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Esboço da história da Lógica Medieval

(Baseado no texto de Benson Mates, Lógica Elementar)

Como fez notar I. M. Bochenski, a história da lógica não se faz com desenvolvimento gradual,
desde Aristóteles até os tempos modernos. Ao contrário, há três pontos altos, todos de
duração relativamente curta e separados por longos períodos de declínio. O primeiro desses
picos ocorreu nos séculos III e IV a. C., o segundo do século XII ao século XIV, e o terceiro
iniciou-se ao final do século XIX e, segundo algumas visões otimistas, encontra-se em pleno
fastígio. Trata-se, é claro, de quadro amplo e grosseiro, pois há alguns lógicos importantes -
Leibniz (1646-1716) é exemplo excelente - que não se situam em qualquer dos três períodos;
no geral, entretanto, o esboço é acertado.

A contribuição medieval de importância para a lógica diz respeito antes ao setor agora
chamado 'filosofia da lógica' do que à lógica propriamente dita. Isso, para sermos francos,
não pode ser dito com inteira segurança, pois, atualmente, sabemos menos acerca da lógica
medieval do que a respeito da lógica dos antigos. Grande número de manuscritos jamais foi
lido - e muito menos publicado -por historiadores competentes e neles podem conter-se
importantes inovações. Mas, tanto quanto parece, a Idade Média não criou novos sistemas
de axiomas, não alcançou grau de rigor comparável ao de Crisipo ou mesmo de Aristóteles
e, de modo geral, não assinalou progresso continuado, ao nível atingido pelos melhores
dentre os antigos. Sua contribuição consistiu em uma investigação exploratória da semântica
e lógica da língua latina e em penetrante filosofia a propósito de questões intuitivas que se
põem como base de qualquer desenvolvimento formal da matéria. Como exemplo disso,
pode-se mencionar a extensa discussão em torno do problema de saber se toda sentença
decorre de uma contradição; vários escritores acentuam muito utilmente, que, para nos
desembaraçar desse resultado ligeiramente estranho, deveremos também abandonar vários
padrões de inferência contra os quais, de outra forma, nenhuma objeção caberia.

Antes de referirmos nomes, devemos pôr ênfase no fato de que o fator singular mais
importante na determinação da natureza da lógica escolástica, nos vários períodos de sua
história, foi a disponibilidade de material herdado dos antigos. Até meados do século XII, as
únicas obras de acesso geral eram as Categoriae e o De Interpretatione de Aristóteles, a
Introdução de Porfirio e alguns trabalhos de Boécio e Marciano Capela. Como o caráter do
tempo dava enorme importância à tradição, essa escassez de material refletia-se em
correspondente restrição do alcance e profundidade das discussões. Contudo, na segunda
metade do século XII, a renovação tinha levado ao ponto de os estudiosos sentirem--se
motivados a examinar tanto quanto possível a herança da Antigüidade, inclusive outras
porções do Organon de Aristóteles. Daquela época em diante, as contribuições fizeram-se
muito mais numerosas e significativas.

A primeira grande figura da lógica medieval foi Pedro Abelardo (1079-1142). E certo que
Alcuíno, que ensinou em York por volta de fins do século VIII, tornando--se, posteriormente,
chefe da escola criada por Carlos Magno, escreveu uma obra intitulada Dialética, mas esse
livro contém pouco mais que uma discussão a respeito das categorias de Aristóteles. E,
presumivelmente, nos séculos IX e X, surgiram umas poucas outras obras do mesmo estilo.
Mas, antes de Abelardo e sua escola, não temos exame amplo e relativamente lúcido de

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grande número de questões relacionadas com a lógica. Proporção surpreendentemente
elevada de tópicos e métodos de que se ocupa a lógica medieval tem seu começo nos
escritos de Abelardo. Assim, embora ele não tenha dado origem à grande controvérsia dos
universais, foi sua obra que emprestou ao assunto o primeiro grande impulso. Sua posição
era intermédia entre o realismo (platonismo) e o nominalismo. 'Os homens individuais,
distintos uns dos outros', assevera ele, ‘concordam em que são homens; eu não falo em
homem (in homine), pois nada é um homem (sit homo), a menos que seja individual, mas em
ser um homem. Pois ser um homen não é homem (non est homo) ou qualquer outra coisa'.
Sua obra Sic et Non estabeleceu o padrão medieval de apresentar toda discussão filosófica
sob o título de quaestiones; uma quaestio é colocada, os argumentos pró e contra são
desenvolvidos sistematicamente e, afinal, a solutio é proposta e aplicada aos argumentos
previamente enunciados. O método é rígido e estilizado, mas tende a tornar bem clara a
estrutura do que um autor pretenda dizer. Outra das inovações de Abelardo foi a distinção
entre condicionais (consequentiae) verdadeiros em razão da forma (ex complexione) e
verdadeiros em razão dos fatos (ex rerum natura). Considerava ele de algum modo
imperfeitos os condicionais verdadeiros da última espécie, bem corno os argumentos que
lhes correspondem. Num condicional perfeito, diz ele, o sentido do conseqüente deve conter-
se no do antecedente.

Abelardo dedicou atenção grande ao verbo 'é', afirmando que o conteúdo de qualquer
sentença categórica pode expressar-se através de sentença da forma 'A é B' (A est B).
Mesmo 'Sócrates existe' (Socrates est) pode ser representada por 'Sócrates é uma coisa
existente' (Socrates est ens). Talvez aqui se aponte caminho para a possibilidade de reduzir
a um o número de predicados de nossa língua - o Î da teoria dos conjuntos - e de representar
a existência como elemento do conjunto universal. Abelardo estudou, também longamente,
as modalidades, levantando questões ainda hoje discutidas.

Na obra de Abelardo não encontramos sinal de conhecimento direto de outras obras de


Aristóteles que não as Categoriae e o De Interpretatione; sua parca informação acerca da
silogística foi, obviamente, colhida em Boécio. Depois que as demais partes do Organon de
Aristóteles se fizeram acessíveis de modo geral, apareceram numerosas summulae
(pequenos sumários) de lógica. Destas, a primeira a ser impressa foi a obra de Guilherme de
Shyreswood (morto em 1249). Nela se contém, juntamente com uma miscelânea de outros
itens interessantes, dois 'poemas' mnemônicos merecedores de reprodução. O primeiro é o
famoso

Barbara Celarent Darii Ferio Baralipton


Celantes Dabitis Fapesmo Frisesomorum;
Cesare Campestres Festino Baroco; Darapti
Felapton Disamis Datisi Bocardo Ferison.

Esses versos relacionam os modos silogísticos válidos das três figuras (os cinco modos
adicionais de Teofrasto foram acrescentados aos da primeira figura). Nos nomes dos modos,
as letras são, em sua maioria, significativas. As três primeiras vogais caracterizam os
componentes do silogismo; assim Barbara de três sentenças A com termos dispostos de
acordo com o padrão da primeira figura. As consoantes esclarecem como reduzir o modo
dado aos quatro primeiros; a consoante inicial indica o modo para o qual a redução deve ser
feita (assim Baralipton, Baroco e Bocardo reduzem--se a Barbara); a ocorrência de 's' significa

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que a sentença denotada pela vogal precedente deve ser convertida simplesmente; da
mesma forma se procede quando ocorre 'p', exceto que a conversão não é simples;
ocorrência de 'm' indica deverem ser permutadas as premissas; e 'c' diz-nos para recorrer à
redução indireta. O leitor pode dar-se ao trabalho de verificar por si mesmo a eficiência dessas
instruções.

O outro 'poema' põe à mostra, de fato, o conteúdo de nossa regra Q:

Todo, nenhum-não e não-algum-não são equivalentes,


Tal como nenhum, não-algum e todo-não;
Algum, não-nenhum e não-todo-não caminham juntos,
Tal como algum-não, não-nenhum-não e não-todo.

Somos, assim, lembrados de que nossos quantificadores todo e algum poderiam, igualmente
bem, ser definidos em termos de um quantificador com o sentido de nenhum.

Pedro Hespano (cerca de 1210-77), que provavelmente estudou com Guilherme de


Shyreswood, quando este ensinava em Paris, e que veio a ser o Papa João XXI, escreveu o
único outro livro de summulae acessível em edição moderna. Em seu tempo, a obra foi
considerada clássica e seu uso estendeu-se até o século XVII. Quanto ao conteúdo,
aproximou-se do manual de Guilherme, embora apresentando versos mnemônicos melhores
e em maior número; esse fato, aliado à alta posição do autor, explicará a circunstância de ter
conseguido popularidade maior. Inclui secções acerca de proposições, dos cinco predicáveis
de Porfírio (definição, gênero, espécie, propriedade e acidente), de categorias, silogismo,
regras tópicas para argumentação e falácias; além disso, há um grupo de exposiçoes
chamadas Das Propriedades dos Termos.

A doutrina das propriedades dos termos aparece, um pouco por toda parte, na lógica medieval
posterior e é frequentemente, considerada como a contnbu1çao mais original daqueles
tempos. Lamentavelmente, entretanto, diferentes autores apresentam diferentes exposições
e costumamos esperando por exegese realmente clara de qualquer deles. As propriedades
mais comumente referidas são significatio, suppositio, copulatio e appelatio. Admite-se que
elas caracterizem aspectos diversos da função dos termos nas sentenças latinas, tal como
efetivamente usadas. Neste sentido, a palavra 'termo' cobre nomes gerais (e. g., 'homem'),
verbos (e. g., 'é' ou 'corre') e adjetivos (e. g., 'branco').

Todo termo tem significatio que, aparentemente, é o que poderíamos chamar 'sentido do
dicionário' e que, segundo os realistas, é sempre uma forma. Mas, tal como usado numa
sentença, um termo pode não corresponder a seu significatum. Se ele tem suppositio
materialis (como o termo Homo em Homo et disyllabum) basta-se a si mesmo; caso contrário,
tem suppositio formalis. Esta pode ser simplex (como em Homo est species ), onde o termo
é usado para referir seu significatum, ou personalis (como em Homo currit ou Omnis homo
est animal), onde se refere a um ou mais indivíduos incluídos na forma que é o significatum.
A classificação dos tipos de suppositio é elaborada muito mais aprofundadamente, sempre
com base em distinções que parecem interessantes, mas são de elucidação difícil. Copulatio
(ligação), na expressão original de Abelardo, é a propriedade em razão da qual os verbos
podem unir sujeito e predicado para formar uma sentença categórica; outros autores a
definem de maneira muito diferente. Considera-se que a appelatio de um termo é a referência

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por ele feita a coisas presentemente existentes. De modo geral e até que se lance mais luz
sobre o assunto, pode-se apenas conjeturar que as propriedades dos termos, se
corretamente entendidas, corresponderão a um elenco de conceitos semânticos úteis para
contornar várias dificuldades lógicas surgidas com o emprêgo da linguagem natural (tal como,
por exemplo, porque 'Sócrates foi um menino', não equivale a 'Um menino foi Sócrates').

Os lógicos mais importantes do século XIV foram Guilherme de Ockam (cerca de 1295-1349),
Jean Buridan (morto pouco depois de 1358), Abelardo da Saxônia (cerca de 1316--1390) e
um autor desconhecido, que chamamos Pseudo Scotus, porque, durante muito tempo, suas
obras foram atribuídas a Duns Scotus. A Navalha de Ockam (proposição segundo a qual 'as
entidades não devem ser multiplicadas para além da necessidade') e o Asno de Buridan
(infortunado animal, que morreu de fome, por não poder decidir-se por uma de duas pilhas
de feno equidistantes dele) são conhecidos dos leitores familiarizados com a história da
filosofia. Mas, no que interessa à história da lógica, a importância de Ockam e Ruridan, bem
como a dos outros dois citados, deve-se, antes de tudo, aos desenvolvimentos que trouxeram
para a teoria das consequentiae.

O termo consequentia, tal como definido pelo Pseudo Scotus é uma proposição hipotética,
composta de um antecedente e um consequente ligados por conjunção condicional, e é claro
que, por 'conjunção condicional', ele entende não apenas ‘se ... então', mas também ‘logo’.
Assim, exemplos de consequentiae incluem:

Todo homem é um animal; logo, todo animal é um homem.


Sócrates existe e Sócrates não existe; logo, Sócrates não existe.

Para legitimidade de uma consequentia põe-se habitualmente condições tais como: uma
consequentia é legitima se e somente se não é possível que o antecedente seja verdadeiro
e o consequente, falso. Essa é a ideia dominante, embora, algumas vezes, pequenas
emendas hajam sido introduzidas para contornar certos paradoxos a que a condição
enunciada parecia dar causa. A despeito da generalidade desta concepção de legitimidade,
só eram consideradas, na prática, consequentiae formalmente legítimas e, dentre estas, tão-
somente as que, na época moderna, seriam incluídas como partes do cálculo sentencial
(algumas vezes suplementadas pelos operadores modais ‘necessariamente' e
'possivelmente').

Em suas pesquisas de consequentiae legítimas, os autores medievais usavam descrições


metalinguísticas em vez de esquemas cm variáveis. Assim, em vez de fórmulas como

P; logo, P ou Q
Q; logo, P ou Q
P e Q; logo, P
P e Q; logo, Q

encontramos

Há uma consequentia Iegítima a partir de cada parte de uma disjunção afirmativa para a
disjunção afirmativa de que ela é uma parte.

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e

Ambas as partes de uma conjunção seguem-se da conjunção de que são parte.

E. A. Moody reuniu grande número dessas caracterizações, encontradas especialmente nos


escritos dos quatro autores mencionados, e acomodou-as sistemicamente por meio de
fórmulas de notação moderna.

Além de todas essas, várias consequentiae legítimas, envolvendo operadores modais, foram
mencionadas. Para dar apenas um exemplo:

Para que haja possibilidade de uma disjunção, basta que qualquer de suas partes seja
possível.

Antes de deixarmos de referir-nos ao período medieval, devemos assinalar notável objeção


levantada por Pseudo Scotus contra a caracterização-padrão de uma consequentia legitima
como a em que é impossível ser verdadeiro o antecedente e falso o consequente. Após
acentuar que essa base torna legítima qualquer consequentia que tenha um consequente
necessário, ele propõe-se a oferecer exemplo de uma consequentia ilegítima na qual tanto o
antecedente como o consequente são necessários. E é:

Deus existe; logo, esta consequentia não é legítima.

A consequentia é, sem dúvida, ilegítima, diz ele, pois, se assim não fôsse, teríamos uma
consequentia legítima com antecedente verdadeiro e consequente falso. E uma vez que
estabelecemos essa ilegitimidade recorrendo à verdade necessária de que Deus existe, a
ilegitimidade é necessária. Desse modo, a consequentia, embora ilegítima, tem um
consequente necessário. Entregamos ao leitor a tarefa de explorar esse argumento, notando
apenas que a premissa 'Deus existe' poderia, igualmente bem, ter sido substituída por '2 + 2
= 4' ou qualquer outra verdade necessária.

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