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504-65
ILÍADA, HOMERO

Muito bem, meus caros! Lentamente, estamos formando muito mais do que
um clube de leitura. O Seminário é uma experiência para a nossa vida. Nós lemos
juntos, quem analisa sou eu, vocês mandam as perguntas – e nós vamos crescendo
juntos numa leitura que é sempre aprofundada. Uma das características do
seminário é exatamente essa. Ninguém tem a angústia da pressa. Nós acabamos
de ler A República, de Platão, e fizemos uma leitura minuciosa. Muita gente me
escreveu dizendo que foi uma experiência incrível, e que, se não fosse da forma
como fizemos aqui, nunca teria lido A República, que é um dos textos centrais do
pensamento ocidental.
O nosso trabalho é fazer uma leitura que não seja apenas técnica – insisto
nisso. Em breve, sairá um livro meu sobre o papel da literatura, no qual
desenvolvo a minha tese de que a literatura é inseparável da vida. Não podemos
tratá-la apenas como texto, mas, sim, como parte intrínseca da vida. A nossa
existência cotidiana pode e consegue encontrar respostas para as nossas
interrogações, sejam elas de que tipo forem, na literatura. Ao mesmo tempo, a
literatura nos interroga e faz com que pensemos mais a respeito da nossa própria
vida e nossas decisões. Ler, e ler clássicos, é uma experiência incrível. Esta é a
caminhada que estamos fazendo aqui, juntos.
Estamos aqui para a nossa primeira aula sobre Homero e a Ilíada. Antes de
entrarmos no texto homérico e começarmos a realmente ler a Ilíada, precisamos
de uma introdução que nos ajude a habitar no texto homérico, compreendendo as
características temáticas e formais que compõem o poema. Isso não é nenhuma
novidade para quem está no seminário desde o início. Nós nunca vamos direto ao
texto. Toda obra, e sobretudo as clássicas, precisa de uma contextualização.
Em primeiro lugar, acho que não é novidade para ninguém que Homero é
um desconhecido. Nós não temos dados biográficos certos sobre ele. Muitos
estudiosos até mesmo duvidam até hoje de que ele tenha sido uma pessoa real e
concreta. O problema começa pelo próprio nome dele: a palavra grega
“Homeros” significa, como substantivo, “empenho”, no sentido de insistência
obstinada, tenacidade, e também significa “refém”, como um prisioneiro. Esta
mesma palavra pode ser usada também como adjetivo, e, neste caso, significa
“cego”. Para os antigos, apesar da importância que o testemunho ocular de alguém
sempre teve, o estado de cegueira poderia implicar numa sabedoria que surge da
contemplação e da meditação das coisas interiores e transcendentes. É como

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ocorre na tragédia Édipo Rei, de Sófocles, em que o cego Tirésias assume uma
posição central, ou como ocorre com o próprio Édipo ao fim da tragédia, que
condena a si mesmo a passar o resto da sua vida olhando apenas para seu próprio
interior. Por todos estes motivos, muitos acreditam que o nome de Homero é, na
verdade, o símbolo de um poeta sábio que ensina e canta as coisas que são
fundamentais para a cultura do povo grego.
Para outros estudiosos, o substantivo indica que Homero poderia ser um
prisioneiro de guerra, como todos os Homéridas, ou seja, os discípulos de
Homero, que viviam na Ilha de Quios. Alguns estudiosos acreditam que, no início,
eles se reuniam ali por serem reféns ou filhos de reféns de determinadas guerras,
e que, movidos pela semelhança do nome do poeta com seu estado de reféns na
ilha, tornaram-se, então, descendentes de Homero e mantinham a tradição de
cantar os seus poemas e garantir que os poemas originais não fossem modificados.
Isso, porém, nunca foi completamente provado. O nome “Homéridas” acabou
designando a todos que se especializaram em declamar poemas homéricos.
Voltando a Homero, os antigos, que acreditavam na sua existência, também
disputavam entre si o lugar de seu nascimento. Todos queriam que Homero
tivesse nascido na sua própria cidade. Existem alguns epigramas presentes na
ontologia grega que dão a entender que Homero teria nascido em Esmirna, vivido
em Quio e falecido em Io. Estes epigramas são conjuntos de inscrições que se
colocavam em monumentos, estátuas e moedas – qualquer inscrição que fosse
dedicada à lembrança de um evento memorável ou uma pessoa que tenha tido
uma vida exemplar. A antologia que reuniu esses epigramas, além de poemas e
fragmentos de poemas, foi criada no século I antes de Cristo. No que se refere a
Homero, apesar das várias citações, é impossível que tenhamos qualquer certeza.
Todas essas perguntas se vinculam e se misturam. Já na antiguidade,
surgiram as primeiras dúvidas. No século três antes de Cristo, o filólogo Aristarco
de Samotrácia acreditava que uma mesma pessoa havia escrito os dois poemas
épicos. Ao mesmo tempo, um historiador chamado Elanigo de Lesbos pensava
que a Ilíada e a Odisseia não poderiam pertencer ao mesmo autor. Longino, autor
do livro “Sublime”, insistia que os poemas eram da mesma pessoa, mas que a
Ilíada era a obra da juventude, enquanto a Odisséia teria surgido na velhice de
Homero.
Estas dúvidas e debates persistiram no decorrer da história. No século
XVII, surgiu a ideia de que os dois poemas representam, na verdade, aglomerados
de cantos que já existiam, e que não teriam sido escritos por um Homero real. Há
estudiosos que chegam a dizer que os cantos da Ilíada e da Odisséia foram unidos

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até mesmo de forma desarmoniosa, e que eles não teriam valor literário
significativo.
Mais tarde, no século XVIII, o filósofo Giambattista Vico analisou Homero
e usou o termo “poligênese” para se referir aos poemas, inclinando-se para a ideia
de que existiram vários autores, e que Homero nunca existiu e era apenas um
personagem simbólico. No mesmo século, o filólogo Friedrich Wolff afirmou que
os cantos homéricos haviam existido como poesia oral até o ano 950 antes de
Cristo e que, quando foram colocados por escrito, sofreram sucessivas
modificações até chegarem a um determinado trabalho filológico, talvez realizado
na Biblioteca de Alexandria, e que deu a forma final das duas obras. Essa teoria
foi difundida por inúmeros intelectuais.
No século seguinte, o filólogo Karl Lachmann acreditou ter encontrado, nas
suas pesquisas, rastros de dezoito poemas que teriam sido refundidos na Ilíada e
na Odisséia. As discussões continuaram, e muita gente concordou que haviam
cantos precedentes aos textos definitivos, e a grande questão era: será que alguém
uniu estes cantos de forma intencional? Será que houve uma intencionalidade
artística?
No início do século vinte, os estudiosos acabaram reconhecendo que a
Ilíada e a Odisséia tiveram como base a obra de poetas anteriores, mas que
adquiriram sua forma final graças a outro grande poeta – Homero – que
reelaborou, de modo pessoal, materiais que era preexistentes. Em 1996, um genial
estudioso de Homero levantou a questão de que os cantos tiveram, na verdade,
uma longa etapa de gestação, que durou do ano dois mil antes de Cristo até o ano
oitocentos antes de Cristo. Depois, teria havido uma etapa que ele chama de
“difusão pan-helênica” ou seja, uma difusão por toda a Grécia. Isso teria ocorrido
entre o ano oitocentos antes de Cristo e quinhentos e cinquenta antes de Cristo,
aproximadamente. Depois, teria ocorrido um período de transcrições dos cantos,
que teria levado cerca de duzentos anos. Por fim, um período que podemos
chamar de padronização acadêmica, que durou cerca de um século. Ocorreu,
então, uma cristalização dos poemas da forma como nós conhecemos hoje, e isso
teria acontecido a partir do anos duzentos antes de Cristo, quando os textos foram
quase plenamente fixados, sem nenhuma variante posterior.
Há outros investigadores que afirma que a complexidade interior dos
poemas só poderia ser explicada por uma origem que fosse escrita e que jamais
tivesse passado por um processo de transmissão oral, para só depois ser colocada
no papel.

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Vejam que o que eu fiz foi um resumo dos debates. Todo este processo
levou ao surgimento de quatro comportamentos básicos dos estudiosos. Há uma
linha de pensamento que podemos chamar de analista, e, para eles, a análise dos
poemas permite perceber, a partir de contradições que existem no texto, que cada
poema é a soma de elementos independentes e de sucessivas adições.
Depois, há outra linha, chamada “unitarista” que destaca que há uma união
poética unitária em cada obra e no que elas transmitem, apesar das interpolações
que ocorrem nos dois poemas e que podem ser explicadas pela técnica de
composição – mas não têm tanto peso, ou seja, não chegam a quebrar a unidade
do poema. Em muitos casos, estas interpolações também são discutíveis.
Há uma linha chamada “neounitária”, na qual os estudiosos reconhecem
que ocorreram agregações ao longo da história dos poemas, mas afirmam que a
criação de cada poema é uma unidade fundamental, mesmo que não pertença a
um único autor.
Por fim, temos uma linha chamada “neoanalítica”, que reconhece
elementos de composição prévia nos poemas, mas afirma que eles foram
recriados, e nunca copiados por um autor.
Vejam como existe uma ampla diversidade de teorias a respeito do que
chamamos de “questão homérica”. Analisando essas linhas de pensamento, se
fosse possível estabelecer alguns pontos em comum, em primeiro lugar os dois
poemas foram compostos utilizando elementos prévios.
Em segundo lugar, existiu o que chamamos de “vulgata” dos poemas
homéricos. Existiu uma versão mais difundida e mais aceita como autêntica dos
poemas. Essa vulgata recebeu mudanças que foram acrescentadas pela via oral.
Em terceiro lugar, existe um argumento com força suficiente para negar
que as obras sejam de um poeta, mas não há argumentos suficientes para negar
que este poeta tenha existido. É por isso que, para além das dúvidas, vários
historiadores da literatura grega do século XX aceitam a existência real de
Homero. Alguns, inclusive, se baseiam no que Heródoto escreveu, e concluem
que Homero teria vivido no século nove antes de Cristo. Outros, porém, acreditam
que ele tenha vivido no século oito antes de Cristo.
Seja qual for a duração de sua vida, Homero pôde conhecer os cantos que
foram transmitidos oralmente, de geração em geração, que foram amplamente
difundidos de forma oral. Ele também pôde decidir a seleção e a combinação
destes cantos, dando a este material uma determinada intencionalidade. Ele elegeu
e recortou não só os assuntos e as cenas, mas também os temas que quis destacar.
Além disso, concedeu unidade aos dois poemas. Isso significa que ele realizou

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uma compilação dos materiais conhecidos, mas também uma reelaboração deles.
Contudo, este trabalho não foi apenas uma repetição do que foi feito por outros.
Ele não foi alguém que simplesmente costurou poemas diferentes, mas, sim, foi
um verdadeiro recriador. Homero foi um verdadeiro poeta.
Além disso, as diferenças que existem entre Ilíada e Odisséia não impedem
que sejam ambas de um mesmo autor. Isto porque a técnica de composição é
basicamente a mesma. Isso também ocorre com a língua e o estilo dos poemas. É
importante lembrar, também, que nem sempre a diferença de estilo é uma
diferença de autoria. Se assim fosse, os escritores escreveriam sempre do mesmo
jeito.
Outra questão importante é o fato de que existem características sociais,
econômicas e éticas diferentes entre as duas obras, mas isso também não significa
que elas não possam ser do mesmo autor. O escritor também pode, numa
determinada obra, apresentar valores passados, ideias que não existem mais, e,
em outra, ele pode decidir apresentar a sua vida contemporânea. Ele pode decidir
alterar sua técnica, seu próprio estilo…
Hoje, existe uma tendência a se aceitar que Homero nasceu na Jônia, uma
região na costa sudoeste da Anatólia, que hoje é a Turquia. Esta tendência existe
por dois motivos: primeiro, porque prevalece o dialeto jônico na língua na qual
Homero utiliza para compor os poemas. Além disso, porque essa região está
geograficamente próxima dos vestígios da cidade de Tróia, e também porque lá
surgiu a escrita como um sistema alfabético adaptado dos fenícios.
Quando lemos A República, vimos as críticas de Platão a Homero. Estas
mesmas críticas foram feitas por outros, na Antiguidade, como o historiador e
biógrafo Diógenes Laertius, ou o filósofo Xenófanes. Nós vimos que Platão
expulsa os poetas da sua pólis ideal, porque achava que a poesia mimética
distorcia a realidade, que eles escreviam falsidades e ensinavam imoralidades. A
verdade é que Homero foi aprovado de forma geral, e foi não só exaltado por
Aristóteles, mas também memorizado pelos jovens gregos, e muitos de seus
versos eram utilizados como preceitos de sabedoria.
É importante que vejamos também algumas questões de ordem
arqueológica em relação à Tróia. As investigações que levaram a determinar a
existência histórica de Tróia e da guerra que é parcialmente relatada por Homero
começaram em 1871, com um comerciante alemão chamado Heinrich Shima, um
aficionado pelas línguas e culturas antigas, que aplicou grande parte da sua
fortuna para conseguir que o governo turco autorizasse o início das escavações.

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Como ele não era um arqueólogo profissional, ele cometeu erros de metodologia
de trabalho, além dos erros na determinação da antiguidade dos seus achados. Na
verdade, ele chegou a uma camada que os arqueólogos chamam de “estrato dois”
de Tróia. Isso contaminou toda a vida acadêmica do mundo ocidental; estes
achados foram sendo corrigidos, e as descobertas, aprofundadas. Se não tivesse
sido por Homero e por seus poemas, talvez essa escavação nunca tivesse ocorrido,
e o sítio arqueológico não teria tanto renome quanto tem hoje.
A história dos achados arqueológicos é longa, repleta de detalhes, mas o
fundamental para nós é que, em 1988, o Manfred Korfmann iniciou um projeto
que manteve até sua morte, em 2005. Nesta época, já se sabia que a Tróia da Ilíada
era, em termos arqueológicos, o que eles chamam de “Tróia sete”, que foi
destruída pelos Aqueus em torno do ano 1240 a.C. Com as escavações que
realizou, o Korfmann também pôde revelar detalhes de diferentes partes da
cidade, e demonstrar como estes dados arqueológicos coincidiam com a Tróia
descrita por Homero. Existia uma cidade e também uma cidadela, cada uma delas
tinha uma muralha, era próxima ao mar, mas tinha uma planície entre ela e o mar,
com vegetação e alguma elevação, cruzado por rios. A muralha tinha um lugar
mais acessível, a cidade era elevada com torres, edifícios, ruas e portas largas,
tinha uma grande praça, um bairro baixo entre as muralhas, e também se
comprovou o consumo abundante de cavalos, de acordo com o volume
extraordinário de ossos deles.
Percebam, porém, que Homero pode ter visto os restos de tudo isso. Restos
que poderiam ainda não estar totalmente encobertos pelas camadas do tempo.
Pode ter acontecido com Homero o que acontece conosco hoje: vamos a Atena e
vemos os restos da acrópole, ou a Roma e vemos as ruínas do Coliseu. Vendo,
imaginamos e podemos reconstruir poeticamente o passado destes lugares.
Provavelmente, foi o que Homero fez.
É evidente que estas observações e conclusões arqueológicas geraram e
continuam a gerar posições controversas. A questão central é que um poema
nunca é um documento histórico. Você não pode pretender que um poema tenha
exatidão ou fidelidade absoluta à história; ele é só uma base histórica sobre a qual
o poeta recria e faz adaptações seguindo seus próprios desejos e objetivos.
No que se refere à sociedade retratada na Ilíada, as opiniões também são
divergentes. Alguns dizem que Homero retrata, sim, a sua própria época, o século
oito antes de Cristo. Contudo, seguindo os hábitos e os interesses da classe mais
alta ou aristocrática da época. Outros dizem que Homero apresenta um amálgama
de informações que circularam a partir de diversas fontes por séculos. Outros

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afirmam que ele tenta apresentar a civilização micênica, que é localizada do outro
lado do mar Egeu. Tróia está na atual Turquia, do lado direito do mar Egeu, e a
Grécia, civilização micênica, exatamente ao lado oposto.
Homero teria conseguido fazer isso graças aos elementos transmitidos pela
tradição oral, e teria se ocupado de pegar essas tradições antigas e misturá-las com
as características de seu próprio tempo. Nessa superposição de etapas e de
camadas sociais, isso também é verificado pelos estudiosos quando eles analisam
os dialetos que são utilizados no poema. Analisam, também, as técnicas militares,
a concepção da vida após a morte e a menção que se faz a adoração aos deuses
em determinados locais.
Há também, nos poemas, semelhanças nos dialetos gregos e conexões com
diferentes línguas da região da Anatólia. Além disso, a identificação dos nomes
geográficos que Homero utiliza, com os sítios arqueológicos descobertos, acabou
provando-se que os gregos são uma fusão de diferentes povos locais e
estrangeiros, com o fenômeno de que essa fusão não provocasse uma ruptura
cultural.
É provável que em toda essa zona do mar Egeu se falasse línguas
indoeuropeias, mas que houvesse uma língua básica, que chamamos de Koiné,
que tem traços em comum e era compreensível para a maioria das pessoas, ainda
que ocorressem pequenas diferenças. É por este motivo que na Ilíada todos se
entendem, apesar de terem diferentes procedências e de que, em certas passagens,
o poema chegue a indicar a existência de diversidade linguística. Os aliados de
Tróia, por exemplo, numa determinada passagem falam outra língua, além de
serem homens diferentes. Há certos lutadores que têm vozes bárbaras, enquanto
os troianos têm aquele grito bélico e partem para a luta como se diferentes línguas
se misturassem, porque eram homens convocados de muitos locais diferentes.
A própria sociedade que surge dos poemas é, em grande medida,
indoeuropeia, e tem um sistema de sucessão política peculiar. Você poderia
chegar a ser rei por meio do casamento; a mulher legitimava o seu marido como
rei, seja por endogamia ou por exogamia. Se o rei é exogâmico, os seus filhos
homens não podem participar da linha de sucessão. Homero também apresenta
reis que estão sempre no mesmo nível de seus cidadãos. Eles realizam
assembléias com os cidadãos e são reconhecidos como chefes não por escravos,
mas por homens livres. Agamenon é um exemplo de rei que chefia os homens.
Há, também, artesãos, comerciantes…
O ferro é material precioso, enquanto o bronze é usado para armas e
utensílios. Também há diferentes tipos de escudos, e, além disso, um catálogo de

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navios considerado por muitos estudiosos como um trecho que foi interpolado na
Ilíada posteriormente. Estes navios correspondem aos navios usados pelo povo
Equita, que foi um império poderoso da Anatólia central. Muitos objetos são
próprios da era micênica, mas o poeta parece tratar estes objetos como se fossem
da sua própria época. Podemos falar também a respeito do surgimento da prática
de oferecer roupas ou trocar roupas das estátuas das deusas. Este rito era muito
comum na Grécia de Homero e em outras culturas milenares, como Egito e
Mesopotâmia.
Vários elementos dos poemas mostram que Homero evoca a época de
Tróia. Contudo, utiliza também elementos contemporâneos seus, ou seja, ele é,
realmente, um poeta. Ele não pretendeu fazer história, mas fez algo que hoje
talvez se aproxime de uma novela histórica, como uma ficção literária com base
histórica, mas que, por ser ficção, aceita uma infinidade de desvios. É como se
Homero exagerasse, inventasse e retornasse ao passado.
Outra questão que não deve ser esquecida é a afirmação do historiador
Heródoto, de que Homero e Hesíodo elaboraram a teogonia dos gregos, ou seja,
deram nome a eles, distribuíram seus direitos, suas características, suas honras, e
tornaram mais claras as imagens dos deuses para os homens. Não é que Homero
e Hesíodo tenham sido fundadores da religião grega, mas eles colocaram em
ordem uma multiplicidade fabulosa de representações religiosas e de usos
religiosos. Homero fez isso de forma artística e fantástica, por meio de uma
seleção de heróis que muitos dos seus ouvintes e leitores consideravam como seus
próprios antepassados.
Não há, portanto, uma invenção de deuses, mas se trata de uma religião
arraigada a uma crença nacional grega. A religião dos deuses olímpicos é a da
nobreza jônica, e a vida dos deuses, com Zeus no ponto mais alto – essa forma de
organização dos deuses é uma espécie de um espelho da monarquia arcaica grega,
na qual o supremo chefe militar enfrentava a resistência dos príncipes que eram
chefes de exércitos subordinados.
Encontramos, portanto, a aspiração à ordem e à submissão das potências
divinas e até demoníacas sobre um deus que leva o governo do mundo nas suas
mãos. É uma aspiração que vai da pluralidade dos deuses para uma unidade que
é ainda reforçada pelas moiras, que teciam o destino dos homens. Vejam como
de certa forma as moiras estavam acima do próprio Zeus, porque elas
representavam a inviolável lei do mundo, a qual deveria se submeter inclusive o
deus supremo. Elas eram a personificação do destino individual, as deusas que
estabeleciam uma parcela de felicidade e desventura que cada ser humano deveria

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ter, então projetam uma vida humana que nem mesmo Zeus poderia transgredir,
e, se transgredisse, estaria colocando em perigo a ordem do próprio cosmo.
Precisamos nos lembrar, também, que no tempo em que os poemas
homéricos surgiram, os gregos já tinham superado as fases primitivas da sua
religião. Em Homero não há nenhum tipo de “fetichismo”, como adoração a
determinados objetos. Também desapareceu o “totemismo”, que é o culto aos
animais. Houve uma época na qual havia o culto às árvores, e isso também
desapareceu completamente. Também não há mais a veneração das chamadas
divindades subterrâneas, que se opunham às divindades do Olimpo. Não há,
ainda, forças demoníacas da escuridão, mas, sim, apenas as erínias, que são como
a personificação da punição que ocorre sobre os mortais que cometem crimes de
sangue. Elas são como guardiãs da lei natural.
Na Ilíada não ocorre nenhum tipo de magia; só o culto aos mortos é que
ainda aparece no ritual dedicado a um dos heróis quando se sacrificam a cavalos,
cães e presos troianos antes de colocar o herói na pira crematória. É preciso que
percebamos que a religião homérica não tem uma característica mística. Não há
verdadeiro temor aos deuses. O homem homérico se ergue de maneira
absolutamente livre diante dos deuses, e isso se expressa até mesmo na maneira
como ele reza, que é de pé, com as palmas das mãos voltadas para cima e os
braços erguidos. A mesma liberdade existe em relação ao que poderíamos
considerar como potências do inferno. Não há fantasmas nem medo da morte,
porque os mortos estão no Hades e não podem fazer nada contra os vivos.
A religião homérica é da luz e da mundanidade. A luz são os deuses, e o
que o põe acima dos homens é a sua plenitude vital, a sua imortalidade, a sua
juventude eterna, mas nunca uma moralidade superior. Os deuses também não
estão isentos nem mesmo do sofrimento. Zeus, por exemplo, tem de assistir à
morte de seu filho Sarpedão; Tetes tem de ver Aquiles morrer. O desejo do
homem homérico é viver na luz, e, se possível, morrer nela, porque a vida na
Terra e na mundanidade é a vida real para o homem homérico. O homem corpóreo
é o homem mesmo, o homem real, e a sua psique parte para o Hades depois da
sua morte chorando, porque perdeu a virilidade. Essa sombra que reside no Hades
é uma cópia só inerte, sombra da realidade terrena, e por lá ficará peregrinando.
Apesar deste amor pela vida, ela também se apresenta como um benefício
problemático. É por isso que surgem versos em que se lamenta a brevidade e a
fugacidade da vida. Não é só a brevidade da vida que diminui o valor da sua
existência. Vejam que, sob a aparência enganosa da felicidade, se escondem
muitas desgraças. O homem que experimenta tais desgraças conscientemente é

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quem mais sofre. O próprio Zeus diz: “De tudo o que vive e rasteja na terra, nada
é mais miserável do que o homem”. O sofrimento é, portanto, parte do destino
humano, e um elemento integrante da vida. O homem que recebe dos deuses uma
mistura dos males e dos bens precisa se sentir satisfeito. Há, porém, alguns
homens que são mesmo perseguidos pela desgraça. Vejam que a terceira opção,
de um homem que só recebe bens, é uma completa impossibilidade. O homem
grego não se rende diante dos males da vida, mas se sente com força suficiente
para enfrentar todos os males. O grego não sabe o que é um demônio; não há outra
solução a não ser atribuir tanto os bens quanto os males aos deuses.
Percebam que há uma mudança da Ilíada para a Odisséia. Na primeira, são
os deuses que descarregam os males sobre os homens, mas, na Odisseia, o poeta
já começa a dizer que o mal vem dos próprios homens, que o próprio homem
causa seu sofrimento pelos seus crimes cometidos contra seu destino. Dessa
forma, a causa do mal e a subsequente desgraça passa a estar na própria vontade
do homem. Isso significa que os gregos admitiam a possibilidade de que a decisão
e a atitude humanas seguissem na direção contrária daquela que foi estabelecida
pelas moiras. Chega-se a usar a expressão “contra o destino”, ou “por cima do
destino”. Ao cometerem crimes, os homens buscam sofrimentos que superem os
sofrimentos que os deuses já tinham destinado a eles.
Vejam como a crença nos deuses não faz a vida mais fácil, porque a ação
dos deuses está plenamente determinada pelas suas simpatias e suas antipatias em
relação a este ou aquele homem, esta ou aquela cidade. O governo destes deuses
é completamente arbitrário, e até mesmo o próprio Zeus, que deseja ser um ser
neutro, tem suas dificuldades para dar a aparência de equilíbrio e de justiça.
Vemos, na Ilíada, inúmeros casos nos quais o próprio Zeus não consegue impedir
que ocorram desníveis de justiça.
Homero também toma liberdades incríveis com os deuses, colocando-os
em situações irônicas ou até mesmo crônicas. É o que ocorre, por exemplo, entre
Zeus e Hera, quando a esposa o engana. A simples ideia de que isso ocorra é uma
audácia tremenda do Homero, quase uma blasfêmia. O poeta é colocado numa
situação ridícula, como o casal mais supremo do Olimpo. Podemos nos lembrar
de que o casamento de Hera e Zeus era uma das festas mais celebradas pelos
gregos. Mesmo a batalha que ocorre entre eles é uma coisa no mínimo
improcedente. A narrativa é linda, mas isso coloca os deuses no mesmo nível dos
homens – o que também era inaceitável. De qualquer forma, essas cenas mostram
uma grande liberdade de espírito do Homero e da sociedade em relação aos seus
deuses.

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Essas cenas também mostram uma tendência em relação a um tipo de
intelectualismo que se manifesta, inclusive, no campo da ética. O que nós
chamamos de sentimento moral é, para os gregos, outra coisa, uma forma de
conhecimento. O homem homérico conhece e sabe discernir entre o justo e o
injusto. Ele conhece o seu dever. Quando Ulisses estava abandonado na batalha e
pensava se deveria ou não fugir, porque seus inimigos eram superiores, ele sabe
que, como rei e herói, ele não pode fugir, independentemente do resultado da luta.
Saber envolve um nível de responsabilidade, e essa ideia é a mesma que vimos
na República de Platão. Aquele que conhece o bem na sua essência tem a
obrigação de agir conforme ele.
Essas são algumas das características do Homero, e nós veremos muitas
outras. A complexidade com que o Homero descreve a vida humana em todos os
seus estados e em todas as suas situações imagináveis, abarcando todo o cosmo.
Isso transformou Homero no poeta de maior excelência para os gregos e para o
mundo ocidental, como um símbolo da sabedoria grega.
Muitos estudiosos colocam Homero ao lado de Platão, porque apesar de
todas as críticas platônicas, ninguém pode negar que Homero foi o educador da
Grécia. Por este motivo e pela suprema autoridade que Homero teve em todas as
gerações posteriores, alguns autores chamam a Ilíada e a Odisséia de “bíblias
gregas”.
Acho que esta aula serve como uma breve introdução para começarmos a
ler a Ilíada. Acredito que muitos alunos não conhecem as características da épica
enquanto gênero literário; portanto, antes de entrar no texto, estou pensando em
falar sobre elas. Há uma série de características que são muito diferentes da poesia
composta nos dias atuais. Depois disso, entraremos no texto para que possamos
analisá-lo com mais fluidez.
Vamos às perguntas.

JANAINA PINHEIRO: Professor, achei curioso saber que a região


correspondente a Ílion, apesar do auge de riqueza vivido na época, foi se
deteriorando devido ao assoreamento de alguns rios.
RODRIGO GURGEL: Sim, é possível. Era uma região riquíssima. O
império Hitita é impressionante. Eles pegam não só a região central da Turquia,
mas também todo o sul dela, com portos e várias coisas impressionantes.
Comparando a região onde está Tróia com o império Hitita, é uma região até
pequena. Na região onde estava Tróia havia muitos rios e era como uma planície
repleta de vegetação.

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CAIO LEONHARDT: Achei interessante a parte que se refere à ousadia
para com os deuses, correndo o risco de censura ou de consequências maiores.
RODRIGO GURGEL: Isso era muito comum, e vemos muito na Ilíada e
na Odisséia. Há deuses que apoiam os heróis e há os que lutam contra. Pode
acontecer de um determinado herói ser protegido por um deus e perseguido por
outro. Você poderia fazer alianças com os deuses, exatamente para não ser
destruído por outros. Há deuses que até permitiam que um deus se vingasse de
você. É o que acontece com Ulisses, na Odisséia; ele fica peregrinando de um
lugar para outro, perdido, porque o deixaram na mão do Poseidon.

PATRÍCIA NOLETO: Na introdução são mencionados os símiles. O


senhor poderia comentar sobre eles?
RODRIGO GURGEL: Falarei sobre eles na próxima aula, quando falarmos
sobre o estilo literário do Homero. Aí, então, entramos em uma outra série de
figuras que são comuns no texto homérico.

ANA MUNHOZ: Eu uso as edições que encontro em espanhol. Comparo


com os PDFs e até agora está “mano a mano”. No caso da Ilíada, eu não conheço
absolutamente nada. É preferível usar o PDF indicado?
RODRIGO GURGEL: O PDF indicado tem a característica de ter uma
tradução muito clara. Ele não tenta sobrepor a forma ao conteúdo. Isso é muito
bom, porque torna o texto mais acessível para nós, diferentemente da tradução do
Carlos Alberto Nunes que, na minha opinião, é um verdadeiro show de horrores,
porque ele subjuga o texto à forma. Há outras traduções da Ilíada que são
elogiadas, como a do Haroldo de Campos. Nada impede que você encontre, como
no espanhol, alguma tradução que você considere mais acessível para você. Não
precisa ser exatamente essa.

NANDO MORAES: O que o senhor acha da leitura de adaptações para


entender Ilíada, como de Menelaos Stephanides?
RODRIGO GURGEL: Eu acho que isso é bom para crianças. Uma pessoa
adulta, mesmo que não esteja habituada a ler com frequência, ao pegar uma edição
como esta do Frederico Lourenço junto das aulas que ministrarei aqui, é
impossível que não entenda.
Início do canto um: “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus e tantas almas valentes de heróis

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lançou no Hades, ficando seus corpos como presa para cães e aves de rapina,
enquanto se cumpria a vontade de Zeus), desde o momento em que primeiro se
desentenderam o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.” Se você ler
de maneira pausada e ir ao dicionário para procurar alguma palavra que você não
tenha entendido, é impossível não entender o que está sendo dito. A história
começa de forma clara; o poeta pede que a deusa cante o poema, e começa a
narrar.
Eu acho que uma pessoa adulta precisa fazer o esforço de penetrar no texto
adulto, na tradução que se aproxima da original. Aqui no seminário, há crianças
de treze anos que assistem às aulas junto dos pais. Eles podem não estar
acostumados a ler textos assim, então podem ler uma adaptação e, depois, com o
tempo, ler a tradução adulta. O material fica sempre aqui, gravado. Eu conheço
alunos que estão aqui, que têm quinze anos e que têm um nível de leitura
excelente, e que leram a Ilíada adaptada aos doze. Isso varia muito de caso para
caso. Se você é um adulto, acho que vale a pena você tentar ler comigo a tradução
sem adaptação. Os ganhos, em termos de beleza, de figuras poéticas, de recursos
retóricos e estilísticos dão uma beleza ao texto que nenhuma adaptação consegue
repetir.

JOÃO FLORÊNCIO DE SALLES GOMES JR.: Prezado professor, eu


nunca havia ouvido falar das moiras, e fiquei com uma dúvida: essa figura estaria
ligada a uma certa forma de determinismo próximo às leis da natureza ou quando
o senhor se refere ao fato de que o próprio Zeus a elas se submetia, seria algo mais
próximo da submissão do nosso Deus ao livre arbítrio dos homens?
RODRIGO GURGEL: Não vamos comparar com o Deus cristão. Não
façam este tipo de comparações, porque são universos completamente diferentes.
As moiras teciam o destino dos homens; elas mediam o quanto de males e de bens
cada homem receberia, visando criar um certo equilíbrio no cosmo e na vida
humana em geral, de maneira que os homens tivessem mais ou menos as mesmas
oportunidades. Havia casos específicos em que, por não obedecer ao seu destino,
o ser humano acabava se sobrecarregando de males.
No caso de Édipo, ele nasce com um destino traçado, que é o de matar o
pai e se casar com a mãe. Durante toda sua vida, tentam impedir que isso aconteça.
A peça mostra que, a cada tentativa de fazer com que isso não aconteça, mais o
destino acontece, e de maneira cada vez mais trágica, provocando males que se
espalham para todo o conjunto da sociedade. Você estava livre para tentar sair
desta situação limitada; poderia tentar enfrentar essas situações destinadas a você

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de forma covarde e submissa, ou poderia fazer isso de forma corajosa e heróica.
De qualquer forma, você estava livre para ter comportamentos diferentes.
Quando eu disse que Zeus era obrigado a se submeter às moiras, não
entendam isso de forma literal, ou não teria sentido dizermos que Zeus era o deus
supremo do Olimpo. É um problema de ordem técnica. Se elas eram encarregadas
de fazer esta parte do trabalho, e se o desejo de Zeus era manter o equilíbrio,
acontecia que ele não poderia se intrometer no que elas faziam. Os deuses
poderiam, por exemplo, dar dons especiais a determinados homens. Haviam,
também, heróis que eram filhos de um deus com um ser humano, como que
semideuses. Essas pessoas recebiam dons especiais, também, e precisavam
obedecer o seu destino.

ANDRÉ LUIZ CORRÊA: Professor, o primeiro meio da escrita foi o


papiro? É fascinante imaginar que essa obra é tão antiga!
RODRIGO GURGEL: Sim, o papiro, e depois veio a pele de animais.

ALESSANDRO YURI ALEGRETTE: Professor, gostaria que o senhor


comentasse mais sobre o conceito de herói e sua origem.
RODRIGO GURGEL: O conceito de herói está presente em muitas
culturas, e não só na grega. Ao ler, por exemplo, aquela epopeia dos caldeus,
Gilgamesh já tem o herói, que é alguém que vai além dos limites humanos. É algo
que enfrenta o próprio destino e o rompe, ainda que sofra as consequências disso
de maneira atroz. Mesmo quando ele não é um herói, mas alguém que sofre sobre
o peso do seu destino, como é o caso de Édipo, quando ele recebe a verdade a
respeito dele mesmo, o seu drama e a sua tragédia, ele sai de Tebas interiormente
destruído, mas como um homem. Ele sai se apoiando nos filhos, mas caminhando.
Ele aceita o seu destino inteiramente. Aceitar o próprio destino é ser um homem
integral dentro da concepção grega. Você abraça a tragédia como parte intrínseca
da sua vida, e esta é a grande questão.
Nós não podemos fazer comparações com o pensamento cristão, porque ele
inaugura outra forma de conceber a tragédia. Dentro do pensamento cristão, já
não há mais tragédia – não da forma como ocorre na Grécia. Para o cristão, quanto
mais ele penetra na tragédia, mais ele se aproxima de Cristo. Ela, portanto, não é
algo que humilha, mas, sim, que salva. São concepções completamente opostas.
Não podemos fazer comparações assim, porque isso conduz ao erro.
O herói é essa figura que luta até o fim. Ulisses está perdido no meio da
batalha, sozinho, teve um momento de hesitação, mas continuou lutando. Ele não

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recuou porque sabia que precisava obedecer a um princípio que está nele. Ele
conhece este princípio, sabe o que é ser justo e injusto, bom e mau, e este limite
ético precisa ser obedecido a qualquer custo. Quando ele é desobedecido, ocorre
um desequilíbrio tremendo na vida das pessoas e na vida em sociedade. Então,
chega um terceiro elemento que reequilibra tudo com um gesto de sabedoria e
heroísmo ético esperado.

GISELA PIZZATTO: A questão de Platão em relação a Homero é a ideia


de que os deuses não estão, de maneira moral, superiores ao homem, justo? Platão
faz objeção pela desmoralização dos deuses ou pela perda do divino?
RODRIGO GURGEL: Pela desmoralização dos deuses. Ele diz que essa
poesia, da forma como é feita por Homero, pelos escritores trágicos e pelos
comediantes, essa poesia mimética, que mimetiza a realidade, mas não a realidade
última, e coloca os deuses no nível dos humanos, é um absurdo. Segundo ele, uma
poesia assim deseduca a sociedade. Ela pára de ensinar os grandes valores para a
sociedade e torna tudo igual, de forma que não há mais virtude, e os deuses agem
como homens, quando, na verdade, eles são seres virtuosos. Essa ideia dos deuses
homéricos é uma coisa que não existe. Ele vivia na sociedade grega, os cultuava
e não era louco de se contrapor à religião do seu tempo, mas tem uma visão
filosófica completamente diferente. Para eles, os deuses jamais poderiam agir
como seres humanos, com defeitos, ciúmes, inveja e amor humanos. É por isso
que Platão se contrapõe à poesia homérica, às tragédias e às comédias. Ele dizia
que precisávamos de uma arte que mostrasse a realidade última das coisas, a
realidade sobrenatural onde estão as formas essenciais e onde tudo é perfeito.

JONATAS FARIAS SOARES: Mestre, o senhor concorda com as


descrições feitas por Carpeaux acerca de Homero? Tais como “sinônimo de
poeta”, “o maior dos poetas”, “a tradição grega” e “a bíblia do mundo antigo”?
RODRIGO GURGEL: Eu não me lembro o que o Carpeaux fala sobre o
Homero, mas, se ele elogia, eu concordo, porque gosto muito de Homero; acho
fantástico, excelente, incrível. Discordando do que Platão dizia, a realidade toda
está em Homero. Para nós, que não somos pagãos e não acreditamos na religião
grega, fica uma maravilha ler, porque a nós não nos interessa essa discussão
platônica. Nós lemos como literatura, realmente. Apenas como literatura, e não
como teogonia. Assim, tudo ganha um brilho magnífico. Quem já leu Homero
sabe que ele mostra a vida acontecendo em cada detalhe. É incrível. O poder
descritivo dele é assombroso.

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THIAGO ZC: Professor, qual era a relação dos gregos com os deuses deles?
O respeito que eles tinham pelos deuses era parecido com o respeito que temos
hoje, por exemplo? Ou era um negócio menos reverente?
RODRIGO GURGEL: Não. Era muito reverente, sim. Eles oravam aos
deuses, embora não se ajoelhassem. Eles faziam sacrifícios aos deuses, e
acreditavam que eles podiam agir na vida humana, favorecendo ou não o destino
dos homens. Os deuses podiam dar uma ajuda no que as moiras haviam planejado.
Havia, sim, uma relação de respeito. Ulisses sofre durante toda a Odisséia porque
comeu os animais que deveriam ser sacrificados para o deus do mar. Poseidon
fica possesso e começa a persegui-lo.

ALINE TOSTA: Mestre, qual a importância de Homero para a filosofia?


RODRIGO GURGEL: Um quarto da República de Platão é discutindo essa
questão. Depois, com Aristóteles e a poética, Homero faz parte inseparável dela.
Ou seja, ele é importante na discussão a respeito da justiça, da função da poesia,
na discussão da própria ética e da política. São todos elementos que compõem a
filosofia. É um poeta completo, ainda que não tenha produzido filosofia.

MARIEMA AIRES ROMANO: Professor, qual a lição a ser aprendida pela


Ilíada?
RODRIGO GURGEL: Isso, cada um há de descobrir por si. Quando
chegarmos ao fim da Ilíada, cada um saberá qual é a sua Ilíada. Muitos se
espelharão num determinado herói, outros, em outro… Assim, podem acontecer
centenas de coisas. Não há uma interpretação única e nem uma conclusão fechada.

NANDO MORAES: É verdade que o Imperador Augustus enlouqueceu


Virgílio porque queria que Eneida fosse mais importante do que os poemas
homéricos, e ascender a importância do épico romano?
RODRIGO GURGEL: Não sei; pode ser que sim. É possível, mas é difícil.
Há quem discorde de mim, mas acho que Virgílio e Homero estão do mesmo lado.
Homero tem uma força, uma energia, um brilho que faz com que você tenha
vontade de sair lutando no meio da guerra, tamanha é a força do que ele escreve.
É um negócio impressionante.

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VANESSA GOMES SANTOS: Professor, boa tarde. O senhor poderia
falar sobre a construção dos epítetos? Obrigada!
RODRIGO GURGEL: Falaremos sobre tudo isso quando falarmos sobre o
estilo de Homero na próxima aula. Hoje, fizemos uma introdução histórica,
religiosa e arqueológica sobre a questão homérica para que penetremos no mundo
grego e entendamos a Ilíada o máximo que pudermos, como se fôssemos gregos.
Depois, entraremos nas questões estilísticas, e, então, falaremos sobre estas
questões.

PATRÍCIA GIGILEVA: Alguns historiadores acreditam que Homero ficou


cego. Podemos considerar que não tenha sido no sentido literal?
RODRIGO GURGEL: Podemos. Na verdade, podemos considerar tudo.
Provavelmente, se ele ficou cego, foi na velhice. As pesquisas caminham neste
sentido de que ele foi, de fato, alguém que conseguiu pegar toda a tradição oral
que existia na época e conseguiu compor uma coisa nova. Isso não é uma ideia
definitiva, mas é uma tendência que existe nos estudos. A ideia de que ele era um
cego que ficava repetindo os poemas como se fosse literatura de cordel, vocês
esqueçam. Vejo muitas pessoas influenciadas por algumas teorias confusas,
dizendo que a Ilíada é como a nossa literatura de cordel, mas não repitam isso,
porque não há nem como comparar a complexidade destes dois tipos de texto. O
fato de que a Ilíada e a Odisséia tenham nascido de poemas transmitidos
oralmente e que tenham passado por um período de aglutinação e
aperfeiçoamento pelas mãos de Homero não coloca a Ilíada e a Odisséia no
mesmo patamar da literatura de cordel. Falar isso é uma simplificação injusta e
burra.

ANDRÉ COUTO: Professor, o quanto é necessário conhecer de mitologia


para acompanhar a leitura de Homero?
RODRIGO GURGEL: Você precisa conhecer da mitologia aquilo que
aparece na Ilíada. Se você tiver um dicionário ou um celular na mão, e ler na
primeira linha: “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles”, e não souber quem é
Aquiles, pesquise no Google. Ler cinco linhas sobre ele é o suficiente. É essa a
compreensão que você precisa ter para entender a Ilíada; ninguém precisa ler um
tratado de mitologia e nem ser especialista nisso. Para quem gosta do assunto,
indico o curso da professora Vanessa, que esteve aqui dando uma aula
maravilhosa sobre o mundo grego. Nada impede que vocês se aprofundem; na

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verdade, é excelente, mas você não precisa ser um especialista em mitologia para
entender a Ilíada e a Odisséia. Não crie empecilhos fantasiosos.

NANDO MORAES: Podemos dizer que qualquer escrita de Ilíada é uma


adaptação, já que foi um canto e não se comprova o original? Traduções diversas
seriam, assim, algo mais aceitável. E seria “literatura”, de fato?
RODRIGO GURGEL: Nando, você está simplificando muito as coisas.
Houve um momento em que o texto foi cristalizado. A partir daí, não é mais
adaptação, mas, sim, um texto novo que tem sido passado de geração em geração
há séculos. É literatura, sem dúvidas. A questão de que não se comprova o original
é inócua, porque como é que podemos, então, estabelecer os textos da Bíblia?
Você está simplificando uma questão filológica muito séria. Há séculos e séculos
de gestação sobre esta obra para se cristalizar no que ela se transformou, séculos
antes de Cristo, e vem assim desde aquela época. Falar dessa forma é de uma
simplificação absurda. Ela não seria literatura se fosse uma bula de remédio ou
uma receita de bolo. Suponhamos que fosse um processo jurídico; a depender da
forma como ele estivesse escrito, poderia, sim, ser literatura. Cuidado com as
simplificações.

GISELA PIZZATTO: Professor, qual a postura de Aristóteles em relação


a este comportamento dos deuses em Homero?
RODRIGO GURGEL: Ele acha excelente, elogia o Homero e diz que a
poesia tem de retratar a realidade porque nos ajuda a suportá-la. Nada impede que
a poesia busque o bem supremo que Platão desejava, mas outra coisa é existirem
poetas que usam da mímese e que repetem o que aconteceu na realidade de acordo
com sua criatividade. Isso, inclusive, é positivo e nos ajuda a viver, porque faz
com que compreendamos melhor a nossa própria condição humana. Aristóteles
tem uma forma de pensar muito diferente da forma platônica.

KALEBE PIMENTEL: Professor, se o conhecimento sobre os deuses vinha


dos poetas, de onde Platão tirou a ideia de que os deuses deveriam ser diferentes?
O cristão tem a ideia de um Deus perfeito, mas não o pagão.
RODRIGO GURGEL: Não é que Platão tirou a ideia de que os deuses
deveriam ser diferentes. Uma coisa é um poeta; Homero não está tentando fazer
um tratado de filosofia a respeito de qual seria o comportamento ideal de um deus,
compreende? Platão está fazendo arte, escrevendo literatura e poemas para

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retratar coisas que aconteceram, às quais ele adiciona fatos de sua própria
imaginação. É como se fôssemos, hoje, contar a história da descoberta do Brasil
e inventasse que, entre os mapas de Pedro Álvares Cabral usou, tinha um mapa
que pertenceu a uma antiga civilização perdida e que já conhecia o Brasil. É uma
invenção ficcional. Homero pega elementos da história, mistura com
curiosidades, com questões religiosas e ideias, e cria um poema.
Platão não quer criar literatura. Ele é um filósofo que olha para a realidade
e pensa a respeito dela. Ele quer entender a realidade e chegar às suas próprias
conclusões sobre o que é a realidade. Platão olha para a religião e a forma de
entender os deuses e analisa por que isso ocorre e se isso corresponde ao que é a
verdade. Ao refletir a respeito disso, ele começa a criar teorias, e cria várias. Nós
vimos, quando lemos A República.
Perceba como são dois comportamentos completamente diferentes, e você
não pode encarar os dois como se estivessem fazendo a mesma coisa. Um é arte,
é literatura; o outro é filosofia.

VALÉRIA: E a tradução de Manoel Odorico Mendes da Ilíada? Qual a sua


opinião?
RODRIGO GURGEL: Eu acho uma bomba, ilegível, horrível, estúpido,
uma invencionice tola. Nem o Haroldo de Campos, que tinha suas pirações,
quando foi traduzir a Ilíada tentou fazer uma coisa semelhante àquela que Odorico
Mendes fez. Para mim, ele tinha uma veia humorística muito forte. São duas
traduções muito ruins, a do Odorico e a do Carlos Alberto Nunes, que afastam o
leitor de Homero, e nós precisamos de traduções que aproximem. Os leitores
precisam conhecê-lo. Você não pode dificultar o acesso a Homero usando como
justificativa o fato de querer fazer uma tradução fidedigna. Esta forma de pensar
é um erro. Fazer uma tradução fidedigna é fazer uma tradução legível. É o que
acontece com as traduções de Shakespeare no Brasil; temos as traduções do
Carlos Alberto Nunes, que são incompreensíveis, e as do Millôr Fernandes, que
são muito popularescas. Há tradutores excelentes, que tentam encontrar um
equilíbrio entre a compreensão do texto e a beleza da forma.

ALESSANDRO YURI ALEGRETTE: Professor, podemos dizer que


Homero, por meio de suas obras, estabeleceu o modelo para a estrutura narrativa
na literatura fantástica?

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RODRIGO GURGEL: Não. Podemos dizer que ele teve grande influência
não só na literatura fantástica, mas, sim, na literatura em geral. Veremos
características de Homero que você pode usar perfeitamente no que for escrever,
num ensaio, numa crônica, num conto, num romance, e não só em literatura
fantástica.

RAQUEL DOURADO: Obrigada por esta aula introdutória, professor.


Tenho certeza de que só conseguirei ler graças a suas aulas. São muito
esclarecedoras. Até a próxima, querido mestre.
RODRIGO GURGEL: Até a próxima, Raquel, querida aluna.

SANDRO RIBEIRO: Há uma métrica recomendada para se ler a obra? Ler


em voz alta auxilia na compreensão do texto?
RODRIGO GURGEL: Quando você lê em voz alta, e é bom que você faça
isso, não tente seguir métrica nenhuma. Há quem leia o texto épico como se
estivesse gaguejando. Leia com a pontuação que está no poema. Há quem ache
que temos de ler o poema com a divisão dos versos, fazendo uma pausa ao fim de
cada linha. Isso não faz o menor sentido, e você nunca entenderia o que está
escrito.
O canto dois diz: “Entre eles qual dos deuses provocou o conflito? Apolo,
filho de Leto e de Zeus. Enfurecera-se o deus contra o rei e por isso espalhara
entre o exército uma doença terrível de que morriam as hostes, porque o Atraída
desconsiderara Crises, seu sacerdote. Ora este tinha vindo até as naus velozes dos
Aqueus para resgatar a filha, trazendo incontáveis riquezas. Segurando nas mãos
as fitas de Apolo que acerta ao longe e um cetro dourado, suplicou a todos os
Aqueus, mas em especial aos dois Atridas, condutores dos homens.”
A minha voz tem um tom solene, mas eu estou lendo a pontuação do texto,
e não a separação dos versos. Se você tentar estabelecer alguma métrica, não
entenderá.

JANAINA PINHEIRO: Uma aula dessa é um show, um fenômeno.


Obrigada, professor, por mais este momento enriquecedor!
RODRIGO GURGEL: Muito obrigado.

NANDO MORAES: Não fiz o Platão. Não sabe como estava com saudades
das suas aulas! Mesmo quando você me puxa as orelhas, como hoje.

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RODRIGO GURGEL: Eu puxo as orelhas com carinho paternal. Outro dia
começaram a tentar comparar Platão com o Evangelho de São João, e eu disse
que o caminho não é este. A minha função aqui é essa; eu sou como um
organizador do salão de baile, e, quando vejo um rapaz dançando mal e pondo a
mão onde não devia na moça, eu vou até ele e digo para aprender a dançar e para
observar o comportamento dos outros. O meu papel aqui é este.

Muito bem, pessoal! Foi isso. Até quarta feira, no nosso áudio. Um abraço!

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