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5/27/2017 Um mestre entre os poetas líricos - PÚBLICO

CRÍTICA
Um mestre entre os poetas líricos APOIADO POR

Odes

CARLOS ASCENSO ANDRÉ


6 de Fevereiro de 2009, 0:00

Os poemas de Horácio são exemplo de uma perfeição formal exemplar, de uma


enorme criatividade

Em toda a História da Literatura, a poucos nomes quadra tão bem quanto a


Horácio (65 a.C. a 8 a.C.) o título de "mestre na arte de versejar". Senhor de um
tecnicismo notável, como convém a qualquer poeta (e, por maioria de razão, a
um poeta latino, sujeito a apertadíssimas regras de prosódia), nem por isso essa
submissão a ditames técnicos lhe diminuiu a riqueza ímpar do seu lirismo.

Os seus poemas são exemplo de uma perfeição formal exemplar, qualquer que
fosse o modelo métrico adoptado - e são inúmeros os metros que cultivou,
quase todos os que lhe disponibilizava a poesia lírica herdada dos velhos poetas
gregos; mas são, igualmente, exemplo de uma enorme criatividade, que aliava,
como poucos, engenho e arte, em raro fulgor poético. Temas, imagens, emoções,
ideias, sentimentos, olhares, percepções, tudo nele contribui para um edifício
lírico de incontestável beleza.

Do ponto de vista técnico, avulta o rigor, a simetria, a busca constante da


perfeição; cada palavra obedece a um desígnio e uma estratégia de largo
amadurecimento, que manifestam um profundo sentido de equilíbrio e uma
arquitectura minuciosa, onde todos os pontos se interligam por fios habilmente
desenhados.

As mais das vezes, busca no quotidiano as suas imagens (a navegação, os


campos, o clima, as intempéries, a lavoura, os animais) ou recolhe-as no tempo
cósmico (as estações do ano e o seu fluir incessante, num devir cíclico que
interroga com persistência) ou, ainda, molda-as no universo da mitologia; assim
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nos deixa sugestões múltiplas, por via de regra ambíguas, como convém à
poesia.É o poeta da moderação, cantor da aurea mediocritas ("áurea
mediania"), que erigiu como norma de conduta, e a essa moderação parece
APOIADO POR ter
subordinado a vida e a poesia; mas é, também, um poeta do amor, ou antes, de
amores, que muitos e variados eram, entre homens e mulheres, os objectos da
sua entrega, física, sem dúvida, mas raro apaixonada, no sentido em que o
irracional poucas vezes dele se apoderou: Lídia, Cloe, Neera, Pirra, Lide, Lice e
tantas, tantas outras, a par de Ligurino e Licisco, entre outros.

Era, digamos, um espírito contraditório: ao mesmo tempo irrequieto e


apaziguado, a balançar entre o estóico e o epicurista, refractário a dogmas,
avesso ao protagonismo e a palcos, mas sempre próximo do Imperador e do
poder, desejoso do conforto sossegado da sua modesta courela na Sabina, mas
pressuroso a acorrer junto de Mecenas ou aos salões imperiais. Não consente,
por isso, leituras unívocas.A ele se devem versos que vieram a tornar-se
máximas de acolhimento universal: "colhe cada dia" (carpe diem), "confiando o
menos possível no amanhã"; "esquiva-te a perguntar o que amanhã sobrevirá, /
e considera um lucro cada dia que te der a Fortuna".

Talvez por tudo isso fosse, ao tempo de Augusto, fundador do Império romano e
da sua grandeza, uma espécie de consciência estética do regime, um quase
pontífice de uma corte de poetas, numa época que viu florescer os maiores da
Literatura Latina, como Virgílio, Propércio, Tibulo, Ovídio, Galo e vários outros
poetas de menor nome. Talvez por tudo isso, também, veio a tornar-se um dos
poetas de Roma de maior fortuna entre os vindouros e, portanto, um dos mais
imitados ao longo de toda a História da Literatura. Entre nós, adoptaram-no
como exemplo os melhores dos quinhentistas, como Camões, António Ferreira,
Diogo Bernardes, Pêro de Andrade Caminha e muitos dos que escreveram em
Latim, os nomes mais sonantes do Neoclassicismo e do Arcadismo (Correia
Garção, Filinto Elísio, a Marquesa de Alorna) e, já no século XX, para não
abusarmos da enumeração, o pessoano Ricardo Reis.

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Deixou-nos uma "Arte poética" (título tardio, de autoria alheia, para a sua
"Epístola aos Pisões"), Sátiras, um livro de Epodos e quatro livros de Odes, além
do "Carmen Saeculare". São estes últimos (as "Odes" e o "Cântico Secular")
APOIADO POR que
nos trouxe, em boa hora, no ocaso de 2008, em tradução portuguesa, Pedro
Braga Falcão. É estranho que um poeta de tão larga influência e tamanha
virtuosidade, ciclicamente traduzido em tantas línguas, tivesse de esperar
tantos anos por uma nova tradução integral em língua portuguesa, depois da de
José Agostinho de Macedo, no começo do século XIX.

Pedro Braga Falcão, depois de uma breve introdução, onde sumariamente fala
do poeta e da natureza e importância da sua obra, seguida de um utilíssimo
"Roteiro para uma leitura temática das Odes" e de uma apresentação dos
"Metros das Odes", acessível, apenas, a conhecedores da prosódia latina, deixa-
nos uma tradução que assenta no esforço do respeito pelas formas horacianas. É
um esforço tão meritório quanto difícil, que reclama muito trabalho de lima e
não menos engenho, sabido como é que o trânsito da prosódia latina para a
linguagem portuguesa suscita desafios de desfecho nem sempre fácil.

Penoso terá sido o trabalho, reconheça-se, mas de resultado francamente


positivo. Aqui e ali, talvez se justificasse pensar um pouco mais no leitor do
século XXI, a quem se destina a tradução, o qual não deixará de conhecer
alguma sensação de estranheza ante opções que soam a desuso, como
"incompossível oeano", "ebúrnea geada" ou "insondada". São raros, porém, tais
momentos. As soluções adoptadas para os passos mais difíceis são, por via de
regra, equilibradas e ajustadas ao gosto moderno, como convém. Se o lirismo
horaciano é alcançado nesta tradução, essa é a velha questão, inultrapassável,
do velho aforismo italiano que diz que "traduttore... traditore". O eterno fado de
quem traduz, afinal. O saldo, é justo dizê-lo, é francamente positivo. E o Natal
de 2008 trouxe-nos mais esta agradável prenda dos velhos Clássicos latinos,
que a Cotovia, com persistência, nos vem dando, para nosso deleite.

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