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São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos,

A navegar num doce mar de mosto,

Capitão no seu posto

De comando,

S. Leonardo vai sulcando

As ondas

Da eternidade,

Sem pressa de chegar ao seu destino.

Ancorado e feliz no cais humano,

É num antecipado desengano

Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos

Nem vinhedos

Na menina dos olhos deslumbrados;

Doiros desaguados

Serão charcos de luz

Envelhecida;

Rasos, todos os montes

Deixarão prolongar os horizontes

Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima

Da bem-aventurança.

É lentamente que o rabelo avança

Debaixo dos seus pés de marinheiro.

E cada hora a mais que gasta no caminho

É um sorvo a mais de cheiro

A terra e a rosmaninho!
Ibéria
Terra.

Quanto a palavra der, e nada mais.

Só assim a resume

Quem a contempla do mais alto cume,

Carregada de sol e de pinhais.

Terra-tumor-de-angústia de saber

Se o mar é fundo e ao fim deixa passar...

Uma antena da Europa a receber

A voz do longe que lhe quer falar...

Terra de pão e vinho

(A fome e a sede só virão depois,

Quando a espuma salgada for caminho

Onde um caminha desdobrado em dois).

Terra nua e tamanha

Que nela coube o Velho-Mundo e o Novo...

Que nela cabem Portugal e Espanha

E a loucura com asas do seu Povo.


Quando em silêncio passas entre as folhas

Quando em silêncio passas entre as folhas,

uma ave renasce da sua morte

e agita as asas de repente;

tremem maduras todas as espigas

como se o próprio dia as inclinasse,

e gravemente, comedidas,

param as fontes a beber-te a face.


Em Lisboa com Cesário Verde

Nesta cidade, onde agora me sinto

mais estrangeiro do que os gatos persas;

nesta Lisboa, onde mansos e lisos

os dias passam a ver as gaivotas,

e a cor dos jacarandás floridos

se mistura à do Tejo, em flor também,

só o Cesário vem ao meu encontro,

me faz companhia, quando de rua

em rua procuro um rumor distante

de passos ou aves, nem eu sei já bem.

Só ele ajusta a luz feliz dos seus

versos aos olhos ardidos que são

os meus agora; só ele traz a sombra

dum verão muito antigo, com corvetas

lentas ainda no rio e a musica,

o sumo do sol a escorrer da boca,

ó minha infância, meu jardim fechado,

ó meu poeta, talvez fosse contigo

que aprendi a pesar silaba a sílaba

cada palavra, essas que tu levaste

quase sempre, como poucos mais,

à suprema perfeição da lingua.


O texto poético do século XX
A emergência da poesia contemporânea deve ser procurada na revolução estética operada
pelo Romantismo e passa, já no início do século, pelo influxo de correntes finisseculares, como
o Simbolismo, o Decadentismo ou o Neogarretismo, que, nascidas da reação antinaturalista,
confluirão em novas tendências, como o Saudosismo e o Modernismo.

O século XX tem como referência na poesia portuguesa a experiência da Geração de Orpheu e


mais concretamente o universo de Fernando Pessoa. O alcance revolucionário do Modernismo
irá ser reencontrado várias vezes ao longo do século, a ponto de se poderem encontrar certos
fios condutores numa modernidade que, partindo das primeiras datas do século, continua a
condicionar, enquanto marco incontornável, a produção poética até ao início da década de 70,
data a partir da qual seria já oportuno falar em "pós-modernidade".

A produção poética da década de quarenta reflete o antagonismo entre duas tendências


teóricas opostas, o Presencismo (também designado Segundo Modernismo) e o Neorrealismo,
que coexistem com uma terceira via, a dos autores que encontram em Cadernos de Poesia a
possibilidade de afirmar a isenção e essencialidade da palavra poética. Na década de 50,
convergem várias tendências estéticas, afirmadas em publicações como Távola Redonda,
Árvore, Notícias do Bloqueio, Cancioneiro Geral ou Cadernos do Meio-Dia, que, apontando
quer para a consideração da existência de uma segunda geração neorrealista e de uma
segunda geração surrealista quer para o influxo do existencialismo, confluem no que, de um
modo lato, é usual designar de Geração de 50.

A década de 60 inaugura, com o projeto de Poesia 61 e com os manifestos de poesia concreta


ou experimental, um período caracterizado por uma maior atenção ao significante e à
corporalidade da palavra poética.

► Poesia Experimental
O conceito de poesia experimental remete-nos para A Proposição 2.01. Poesia Experimental de
E. M. de Melo e Castro, um verdadeiro manifesto que define as proposições básicas deste tipo
de poesia vanguardista.

Este autor define o "poema experimental" como um "Objeto criado para através dele se
estudarem e se surpreenderem as fases do processo criador e a sua evolução e projeção no
futuro tanto da poesia como do Homem".

A poesia experimental valoriza as potencialidades visuais e fónicas do significante linguístico,


isto é, os signos não funcionam tanto como significados ou conceitos, mas mais como
significantes como uma parte material ou imagem acústica. Entre os nomes mais
representativos ou influenciados pela poesia experimental contam-se ainda os de Ana
Hatherly, António Aragão, António Barahona da Fonseca ou Salette Tavares.
► Alguns poetas do século XX

Miguel Torga

Nome: Adolfo Correia da Rocha

Nascimento: 12-8-1907, S. Martinho de Anta, Vila Real

Morte: 17-1-1995, Coimbra

Época literária: Época contemporânea. Geração de “Presença”

Depois de ter trabalhado no Brasil, entre os 13 e os 18 anos (experiência que viria ser
evocada na série de romances de inspiração autobiográfica Criação do Mundo), regressou a
Portugal, vindo a licenciar-se em Medicina. Durante os estudos universitários, em Coimbra,
travou conhecimento com o grupo de escritores que viriam a fundar a Presença, chegando a
publicar nas edições da revista o seu segundo volume de poesia, Rampa. Em 1930, depois de
assinar, com Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca, uma carta de dissensão
enviada à direcção da publicação coimbrã, co-funda as efémeras revistas Sinal e Manifesto.
Não obstante a passagem pelo grupo presencista, no momento da suas primícias literárias,
Miguel Torga assumirá, ao longo dos cerca de cinquenta títulos que publicou –
frequentemente em edições de autor e à margem de políticas editoriais – uma postura de
independência relativamente a qualquer movimento literário.

Na poesia, depois de algumas colectâneas ainda imbuídas de certo dramatismo retórico


editadas no início dos anos trinta, a publicação dos volumes onde ostenta já o pseudónimo
Miguel Torga – segundo Pilar Vásquez Cuesta (cf. Revista de Ocidente, Agosto de 1968), esta
invenção pseudonímica simboliza, pela analogia com a urze, a obrigação de constância, firmeza
e beleza que o artista deve manter, por mais adversas que sejam as estruturas pessoais e
históricas em que se move, ao mesmo tempo que “a escolha do nome Miguel responde ao
propósito de acrescentar um novo elo lusitano a toda uma cadeia espanhola (Miguel de
Molinos, Miguel de Cervantes, Miguel de Unamuno) de pensamento combativo e rebelde” –
como Lamentação (1934), O Outro Livro de Job (1936), Libertação (1944), Odes (1946), Nihil
Sibi (1948), Cântico do Homem (1950), Penas do Purgatório (1954), Orfeu.
Eugénio de Andrade

Nome: José Fontinhas

Nascimento: 19-1-1923, Póvoa de Atalaia, Fundão

Época literária: Época contemporânea. Segunda metade do século: poesia

Poeta, sob o pseudónimo Eugénio de Andrade, foi funcionário dos Serviços Médico-
Sociais. Manteve sempre uma postura de independência relativamente aos vários movimentos
literários com que a sua obra coexistiu ao longo de mais de cinquenta anos de actividade
poética. Revelando-se em 1948, com As Mãos e os Frutos, a que se seguiria, em 1950, Os
Amantes sem Dinheiro, o seu nome não se encontra vinculado a nenhuma das publicações que
marcaram, enquanto lugar de reflexão sobre opções e tradições estéticas, a poesia
contemporânea, embora tenha editado um dos seus volumes, As Palavras Interditas, na
colecção “Cancioneiro Geral” e tenha colaborado em publicações como Árvore, Cadernos do
Meio-Dia ou Cadernos de Poesia. É, aliás, nesta última publicação, editada nos anos quarenta,
que se firmam algumas das vozes independentes, como Ruy Cinatti, Sophia de Mello Breyner
Andresen ou Jorge de Sena, que inaugurariam, no século XX, essa linhagem de lirismo
depurado, exigente, atento ao poder da palavra no conhecimento ou na fundação de um real
dificilmente dizível ou inteligível, em que Eugénio de Andrade se inscreve. Sendo actualmente
um dos poetas portugueses vivos mais lidos e traduzidos e mantendo ao longo de uma longa e
fecunda carreira uma certa unidade de temas e de recursos formais, a poesia de Eugénio de
Andrade tem sido, curiosamente, objecto das críticas mais díspares na voz de grandes nomes
da crítica contemporânea.

É assim que, desde o momento da aparição de Os Amantes sem Dinheiro, David Mourão-
Ferreira não se coibiu de denunciar a precipitação do seu autor, acusando um “descuido
formal”, num poeta que se assumira pela beleza da forma, crítica que seria ampliada, na
publicação de Até Amanhã, no epíteto de “poeta lírico menor”, autor de poesia
“corajosamente superficial”, tentada pela “facilidade” (cf. Vinte Poetas Contemporâneos, 2.ª
ed. Lisboa, Ática, 1980, pp. 180-185). Numa perspectiva diametralmente oposta, Óscar Lopes,
naquela que é reconhecida como uma das mais rigorosas e exemplares obras ensaísticas sobre
poesia contemporânea, Uma Espécie de Música (cf. LOPES, Óscar – Uma Espécie de Música (A
Poesia de Eugénio de Andrade). Três Ensaios, Lisboa, INCM, 1981), colectânea de três ensaios,
ao longo dos quais a obra do autor de As Mãos e os Frutos é analisada em profundidade
através de todos os seus níveis significativos (prosódico, sintáctico, enunciativo, temático), vê
em Eugénio de Andrade um paradigma do conhecimento e funcionamento da palavra poética.
Óscar Lopes chama aí a atenção, entre outros aspectos, para o uso da hipálage enquanto
instrumento privilegiado na construção de uma expressão maximamente densa e depurada;
para o modo como nesta poesia, que oscila entre a brevidade epigramática e a discursividade,
o versilibrismo atinge o amadurecimento, no recurso a regularidades frásicas e intonacionais;
para certas marcas estilísticas muito próprias, como a criação de um “pretérito imperfeito
absoluto”,a metaforização obtida por processos de equivalência como falsos disjuntivos ou
aposição; para o modo como a relação entre o eu e o tu vivem da “tensão com que
reciprocamente se definem”, significando, no limite, que “toda a comunicação a dois é
precária” (id. ibi., p. 73); para a forma como nela são trabalhados os semas elementais, o corpo
e o desejo, o telurismo; para, finalmente, a maneira como a sua poesia, excluindo o lirismo da
dor e da auto-reflexividade, da frustração e da negação, se assume como poesia da
“plenitude”, “lírica de amor [...] lírica da natureza [...] poesia materialista, no sentido da sua
total imanência à realidade possível e única” (id., ibi., p. 32).

Sem esgotar todas as pistas de acesso à poesia de Eugénio de Andrade concentradas nos
ensaios acima referidos, entre um apelo para o concreto e para o deslumbramento dos
sentidos, recebidos quer da influência de Lorca quer de apego umbilical à terra – Eugénio de
Andrade descende de camponeses e a realidade rural marcou indelevelmente a sua infância; e
a liberdade de imaginação surrealista, para Óscar Lopes, conhecer a “poesia límpida”, “poesia
sem metafísica”, de Eugénio de Andrade é, em suma, “descobrir nalguns dos ritmos e das
palavras mais correntes da língua (por exemplo: dedos, água, cabelos, beber; ou se preferes...;
e contudo...) uma bela intenção desconhecida que tinham mas se perdia.” (id. ibi., p. 22). O
carácter solar, epifânico na evocação da realidade dos corpos e dos sentidos, esse sentimento
de absoluto da expressão que impõe uma adesão quase encantatória à sua palavra poética,
tem dado também espaço, sobretudo a partir de volumes como Obscuro Domínio ou Limiar
dos Pássaros, à expressão da disforia pressentida numa melancolia que a lenta morte dos
corpos adensa. É nesta medida que Joaquim Manuel Magalhães apresenta algumas reservas
quanto a interpretações que sublinham a luminosidade ou a plenitude como marcas de uma
obra onde, segundo este autor, “a mágoa é a trípode donde sobe a invocação da alegria, onde
a repressão é o pedestal onde assenta a estátua de um Eros coberto de cautelosas roupagens,
onde a catástrofe espreita um quotidiano que se quereria visível e transformável”
(MAGALHÃES, Joaquim Manuel – Entre Dois Crepúsculos, Lisboa, A Regra do Jogo, 1981, p.
111.).

Eugénio de Andrade é ainda tradutor de vários autores, cujas obras recriou poeticamente
(García Lorca, Safo, Borges) e organizador de várias antologias poéticas. Em 1991, foi criada, no
Porto, a Fundação Eugénio de Andrade. Em 2001, Eugénio de Andrade foi distinguido com o
Prémio Camões.
O texto poético do século XX
Etimologicamente, o termo poesia provém do grego e significa criar. A poesia é, neste sentido,
a criação por excelência e o poeta o seu criador.

O texto poético espelha um trabalho criativo da linguagem, definindo-se pela sua natureza
estética e dimensão literária. Aqui existe uma preocupação em ultrapassar o imediatismo, a
utilidade prática da língua e o mundo objetivo e exterior. Na verdade, o texto poético exprime
o estado de alma do poeta, isto é, o seu mundo interior. O seu discurso é claramente emotivo
e redundante, isto é, repetitivo, pois pretende intensificar a emoção, em vez de acrescentar
informação.

O texto poético distingue-se do texto narrativo, entre outros aspetos, por ser estático. Como
diz Clara Rocha, "Ao contrário da narrativa que nos conta uma história e é dinâmica, o poema
lírico exprime emoções.".

Proposta de análise de um texto poético


1) Compreensão do texto

a) Ler atentamente o poema

– percebendo a ligação entre os versos quando ela existe.

b) Delimitar o poema em partes lógicas:

– identificando o conteúdo de cada parte através de expressões-chave; escolhendo as marcas


linguísticas ou discursivas que sustentam essa divisão; apreendendo a relação existente entre
cada uma das partes (ex.: causa/efeito, presente/passado, presente/futuro, contraste, etc.).

Nota: Esta divisão em partes lógicas não é necessariamente aplicável a todos os poemas.

c) Identificar o assunto do poema:

– indicando o essencial do texto num pequeno parágrafo.

d) Definir o tema do poema:

– indicando a ideia que é comum a todas as partes do poema: por exemplo o amor, a infância,
a saudade, a eternidade, etc.

2) Análise linguística do texto

a) Reconhecer a originalidade do texto, aquilo que o torna único.

b) Perceber o uso expressivo da linguagem literária:

– identificando recursos expressivos;

– reconhecendo o ritmo e a musicalidade de poemas;

– captando os sentidos conotativos evocados pela linguagem utilizada; compreendendo a


simbologia da linguagem.
3) Análise de aspetos formais do texto

a) rima;

b) métrica;

c) organização de versos.

Versificação
► Métrica

Para eterminar o número de sílabas métricas de um verso – a sua métrica – contam-se as


sílabas gramaticais até à sílaba tónica da última palavra do verso.

Ó | meu | co | gu | me | lo | pre | to1

Quando duas ou mais vogais da mesma ou de palavras diferentes podem ser pronunciadas
numa só emissão de som, as sílabas gramaticais a que pertencem formam uma única sílaba
métrica.

Mi | nha es | pa | da | sem | ba | i | nha1


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Soneto do Guarda-Chuva, de Sebastião da Gama

► Classificação dos versos quanto à métrica

Os versos têm diferentes designações mediante o seu número de sílabas.


► Estrofes

► Rima

A rima é a correspondência de sons, geralmente no final dos versos.


► Soneto

O soneto possui uma estrutura lógica e rígida, com uma introdução, um desenvolvimento e
uma conclusão. É por isso considerado um género de poesia que permite transmitir
eficazmente uma ideia ou pensamento. Na última estrofe encerra-se a ideia desenvolvida,
sendo por vezes designada 'chave de ouro'.

► Características do soneto
Camões

Nem tenho versos, cedro desmedido,


Da pequena floresta portuguesa!
Nem tenho versos, de tão comovido
Que fico a olhar de longe tal grandeza.

Quem te pode cantar, depois do Canto


Que deste à pátria, que to não merece?
O sol da inspiração que acendo e que levanto
Chega aos teus pés e como que arrefece.

Chamar-te génio é justo, mas é pouco.


Chamar-te herói, é dar-te um só poder.
Poeta dum império que era louco,
Foste louco a cantar e a combater.

Sirva, pois, de poema este respeito


Que te devo e professo,
Única nau do sonho insatisfeito
Que não teve regresso!
Orfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam os rouxinóis...


Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte


No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
Um adeus Português
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo


à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira


onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo


em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo


à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira


da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante


que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Feira desmanchada

Num frouxo de riso, desmonto o barraco;

vida é outra loiça, que não este caco.

Rio como pode rir um português

ao ouvir, ocioso:- Será para outra vez...

_ Aqui há talento!Dizem.me os védores.

Seja para alívio das nossas dores!

Mas que remédio senão ser talentoso

quando tudo anda tão nervoso

e não há licença de porte dessa arma

que é a palavra não desfigurada!

Talento manejado a meu talante,

sê modesto, já que és, afinal, o circunstante,

e eu, o teu dono, se tiveres lazer,

sem disparos verbais andava era aos pardais,

por esses trigais e milheirais

que lhes dão de comer...

Alexandre O'Neill em Feira Cabisbaixa

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