nenhuma dê suas Jovei etc.
observações sobre o redobramento obrigatório das vo- b) Nesta preocupação fônica geral, a aliteração, ou a
correspondência mais particular entre iniciais, não tem papel
gais e das consoantes. O texto que lemos no "Premier algum: ao menos o mesmo papel que, de seu lado, desempenha
cahier à lire préliminairement" continua: a rima, ou correspondência entre finais sendo ela mesma tão-
somente um acidente ou um floreio, conforme a tendência
Não temos aí senão um dos múltiplos gêneros da ana- geral.
fonia. Acrescento c) Que o resultado ao qual chego para a
Mas ao mesmo tempo: forma métrica do saturnino não somente não cria dificuldade,
— ora concorrentemente à anafonia, mas está em perfeito acordo com a idéia de que as sílabas
— ora fora de toda palavra que se imite iniciais não teriam importância especial para o verso.
há uma correspondência de todos os elementos se tradu- Nenhum sistema, mesmo rítmico, não pode sequer, não o
zindo por um exato acoplamento, isto é, repetição em número esqueçamos, mostrar que as sílabas aliterantes iniciais do satur-
par. nino correspondiam a ictus regulares.
Assim, pode-se estudar deste ponto de vista quase todo Para terminar estas explicações preliminares por um dos
verso cipiônico. Por exemplo, em exemplos que me conduziram precisamente ao ponto de vista
que exponho, eu diria que isso pode se resumir em um verso
Subigit omne Loucanam opsidesque abdoucit como:
vemos duas vezes ouc (Loucanam, abdoucit)
Ibi manens sedeto donicum videbis
duas vezes d (opsidesque aWoucit) (Livius)
duas vezes b (suftigit, aèdoucit)
duas vezes -it (subig/í, abdoucií) a correspondência -bi- (ibi-videbis) ou a correspondência -dê-
duas vezes -T (subrgit, opsfdes-) (sedeto, videbis) têm tanta importância — embora nem uma
duas vezes ti (Loucantfm, &bdoucit) nem outra recaia sobre a inicial — quanto todos os exemplos
duas vezes o (omne — õpsides-) de aliteração inicial por meio dos quais se fez do saturnino um
duas vezes n (omne — Loucanam) 28 verso "aliterante"20.
duas vezes m (omne — Loucanam) .
A diferença evidentemente incalculável entre um fonismo
Os principais resíduos correspondem justamente ao que o aliterante e um fonismo que se apoie sobre qualquer sílaba
verso precedente deixava em suspenso. é que, enquanto ficamos ligados à inicial, pode parecer que
Na verdade p de õpsides — (último verso) é o ritmo do verso que está em jogo, e que, procurando
= p de cêpit — (penúltimo verso) acentuar-se mais, provoca inícios de palavras semelhantes, sob
ficam ambos sem correspondência em seus versos: mas, entre um princípio que não supõe absolutamente, da parte do poeta, a
eles, compensam-se de um verso a outro. análise da palavra. A mesma observação se aplica à rima, ao
É raro que se possa chegar à absoluta repartição par. menos em tal ou tal sistema. Mas, se for verificado, ao
Por exemplo, o som c é em número ímpar em Loucanam opsi- contrário, que todas as sílabas podem concorrer à simetria
desque abdoucit, mesmo invocando o veiso precedente Taurasia fônica, resulta daí, que não há nada que dependa do verso e
Cisauna Samnio cepit. de seu esquema rítmico que dite estas combinações, e, que um
Mas já é uma forte exigência esperar que todas as palavras segundo princípio, independente do próprio verso, se associava
estejam combinadas.de tal maneira que se consiga 2/3 das letras ao primeiro para constituir a forma poética recebida. Para
em número par, de fato, e mais de 3/4 que realizam a todo satisfazer esta segunda condição do carmen, completamente inde-
instante esta performance, como diríamos em linguagem de pendente da constituição dos pés ou dos ictus, eu afirmo efeti-
turfe [...] vamente (como sendo minha tese a partir de agora) que o poeta
Sejam quais forem as soluções de detalhe, do estudo do se entregava, e tinha como "métier" comum entregar-se à aná-
verso saturnino latino cheguei à convicção de que: lise fônica das palavras; que é esta ciência da forma vocal
a) Essa versificação é inteiramente dominada por uma das palavras que constituía provavelmente, desde os mais antigos
preocupação fônica, ora interna e livre (correspondência dos tempos indo-europeus, a superioridade, a qualidade particular,
do kavis dos hindus, dos Vãtês dos latinos etc.
(28) Em nota: "Por que não omneM Loucanam? Ê aqui justa-
mente que eu creio poder provar, por uma grande série de exemplos, (29) Esse verso é igualmente comentado em uma carta a Antoine
que as inexatidões de forma que algumas vezes passaram por arcaísmos Meillet de 23 de setembro de 1907. Ver "Lettres de Ferdinand de Saus-
na poesia saturnina epigráfica, são propositais, e, em relação com as sure à Antoine Meillet" publicadas por Emile Benveniste. Cahiers Fer-
leis fônicas desta poesia. Omnem teria tornado o número dos M ímpares!" dinand de Saussure, Genebra, 21/1964, pp. 91-125.

26 27
POESIA VÉDICA preciso prestar atenção nas variedades do nome: e isto, não
o esqueçamos, sem que uma forma particular como o Nomi-
Sobre a hipótese precedente, podemos interrogá-la de duas nativo tivesse o papel (aliás abusivo mesmo para nós) que
formas: assumiu em nome da gramática grega sistemática.
1.° Reprodução em um hino, de sílabas que pertencem Não me surpreenderia que a ciência gramatical da índia,
ao nome sagrado que é objeto do hino. do duplo ponto de vista fônico e morfológico, não fosse assim
Neste gênero, é uma montanha de materiais que acha- uma seqüência de tradições indo-européias relativas aos proce-
remos. Como a coisa era demasiadamente clara em certos dimentos a serem seguidos na poesia para confeccionar um
hinos a Indra, deu-se, por assim dizer, um caráter desfavorável carmen, levando em conta formas do nome divino.
a estes hinos ao passo que está aí o princípio indo-europeu de No que concerne especialmente ao próprio texto védico,
poesia, em nossa opinião. Mas podemos tomar quase ao acaso, e ao espírito no qual ele se transmitiu desde um tempo inaces-
e veremos que hinos dedicados por exemplo a Agni Angiras sível, este espírito se encontraria eminentemente de acordo, pelo
são uma série de trocadilhos como girah (os cantos), anga vínculo à letra, com o primeiro princípio da poesia indo-euro-
(conjunção) etc. — mostrando a preocupação capital de imitar péia, tal como o concebo agora, fora de todos os fatores espe-
as sílabas do nome sagrado. cialmente hindus ou especialmente hieráticos que podem ser
invocados a propósito desta superstição pela letra.
2. Harmonias fônicas consistindo por exemplo no número Eu reservo mesmo minha opinião quanto a saber se o
par dos elementos. texto Pada-pâtha dos hinos não é um texto destinado a pre-
Duas dificuldades de primeira ordem se opõem de chofre servar correspondências fônicas cujo valor era conhecido por
a uma perfeita investigação sobre este ponto e eu não podia tradição e por conseguinte relativas ao verso, uma vez que este
resolvê-las no tempo limitado que tive até o presente: texto tem a pretensão de estabelecer a forma das palavras, fora
Dificuldade do sandhi. Não podemos saber de antemão do verso. Seria preciso, entretanto, um estudo que eu não fiz e
qual fase exata é preciso supor, e conseqüentemente, por exem- que é evidentemente enorme.
plo, se um õ como este de dêvôasti é assimilável a um õ como
este de hõtãram, ou a um ã? ou a um az etc.?
Dificuldade decorrente das interpelações. Basta que um POESIA GERMÂNICA ALITERANTE
único verso, em 50 versos, seja interpelado, para que as mais
trabalhosas contagens não tenham mais nenhuma significação. Enquanto nada liga os fatos de aliteração latina do satur-
Creio ter tido uma satisfação inversa constatando que o pri- nino ao ritmo do verso — e isto, mesmo supondo um estado
meiro hino do Rig-Veda, que não oferece nenhum número satis- latino que acentuava a inicial — é certo, ao contrário, que as
fatório, se mantivermos a nona estrofe (aparentemente acres- iniciais aliterantes do germânico (velho escandinavo, velho sa-
cida) resolve-se em números pares para todas as consoantes, xão, anglo-saxão, e um ou dois textos em alto-alemão) formam,
desde que se tome somente as 8 primeiras estrofes. Os números por assim dizer, tão-somente um só corpo com o ritmo do
vocálicos, por seu lado, são então todos múltiplos de 3. Sem verso, porque a) a verso é rítmico e fundado no acento das
ter podido levar mais longe meus estudos védicos, tenho, no palavras; b) o acento das palavras recai sobre a inicial; que
entanto, muitos pequenos hinos que dão algarismos absoluta- por conseguinte c) se é sublinhada a inicial por uma igualdade
mente impecáveis sobre a paridade das consoantes seja qual de consoantes, sublinha-se ao mesmo tempo o ritmo.
for a lei das vogais. Mas, historicamente, podemos nos perguntar se em vez
Não quero passar sobre o primeiro hino do Rig-Veda sem de considerar a aliteração germânica como um tipo original —
constatar que ele é a prova de uma antiga análise gramático- a partir do qual julgávamos mais ou menos a aliteração latina,
poética, totalmente natural desde que houvesse uma análise o ritmo latino e a acentuação latina — não haveria oportuni-
fônico-poética. Este hino declina positivamente o nome de dade de fazer um raciocínio completamente inverso, onde seria
Agni; seria muito difícil, na verdade, pensar que a sucessão ao contrário o germânico que, por mudanças, aliás conhecidas,
de versos, começando uns por Agnim ídê — outros por Agninâ teria chegado à forma que nele se tornou célebre como modelo
rayim açnavat, outros por Agnayê, Agnê etc., não queira dizer geral de versificação. [... ]
nada para o nome divino, e ofereça por puro acaso estes casos É também partindo desse dado de uma poesia indo-européia
diferentes do nome colocados no começo das estrofes. Desde que analisa a substância fônica das palavras (seja para cons-
o instante em que o poeta fosse obrigado, pela lei religiosa ou truir com elas séries acústicas, seja para construir séries signi-
ficativas quando se refere a um certo nome) que eu pensei
poética, a imitar um nome, é claro que depois de ter sido levado compreender pela primeira vez o famoso stab dos germânicos
a distinguir-lhe as sílabas, ele se encontrava sem querer for- em seu triplo sentido: a) vareta; b) fonema aliterante da poesia;
çado a distinguir-lhe as formas, uma vez que sua análise fônica, c) letra.
correta para agninâ por exemplo, não mais era correta (foni- Desde que apenas suspeitemos de que os elementos fônicos
camente) para agnim etc. Do simples ponto de vista fônico, do verso poderiam ser contados, uma objeção se apresenta, a
para que o deus ou a lei poética ficassem satisfeitos, era pois da dificuldade de contá-los, visto que é preciso muita cautela,

28 29
mesmo para nós que dispomos da escrita, para estarmos seguros Os textos que transcrevemos aqui, por sua preo-
de contá-los bem. Por isso, se concebe logo ou antes se prevê, cupação expositiva, constituem uma exceção no conjunto
se o trabalho do vãtês era o de reunir sons em número deter- de cadernos consagrados aos anagramas. Esses contêm
minado, que a coisa não era por assim dizer possível senão sobretudo exercícios de decifração, apoiando-se sucessi-
por meio de um signo exterior como pedregulhos de diferentes
cores ou como varetas de diferentes formas, os quais, repre- vamente em textos de Homero, Virgílio, Lucrécio, Sê-
sentando a soma dos d ou dos k etc., que podiam ser empre- neca, Horácio, Ovídio, Flauto, Policiano etc.
gados no carmen, passavam sucessivamente da direita para
esquerda à medida que a composição prosseguia e produzia um
certo número de d ou de k indisponíveis para os versos poste-
riores. (É preciso partir dos poemas curtos de 6 a 8 versos,
dos quais os Elogia, ou certos hinos védicos, ou as fórmulas
mágicas germânicas dão idéia). — Acontece assim que, mesmo
a priori, a relação de uma vareta (stab ou stabo) com o FONEMA
se apresenta como absolutamente natural e clara se a poesia
contava os fonemas, enquanto que eu nunca pude dar nenhum
sentido a stab, stabo, a letra aliterante, ou a letra, na con-
cepção comum da poesia aliterante. Por que uma letra teria
sido então designada por uma vareta? Mistério.
Toda a questão de stab seria mais clara se não misturás-
semos aí desastrosamente a questão de buoch (a casca do car-
valho onde se podiam traçar caracteres). Estes dois objetos
do reino vegetal são perfeitamente separados na atividade da
escrita germânica, e, assim como resulta de minha explicação
precedente, considero stab = fonema como anterior a toda es-
crita; como absolutamente independente de buoch que o pre-
cede no atual composto alemão Buchstabe (aparentemente "va-
reta de carvalho")30.

A hipótese do "acoplamento" silábico e a estranha


especulação sobre varetas de carvalho, conferem ao poeta
uma atenção extrema à substância fonética das palavras.
Os fatos de simetria fônica aqui constatados são mar-
cantes: mas serão eles o efeito de uma regra observada
(à qual nenhum testemunho proposital teria sobrevivido)?
Não poderíamos invocar, para justificar esta multiplici-
dade de responsos internos, um gosto pelo eco, pouco
consciente e quase instintivo? Seria preciso que o exer-
cício da poesia, nos antigos, esteja mais próximo do
ritual da obsessão que do arrebatamento de uma palavra
inspirada? Ê verdade que a escansão tradicional escra-
viza a dicção do vaies a uma regularidade que já é
necessário qualificar como obsessiva. Nada impede ima-
ginar — já que os jatos o possibilitam — uma sobre-
carga de exigências "formais" que obrigariam o poeta a
utilizar duas vezes no verso cada um dos elementos
fônicos. . .

(30) Ms. fr. 3963. Caderno sem capa. Nota à margem. "A consi-
derar n iodo para a interpretação da passagem de Tácita que aqui deixo
de lado."

30 31

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