Você está na página 1de 20

Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.

2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

A arte poética de Horácio:


uma crítica romana sobre a produção grega

Iasmim Santos Ferreira


Graduanda/UFS Itabaiana

A arte poética de Horácio é uma epístola que se dirige à família dos Pi-
sões, respondendo algumas questões pertinentes a arte de escrever. Em
vistas disso, tece uma crítica sobre a produção grega, como modelo a ser
seguido pelos romanos. Além disso, observamos as semelhanças entre a
sua Poética e a de Aristóteles. Horácio se mostra muito preocupado com
a produção literária em Roma e desperta os escritores para olharem fir-
memente o teatro grego.

Palavras-chave: A arte poética; Horácio; Crítica romana.

Considerações iniciais
O presente artigo é um estudo que parte do Projeto de Iniciação Científica: “A crítica so-
bre a comédia grega entre os romanos por Horácio, Cícero e Dioniso de Halicarnasso”, sob
orientação da Profa. Dra. Luciene Lages. Neste trabalho fazemos um recorte sobre o crítico
Horácio e sua A arte poética, com o objetivo de mostrar a crítica romana acerca da produção
grega, com isso, também fazemos alguns apontamentos sobre a Poética de Aristóteles e os
entremeios de ambas.

Cabe apresentar alguns aspectos biográficos de Horácio, a fim de situar características do


autor e posicionamentos na obra em questão. Conforme apresenta Dante Tringali (1993), nos
comentários acerca de Horácio e de sua Poética; é sabido que o crítico era filho de um escravo
liberto, que comprou sua própria liberdade, graças às suas economias enquanto cobrador de
impostos. Sabe-se que Horácio nunca se envergonhou de suas origens, pelo contrário, sem-
pre exaltou a figura de seu pai, não obstante, nunca fez menção à sua mãe.

Passou sua infância em um pequeno sítio, às margens do rio Áufido, posteriormente foi estu-
dar em Roma, onde se torna um pedagogo. Posto isso, foi a Atenas completar sua formação.
Horácio se torna um homem provinciano, ao passo que também é um homem do interior,
viveu entre essas duas instâncias.

148
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

Após o assassinato de César em 44 a.C. Horácio recebeu o cargo de tribuno militar, coman-
dando uma região. Em 42 a.C. abandonou o escudo e fugiu, por causa de uma batalha na cida-
de de Filipos. Regressou a Roma e teve seus bens confiscados pelos vitoriosos da batalha, com
isso, o crítico passou a viver de um modesto emprego. Nesse ensejo de dificuldade financeira,
Horácio começou a divulgar seus versos: epodos e sátiras, logo, tornou-se conhecido. Virgílio
e Vário, seus amigos, o apresentaram a Mecenas, da equipe de Augusto, que tinha a finalidade
de reunir os intelectuais. O primeiro encontro entre Horácio e o Mecenas foi tímido, porém
nove meses depois, eles começaram a estabelecer uma amizade profunda.

Horácio tornou-se o poeta oficial, em contrapartida o Mecenas lhe ofereceu a vila da Sabina.
Morreu oito anos antes de Cristo, um mês depois da morte de Mecenas. Sabe-se que Horácio
não se casou segundo o Direito Romano, porém, se uniu a várias mulheres marginais, liberti-
nas, às quais exaltou e imortalizou. É consagrado como o poeta do amor e da paz, opondo-se
firmemente ao espírito guerreiro do romano. Em filosofia, mostra-se pragmático e eclético,
nem epicurista e nem estóico, mas faz da morte o seu objeto de reflexão; apresentando-se
como moralista. Em religião, mostra-se místico e espiritualista, compreende a presença divi-
na na e pela natureza.

Quanto à sua produção tem-se um lirismo individual e subjetivo, cantava os episódios co-
muns da vida: o amor e o festim. Não envereda pela epopeia e pelo teatro, nega-se a celebrar
Augusto e Mecenas por meio desses gêneros, mas os imortaliza com poemas, cartas e sátiras.
Escreveu: quatro livros de Odes, um livro de Epodos, um hino oficial, dois livros de Sátiras,
dois livros de epístolas. A arte poética está incluída no segundo livro de epístolas.

Quanto à obra, A arte poética, faz o estabelecimento de diretrizes acerca de como deve ser
a arte, quais os modelos a serem seguidos e o que deve ser evitado. Trata-se de uma epístola
que se dirige à família dos Pisões, com o objetivo de responder às indagações acerca dos
problemas da arte de escrever. Vale mencionar que o termo poesia corresponde à literatu-
ra. Nosso interesse por estudar essa epístola, é o fato de apresentar “um conjunto sistemá-
tico de conhecimentos teóricos e práticos sobre a poesia” (TRINGALI, 1993, p. 49), ou seja,
um tratado de crítica literária.

Diretrizes horacianas em sua Poética


A carta se inicia apresentando a problemática do equilíbrio na arte, não permitindo mesclar
de coisas distintas sem harmoniza-las, Horácio apresenta uma situação destoante e a conse-
quência jocosa, que essa trará, alertando aos Pisões. Conforme se vê abaixo:

Se um pintor quisesse ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo e aplicar penas
variegadas sobre os elementos tomados de diversas partes, de tal modo que uma mulher
formosa na parte superior terminasse em peixe horrendamente negro, admitidos a contem-

149
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

plar isso, conteríeis o riso, ó amigos? Crede-me, Pisões, que muito semelhante a esse quadro
seria o livro cujas ideias vãs fossem concebidas como sonhos de um doente de tal modo que
nem pé nem cabeça componham uma única figura (HORÁCIO, Poética, I, 1).

Segundo excerto acima, podemos perceber desde o início do tratado a posição crítica de Ho-
rácio, mostrando a necessidade da arte ser harmônica, equilibrada. Embora, Horácio não
utilize o termo verossimilhança, ele está tratando a arte como verossímil, possível dentro das
possiblidades de criação. Sua crítica tem endereçamento especial, aos romanos, e nesse ense-
jo os gregos são tomados como o molde artístico a ser seguido. “Vós, volvei os modelos gregos
com mão noturna, volvei com mão diurna” (HORÁCIO, Poética; I, 269).

Horácio restringe os modelos romanos, pois para o crítico os poetas de Roma não tinham
ciência do próprio ofício. Ainda, tece críticas aos escritores gregos alexandrinos. Coloca
a epopeia como a fonte mais importante para a imitação e o supremo modelo da arte se
encontra na Grécia antiga: Homero. Ademais, Horácio conclama que se observe os novos
bons escritores romanos e que lhes concedam os mesmos direitos que aos bons antigos.
Segundo mostra excerto abaixo.

Por que razão, porém, o romano concederá a Cecílio e Plauto; o que nega a Virgílio e Vário?
Por que sou visto com maus olhos, se posso fazer algumas aquisições, quando a língua de
Catão e Ênio enriqueceu o idioma pátrio e divulgou novos nomes das coisas? Foi lícito e
sempre será lícito pôr em circulação um vocábulo marcado com o selo do presente. Como
as florestas mudam de folhas no declinar dos anos, caem as folhas mais velhas, assim perece
a velha geração das palavras e as que nasceram, há pouco, à maneira dos jovens, florescem e
têm vigor (HORÁCIO, Poética, I, 54).

O crítico se queixa pelo fato de só aos antigos, Cecílio e Plauto, comediógrafos latinos, con-
cederem o direito de criar palavras. Já a Virgílio e a Vário, amigos de Horácio e escritores no-
vos, não concedem o mesmo direito que aos antigos. Para reforçar o seu argumento, Horácio
recorre às figuras de Catão e de Ênio, também pertencentes às velhas gerações privilegiadas,
os quais enriqueceram o idioma pátrio com a criação de palavras. O crítico romano faz uma
comparação com as florestas que mudam de folhas com o passar do tempo, semelhantemente
na querela de escritores surgem novos, que substituem os antigos, sem exclui-los do corpo de
literatos de uma nação, mas substituem-os como as folhas novas às velhas.

No que tange ao uso das palavras, Horácio aponta para o uso e a necessidade de incorporar
algumas e excluir outras do léxico, sendo a utilização a premissa para a permanência e para
a exclusão. Como diz: “muitas palavras, que já morreram, renascerão e morrerão muitas que
agora estão em voga, se o uso quiser, o uso a quem pertence o arbítrio e o direito e a regra do
falar.” (HORÁCIO, Poética, I, 70).

A obra discute a arte sob alguns paradoxos, descritos exatamente assim: engenho e arte; útil
e agradável; expressão e conteúdo. Isso para mostrar que não basta a habilidade para o fazer
poético, é preciso esmero no fazê-lo para deixá-lo ao nível da arte, não basta ser útil. Horácio
não conclama a junção de utilidade e busca pela perfeição da arte em vão, visto que os roma-

150
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

nos eram dados à praticidade, ao passo que os gregos à arte pela arte, pela glória da própria
arte. Como Horácio está falando aos romanos sobre como produzir arte, ele toma o modelo
grego e une as principais características de ambos.

Ele alerta para que se perceba que não basta a arte estar no nível estético, pois na sua concep-
ção de arte, é de suma importância que tenha conteúdo, com isso o primeiro revela o segundo;
não sendo possível desvincular estética de conteúdo e vice-versa. Horácio não fala apenas da
arte literária, mas estabelece comparações entre as artes: poesia, pintura, escultura e música.

A poesia é como a pintura, haverá a que mais ti cativa, se estiveres mais perto e outra, se
ficares mais longe; esta ama a obscuridade, esta, que não teme o olhar arguto do crítico,
deseja ser contemplada à luz; esta agradou uma só vez, esta, revisitada dez vezes, agradará
(HORÁCIO, Poética; I, 361).

O conceito de belo na Poética de Horácio está arraigado ao equilíbrio entre as partes, a retira-
da dos excessos, da inverossimilhança, o mantimento da ordem. No nível lexical, a linguagem
funciona como um objeto de escolha, de combinação, de seleção dos léxicos, de adequação
das personagens ao que lhes concerne. Sendo o belo o que convém, o adequado; para Horácio
a arte tende a padrões mais estruturais. Conforme aponta o fragmento:

Não basta que os poemas sejam belos, é preciso que sejam doces e transportem o espírito do
ouvinte para onde quiserem. Assim como o rosto humano ri com os que riem, assim compar-
tilha com os que choram. Se queres que eu chore, tu mesmo deves sofrer por primeiro, então,
ó Télefo ou Peleu, os teus infortúnios me tocarão. Se recitares mal o teu papel ou dormirei ou
rir-me-ei. Palavras tristes convém a rosto pesaroso; ao rosto irado convém palavras carrega-
das de ameaça; ao rosto brincalhão convém palavras joviais; palavras sérias de dizer convêm
ao rosto severo. A natureza, com efeito, nos modela primeiro interiormente segundo todas
as situações da fortuna, alegra-nos ou impele-nos à cólera ou nos prosterna por terra sob o
peso da aflição e nos angustia, depois exprime esses movimentos de alma por meio da língua.
Se as palavras estiverem em discordância com a condição de quem as diz, os cavaleiros ro-
manos e os pedestres soltarão gargalhadas. Fará muita diferença se fala um deus ou um herói;
um velho acabado ou alguém ardente ainda pela juventude em flor; uma matrona poderosa ou
uma nutriz solícita; um mercador viajante ou um lavrador de um pequeno sítio virente; alguém
natural da Cólquida ou da Assíria; alguém criado em Tebas ou Argos. Como escritor, ou segue
a tradição ou inventa o que é coerente consigo (HORÁCIO, Poética, I, 99).

Sendo assim, a arte imita a vida nos aspectos já conhecidos, mas também a imita quando a
partir dela desenvolve um assunto ainda desconhecido ou não tentado. A arte é sempre a imi-
tação do verossímil, do possível, do coerente, do conveniente. Podemos indagar: como fica
o impossível para Horácio? Para ele, o impossível é apenas aparente, sendo sempre possível
dentro do plano alegórico.

Os pintores e poetas sempre tiveram igual poder de tudo ousar. Sabemos disso e essa indul-
gência reclamamos e damos uns aos outros, mas não a ponto que os ferozes se reúnam com
os mansos, nem que formem pares: as serpentes com as aves, os tigres com os cordeiros
(HORÁCIO, Poética, I, 9).

151
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

O conceito de originalidade não é tido em supremacia, é visto sob outra perspectiva. Desen-
volver um assunto repetido, mas com perfeição é melhor do que trazer à tona algo inédito. O
conceito de gênio também difere do visto corriqueiramente, não se constitui em um ser supe-
rior por algo inventado, e sim desenvolvido à luz de regras naturais que preexistem ao gênio.

Destaca-se o labor artístico de Homero ao descobrir o metro que é conveniente à epopeia, e tal-
vez tenha descoberto a própria epopeia. “Homero mostrou em que metro se podem escrever os
feitos dos reis e dos chefes e as tristes guerras. Em versos desiguais, unidos, primeiro se incluiu
a lamentação, depois também a expressão do voto atendido” (HORÁCIO, Poética; I, 73).

Um fato curioso é que boa parte da construção literária provém da oralidade, da transmis-
são dos Édipos, das Rãs, e de tantas outras tragédias e comédias. O próprio Homero fez
recortes da cultura local e apresentou nas grandiosas: Odisseia e Ilíada. O conceito de ori-
ginalidade e a concepção de memória grupal são observadas pelo historiador Moses Finley
(1989), como apontado abaixo.

A memória de grupo, afinal nada mais do que a transmissão para muitas pessoas das lem-
branças de um homem, ou de alguns homens, repetida muitas e muitas vezes; e o ato da
transmissão da comunicação e, portanto, da preservação da lembrança, não é espontâneo e
inconsciente, e sim deliberado, com a intenção de servir a um fim conhecido pelo homem
que o executa (FINLEY, 1989, p. 21).

Atrelado ao que Finley considera como memória de grupo, podemos entender que na visão
de Horácio o que importa não é necessariamente a memória retratada na obra literária, mas
sim, o modo como está sendo posta na produção. Não se discute o fato de ser o conteúdo
inovador ou retomar algo da tradição e da memória grupal, mas aprecia-se a obra pelo modo
como é narrada, pelas características concernentes ao gênero literário, pelo equilíbrio entre
as partes, entre outros.

A abordagem classicista de Horácio se funda na razão, e não nos mestres, estes são apenas res-
peitados por causa da arte produzida: a arte racional. Desse modo, percebemos que o conceito
de belo está baseado no real, mas não é naturalista. Imita-se a realidade à proporção de que esta
seja bela, evitando-se o feio da natureza. Na querela dos antigos e modernos Horácio não defi-
ne o clássico pela antiguidade, mas pela perfeição. Em geral, o crítico não aprecia os escritores
romanos mais velhos, pois os concebe como ignorantes com relação aos seus ofícios.

Quanto à poética da arte e à poética do engenho; a primeira baseia-se na constatação de que


o poeta nasce como tal por um chamado divino ou vocação. Esta concepção também dava
vazão para a ideia de que todo poeta é louco e que todo louco é poeta, sendo uma confusão
do ensino de Demócrito. A segunda é fundamentada no pressuposto de que a arte requer es-
tudo, esmero no fazer artístico e incansável prática para que se chegue à perfeição. Portanto,
a primeira não pode existir sem a segunda.

Por que Horácio estabelece essas duas concepções? Como já mencionado anteriormente,
Horácio estabelece essas duas concepções para mostrar aos romanos, que não eram dados a

152
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

poética do engenho como os gregos, que através da poética da arte era possível desenvolver
excelentes obras como fizeram os gregos. Desse modo, a poética da arte a faz um sacerdócio,
um profundo ofício, estabelecido na sucessiva teoria e prática.

Vós que escreveis, tornai a matéria igual às vossas forças e pesai longamente o que vossos
ombros se recusam a carregar e o que podem fazê-lo. A quem escolher a matéria segundo
suas forças, nem a facúndia, nem a lúcida ordem o abandonarão. A virtude e a beleza da or-
dem consistirão nisso, ou me engano, que diga agora o que agora deva ser dito e que deixe
muitas coisas para mais tarde e de momento as omita, que o autor do poema prometido se
compraza disto e despreze aquilo. Sutil e cauteloso no arranjo das palavras, também dirás
egregiamente se uma engenhosa associação transforma em nova uma palavra batida. Se por-
ventura for necessário designar com signos recentes coisas desconhecidas e nos acontecer
de forjar palavras não ouvidas pelos Cetegos em tanga, pouco formadas, terão crédito se,
derivadas de fonte grega, jorrarem com parcimônia (HORÁCIO, Poética; I, 37).

Para Horácio “saber é o princípio e a fonte de bem escrever” (HORÁCIO, Poética; I, 309),
ou seja, deve-se conhecer as obras gregas, para escrever bem. Ele traça palavras de ordem e
princípios inegociáveis n’A arte poética, que são: perfeição, normativismo, racionalismo, cla-
reza, conteúdo e expressão. A perfeição é medida não só pelo belo estético, mas também pela
constante busca por essa perfeição; a mediocridade e o estacionamento em um nível médio
é altamente condenado pelo crítico. O normativismo, o conjunto de regras a serem segui-
das pelo poeta dão a arte classicista a premissa de sempre manter as regras. Ao tempo que o
modernismo não estabelece regras, ocasiona mesmo sem querer a regra de não se ter regra,
sendo tão criterioso quanto o classicismo em não conceber arte sem regra.

As faculdades produtoras de arte são: a razão, o sentimento e a fantasia. “A razão domina a


fantasia e o sentimento. A conveniência é uma qualidade racional. A razão governa a arte”
(TRINGALI, 1993, p. 63). Desse modo, as coisas inverossímeis só ocorrem quando justifica-
das. O crítico orienta que se tome cuidado ao se buscar a brevidade, pois pode tornar o texto
obscuro. O conteúdo deve preceder a expressão, pois ele sustenta a obra.

Horácio afirma que para se atingir a perfeição é preciso buscar a crítica. Ele também distin-
gue a crítica em dois tipos: antes da publicação e depois da publicação. Depois de concluída
a obra, é preciso que esta fique de molho por nove anos e que seja submetida a apreciação de
um crítico imparcial. Depois de publicada a sanção ocorre por meio dos receptores, sendo-a
objeto de riso ou de louvor. Horácio está aconselhando aos Pisões para que tomem cuidado
antes de publicar, com isso, evitando a zombaria.

As concepções de Horácio acabam retomando a disputa entre esteticismo e eticismo, deri-


vados de Platão. O primeiro consiste na função da arte em agradar. E o segundo tem como
a principal função da arte a de educar. Como o povo romano apresenta um aspecto utilita-
rista, diferente do grego, faz-se necessário alertar para o esforço em se produzir a arte sem
a preocupação utilitária dela. Horácio concebe-as como importantes funções da arte, tanto
agradar quanto ensinar.

153
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

Vale mencionar que o crítico defende que a arte é partidária, comprometida, não sendo ja-
mais absolutamente autônoma. Embora a arte acabe sendo um divertimento, Horácio con-
dena a degradação da arte como tal, certamente seria uma crítica as comédias de costume,
por exemplo, em que a plebe indouta ganha espaço. A arte tem o papel civilizador, educati-
vo. Portanto, Mercúrio, Orfeu, Anfião educaram a humanidade, pelo ponto de vista do crí-
tico, não obstante outros como Cícero não atribuem esta função à arte, e sim à Retórica ou
à Filosofia (CICERO, Perfeita Oratória).

Horácio distingue o poeta do vate. O primeiro fica no nível profano da poesia, possui o talento,
estudou e aprendeu a praticar arte da poesia, logo educa e agrada. O segundo é um tipo espe-
cial de poeta que está em um nível sagrado da arte, sendo o ideal de poeta. Em Roma, os parti-
dários da poética de engenho atribuem esse tipo de poeta como o louco. É interessante que ao
passo que a Grécia Antiga valora a poesia, muitos romanos sentem certa vergonha desta.

Horácio conclama-os a olharem para o modelo grego e entenderem o ofício sagrado da poesia
que está sob a proteção de Minerva e cultivada pelas Musas e por Apolo, lembrando que nesse
contexto toda a literatura é tomada pela expressão poesia. “A Musa concedeu aos gregos, ávi-
dos de nenhuma outra coisa senão da glória, o engenho, aos gregos concedeu uma elocução
acabada. Os meninos romanos aprendem a dividir, em longos cálculos, asse em cem pares”
(HORÁCIO, Poética; I, 322).

Dentre tantas colocações feitas por Horácio, há uma proposta de reforma do teatro romano
se voltando para o modelo grego e uma proposta de harmonia entre o sério e o jocoso, sem
excessos de tragédia e comédia. O primeiro ponto de sua reforma é que a tragédia modere o
patético e o solene e a comédia modere a sua vulgaridade. Ele tem o drama satírico como a
verdadeira saída para um certo abrandamento do trágico e uma elevação do cômico. Não se
trata de uma paródia, mas sim que o sério e o cômico convivam sem se confundir.

Que Medeia não trucide os filhos diante do público, nem o nefando Atreu cozinhe, à vista
de todos, entranhas humanas, nem Procne se transforme em ave, nem Cadmo, em serpen-
te. Incrédulo, odeio tudo quanto assim se mostra. Que não seja menor nem mais longa do
que cinco atos a peça que quer ser solicitada e, depois de assistida, reprisada. E que um
deus não intervenha a menos que aconteça um nó digno de tal inventor. E que um quarto
autor não se esforce por falar. Que o coro desempenhe o papel de um ator e tenha função
individual e que nada cante entre os atos que não convenha ao argumento e lhe esteja
convenientemente ligado. Que ele favoreça e aconselhe os bons amigavelmente e modere
os irados e ame os que temem cometer faltas, que ele louve os alimentos de uma mesa
frugal, a justiça salutar, as leis e a paz que abre as portas da cidade, que ele guarde os se-
gredos e invoque e rogue aos deuses porque a fortuna retorne aos miseráveis e abandone
os soberbos (HORÁCIO, Poética; I, 185).

Acerca do cômico propriamente dito, Horácio afirma que “um assunto cômico não quer ser
desenvolvido em versos trágicos” (HORÁCIO, Poética; I, 89), ou seja, a comédia tem suas
características específicas, assim como a tragédia, portanto deve-se manter as peculiaridades

154
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

do gênero, bem como os assuntos devem ser desenvolvidos conforme se queira suscitar lágri-
mas ou risos, como se vê no fragmento abaixo.

Na verdade, de tal modo convirá apresentar os sátiros chocarreiros, de tal modo zombetei-
ros, de tal modo mudar o que é sério em gracejo que, – qualquer que seja o deus, qualquer
que seja o herói mostrado, vistos, há pouco, em ouro e púrpura real, – não se mude para
as sombrias tabernas pela conversação chã ou, enquanto evita a terra, procure apanhar as
nuvens e o vazio. Não convém à tragédia tagarelar em versos levianos, como uma matrona
constrangida a dançar em dias de festa, um tanto pudibunda a tragédia frequentará os sátiros
lascivos (HORÁCIO, Poética; I, 225).

Horácio apresenta o modelo para o herói trágico, para o deus da estória, delimitando-os
a não mudarem o padrão do que tange às suas posições, a não se apresentarem de modo
cômico, pois não é conveniente a tais figuras. Todavia, Horácio alerta para o fato de haver
simultaneidades na permuta de particularidades entre o cômico e o trágico, sendo utiliza-
ções intencionalmente arquitetadas com o objetivo de angariar o público, não se trata de
uma mera junção desmedida.

Algumas vezes, contudo, de um lado, a comédia eleva a voz e Cremes irado ralha com
linguagem enfática e, de outro, o trágico Télefo e Peleu, muitas vezes, se lamentam em
linguagem prosaica, quando, um e outro, pobres e exilados rejeitam o estilo empolado e
as palavras de um pé e meio, se buscam tocar o coração do espectador pelo queixume
(HORÁCIO, Poética, I, 94).

E mais, ele alerta aos escritores para aprenderem as funções e as características de cada gêne-
ro, e a não serem falsos modestos, assim diz Horácio: “Por que razão sou saudado como poe-
ta, se não posso e não sei respeitar as funções prescritas e as características de cada obra? Por
que razão, com falsa modéstia, prefiro ignorar a aprender?” (Poética, I, 86). Ainda critica os
poetas romanos que se atreveram a inovar, desviando-se da tradição grega: “Os nossos poetas
nada deixaram sem experimentar e não muito pequeno louvor mereceram os que ousaram
abandonar as pegadas dos gregos” (HORÁCIO, Poética; I, 285). Assim também, tece ferre-
nhas críticas a criação demasiada, sem utilidade à vida.

Os poetas ou pretendem ser uteis ou deleitar ou, ao mesmo tempo, dizer coisas belas e
aproveitáveis à vida. O que quer que hás de ensinar, sê breve, para que os espíritos dóceis e
fieis depressa apreendam e retenham os teus preceitos. Tudo que é supérfluo se escapa da
memória muito cheia. As coisas inventadas em vista do prazer estejam próximas da verdade,
que a fábula não exija que se creia em tudo que ela queira (HORÁCIO, Poética; I, 334).

Horácio valoriza o empenho do escritor na sua produção, aliada a arte e a utilidade dessa pro-
dução. Para ele utilidade da obra e arte pela arte estão imbricadas: não basta ser belo, tem de
ser útil, não basta ser útil, tem de ser belo.

Têm-se perguntado se um poema se torna digno de louvor pela natureza ou pela arte. Eu
não vejo de que serve o trabalho sem uma veia fértil nem de que serve o engenho rude, as-

155
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

sim uma coisa reclama o auxílio da outra e conspiram amigavelmente. Quem se esforça por
atingir, nas corridas, a meta cobiçada, desde menino, muito suportou, praticou, suou, passou
frio, absteve-se de Vênus e do vinho (HORÁCIO, Poética; I, 408).

Dentre as diretrizes horacianas, há uma alerta para que o escritor submeta a sua produção ao
crítico Mécio, um célebre contemporâneo a Horácio, e também submeta-a ao pai e ao próprio
Horácio, para evitar que se encerre uma produção imperfeita. Assim, “Se, contudo, algum dia,
escreveres algo, submete-o aos ouvidos do crítico Mécio e aos de teu pai e aos meus e que, encer-
rado em pergaminhos, seja guardado até ao nono ano; o que não tenhas editado, te será permiti-
do destruir. As palavras soltas não podem tornar” (HORÁCIO, Poética, I, 386). Além de afirmar
que o “homem honesto”, nas palavras de Horácio, saberá perceber as falhas da sua produção,
sem que outro as veja, ou antes mesmo que o outro note-as, como aponta a citação abaixo.

Um homem honesto e competente repreenderá os versos fracos, incriminará os versos


duros, com a caneta oblíqua marcará com um traço negro os versos inelegantes, cortará os
adornos pretensiosos, exigirá que se esclareça os versos pouco claros, denunciará os enun-
ciados equívocos, notará tudo que deve ser mudado (HORÁCIO, Poética; I, 445).

Entremeios das poéticas

Alguns dos conceitos apresentados n’A arte poética de Horácio estão na Poética de Aristó-
teles, e por isso, é relevante fazer alguns apontamentos desses entremeios. A concepção de
verossimilhança parte da distinção que Aristóteles faz da arte e da história. A primeira narra
o que poderia acontecer e escolhe como vai narrar, a segunda narra o que aconteceu e em
ordem cronológica. Ainda dentro do aspecto de verossimilhança, Aristóteles assevera que
a literatura ou a poesia expõe sobre o universal, o todo, aquilo que é inerente a qualquer ser
humano, sejam dores, sentimentos, necessidades.

Sendo a literatura uma fonte do verossímil, e não necessariamente do concreto, do ocorrido


de fato, e isto lhe confere a especificidade de ser mais filosófica e séria do que a história, con-
forme diz: “Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois re-
fere aquela principalmente o universal, e esta o particular.” (ARISTÓTELES, Poética, IX, 50).
Horácio, assim como Aristóteles, concede ao artista apenas alternativas no nível da expressão
(metaplasmos, neologismos, arcaísmos, etc) e no nível do conteúdo a liberdade de inventar
está restrita ao cerco da verossimilhança, do possível, do crível, como apresentado anterior-
mente na seção das diretrizes horacianas.

A concepção de belo para Horácio parte da prerrogativa da unidade, da harmonia, da adequa-


ção, do equilíbrio, das características cabíveis ao gênero, do estabelecimento das partes. Essa
concepção de belo é semelhante a de Platão e a de Aristóteles como aponta Tringali (1993) em
seus comentários acerca da poética de Horácio, como se vê abaixo.

156
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

A obra de arte agrada pela realização do belo matemático ou pitagórico. É o mesmo


conceito que vigora em Platão e Aristóteles. O belo se caracteriza pela unidade na multi-
plicidade, pela harmonia do todo, pela adequação entre as partes, pela justa medida, pela
“lúdica ordem” (TRINGALI, 1993, p. 54).

Assim a conveniência impõe limites à criação, permitindo algumas licenças de acordo com os
estilos. Tanto em Platão e Aristóteles quanto em Horácio, a arte é concebida como imitação
da natureza humana no seu agir. Para Platão essa imitação é sombra do mundo das ideias,
e por isso, a arte é imperfeita e deturpadora. Para Aristóteles se constitui em uma imitação
positiva, pois está relacionada a função pedagógica da arte. Conforme excerto.

Mas, como os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes, necessaria-
mente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole (porque a variedade dos caracteres
só se encontra nestas diferenças [e, quanto a caráter, todos os homens se distinguem
pelo vício ou pela virtude]), necessariamente também sucederá que os poetas imitam ho-
mens melhores, piores ou iguais a nós, como o fazem os pintores: Polignoto representava
os homens superiores; Plauson, inferiores; Dionísio representava-os semelhantes a nós
(ARISTÓTELES, Poética, II, 7).

Aristóteles divide essa imitação de acordo com o gênero, os homens mais nobres são repre-
sentados na tragédia e na epopeia, nesta última, especialmente os heróis; ao passo que a co-
média imita os homens comuns da sociedade. Horácio não só toma a arte como verossímil e
imitativa da vida, mas define que modelo deve ser imitado, o grego. Conforme diz: “Vós, volvei
os modelos gregos com mão noturna, volvei com mão diurna” (HORÁCIO, Poética; I, 269).

A arte como imitação da vida é um conceito imbricado ao prazer que vem da imitação e a fun-
ção educativa que se exerce ao imitar. Segundo fragmento.

Ao que parece, duas causas, e ambas, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e
nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, apren-
de as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado. Sinal disto é o que aconte-
ce na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas
coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, [as representações de] cadáveres. Causa
é o que aprender não só muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais
homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é motivo por que se deleitam
perante as imagens: olhando-as aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e
dirão], por exemplo, “este é tal”. Porque, se suceder que alguém não tenha visto o original,
nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da cor
ou qualquer outra causa da mesma espécie (ARISTÓTELES, Poética, IV, 13-14).

Quanto ao prazer descrito por Aristóteles como proveniente da imitação, Horácio chama de
deleite, de agrado. Para ele, agradar deve estar relacionado a ser útil também, como se vê: “Os
poetas ou pretendem ser uteis ou deleitar ou, ao mesmo tempo, dizer coisas belas e aprovei-
táveis à vida” (HORÁCIO, Poética; I, 334).

Vale lembrar que tanto Aristóteles quanto Horácio reconhecem o valor da obra de Homero
e toma-o como o grande nome dentre os escritores gregos. Quanto à finalidade da arte, con-

157
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

siste em inspirar sentimentos que são próprios de cada gênero. A tragédia suscita a piedade e
o terror como aponta Aristóteles (ARISTÓTELES, Poética, IX, 56); assim Horácio conclama
que “um assunto cômico não quer ser desenvolvido em versos trágicos” (HORÁCIO, Poética;
I, 89), ou seja, cada gênero deve ser elaborado dentro de suas especificidades e deve suscitar
sentimentos que lhes são próprios.

Quanto ao sentimento inspirado pela arte no seu receptor, é a chamada catarse, presente em
Aristóteles. Que consiste em um termo médico utilizado para descrever o sentimento que a
arte produz no seu receptor: o de expurgar as paixões nocivas e o de aprender por meio da
arte, a pedagogia da arte. Essa concepção da arte atrelada à função educativa está presente em
Aristóteles que combate a ideia de Platão, que via-a como nociva, prejudicial.

Tringali (1993) observa a linearidade que se estabelece dentre essas sucessivas acerca da arte, e atri-
bui a Horácio a função de equilibrar o entendimento sobre a arte e as suas funções. Segundo observa.

Platão condenara a arte por causa de seu esteticismo, Aristóteles se inclinara pelo esteti-
cismo, mais em consonância com a alma grega que só busca a glória. Cabe a Horácio con-
ciliar harmonicamente as duas posições: a arte deve, simultaneamente, agradar e educar,
ressalvando-se que agradar é função essencial, educar, função acidental, embora importante
(TRINGALI, 1993, p. 66).

Em suma, podemos concluir que tanto em Horácio quanto em Aristóteles o conceito de belo,
a função pedagógica da arte, a valoração da obra de Homero, a verossimilhança, a narração
da história e a da arte, a catarse, os gregos como modelo a ser seguido; são concepções simul-
tâneas e que estabelecem diálogo. Horácio apresenta-se como mais poético, construindo um
tratado crítico que contém figuras e construções metafóricas; já dos manuscritos que se têm
acesso a Poética, podemos considerar que Aristóteles é mais sistemático na apresentação de
suas concepções do que o crítico Horácio.

Considerações finais
A epístola dirigida à família dos Pisões, que responde às questões pertinentes a arte de bem
escrever, se tornou um tratado de crítica literária endereçado ao povo romano, que é con-
clamado a olhar a produção grega e se guiar por ela, e a todo estudioso e/ou interessado em
conhecer a arte e as suas funções dentro da concepção classicista. Mais tarde, tal tratado é
denominado de A arte poética de Horácio.

A sua poética define o belo como útil, sendo a junção entre a concepção de arte perfeita a
utilidade; ensina, ao passo que proporciona deleite. Pode-se considerar uma concepção
greco-romana, pois os gregos são dados a arte pela arte e os romanos a arte pela perspectiva
prática e utilitária. Como Horácio escreve a romanos e sobre a produção de gregos, ele pro-
porciona esse equilíbrio.

158
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

O crítico se debruça sobre alguns paradoxos: engenho e arte; útil e agradável; expressão
e conteúdo, para despertar os seus leitores a se estabelecerem nessa posição equilibrada.
Então, não basta o engenho sem arte; nem arte, sem o engenho. Não é suficiente ser útil,
sem deleitar, agradar; nem agradar, sem ser útil. Não serve ser expressiva e esteticamente
bem articulada, senão se tem conteúdo; nem o conteúdo sem a expressão, pois se perde o
caráter artístico/literário.

O conceito de originalidade na concepção horaciana não se dá pelo fato de tratar algum tema
inédito, mas pelo contrário, se é original produzindo uma arte verossímil; o impossível é per-
mitido desde que consiga ser colocado dentro das alegorias, e portanto, se torna verossímil. A
imitação da vida e a representação dela nas artes é outro conceito de sua Poética e que dialoga
com a de Aristóteles, assim como a questão da imitação e de outros pormenores.

Por fim, podemos concluir que A arte poética de Horácio é uma crítica romana sobre a produ-
ção grega, pois ele fundamenta os padrões literários e as suas concepções sobre a arte, a partir
dos gregos e toma-os como exemplos para os romanos. Também valora alguns nomes roma-
nos e reivindica o espaço de outros. Ademais, discorre acerca da linguagem e da função da
literatura em ampliar e reinventar o léxico de uma língua. Solicita que cada gênero obedeça
as suas especificidades, que a comédia não provoque lágrimas e a tragédia não angarie risos.
E que cada escritor submeta a sua produção ao olhar do crítico antes da publicação, que seja
um “homem honesto”, nas palavras de Horácio. Sobretudo, que os “meninos romanos”, como
o crítico os denomina, se debrucem sob a produção dos homens gregos.

Referências:
ARISTÓTELES. Poética. Introdução, tradução e comentários de Eudoro de Sousa. Porto Alegre, Globo.

CICERO, Marco Túlio. Brutus e a perfeita oratória. (Do melhor gênero de oradores). Introdução, tradu-
ção e notas de José Rodrigues Seabra Filho. Belo Horizonte: Nova Acrópole, 2013.

COUTO, Aires, Horácio crítico literário. Revista: Mathésis. N. 11, p. 125-163, 2002.

FINLEY, M. I. Uso e abuso da história. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 1989
(Coleção o homem/a história).

HORÁCIO. A arte poética. Tradução, notas e comentários de Dante Tringali. São Paulo: Musa Editora,
1993. (Ler os clássicos; v. 1).

159
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

Comicidade em José Cândido de Carvalho

Maria Renata Santos Ferreira


Graduação/UFS

Nosso estudo objetiva analisar os aspectos da comicidade na obra de José


Cândido de Carvalho, seus procedimentos cômicos e funções, investi-
gando o comportamento e as relações socioculturais da época através de
personagens que revelam o “malandro jeitinho brasileiro” em todos os
níveis sociais. Para proceder à análise, estaremos nos baseando em três
teorias sobre a comicidade: O riso – ensaios sobre a significação do cômi-
co (1983) de Henri Bergson, Os chistes e sua relação com o inconsciente
(1977) de Sigmund Freud e o capítulo “O chiste” de André Jolles (1976)
em seu livro Formas simples.

Palavras-chave: Cômico; José Cândido de Carvalho; Conhecimento.

Introdução
Este projeto de iniciação científica intitulado de Comicidade em José Cândido de Carvalho
tem por objetivo analisar sistematicamente os aspectos de comicidade na obra do autor,
em que percebermos a contribuição de sua obra para moderna literatura brasileira, atra-
vés de sua linguagem bem humorada carregada de uma minuciosa denuncia social, defla-
grando a ironia, a parodia, a comicidade de palavras e o rebaixamento como algumas das
características que se manifestam no decorrer dos contos analisados. Percebe-se na obra
de José Cândido de Carvalho através das relações socioculturais destacadas um retrato do
estereótipo do Brasil e do brasileiro.

Para análise dos aspectos cômicos presentes nos contos estudados utilizamos três das prin-
cipais teorias de estudo sobre a comicidade: O riso: ensaios sobre a significação do cômico
(1983) de Henri Bergson, Os chistes e sua relação com o inconsciente (1977) de Sigmund
Freud e o capítulo “O chiste” de André Jolles (1976) em seu livro Formas simples.

Podemos perceber que, para Bergson, o cômico seria o “mecânico calcado no vivo”, ou seja
a comicidade aparece quando o ser humano passar a agir maquinalmente perdendo sua
própria essência humana. Freud define o cômico como efeito de “válvula de escape”, isto é

160
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

funciona como alívio de tensão, dando vazão a conteúdos reprimidos através das manifes-
tações do inconsciente. Já para Jolles, o chiste é uma disposição mental que desmonta as
coisas, é o modo de desatar as coisas e desfazer nós, ou seja os chistes desatariam a ética,
a moral e a linguagem.

Partindo das teorias da comicidade, adentramos em um estudo de fato sobre as obras e a


trajetória de José Cândido de Carvalho. Autor regionalista da segunda geração modernista,
romancista, contista e jornalista nascido em cinco de agosto de 1914, em Campos dos Goita-
cases, Rio de Janeiro, filho de lavradores portugueses. Aos 16 anos iniciou-se como jornalista
trabalhando como editor da revista O Liberal, trabalhou em diversos jornais do Rio de Janei-
ro, passando pelo jornal Folha do Comercio, O Dia, Gazeta do Povo, O Monitor Campista,
foi chefe editor internacional da revista O Cruzeiro, a revista brasileira de maior circulação
na época, foi o primeiro presidente da Funarte. Em 1937, obteve o bacharelado em direito,
admirador de Raquel de Queiroz e José Lins do Rêgo, José Cândido de Carvalho estreou na
literatura brasileira em 1939, com o romance Olha para o céu Frederico, vinte e cinco anos
depois pública seu segundo romance O coronel e o lobisomem, sua mais importante obra,
considerada um clássico da moderna literatura brasileira.

A partir de 1973, entrou para a Academia Brasileira de Letras, quinto ocupante da cadeira 31
sucedendo, Cassiano Ricardo Leite, só o romance O coronel e o lobisomem bastaria para lhe
reservar um lugar de destaque, mas Cândido também publicou dois livros de contos Porque
Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon e Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos.

Em suas obras além de tratar das questões políticas e sociais, José Cândido revela uma crítica
a questões morais como o famoso “jeitinho brasileiro” e o patriotismo exagerado, através de
estilo único que se tornou sua grande marca com uma linguagem aparentemente simples,
carregada de uso do exagero, gírias e expressões populares tipicamente do interior do Brasil,
misturando-se sempre a um tom de ironias e uso de metáforas com personagens que retratam
os “tipos” humanos da sociedade brasileira. O cômico em José Cândido de Carvalho aponta
as falhas das pessoas, da sociedade e da cultura.

Sobre o corpus estudado, os dois livros de contos do autor Um ninho de mafagafes cheio de
mafagafinhos e Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, ambos são muito pareci-
dos, inclusive possuem o mesmo subtítulo: “Contados, astuciados, sucedidos e acontecidos
do povinho do Brasil,” trazem como diz o próprio José Cândido na descrição do livro, uma
caricatura do Brasil, com uma linguagem bem humorada e inteligente em narrativas curtas,
mas que dizem muito como é o Brasil e o brasileiro.

Os contos nas duas obras, são organizados por partes, em histórias que dialogam entre si. Os
títulos dos contos um dos primeiros aspectos observado nesse estudo, já chama a atenção do
leitor no primeiro contato com o livro, provocando o riso e a curiosidade, pois utiliza-se de
ditados e expressões populares, além dos nomes dos personagens que são verdadeiramente
inusitados como traz o próprio autor em Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, uma
lista no início do livro com os nomes dos personagens considerados estrambóticos.

161
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

Nas obras analisadas, selecionei como corpus os contos “A morte não tira férias”, “Se a vida
acabou, compre outra” e “Na próxima vez venho de dilúvio à bordo” integrantes do livro Um
ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, mas para chegar a definição desse corpus especí-
fico, trafegamos entre um estudo mais superficial de outros contos como “Toda honestidade
tem sua fita métrica” integrante de Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos e do livro
Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, “Ferreiro não tem mulher de pau” e “Do
purgativo saiu uma borboleta”, entre outros, cujos títulos aproximam-se de ditados populares
de forma direta ou parodiando, anunciando assim, a temática abordada. A seleção do corpus
se deu por cada um representar um ambiente social diferente, revelando a amplitude de te-
mas ligados às relações socioculturais, que denunciam o “malandro” em todos os níveis.

1. Revisão teórica
1.1. Henri Bergson
Para Bergson, em seu estudo sobre a comicidade “o cômico é o mecânico calcado no vivo”, ou
seja isso acontece quando o homem passa agir maquinalmente, assim segue definindo que o
cômico é eminentemente sócio-cultural, só ocorre no âmbito de uma sociedade.

Ao falar que a função do riso é castigar os costumes, Bergson começa a responder para que serve
o cômico, o qual para ele é um gesto que reprime a excentricidade das pessoas, para que essa,
passe agir da forma ditada pela sociedade, concluindo que o riso é o cômico calcado no vivo.

Em resumo, se deixarmos de lado, na pessoa humana, o que interessa à nossa sensibilidade e


consegue nos comover, o resto poderá converte-se em cômico, e o cômico estará na razão
direta da parte da rigidez que ai se manifeste (BERGSON, 1983, p. 71).

Bergson associa o cômico ao feio para explicar como o riso discorre, acentuando suas defor-
midades passando do disforme ao risível, pois para ele as formas e os gestos acentuam o ri-
sível. Isso porque a forma é vista como a caricatura do palhaço, e os gestos, os “tiques”, essas
expressões acentuadas e repetitivas, são consideras cômicas.

1.2. Sigmund Freud


Já Freud, para explicar o que é o cômico, o “chiste”, parte para uma revisão teórica dos au-
tores que se propuseram a falar dos chistes como Jean Paul Richter e os filósofos Theodor
Vischer, Kuno Fisher e Theodor Lipps, mesmo não desconsiderando o trabalho feito ante-
riormente por esses estudiosos, ele discorda da temática dos chistes proposta por esses au-

162
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

tores, os quais restringe-se a relacionar o chiste ao cômico, pois de início Freud acreditava
que havia um cômico que não tinha ligação com o inconsciente, e outro que tinha relação
com o inconsciente, chamado de chiste.

Na citação de Fischer trazida por Freud por exemplo, “um chiste é um juízo que produz
contraste cômico; participa já, tacitamente, da caricatura, mas apenas no juízo assume sua
forma peculiar e a livre esfera do seu desdobramento” (apud FREUD, 1977, p. 22). Com essa
constatação Fischer como também os outros estudiosos citados, contrasta o chiste com o
cômico, enquanto Freud tenta separá-los, apenas no final da investigação ele percebe que
essa separação é impossível.

Ao falar dos propósitos dos chistes, Freud explica para que serve o cômico, cuja função seria
servir para que o inconsciente manifeste certas coisas e sirva como “válvula de escape”, assim
para ele o chiste serve para alívio de tensão ao manifestar aquilo que é vedado e proibido,
além de constatar em sua investigação que os chistes atuam como fonte de prazer.

Um chiste nos permite explorar no inimigo algo do ridículo que não poderíamos tratar
aberta ou inconscientemente, devido a obstáculos no caminho; [...] o chiste evitará as restri-
ções e abrirá fontes de prazer que se tinham tornado inacessíveis. Ele ademais subordinará
o ouvinte com sua produção de prazer, fazendo com que ele se alinhe conosco sem uma
investigação mais detida (FREUD, 1977, p. 123).

Para explicar como os chistes são construídos, Freud menciona os autores Heymans e Lipps ,
os quais explicam que o caráter do chiste reside no pensamento ou na sentença com isso ele
começa a explicar o processo de deslocamento e condensação usando o exemplo do chiste
de condensação “familionariamente” em que o deslocamento aparece como duplo sentido
ou seja transfiguração de uma palavra em outra coisa para tornar engraçado, ocorre também
como metonímia , a condensação é a junção das coisas familiares, ou seja a junção das pa-
lavras em uma única para formar a expressão “familionariamente”. Com isso Freud constata
que o esclarecimento causa prazer no ouvinte.

O jogo de palavras nada mais é que uma condensação sem formação de substitutivo; por-
tanto, a condensação permanece sendo a categoria mais ampla. Todas estas técnicas são
denominadas por uma tendência à compressão, ou antes a economia. (FREUD, 1977, p. 58).

1.3. André Jolles


André Jolles, define o chiste como a forma que “desata as coisas e desfaz nós” (JOLLES, 1976,
p. 206). Ou seja, chiste desataria tanto a ética, a lógica e a linguagem, como as próprias formas.

Ao falar das formas simples, Jolles mostra que os chistes revelam as formas de diferentes épo-
cas, pois não existe época ou lugar em que ele não se encontre caracterizando a raça, o povo,

163
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

o grupo e o tempo onde se encontram. Além disso para o autor o chiste se alimenta de todos
os recursos da linguagem sempre na sua função de desmonte.

Para Jolles, o chiste recorre a inconveniência, na medida em que no absurdo a lógica é desfei-
ta, na inconveniência acontece o desenlace. Para ele, o chiste trabalha com o duplo sentido,
mas desfaz as coisas quebrando os estereótipos e desmontando as respostas prontas. Essa
seria uma das funções do cômico. Na medida que tenta desfazer o repreensível a partir de sua
insuficiência, ou a insuficiência a partir dela mesma, o chiste é chamado de zombaria.

O autor também faz uma distinção entre a sátira e a ironia destacando que a primeira tem
sempre um caráter agressivo e moralizante de zombaria a fim de corrigir o desvio se asseme-
lhando com a abordagem bergsoniana, já a segunda tem um sentido revelador, sem arrogân-
cia, quem zomba faz parte do que é zombado, revelando ao indivíduo o que ele tenta escon-
der de si próprio se assemelhando com a abordagem trazida por Freud. “O azedume da sátira
visa o seu objeto; o azedume da ironia resume-se em encontrar em nós o que censuramos em
outrem” (JOLLES, 1976, p. 212).

Jolles aponta que a zombaria rebaixa e fala do caso particular, já no gracejo ele diz que
se diferencia da zombaria na medida em que fala do geral. O gracejo não tem os aspectos da
agressão que encontramos na zombaria, proporcionando alívio de tensão. Já os chistes para ele
atuam como dupla função se sustentando na teoria conservadora de Bergson e a libertadora de
Freud ao desmontar e desfazer a tensão. A zombaria condena enquanto o gracejo é libertador,
assim a função do cômico em Jolles é desmontar a linguagem, a lógica as próprias formas.

Assim, podemos concluir que para Jolles o chiste exerce uma tarefa de dupla função “desfaz
um edifício insuficiente e desafoga uma tensão” (JOLLES, 1976, p. 213).

2. Análise da obra

Na próxima vez venho de dilúvio a bordo


E desembarcaram o sapateiro Finfilóquio Tupinambá em Santo Antônio do Banhado na oca-
sião em que o Circo de Bagdá montava para a distinta assistência o número mais arriscado
de seu repertório: a bala humana. Sem saber de nada, bêbado de trocar pernas, perfeito peru
de aniversário, Finfilóquio entrou no camarim do mágico, atarraxou a cartola dele na cabeça,
bem assim como vestiu o fraque e arrumou o cachecol no pescoço. E soltando aguardente
pelas juntas dos cotovelos foi parar no picadeiro do circo de Bagdá e no picadeiro, como
fazia o mágico, tirou do bolso o lenço puxador de pombinhos na justa hora em que o ca-
nhão fazia funcionar a bala humana: um sujeito todo prateado, voando de passarinho. Com
o estrondo do tiro, o leão do circo, pegando jaula descuidada, saltou de cabrito diante do
povo arrumadinho em bancos e cadeiras. Foi um corre corre sem tamanho e feitio, gente
por cima de gente num atropelado de gritos e chiliques. Basta relatar que um perneta subiu
de macaco pelo mastro dos trapézios, e uma senhora bojuda, redonda de não caber nos ves-
tidos, ficou entalada entre as cadeiras e desatou a gritar pelo nome de seu falecido marido:

164
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

– Capanema, Capanema! Chegou o fim do mundo. Me espera no céu que eu já estou subin-
do.Vou atrasar um pouco porque perdi os óculos. Me espera, Capanema.
No meio do picadeiro, de queixo caído e cartola na mão, o bêbado Finfilóquio falou baixinho:
Finfim, Finfim, tu é o maior mágicão do mundo. Só no puxar do lenço tu inventou um canhão
e mais um danoso de um leão que já saiu comendo a perna de um par de bolivianos e mais
as partes traseiras de uma dona de óculos metida a fazer discursos, foramente um serviço
de parto que o leão fez só de berrar junto dos nove meses da barriguda. Lhe digo uma coisa,
Finfilóquio. Se tu calibra a magicação, como manda o regulamento, tu era Finfilóquio de botar
no picadeiro duas dilatadas cobras, um par de tigres, uma dúzia de elefantes, quatro leões
marinhos, manadas de bicicletas, cinco dobrados da gloriosa Banda Marcial de Santo Antônio
do Banhado e mais uma batelada de gringos para o povinho esborraçar a pau. Mais que isso,
Finfim velho, tu era homem de trazer a arca de Noé de volta. Com o tal do Dilúvio e demais
benefícios (CARVALHO, 2005, p. 21-22).

O conto “Na próxima vez venho de dilúvio a bordo” se passa em torno de um personagem cha-
mado Finfilóquio Tupinambá, um sapateiro que desembarcou na pequena cidade de Santo
Antônio do Banhado, altamente alcoolizado ao avistar a apresentação do circo de Bagdá, in-
vade o camarim do mágico e se passa por ele. No momento do número mais arriscado, a bala
humana, vestiu-se com todo o traje de mágico e foi para o picadeiro, onde o leão pelo barulho,
se assusta e vai na direção do público, causando um enorme alvoroço na plateia, com o que o
bêbado Finfilóquio se vangloria ao achar que todo o tumulto se dá em função de sua mágica.

Percebe-se nesse conto o desconcerto da plateia na medida que o leão aparece, gerando um
enorme alvoroço que revela o comportamento do ser humano diante do medo de morrer, as
quais passam a agir irracionalmente, sem pensar no que falar, como agir e se comportar. O
instinto de sobrevivência prevalece, como visto, de forma ironizada no trecho:

Foi um corre-corre sem tamanho e feitio, gente por cima de gente num atropelado de gri-
tos e chiliques. Basta relatar que um perneta subiu de macaco pelo mastro dos trapézios, e
uma senhora bojuda, redonda de não caber nos vestidos, ficou entalada entre as cadeiras e
desandou a gritar pelo nome de seu falecido marido (CARVALHO, 2005, p. 21).

Bergson, lembra que “não é, pois, a mudança brusca de atitude que causa o riso, mas o que
há de involuntário na mudança, é o desajeitamento” (BERGSON,1983, p. 9). E esse desajeita-
mento, o tumulto que é explorado na cena acima.

Ao usar a expressão “povo arrumadinho em bancos e cadeiras” José Cândido, faz uma crítica
à sociedade que vive de aparências, ditando a maneira como as pessoas devem se comportar,
agir e se vestir, além disso nessa mesma expressão o autor expõe uma crítica à divisão social
existente nessa sociedade, pois ao mencionar que a plateia estava organizada em bancos e
cadeiras revela que ocupam lugares distintos dentro de um mesmo ambiente, provavelmente
as classes privilegiadas ficam na frente e ocupam o conforto e a visibilidade nas cadeiras e os
demais, vistos como o “povinho” ficam atrás nos bancos da arquibancada.

165
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

Um dos procedimentos cômicos identificados nesse conto foi o rebaixamento, que aparece
nitidamente na medida em que a plateia avista o leão em sua direção e mudam drasticamente
de atitude, deixando de lado as aparências sociais e passando a agir de forma instintiva, oca-
sionando uma sucessão de cenas inusitadas explicadas por Bergson, ao falar sobre o efeito de
bola de neve “de cena em cena, a mudança de posição do objeto leva mecanicamente a mu-
dança de situação cada vez mais graves entre as pessoas” (BERGSON, 1983, p. 41).

Nesse conto, Cândido também propôs ilustrar uma figura típica sempre presente nas come-
dias, o “bêbado” que acaba sempre se metendo em alguma confusão, que por uma infeliz
coincidência no momento exato que o leão apareceu na plateia assustado pelo barulho do
tiro da bala humana, o atrapalhado e embriagado Finfilóquio, trajado no figurino do mági-
co entrou no picadeiro. É cômico também o fato de Finfilóquio enganar-se ao acreditar que
realizou uma grandiosa mágica e que foi o causador de todo o tumulto. Isso torna a situação
ainda mais engraçada, como visto na passagem final, ao se vangloriar da “mágica” que acre-
dita ter realizado:

No meio do picadeiro, de queixo caído e cartola na mão, o bêbado Finfilóquio falou baixinho:
-Finfim, Finfim tu é maior magicão do mundo. Só no puxar de lenço tu inventou um ca-
nhão e mais um danoso de um leão que saiu comendo a perna de um par de bolivianos
e mais as partes traseiras de uma dona de óculos metida a fazer discursos, foramente
um serviço de parto que o leão fez só de berrar junto dos nove meses da barriguda
(CARVALHO, 2005, p. 21,22).
Como lembra Freud, “Sob a influência do álcool o adulto torna-se outra vez e uma criança,
tendo de novo o prazer de dispor de seus pensamentos livremente sem observar a compul-
são da lógica” (1977, p. 150).

Outro ponto observado nesse conto, é a forma como Cândido utiliza-se da linguagem, abu-
sando propositalmente de um estilo que é sua grande marca, com uso de gírias e expressões
populares tipicamente do interior do Brasil, a fim de causar humor e, com isso, também des-
crever a realidade social e a maneira como a maioria da população, chamada carinhosamente
por ele em suas obras de “povinho brasileiro”, se comunica. Os trechos a seguir ilustram o uso
desses recursos. “Soltando água ardente pela juntas dos cotovelos” (CARVALHO, 2005, p. 21)
“tu é o maior magicão do mundo” (CARVALHO, 2005, p.22).

3. Considerações Finais
Chegamos ao final da pesquisa, após um ano de estudos e investigações, concluindo que
José Cândido de Carvalho, através de uma linguagem carregada de bom humor e ironia, vai
apontar uma crítica ao patriotismo exagerado e ao valores morais, através de personagens que
retratam o estereótipo do Brasil e do brasileiro, denunciando os problemas sociais, mas tam-
bém dando voz a partir de sua literatura aos que ele vem chamar carinhosamente de “povinho

166
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

brasileiro”, como visto no conto “Na próxima venho de dilúvio a bordo”, colocando qualquer
cidadão em um mesmo patamar, desde um simples sertanejo, juiz, bêbado, ladrão ou polí-
tico como protagonista de suas histórias. Podemos, por fim, dizer que a comicidade em José
Cândido de Carvalho vai apontar as falhas das pessoas, da cultura e da sociedade e mesmo
anos depois da publicação de suas obras os problemas sociais e políticos enfrentados pela po-
pulação brasileiro perpetuam-se enraizados até os dias atuais, fazendo assim, suas obras pa-
recerem que foram escritas sob a perspectiva da realidade atual em que o Brasil se encontra.

Um autor diferenciado, este foi José Cândido de Carvalho, através de sua linguagem
aparentemente simples, “o jeitinho Cândido de ser”, revela, adverte e ensina de forma bem
humorada, explorando da caricatura do Brasil e do brasileiro até a última gota para expor a
realidade escondida através das aparências sociais.

Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. (1940). O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad. Natanael C. Caxeiro-2o ed.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

CARVALHO, José Cândido de. O coronel e o lobisomem. 57a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.

CARVALHO, José Cândido de. Porque Lulu Bergatim não atravessou o Rubicon: contatos, astuciados,
sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

CARVALHO, José Cândido de. Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos: contados, astuciosos, su-
cedidos e acontecidos do povinho do Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Tradução: Jayme Salomão.1o edição, Vol. III. Rio
de Janeiro: Imago, outubro de 1977.

JOLLES, A. O Chiste. In: Formas simples. Trad. Álvoro Cabral. São Paulo: Cultrix,1976.

NINA, Claudia. ABC de José Cândido de Carvalho/ Claudia Nina. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

LEDUC, L’ ESPERANCE. Vincent, Pierre. Ecce Homo: o riso. [Vídeo]. Produção de Vincent Leduc, Di-
reção de Pierre L’ Espérance. O productions Coscient, 1998. 50 min. Disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=S1KFRkiMGCI. Acesso em: 11jan. 2016.

167

Você também pode gostar