Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Prefácio A primeira versão desta Odisseia vertida para língua portuguesa veio a lume
em maio de 2003 (no dia, por sinal, em que o seu tradutor fez 40 anos), numa edição da
Cotovia que muito deveu ao cuidado do saudoso André Jorge.
No Prefácio que escrevi na altura, afirmei que «resisti à tentação de salpicar o texto
com notas», opção que, mal o livro foi publicado, originou até hoje um fluxo imparável de
cartas e de emails da parte das muitas leitoras e dos muitos leitores a quem as notas, afinal,
teriam feito falta. Eu próprio comecei a sentir, cada vez mais, que o trabalho que publicara em
2003 estava incompleto.
Volvidos 15 anos (mais cinco do que os anos levados pelo herói da Odisseia para
chegar de Troia à sua Ítaca), o convite de Francisco José Viegas para publicar uma nova edição
sob o selo da Quetzal permitiu levar o trabalho até ao fim. Cada canto da Odisseia está agora
apetrechado de um aparato de notas e de comentários, que visam esclarecer, em primeiro
lugar, a estrutura narrativa do poema, mas também problemas de teor linguístico e geográfico,
assim como a inter-relação da Odisseia com a Ilíada (entre muitos outros assuntos).
A Introdução ao volume foi reescrita de modo a refletir o estado atual dos estudos
sobre a Ilíada e a Odisseia; e acrescentei, ainda, um segundo texto introdutório, intitulado «O
funcionamento do verso homérico», cuja leitura recomendo porque lança as bases da
problemática mais técnica que surgirá, por vezes, nas notas à tradução. Também atualizei,
naturalmente, a Bibliografia. Outra diferença desta nova edição relativamente às anteriores é
que os versos desdobrados na tradução estão agora assinalados na margem com a indicação
«b» a seguir ao número do verso 1.
Traduzir e comentar Homero significa participar numa tradição milenar que já vem
desde o século III a.C., quando, por um lado, os grandes estudiosos da Biblioteca de Alexandria
(Zenódoto e, mais tarde, Aristarco) deram início à tarefa de escrever notas e comentários à
poesia homérica e, por outro, em Roma foi feita a primeira tradução da Odisseia por Lívio
Andronico, escravo manumisso e homem de letras, que traduziu o poema para latim.
Embora eu seja naturalmente devedor de toda esta tradição (sem esquecer a escola
analítica alemã do século XIX; os estudos oralistas de Parry e de outros no século XX; e os
magníficos livros de Martin West publicados já no século XXI), gostaria de destacar, com
especial reconhecimento, dois nomes. São os nomes de dois grandes helenistas, ambos
tradutores e estudiosos de Homero. Foi com os seus trabalhos que aprendi a traduzir e
comentar a poesia homérica; ver-se-á que o seu magistério é palpável em cada página deste
volume. São eles Roger Dawe (Trinity College, Cambridge) e Maria Helena da Rocha Pereira
(Universidade de Coimbra). 1 Na maior parte dos casos, foi possível fazer corresponder a cada
verso grego um verso português. Houve passos, no entanto, em que tal processo não foi
exequível, pelo que optei por desdobrar o enunciado grego. Por conseguinte, esta Odisseia
portuguesa tem mais uns versos que a Odisseia grega; mas isso significa também que, do
conteúdo do original, nada se perdeu na tradução.
1
Introdução
1.
A Odisseia homérica é, a seguir à Bíblia, o livro que mais influência exerceu, ao longo dos
tempos, no imaginário ocidental. Não é por acaso que a literatura romana começa, no século
III a.C., com a tradução para latim da Odisseia, tarefa empreendida por Lívio Andronico, que
preteriu significativamente a Ilíada em favor do poema sobre o Regresso de Odisseu 1 . E
embora durante a Idade Média essa influência tenha sido operada por via indireta, mormente
por textos já de si derivados da Odisseia (como a Eneida de Virgílio e as Metamorfoses de
Ovídio), o Renascimento, com a nova tradução para latim da Odisseia de Leôncio Pilato, que
tanto encantou Petrarca e Boccaccio, veio repor a primazia do modelo homérico, a ponto de a
Odisseia ter acabado por ofuscar qualquer outro poema épico, à exceção talvez da Eneida. São
disso sintomáticos os célebres versos de Camões «cessem do sábio Grego e do Troiano / as
navegações grandes que fizeram» (Lusíadas 1.3): apesar de a Ilíada ser, dos dois poemas
homéricos, o mais perfeito, é a Odisseia que o poeta quinhentista pretende superar.
É desta edição ateniense (versão oficial de uso obrigatório nas Panateneias) que descende
o texto homérico que nos foi preservado pelos papiros helenísticos e pelos manuscritos
bizantinos em que se baseiam as nossas edições modernas. Há mais de 100 anos, E. Bethe fez
a seguinte observação, que ainda continua válida: «Para a transmissão da Ilíada só contou um
único manuscrito do tempo de Pisístrato. O mesmo vale para a Odisseia. […] Nunca é demais
insistir neste ponto. […] Este texto ático de Homero do século VI é o único objeto da
investigação homérica. Representa obrigatoriamente Homero de forma exclusiva, pois não
existe outro Homero que não este.»4
A suspeita de que Homero seria na verdade dois poetas ocorreu, na época alexandrina, aos
gramáticos Xénon e Helânico (rotulados de «corizontes», ou «separatistas», pelos seus
adversários) 5 . Não foram os únicos a sentir estranheza perante a ideia de que o autor da
Ilíada pudesse também ter sido o autor da tão diferente Odisseia. No século I da era cristã, um
teorizador sobre questões literárias a que os helenistas modernos chamam «Pseudo-Longino»
tentou explicar, no seu tratado Sobre o Sublime, a diferença entre a Ilíada e a Odisseia,
sugerindo que Homero compôs a Ilíada na sua juventude e a Odisseia na sua velhice. Após
séculos de discussão e de controvérsia, hoje parece claro à maior parte dos especialistas ser
altamente improvável que o poeta de «A Cólera de Aquiles» tenha sido quem compôs «O
Regresso de Odisseu». A razão é simples: não obstante um verniz superficial de parecença,
devido à linguagem épica tradicional que ambos herdaram, os dois poemas são, na realidade,
completamente diferentes na sua mundividência, na sua teologia, na sua axiologia, na sua
técnica narrativa e nas suas qualidades poéticas 6 .
Qual possa ser a identidade real, atribuível ao nome de Homero, coisa que,
provavelmente, nunca se saberá ao certo: em rigor, tanto a Ilíada como a Odisseia são poemas
anónimos7 . Para quem lê, porém, os dois poemas que até nós chegaram com o seu nome, há
três aspetos que ressaltam de imediato: a monumentalidade da urdidura formal (aspeto em
2
que o poeta da Odisseia não quis ficar atrás do poeta da Ilíada, cuja obra ele conhecia,
admirava e, por isso, imitou8 ); o domínio diferenciado de técnicas narrativas de
surpreendente sofisticação; e a capacidade de obter os mais esmagadores efeitos poéticos por
meio da linguagem mais simples, não raro recorrendo a repetições que, à luz da poética de
épocas posteriores, se nos afiguram necessariamente primitivas.
No entanto, uma coisa é certa: a construção formal da Odisseia não é uma caraterística
que lhe adveio por acaso. Houve necessariamente alguém (consideremo-lo o autor do poema
cuja tradução é editada neste livro) que se encarregou de organizar o material narrativo de
modo a encaixá-lo na estonteante estrutura virtuosística que é a nossa Odisseia. Digo «nossa»
Odisseia porque o próprio poema deixa entrever que houve versões anteriores da história do
Regresso de Odisseu: talvez uma «préOdisseia» ou, se quisermos, uma «proto-Odisseia». As
notas à tradução mostrarão como essa versão ou versões anteriores deixaram marcas no
poema que temos em mãos. Provavelmente seriam mais curtas (não contendo os Cantos 1-4,
11 e 24 da nossa Odisseia). E as viagens de Odisseu seriam narradas na terceira pessoa do
singular, facto que, como veremos nas notas, deixou marcas na nossa Odisseia, na qual as
viagens de Odisseu são narradas (por vezes de forma ilógica) na primeira pessoa.
Uma pergunta a que não pode fugir quem se dedica a ler com olhar atento a Odisseia é
esta: como é que o poeta concretizou, na prática, a feitura do seu poema? É que, apesar de
tanto a Ilíada como a Odisseia terem sido compostas numa altura em que já havia escrita, o
material poético em si – com as repetições que encerra e com a sua linguagem feita de
fórmulas – preserva muitos aspetos das técnicas tradicionais da poesia oral.
Ou seja, mesmo que os dois «Homeros» tivessem utilizado a escrita para compor ou ditar a
Ilíada e a Odisseia, procederam à tarefa de as compor recorrendo às técnicas da poesia oral,
com toda a carga de repetições (de meios versos, de versos inteiros e por vezes de segmentos
de vários versos) que são próprias da poesia oral.
Contudo, que poemas desta monumentalidade pudessem ter adquirido a forma que
adquiriram sem recurso à escrita é uma possibilidade que, não obstante o valor dos estudos de
Milman Parry sobre o caráter oral da poesia homérica, muitos helenistas não veem como
aceitar 9 . A realidade é que tanto a Ilíada como a Odisseia nos chegaram sob a forma de
poemas escritos: quer os poemas tenham sido ditados por um poeta analfabeto em situação
de performance épica a um escriba, quer tenham sido compostos por um poeta que, ao longo
de vários anos, usou a escrita para arquitetar, reformular e monumentalizar ainda mais a sua
obra-prima, o que nos chegou foi o registo da Ilíada e da Odisseia como textos escritos. E tal
como já foi dito sobre a Ilíada (mas o mesmo se aplica à Odisseia), «a Ilíada é um texto escrito
e devia ser autoevidente que não há forma de produzir um texto escrito sem “a ajuda da
escrita”» 10 .
É em meados do século VIII a.C. que se impõe, na Grécia, a utilização da escrita alfabética,
adaptada dos Fenícios11 . (Sublinhe-se que o alfabeto grego permitiu registar a língua grega
com espantosa precisão, devido ao facto de ter sinais para todas as consoantes e todas as
vogais – ao contrário do que se passava, na mesma altura, com a escrita do hebraico, por
exemplo.) Ora é já no período em que os Gregos dispunham desta escrita perfeita que deverá
ser situada, entre inícios e meados do século VII a.C., a composição da Ilíada12 . O poema fala-
nos, no Canto 9 (404-405), de Delfos; e parece pressupor, na expressão «soleira marmórea», a
existência de um templo de Apolo, cheio de riquezas. A arqueologia indicanos que, no século
3
VIII a.C., não existia ainda um templo em Delfos: a realidade a que o poeta alude é uma
realidade do século VII a.C. 13
E a Odisseia? Em 1978, Martin West fez a afirmação bombástica de que a Odisseia, que
chegou até nós, é um poema do século VI a.C. 14 O próprio West mudou depois o radicalismo
desta opinião no seu livro de 2014, propondo uma datação que coloca a Odisseia em finais do
século VII a.C. 15 No entanto, nunca devemos esquecer que a única certeza que podemos ter
sobre quando estes poemas foram compostos – e sobre quem os compôs e como – é que
nunca haverá, porque não pode haver, certeza. Com a sagacidade que lhe era tão própria,
Maria Helena da Rocha Pereira resumiu o problema em poucas palavras: «Em tudo o que é
relativo a Homero, não há teoria ou opinião que não tenha sido contraditada, e as mais
notáveis apenas conseguem ter aceitação durante algumas dezenas de anos.»16
2.
Centremo-nos, por isso, no que é seguro. Visto que, quando a Ilíada e a Odisseia foram
compostas, ainda não tinha sido escrita a maior parte dos livros que integram o Antigo
Testamento, as duas epopeias homéricas são, para todos os efeitos, os primeiros grandes
livros da cultura ocidental. E se a Ilíada se nos afigura um monumento extraordinário à
capacidade humana, a Odisseia também é, à sua maneira, um milagre. Independentemente
das minudências do seu estudo linguístico, feito por especialistas como que debaixo de um
microscópio, o poema do Regresso de Odisseu continua a proporcionar o maior deleite
literário a quem não faça a mínima ideia das questões que, no século XIX, opuseram
«analistas» a «unitários»; e depois, no século XX, estes a «oralistas» e «neoanalistas»; e, já no
século XXI, «unitários» e «oralistas» a «neo-neoanalistas» 17 .
A primeira palavra do poema (em grego) é «homem». Logo desde o primeiro verso somos
convidados a empatizar com o «homem versátil que tanto vagueou», a ver nele a própria
consubstanciação da inteligência humana (aqui referida por meio da ideia de «versatilidade»)
e da vocação do ser humano para o infinito sofrimento. O desenrolar da história vai-nos ligar
ainda mais a esta figura que sofre, mas que também saboreia os prazeres da sensualidade e da
aventura 19 . Contudo, contrariamente ao modelo posterior de herói pícaro, para Odisseu
esses prazeres são acima de tudo entraves. O primeiro momento, no Canto , em que somos
apresentados ao protagonista é disso testemunha eloquente: na segurança de uma ilha cuja
descrição idealizada sugere o paraíso na terra, amado por uma deusa que lhe quer oferecer a
imortalidade, Odisseu passa os dias na praia a olhar para o mar, lavado em lágrimas,
atormentado pela nostalgia da sua pobre e rochosa Ítaca, cheio de saudades da mulher e do
filho.
4
Trata-se, portanto, de um herói mais humano, mais perto de nós que o colérico e
sanguinário Aquiles, ou que o piedoso e cumpridor Eneias. Odisseu mente, mata, sobrevive;
abraça as múltiplas experiências que vêm ao seu encontro; conhece o canto das Sereias e o
leito de Circe; vai ao mundo dos mortos e recebe, mais tarde (ou mais cedo, pela ordem por
que nós lemos a história), a oferta de nunca morrer: mas, essencialmente, é uma figura a
quem as circunstâncias, e não a sua própria natureza, conferem uma dimensão heroica. É na
superação desesperada dos perigos, nas ameaças que lhe surgem na luta pela sobrevivência,
que nos identificamos com ele – e isto de uma maneira primária, inexplicável, que determina
porque se tenha sempre projetado em Odisseu a essência do homem mediterrâneo, logo, pela
cultura, do homem ocidental.
No entanto, esta figura a quem nós atribuímos o estatuto de homem grego por excelência
começa por nem sequer ter um nome grego: Odusseus pertence ao número de palavras gregas
que, no seu sufi xo, revelam uma origem pré-helénica. Como se não bastasse o nome de
Odisseu não ser originalmente grego, muita da sua história proveio de paragens do mundo
semítico. Em The East Face of Helicon (Oxford, 1997), Martin West ofereceu uma análise
comparativa entre o enredo da Odisseia e narrativas épicas do Próximo Oriente, aduzindo
semelhanças curiosas entre a epopeia grega e textos hititas, sumérios e acádicos. Também no
seu comentário à Odisseia, Roger Dawe aponta, a propósito de diversos passos, pontos de
contacto sugestivos entre o texto homérico e as suas possíveis matrizes orientais. Por vezes,
estas aproximações servem para explicar problemas de aparente opacidade no texto grego,
como quando Atlas é descrito, no Canto 1, como sendo de «pernicioso pensamento» e alguém
que «do mar / conhece todas as profundezas» (52- 53), expressões que não se coadunam com
as informações suscetíveis de serem colhidas, na própria mitologia grega, a respeito de Atlas.
Todavia, a tradição hitita relata-nos a história de um certo Ullikummi, homem semelhante a
uma coluna, que não só conhecia o mar, como dele derivava a sua força, chegando a
representar uma ameaça para os deuses. Dawe aventa, pois, a hipótese de ser este «homem-
coluna» hitita o modelo do Atlas referido na Odisseia.
Mas é evidente que o processo de comparar os textos épicos gregos com congéneres
orientais não nos dá todas as respostas, tal como não encontrámos solução para tudo na já
referida teoria da composição oral da poesia homérica proposta por Milman Parry e que, na
segunda metade do século XX, se tornou, para alguns helenistas, uma espécie de dogma. Na
verdade, as propostas de Parry, sem querermos desmerecer o seu valor, não eram novas 20 .
Muito do que de «novo» a tese de Parry veio trazer aos estudos homéricos em língua inglesa
estava já, na sua essência, na filologia alemã do século XIX, começando pelo próprio conceito
de «fórmula» 21 . Esta palavra mágica, por vezes dotada da capacidade de explicar tudo, tem,
contudo, o seu lugar, tanto no âmbito da epopeia homérica como no dos cantos heroicos da
Bósnia (estudados por Georg Danek 22 ); e, na verdade, sem recorrermos a ela, não
compreenderíamos por que razão são conferidos ao porqueiro de Odisseu epítetos heroicos
como «divino» e «condutor de homens», ou ao assassino e adúltero Egisto o epíteto de
«irrepreensível». Epítetos esses cuja incongruência a presente tradução – contrariamente a
muitas outras – se recusa a escamotear.
5
relermos hoje alguns «tesourinhos» do que se escrevia nessa altura, alguns de nós não
conseguiremos reprimir um sorriso irónico 24 . Um campo, porém, em que a aplicação de uma
grelha de análise extrínseca pode conduzir a resultados interessantes é o da narratologia, dada
a extrema sofisticação do poema em termos de estrutura narrativa – o único aspeto em que
ganha claramente à Ilíada , epopeia que nos propõe uma narrativa linear 25 . Aliás, o modelo
de construção da Odisseia foi a tal ponto determinante que condicionou a estrutura dos dois
maiores poemas épicos que se lhe seguiram: a Eneida e, por intermédio desta, Os Lusíadas. E
quando Horácio propôs o célebre preceito da narrativa lançada in medias res (Arte Poética,
148), era evidentemente na Odisseia que estava a pensar: ou não encontrássemos, nos versos
anteriores, uma tradução do proémio do poema homérico (dic mihi, Musa,virum, captae post
tempora Troiae / qui mores hominum multorum vidit et urbes [141-142]).
Com efeito, a narrativa tem início, logo a seguir ao proémio, com o Concílio dos Deuses
(episódio que se transformaria num lugar-comum épico), durante o qual nos é repetida a
informação de que Odisseu se encontra retido, há vários anos, em Ogígia, a ilha de Calipso.
Atena sugere que se envie Hermes a Ogígia «a fim de que depressa / à Ninfa de bela cabeleira
diga o plano seguro: / o regresso do paciente Odisseu como regressará» (1.85-87). É a seguir a
estes versos que se dá o ponto de viragem crucial da Odisseia: pois, em vez de continuar pelo
caminho até aqui delineado desde os versos iniciais, o poeta põe subitamente na boca de
Atena as palavras «Eu mesma a Ítaca irei para incentivar seu filho.» E durante os próximos
2000 versos nada mais se diz de Odisseu (a não ser indiretamente): entramos em plena
Telemaquia, uma surpresa que nada no proémio teria feito prever.
No Canto 5 retoma-se o fio que ficara suspenso desde o início do Canto 1. Hermes
chega efetivamente a Ogígia, Calipso deixa partir Odisseu e ensina-lhe a construir uma
jangada. Será esta a última navegação a solo de Odisseu, pois a seguir à ilha dos Feaces (a que
aportará, mais morto que vivo, em seguida) só lhe falta mais uma etapa para chegar a Ítaca.
Curiosamente, depois de o poeta ter colocado na boca de Zeus a declaração explícita de que
Posídon, o deus do mar, abandonará a sua cólera contra Odisseu (1.77), eis que Posídon
desautoriza o rei dos deuses, encolerizando-se. Aliás, depois de lermos o poema todo,
verificamos que esta é, na verdade, a única vez que Posídon se encoleriza contra Odisseu:
portanto, quando Zeus afirma que o deus do mar abandonará a sua ira, está a saltar à frente
na história, visto que não houvera ainda ocasião para que a ira se manifestasse.
6
Um dos muitos exemplos de incoerência causada pela harmonização imperfeita de
diferentes versões da história? Ou deveremos ver aqui um mero lapso, do género a que não
são estranhos autores modernos como Cervantes, que se atrapalhou notoriamente nalguns
capítulos de Don Quixote com o célebre problema de Sancho Panza e o burro? No âmbito da
poesia homérica, este tipo de questões raramente se pode resolver de modo consensual.
Mesmo quando o poeta da Odisseia nos diz, no Canto 2, que um tal Ântifo serviu de jantar ao
Ciclope e, no Canto 17, no-lo apresenta em Ítaca, sentado no meio dos amigos, não sabemos
ao certo se deveremos falar em autorias diferentes, ou numa das muitas sonecas que já
Horácio atribuíra ironicamente a Homero (indignor quandoque bonus dormitat Homerus [Arte
Poética, 359]). A lógica discursiva (ou a falta dela) não é o critério mais seguro para a
identificação das interpolações; no balanço final, as incoerências que devem pôr o helenista de
sobreaviso ocorrem ao nível da fonética, da morfologia e do léxico – problemas que os leitores
verão muitas vezes referidos nas notas tradução, explicados de uma forma que, tanto quanto
possível, possa fazer sentido a não-helenistas.
A tempestade deixa Odisseu nu e exausto numa praia de Esquéria (ilha dos Feaces, de
jardins paradisíacos, em que as árvores dão fruto todo o ano), onde é encontrado pela jovem
princesa Nausícaa, num dos mais delicados e deliciosos episódios do poema 26 . A jovem
aconselha Odisseu a apresentar-se, como suplicante, no palácio de seu pai, o rei Alcínoo. No
decorrer das festividades oferecidas pelo rei a Odisseu – onde não faltam contendas atléticas e
danças de mancebos, com desconcertante insistência por parte do poeta e do próprio Odisseu
no tópico da beleza masculina –, somos apresentados ao aedo Demódoco, cantor cego, que
entoa perante os convivas a história picante do adultério de Ares e Afrodite e, um pouco mais
tarde, a pedido de Odisseu, a história do saque de Troia, episódio épico em que o protagonista
é… Odisseu.
Nos Cantos 9-12, Odisseu encanta os convivas do rei Alcínoo com o relato das
aventuras maravilhosas por que passou (onde o leitor de Camões dará certamente pela falta
de qualquer referência à fundação de Lisboa). A acumulação de episódios fantásticos, aliada ao
facto de o narrador das histórias ser intrinsecamente mentiroso, é outra opção perfeita da
parte do poeta. E «opção» é um termo que deverá ser entendido com alguma dose de
literalidade: é que a narrativa de Odisseu na primeira pessoa está repleta de vestígios de
sedimentos anteriores da tradição épica, em que as viagens teriam constituído uma narração
omnisciente na terceira pessoa. O que terá levado o poeta da Odisseia a alterar a tradição?
Terá sentido que não lhe ficaria bem cantar em voz própria coisas tão pouco épicas (se
tomarmos por modelo a austeridade da Ilíada) como Lotófagos, Lestrígones, feiticeiras que
transformam homens em porcos e consultas de necromancia a profetas mortos? Mas por
outro lado percebeu que, como «histórias» na boca de Odisseu, esta sequência de fingimentos
7
poéticos tem um efeito sortílego – em que, curiosamente, por intermédio da arte do poeta,
«sortílego» adquire foros inesperados de verosimilhança.
Já em 1893, o grande helenista Richard Jebb colocara a questão deste modo em The
Growth and Influence of Classical Greek Poetry (p. 25): «O leitor da Odisseia, que sente as
personagens como sendo reais, não é defraudado desta ilusão quando Circe transforma os
companheiros de Odisseu em porcos; ou quando a carne do gado do Sol muge ao ser assada
nos espetos; ou quando Posídon transforma a nau dos Feaces em pedra.» Para explicar este
fenómeno, Jebb recorre a uma imagem sugestiva, em que a linguagem poética surge como a
roupa que oculta um corpo fictício – corpo esse a que as vestes conseguem dar uma ilusão de
naturalidade e realismo. Ou seja, a veste da linguagem poética, por meio da qual os episódios
fantásticos da Odisseia são descritos, encontra-se a tal ponto plasmada no real que, ao vestir
um conteúdo narrativo intrinsecamente inverosímil, anula, pela própria naturalidade do corte,
qualquer desconfiança que se possa sentir quanto à credibilidade do corpo que está a ser
ocultado pela roupagem do discurso poético.
Note-se, ainda, que o argumento de Jebb é tanto mais curioso se recordarmos que, em
virtude da sua mescla bizarra de diferentes dialetos do grego (jónico, eólico, ático), a própria
língua em que os poemas homéricos foram compostos nunca poderia ter sido reconhecida por
nenhum falante do grego como sistema linguístico colado ao mundo real. É que, apesar do
caráter oral da poesia homérica, a língua em que foi composta nunca foi falada.
A meio do Canto 13, Odisseu acorda em Ítaca, para onde fora trazido pelos amáveis
Feaces 27 . É aqui que, depois da «Telemaquia» e das «Viagens de Odisseu», começa a terceira
parte do poema: a «Vingança de Odisseu». É a parte mais longa da epopeia. Por um lado,
suscita-nos um sorriso indulgente a transparência com que o poeta se esforça para fazer
render o material do modo mais extenso possível. Mas, por outro lado, temos
necessariamente de nos maravilhar com a sempre surpreendente exibição de recursos novos,
com a incomparável subtileza na arte do contraste, visível em cada página, e – sobretudo –
com o fôlego poético, que permite acumular tensão, num longo crescendo de mais de 4000
versos, até à explosão de sangue na chacina do Canto 22. Abundam momentos inesquecíveis,
dos quais não posso deixar de destacar o mais comovente: Odisseu disfarçado de mendigo a
entrar, após 20 anos de errores, no palácio de Ítaca, onde ninguém o reconhece a não ser o
seu velho cão, atirado já moribundo para um monte de esterco. As lágrimas que Odisseu tenta
esconder, quando percebe que o cão esperou por ele para morrer, têm corrido ao longo dos
séculos pelas faces de incontáveis leitores do episódio.
Assim, não será somente na questão do maior requinte narrativo que a Odisseia
mostra qualidades próprias, ausentes da mais perfeita Ilíada. Perpassa no poema um
8
compadecimento mais emotivo pelos problemas humanos: há várias vinhetas em que o poeta
se detém para referir figuras vulneráveis com dificuldades que nos comovem, como por
exemplo a escrava doente no Canto 20, cuja debilidade a obriga a trabalhar pela noite dentro
para cumprir as tarefas que lhe foram atribuídas, quando as outras escravas já estão a dormir.
Mas, ao mesmo tempo, a inexorabilidade da dor e da morte, que confere um negrume tão
insistente Ilíada, dá lugar, na Odisseia, a um matizar mais ameno de cores. Pelo menos ficamos
com a ideia de que existe uma relação de causa e efeito no sofrimento humano: os homens
sofrem porque praticam a injustiça, diz Zeus no momento inicial do Concílio dos Deuses. Por
outro lado, parecem ter mais margem de escolha na determinação do rumo das suas vidas: na
Odisseia, não há um condicionamento tão carregado por parte do Destino na vida dos homens;
parece haver mais lugar para opções individuais. Há como que uma abertura dos deuses em
relação ao ser humano (neste aspeto, a ligação entre Atena e Odisseu é especialmente
significativa): os desígnios divinos da Ilíada, impossíveis de perscrutar, apontam agora para
conceções mais modernas – para as conceções de crime e castigo, que darão mais tarde, aos
tragediógrafos do século V (e aos romancistas russos do século XIX), amplo campo de
manobra.
Além de apontar em muitos aspetos para o teatro ático do século V (e para os três
géneros: tragédia, comédia e drama satírico), a Odisseia pode ser lida como o primeiro
romance em verso. Em O Caminho de Guermantes, Proust refere a surpresa de descobrir nas
remotas personagens homéricas emoções imediatas de hoje. Pela nossa parte, diremos que
obras de nomes de culto da cultura popular como Tolkien ou Spielberg seriam impensáveis
sem a matriz da Odisseia por trás. Mas continuará a ser a recuperação do seu conteúdo feita
em momentos marcantes da História por génios universais como Virgílio e, por intermédio
dele, Camões que, no balanço final, nos dará o testemunho decisivo da sua universalidade.
9
Respondendo-lhe, assim falou o astucioso Odisseu:
Eleva
10
Ocaso;
marido.
dividimos
para que por mim ninguém visse sonegada a parte que lhe
cabia.
cambaleante.
valentes.
11
Chegaram de seguida, como nascem folhas e flores na
primavera,
dores.
destino.
alguém
12
colocámos os mastros, içámos as brancas velas e sentámo-nos
13
com as mãos nem aram a terra; mas tudo cresce
dessem
outros;
14
amarras, âncoras de pedra ou cordas atadas à proa;
correr
companheiros.
15
Olhámos então para a terra dos Ciclopes, ali tão perto,
arvoredos
16
Comigo levava um odre de pele de cabra, cheio de vinho
água;
Foi com este vinho que enchi o grande odre; e víveres pus
17
conduzíssemos
eles
230 Mas quando ele apareceu, não foi amável para com os
companheiros.
245 uma de cada vez; debaixo de cada uma pôs a cria dela.
aquosos?
18
É com fito certo, ou vagueais à deriva pelo mar
ventos.
céu,
venerandos.”
Égide,
eles.
19
Mas diz-me onde fundeaste a tua nau bem construída:
mar.
resposta,
companheiros.
terra.
20
Esperámos, a chorar, que chegasse a divina Aurora.
320 verde, que ele cortara para depois o usar como cajado,
21
Logo conduziu para a ampla gruta os gordos rebanhos —
dissera.
segurando
humana,
nau.
insuportável!
alegrou,
vez.
nome,
22
360 Assim falou; e de novo lhe ofereci o vinho frisante.
dizer-to,
23
390 As pálpebras por cima e as sobrancelhas estavam queimadas
ardiam.
lados —
ressoou.
24
na esperança de apanhar algum de nós que tentasse sair atrás
Estes eu atei uns aos outros sem dizer nada com os vimes
ordenhadas.
percebeu
25
“Querido carneiro, porque sais assim em último lugar
outros.
salgado.
26
475 “Ó Ciclope, parece que não eram os amigos de um homem
fraco
escavada.
casa.
490 da terrível desgraça. Eles por sua vez remaram com afinco.
495 Ainda agora ele atirou um projétil ao mar que fez a nau
coração.
27
“Ó Ciclope, se algum homem mortal te perguntar
hospitalidade
520 E será ele a curar-me, se assim lhe aprouver; pois não o fará
casa,
28
filho de Laertes, que em Ítaca habita.
para que por mim ninguém visse sonegada a parte que lhe
cabia.
naus
29
560 Quando surgiu a que cedo desponta, a Aurora de róseos dedos,
Canto 10
30
ventos,
leve.
para que levasse à sua frente as naus e os homens. Mas tal não
estava
31
50 acordei e refleti no meu nobre coração
companheiros.
mal?
casa.
32
De tanto remar estava o espírito dos homens cansado,
por culpa nossa: pois já não soprou vento que nos ajudasse.
33
Chegando-se ao pé dela, perguntaram-lhe
110 quem era o rei daquele povo, e que povo era, a quem ele regia.
moribundos
termos
34
Ambos foram gerados pelo Sol, que dá luz aos mortais,
vozes.
chamejante.
comer
informar.
35
165 a lança de bronze; depois deixei-o jazendo no chão.
destino.
bebida,
admiraram-se
nem onde desce sob a terra o Sol que dá luz aos mortais,
36
algum expediente. Pela minha parte, não julgo.
37
Entre eles falou então Polites, Condutor de Homens,
38
255 melodiosamente. Era deusa ou mulher; e eles chamaram por
ela.
aqui.
nome:
39
sem conheceres o lugar? Os teus companheiros em casa de
Circe
40
Saiu logo, abrindo as portas resplandecentes,
325 “Quem és e donde vens? Que cidade é a tua? Quem são teus
pais?
enfeitiçado.
bebesse
porcos,
41
e a mim aqui reténs, ordenando-me que vá
42
370 E junto de mim colocou uma mesa polida.
espírito.
380 nem bebida? Será que receias outro dolo? Não deves,
43
400 Acercando-se de mim, disse então Circe, divina entre as
deusas:
44
430 e assim falou, dirigindo-lhes palavras apetrechadas de asas:
desgraças?
deusas:
45
e as maldades que vos fizeram homens hostis em terra firme.
46
490 Mas tendes primeiro de cumprir outra viagem
47
Oferece muitas súplicas às cabeças destituídas de força dos
mortos,
mortos,
força
Tirésias.
peixes.”
48
com palavras meladas, dizendo individualmente a cada um:
Canto 11
49
arrastámos primeiro a nau para o mar divino.
mortos,
50
a melhor que tivesse, e que numa pira poria coisas nobres;
força
Tirésias.
51
palavras:
desmedido.
que já não estão connosco, pela tua esposa e pelo teu pai,
52
embora fosse intensa a minha dor, antes de interrogar Tirésias.
sofrendo,
companheiros,
53
Mas na verdade vingar-te-ás da sua violência ao chegares.
modo:
54
aproximar-se do sangue, esse falar-te-á com verdade;
coisas,
55
se permanece junto do filho e mantém tudo guardado,
nas cinzas junto ao fogo, e vis são as roupas que põe no corpo.
195 Jaz na sua dor e uma grande tristeza aumenta em seu espírito,
56
como sombra ou sonho; a minha dor tornou-se mais aguda
210 “Minha mãe, porque não esperas por mim que te quero segurar,
Penélope.”
57
Enamorara-se ela de um rio, o divino Enipeu,
240 e seus passos levavam-na para junto das belas águas do Enipeu.
terra,
sono.
mulheres:
58
Depois dela vi Alcmena, esposa de Anfitrião,
conhecer
frontes
59
Mas quando os meses e os dias se cumpriram
escalado.
juventude.
60
levou de Creta para o monte da sagrada Atenas,
Dioniso.
dirija
para a nau veloz para junto dos companheiros, quer fique aqui.
61
confirmado toda a nossa oferta; o transporte dirá respeito
dispusesses
sono.
62
a contar outras coisas ainda mais lamentáveis, desgraças
casa
encontraram.
modo:
63
foi Egisto que, desencadeando a minha morte e o meu destino,
convidar
mata
braços,
64
“Ai, Zeus de ampla vista detestou na verdade
ausente.”
modo:
65
465 Enquanto ali estávamos a trocar estas tristes palavras,
Éaco,
Aquiles!
mortos,
Aquiles.”
modo:
66
a reinar sobre todos os mortos falecidos.
pai!
Mas que guerreiro foi o filho de Télefo que ele matou com o
bronze,
67
520 o herói Erípilo! E junto dele foram mortos muitos camaradas
Foi ele o homem mais belo que vi, a seguir a Mémnon divino.
fabricara,
tremer.
Troianos.
devida,
68
Dirimiram a contenda rapazes dos Troianos e Palas Atena.
Tal era a figura que a terra cobriu por causa destas coisas —
armas
69
Vi também Títio, filho da magnificente Gaia,
frutos,
tornozelos,
70
605 Em seu redor ouvia-se o clamor dos mortos, como aves
620 Eu era filho de Zeus, por sua vez filho de Crono, mas tive
Uma vez até para aqui me mandou, para trazer o cão de Hades.
terror
71
635 da mansão de Hades a monstruosa cabeça da Górgona.
72