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Por isso na impaciência


Desta sede de saber,
Como as aves do deserto —
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.
Vós, que o templo das idéias
Largo — abris às multidões,
P'ra o batismo luminoso
Das grandes revoluções,

Castro Alves
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SUMÁRIO

O ROMANTISMO NA EUROPA..................................................................................................................... 4
1 Das dificuldades de conceituação do romantismo..............................................................................................5
2 Da abrangência da visão romântica.....................................................................................................................6
3 Do surgimento do fenômeno romântico..............................................................................................................9
4 Da gênese romântica..........................................................................................................................................11
5 A visão romântica: desencantamento e reencantamento do mundo..................................................................17
6 Romantismo versus classicismo........................................................................................................................30
7 Redefinindo o romantismo................................................................................................................................34

A ESTÉTICA ROMÂNTICA NO BRASIL.....................................................................................................36


1 Antecipações da sensibilidade romântica..........................................................................................................37
1.1 O arcadismo...............................................................................................................................................37
2 O romantismo na América Latina......................................................................................................................47
2.1 O contexto latino-americano......................................................................................................................47
2.2 O jeitinho brasileiro...................................................................................................................................50
3 O romantismo no Brasil......................................................................................................................................58
3.1 Do surgimento............................................................................................................................................58
3.2 A nação em busca de sua expressão...........................................................................................................62
3.3 A tradução na língua da nação....................................................................................................................67

AUTORES E OBRAS..........................................................................................................................................73

RETOMADA E ATUALIDADE DAS MARCAS ROMÂNTICAS...............................................................101


1 As marcas românticas na poesia parnasiana e simbolista..................................................................................102
2 As linhas românticas no realismo/naturalismo..................................................................................................104
3 Os traços românticos no modernismo e na contemporaneidade........................................................................107
4 O romantismo em nossa feição patriótica..........................................................................................................125

REFERÊNCIAS..................................................................................................................................................128
O ROMANTISMO NA EUROPA

Como é decididamente contrário à ordem


burguesa e absolutamente interdito introduzir a
poesia romântica na vida, nesse caso, levemos
nossa vida para a poesia romântica.
Dorothea Schlegel
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O ROMANTISMO NA EUROPA

Se nos pedissem para caracterizar, com um


único epíteto, essa era em que vivemos,
estaríamos inclinados a chamá-la, não uma
era heroica, devocional, filosófica ou moral,
mas, antes de tudo, a era mecânica. É a era
do maquinismo em todos os sentidos
exteriores e interiores da palavra.

Thomas Carlyle

1 Das dificuldades de conceituação do romantismo

Ao afirmar que seria necessário ter perdido todo o espírito de rigor para se aventurar na
busca de definição do romantismo, o poeta francês Paul Valéry (1871–1945) sintetizava, em
poucas palavras, as dificuldades teórico-críticas, em face da conceituação e da definição da
escritura romântica, modalidade literária que se origina e floresce no Ocidente, espaço
geográfico-cultural ao qual se restringiu.
Na verdade, desde o seu surgimento, o fenômeno romântico se apresenta como um
enigma aparentemente indecifrável e, concretamente, mutável e escorregadio, que confunde e
espicaça a curiosidade dos mais diversos críticos e teóricos da literatura do mundo ocidental,
de onde provém e onde persiste em ressurgir até os dias atuais. Esses ressurgimentos
complicam, ainda mais, a apreensão crítica da estética romântica, dificultando a sua
demarcação, conforme realçam Löwy e Sayre:

Uma vez que isso é reconhecido, começam as verdadeiras questões: que fogo é esse? O que é
que o alimenta? E por que razão se propaga em todas as direções? [...] Depois de ter limitado,
durante muito tempo, o fenômeno romântico aos movimentos que se denominavam ou eram
designados como tal na primeira metade do século XIX, a história literária acabou, por vezes,
reconhecendo sua continuação na segunda metade desse século; evitou, porém, prolongá-la para
além desse período (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 11; 219).

Redivivas, as marcas românticas persistem em frequentar os mais variados movimentos


estéticos que lhes sucederam, terminando por alcançar, de forma expressiva, as próprias
vanguardas europeias e o modernismo no Brasil, nos inícios do século XX. Na compreensão
dessa persistente frequentação romântica nas literaturas ocidentais, que se processa tanto na
Europa como na América Latina, caminha a reflexão, confessadamente ancorada pela
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perspectiva hispano-americana, de Octavio Paz, na qual o poeta mexicano realça o sentimento


de discórdia que lastreia a poesia romântica, em face da sociedade vivenciada e problematizada:

A contradição entre história e poesia pertence a todas as sociedades, porém somente na idade moderna
manifesta-se de modo explícito. O sentimento e a consciência da discórdia entre sociedade e poesia
converteram-se a partir do romantismo, no tema central, muitas vezes secreto, de nossa poesia. Neste livro
procurei descrever, sob a perspectiva de um poeta hispano-americano, o movimento poético moderno e suas
relações contraditórias com o que denominamos ‘modernidade’ (PAZ, 1984, p. 11 – grifo do autor).

Segundo Michael Löwy e Robert Sayre, estudiosos da arte romântica europeia e, como
Octavio Paz, autores-chave desse tópico disciplinar, as dificuldades de apreensão da
complexidade do fato romântico se devem à sua diversidade, ao seu caráter fabulosamente
contraditório, à sua natureza de coincidentia oppositorum, conforme expressam em sua obra
Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade, de 1995:

O que é o romantismo? Enigma aparentemente indecifrável, o fato romântico parece desafiar a análise, não só
porque sua diversidade superabundante resiste às tentativas de redução a um denominador comum, mas
também e sobretudo por seu caráter fabulosamente contraditório, sua natureza de coincidentia oppositorum:
simultânea (ou alternadamente) revolucionário e contrarrevolucionário, individualista e comunitário,
cosmopolita e nacionalista, realista e fantástico, retrógrado e utopista, revoltado e melancólico, democrático e
aristocrático, ativista e contemplativo, republicano e monarquista, vermelho e branco, místico e sensual. Tais
contradições permeiam não só o fenômeno romântico no seu conjunto, mas a vida e a obra de um único e
mesmo autor, e por vezes um único e mesmo texto (LÖWY; SAYRE, 1995, p. – grifos dos autores).

2 Da abrangência da visão romântica

A partir do século XIX, a visão romântica de mundo migra do terreno específico do


estético, invadindo os discursos da filosofia, da pedagogia, da teologia, da história, da
economia, da política etc. Essa notável abrangência tem irritado, continuadamente, os teóricos
literários, notadamente aqueles pouco afeitos ao ideário romântico. Entre eles, podemos citar o
crítico estadunidense Arthur Lovejoy. Ante a disseminação do espírito romântico em tão
diversos campos da vida cultural – e em tão diferentes países – Lovejoy propõe que o termo
romantismo fosse abolido da crítica literária, em discurso que revela o próprio temor da não
aceitação de sua proposição:

A palavra romântico já significou um tão grande número de coisas que, em si, não significa nada.
Deixou de exercer a função de um signo verbal. Receio que o único remédio radical – a saber, que todos
nós deixemos de falar do romantismo – não venha ser adotado (LOVEJOY, apud LÖWY; SAYRE,
1995, p. 10).
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O receio, ou a intuição, de Arthur Lovejoy se concretizava. Os mais conhecidos e


importantes críticos literários ocidentais, especialmente os pesquisadores do romantismo, se
opuseram a sua proposta de banimento linguístico, ou nominalismo, como ficou conhecida a
formulação de Lovejoy. Entre esses teóricos, destacam-se Stefanos Rozanis, René Wellek,
Abrams, Morse Peckham, conforme nos afiançam Löwy e Sayre:

Ora, como é observado por Stefanos Rozanis em sua recente crítica a Lovejoy, a multiplicidade
das expressões literárias, do romantismo nos diferentes países não ultrapassa o nível de um
problema filológico limitado – enquanto manifestação de particularidades nacionais e
individuais – que não coloca, de modo algum, em questão a unidade essencial do fenômeno [...]
Quanto a Wellek, ao polemizar contra o nominalismo de Lovejoy, afirma que os movimentos
românticos formam uma unidade e possuem um conjunto coerente de ideias que se implicam
reciprocamente: a imaginação, a natureza, o símbolo e o mito [...] Peckham propõe definir o
romantismo como uma revolução do espírito europeu contra o pensamento estático/mecânico e
em favor de um organicismo dinâmico. Seus valores comuns são: a mudança, o crescimento, a
diversidade, a imaginação criadora e o inconsciente (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 10-14).

Em aproximação às ponderações de Lovejoy, o também estadunidense William


Montgomery McGovern investiria contra as letras românticas, mais precisamente sobre o seu
corolário político. Ao se debruçar sobre a obra de Thomas Carlyle (1795-1881), romântico
escocês e admirador da autora germânica Madame de Staël, McGovern a consideraria como um
prelúdio ao nazismo de Hitler. Desse modo, vê as ideologias políticas românticas como uma
preparação para o nazismo. A ele, responderiam Michael Löwy e Robert Sayre, desautorizando,
concomitantemente, a sua análise e a perspectiva crítica adotada, modelo comum à época da
Segunda Guerra:

Não há dúvida de que os ideólogos nazistas inspiraram-se em alguns temas românticos; mas isso não autoriza a
reescrever toda a história do romantismo político como um simples prefácio histórico do Terceiro Reich [...] De
que maneira incluir Rousseau nesse quadro teórico? [...] Evidentemente, para esse tipo de análise, os românticos
ingleses e franceses (“ocidentais”) não podem ser considerados como “verdadeiros” românticos. E o que dizer
dos românticos alemães jacobinos e revolucionários (Hölderlin, Büchner, etc.)? É claro, vai ser preciso situar
esses textos em seu contexto histórico (nos anos 1939-1945), favorável a uma percepção do romantismo em
geral, e de sua versão alemã em particular (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 16-17 – grifos dos autores).

Entre os que expressam uma ostensiva má vontade com a sensibilidade romântica,


podemos elencar, ainda, Carl Schmitt, Benedetto Croce e Pierre Lasserre, cujos escritos são
amplamente discutidos pelos nossos teóricos. Os três, igualmente, investem contra a
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feminilidade dos objetos românticos, num discurso marcado pelos tons pejorativos da
discriminação à mulher, conforme se verifica em seus argumentos.
Em seus escritos sobre o romantismo, Carl Schmitt assinala uma pretensa insuficiência
moral do lirismo romântico. Traduzida como passividade ou falta de virilidade, essa
insuficiência da poética romântica derivaria, segundo ele, da exaltação do feminino posta em
circulação pelos artistas do romantismo, como anotam Löwy e Sayre (1995, p. 12).
Em rota similar, Benedetto Croce observa as contradições que permeiam o objeto
artístico romântico. Numa visível reduplicação dos velhos estereótipos que circundam,
historicamente, o universo feminino, Croce acredita que tais contradições se devem à natureza
da alma romântica: “feminina, impressionável, sentimental, incoerente e volúvel” (CROCE
apud LÖWY; SAYRE, 1995, p. 12).
Com Pierre Lasserre, esse tom não se alteraria. Para esse teórico, a idiossincrasia
romântica se deve à sua essência feminina que espalha, por toda parte, “os instintos e o trabalho
da mulher, entregue a si”, num puro subjetivismo que o romantismo “sistematiza, glorifica,
diviniza”, como pontua Lasserre (apud Löwy; Sayre, 1995, p. 12). Tais interpretações seriam
recusadas pelo poeta e teórico Octavio Paz.
Muito à vontade com a centralidade feminina do romantismo, Octavio Paz observa a
multiplicidade romântica, a sua ramificação pelos mais variados discursos culturais do
Ocidente, perscrutando-lhes o sentido e a significação. Nessa assimetria, demarca-lhe a
singularidade em relação aos movimentos e estilos do passado, enquanto reconhece o impulso
à fusão entre a vida e a poesia, como o dínamo da estética romântica:

Foi a primeira e mais ousada das revoluções poéticas, a primeira a explorar os domínios subterrâneos do
sonho, do pensamento inconsciente e do erotismo; a primeira, também, a fazer da nostalgia do passado uma
estética e uma política [...] O romantismo foi um movimento literário, mas também foi uma moral, uma erótica
e uma política. Se não foi uma religião, foi algo mais que uma estética e uma filosofia: um modo de pensar,
sentir, enamorar-se, combater, viajar. Um modo de viver e um modo de morrer [...] A poesia romântica não
foi só uma mudança de estilo e linguagens: foi uma mudança de crenças, e é isto o que a distingue dos
movimentos e estilos poéticos do passado. Nem a arte barroca nem o neoclássico foram rupturas do sistema
de crenças do Ocidente (PAZ, 1984, p. 63; 83-88 – grifos nossos).

Em 1978, após quatro anos da edição da obra de Octavio Paz, essa inclinação teórica
seria retomada no Brasil, com a publicação do livro O romantismo, organizado por Jacob
Guinsburg. Verdadeiro painel da visão crítica em nosso país, essa obra, através de seus
múltiplos textos e autores, tenta descortinar a complexidade do romantismo, como já indicia
Guinsburg em seu texto introdutório a essa coletânea crítica:
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O que é o Romantismo? Uma escola, uma tendência, uma forma, um fenômeno histórico, um estado de
espírito? Provavelmente tudo isto junto e cada item em separado [...] Ele não é apenas uma configuração
estilística ou, como querem alguns, uma das duas modalidades polares e antitéticas [...] Mas é também
uma escola historicamente definida, que surgiu num dado momento, em condições concretas e com
respostas características à situação que se lhe apresentou [...] é um fato histórico que assinala, na história
da consciência humana, a relevância da consciência histórica. É, pois, uma forma de pensar que pensou
e se pensou historicamente (GUINSBURG, 2002, p. 13-14).

3 Do surgimento do fenômeno romântico

Do campo teórico do qual se indaga o quando e onde surge o fenômeno romântico, já


reconhecido como tal, reina uma considerável confusão, marcada também pela diversidade
opinativa. Ora, aponta-se a Inglaterra como o centro de surgimento da arte romântica; ora a
Alemanha, ou, ainda, de forma concomitante, esses dois países, enquanto se ressalta o ingresso
tardio do espírito romântico em solo francês.
Defendendo a primazia alemã, o francês Paul Van Tieghem (1871-1948) afirma que são
nas manifestações ocorridas entre 1797 e 1810 que se deve situar o início do romantismo
propriamente dito, ou seja, a partir do surgimento da escola alemã, seguida pelos ingleses, em
particular por Walter Scott e Chateaubriand. Só posteriormente, surgiria na França e nos países
escandinavos, na Itália e, mais tardiamente, na Espanha e na Polônia.
Nessa compreensão, Van Tieghem elabora uma tabela cronológica dos inícios da
laboração romântica na Europa: 1795 para a Alemanha; 1798 para a Inglaterra e o início do
século XIX para a França e os países escandinavos; 1816, para a Itália; e um pouco mais tarde
para a Espanha; 1822, para a Polônia. Nesse calendário, Van Tieghem reforça o status de
precursora que ele atribui à Alemanha, assinalando também o atraso da irrupção romântica em
França.
Noutro olhar, o teórico Arnold Hauser acredita ser o romantismo um movimento
originalmente inglês, situando, assim, o cenário da Inglaterra como ponto de nascimento da
estética romântica, enquanto aponta para as especificidades das manifestações inglesas,
segundo ele, muito mais à vontade com as regras de composição da herança clássica, do que a
França e a Alemanha.
Por outro lado, Octavio Paz se inclina pela Inglaterra e pela Alemanha como os
epicentros originais da corrente romântica, de onde se propaga o seu ideário por todo o
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continente europeu. Para Octavio Paz, a proeminência do romantismo alemão e inglês se deve
menos a sua antecipação cronológica do que à sua formidável penetração crítica e sua
originalidade poética.
Ressaltando a qualidade literária das produções românticas na Alemanha e na Inglaterra,
elogiando os seus escritos programáticos, verdadeiros manifestos revolucionários, Octavio Paz
terminaria por creditar, a essa excelência discursiva, a permanência de uma tradição que se
comunicaria à posteridade, para a qual, insistentemente, o poeta mexicano chama a atenção de
seu leitor, reforçando o caráter de atualidade das expressões românticas.
Tais perspectivas, em conjunto, seriam retomadas e redimensionadas pelos estudos de
Jacques Bousquet e pelas pesquisas de Karl Mannheim, escritores que, à semelhança de Octavio
Paz, são frequentemente chamados ao texto de Michael Löwy e de Robert Sayre.
Em acordo com o pensamento de Bousquet e de Mannheim, Löwy e Sayre focalizam o
início do romantismo no espaço temporal da segunda metade do século XVIII, elegendo,
igualmente, a França, a Alemanha e a Inglaterra como precursoras e fiadoras do
desenvolvimento, da divulgação e da disseminação da nova arte europeia. Nessa escolha, Löwy
e Sayre descartam a visão da França como refratária às ideias iniciais da estética romântica,
amparando-se, explicitamente, nos trabalhos de Bousquet e Mannheim:

Com efeito, a Alemanha e a Inglaterra já foram propostas como candidatas a esse título: a primeira quase
sempre por motivo de uma vocação particular devido a seu caráter e destino social; a segunda em razão de seu
avanço socioeconômico. No entanto, se olharmos detalhadamente a história cultural desses três países no
século XVIII, parece que essas afirmações são contestáveis e estaremos de acordo com Karl Mannheim para
quem o Romantismo apareceu praticamente ao mesmo tempo nesses três países europeus [...] Jacques
Bousquet refuta de maneira convincente a ideia de que a França teve um atraso considerável [...] Houve,
portanto, na França ao mesmo tempo que na Alemanha e Inglaterra, um denso tecido cultural romântico e não
somente algumas obras-guia. Quanto à questão das pretensas influências anglo-germânicas, Bousquet prova
que a dos autores alemães não teve grande importância e a dos ingleses foi muito menor do que se afirmou
(LÖWY; SAYRE, 1995, p. 79-80 – grifos dos autores).

Elencando os mais variados argumentos que corroboram as suas próprias opiniões, isto
é, de que o surgimento do espírito romântico se processou de forma sincrônica e assemelhada,
porém independente, em seus três países-centros, Löwy e Sayre procedem a um verdadeiro
inventário das perspectivas teóricas acerca do romantismo. Nessa catalogação do espólio crítico
romântico, especialmente o elaborado no século XX, nossos autores demonstram que à
diversidade e à multiplicidade que caracterizam o fato romântico corresponde, igualmente, a
uma fabulosa e inquietante pluralidade crítica:
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Em sua forma mais banal, essa abordagem opõe o romantismo ao “classicismo”. Por exemplo, segundo o
Larousse du XXe siècle, “são chamados românticos os escritores que, no início do século XIX, se liberaram das
regras de composição e do estilo do classicismo. Na França, o romantismo foi uma reação profunda contra a
literatura clássica nacional, enquanto vai constituir, na Inglaterra e Alemanha, o fundo primitivo do gênio
autóctone” [...] Sem ultrapassarem a visão estritamente literária do romantismo, outros críticos consideram
inadequada a definição que se limita a levar em consideração as “regras de composição não clássicas” ou a “alma
nacional” e tentam encontrar um ou vários denominadores comuns mais substanciais. É o caso, em particular,
dos três mais conhecidos especialistas norte-americanos da história do romantismo: M. H. Abrams, René Wellek
e Morse Peckham. (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 12-13 – grifos dos autores).

4 Da gênese romântica

Se o início do romantismo é, geralmente, delimitado no espaço da última década do


século XVIII, a sua gênese, todavia, remonta aos princípios da segunda metade do Século das
Luzes. Em razão disso, tem se falado de um protorromantismo, ou de uma pré-história do
romantismo, que se manifesta durante a fase do iluminismo, movimento cultural e intelectual
que modifica, profundamente, o quadro das letras e das ideias sobre o homem e a sua
organização político-social e cultural Ocidente.
Esse contexto – já então marcado por uma visível expansão do progresso é
caracterizado, principalmente, pelo despotismo e pela servidão humana que reinavam na
Europa – se tornaria matéria dos mais diversos iluministas. Entre eles, destaca-se Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778), que contrapunha a servidão humana, ou desumanização do homem, às
utopias de uma nova humanidade, reconciliada com a natureza e alicerçada pelos valores da
liberdade, da igualdade e da fraternidade. Essa nova sensibilidade, expressa pela nostalgia de
um tempo original, se transformaria em paixão romântica, como realça Octavio Paz, ao mesmo
tempo em que acentua a importância do legado de Jean-Jacques Rousseau para o discurso
literário do Ocidente:

A sensibilidade dos pré-românticos não tardará em se transformar na paixão dos românticos. A primeira é um
acordo com o mundo natural, a segunda é a transgressão da ordem social. Ambas são de natureza humanizada
[...] A nostalgia moderna de um tempo original e de um homem reconciliado com a natureza expressa uma
atitude nova [...] O sonho de uma comunidade igualitária e livre, herança comum de Rousseau, reaparece entre
os românticos alemães [...] O tema revolucionário do comunismo libertário se entrelaça assim ao tema religioso
do restabelecimento da inocência original (PAZ, 1984, p.54-64).
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Preconizando a incompatibilidade entre a natureza humana e a sociedade/civilização,


Jean-Jacques Rousseau reporia em circulação a teoria da bondade natural – o homem em estado
de natureza é bom, a sociedade é que o corrompe – configurando, dessa forma, a imagem do
bom selvagem. Nessa configuração, distancia o homem natural (inteiro absoluto) do homem
civil (unidade fracionária); questiona as instituições sociais, delineando o homem selvagem
através dos traços da inteireza humana e da inocência primordial, como se lê em seu Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), e em seu
romance/tratado de educação, Émile, publicado em 1762:

Raciocinando sobre os princípios que estabelece, devia este autor dizer que, sendo o estado natural aquele em
que o cuidado com a nossa conservação é o menos prejudicial à conservação alheia, o estado natural,
consequentemente, seria o mais adequado à paz e o mais conveniente ao gênero humano [...] De sorte que se
poderia dizer que os selvagens não são perversos precisamente porque não sabem em que consiste o serem
bons, porque não é o desenvolvimento dos conhecimentos, nem o freio da lei, mas a tranquilidade das paixões
e a ignorância do vício que os impedem de praticar o mal (ROUSSEAU, 1991, p. 165-166).

O homem natural é tudo para si mesmo: é a unidade numérica, o inteiro absoluto, que só se relaciona consigo
mesmo ou com o seu semelhante. O homem civil é apenas uma unidade fracionária que se liga ao denominador,
e cujo valor está em sua relação com o todo, que é o corpo social. As boas instituições sociais são as que melhor
sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para
a unidade comum [...] jamais será nem homem, nem cidadão; não será bom nem para si mesmo, nem
para os outros. Será um desses homens de hoje, um francês, um inglês, um burguês; não será nada [...]
O homem civil nasce, vive e morre na escravidão; enquanto conservar a figura humana, estará acorrentado por
nossas instituições (ROUSSEAU, 2004, p. 11-16 – grifos nossos).

Inquestionável, a importância do pensamento rousseauniano, para a literatura ocidental,


pode ser conferida através das letras brasileiras, como ilustra o poema “Ode ao burguês” (1922)
de Mário de Andrade, no qual o eu lírico investe, com contundência irrefreada, à maneira de
alguns partícipes e organizadores da Semana de 1922, contra o mundo burguês, numa evidente
aproximação discursiva com Rousseau:
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Ode ao burguês (1922)

Eu insulto o burguês! O burguês níquel, Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
O burguês-burguês! Oh! purée de batatas morais!
A digestão bem-feita de São Paulo! Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
O homem-curva! o homem-nádegas! Ódio aos temperamentos regulares!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
Eu insulto as aristocracias cautelosas! sempiternamente as mesmices convencionais!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
que vivem dentro de muros sem pulos; Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos Todos para a Central do meu rancor inebriante!
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam o “Printemps” com as unhas! Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
Eu insulto o burguês-funesto! cheirando religião e que não crê em Deus!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Fora os que algarismam os amanhãs! Ódio fundamento, sem perdão!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arquelinal! Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
(ANDRADE, 1955, p. 44- 45 – grifos nossos)
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi
Padaria Suíça! Morte ao Adriano!
“ – Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”

Na verdade, partindo de uma concepção pessimista da civilização, o iluminista


genebrino procederia a uma dura crítica à sociabilidade europeia, marcada, então, pela extrema
desigualdade, pela intolerância de todas as ordens, pelo despotismo, enquanto aponta, como
superação da desnatureza europeia, uma vivência humana guiada pela ordem natural. Nesse
olhar, Rousseau circunda, elogiosamente, o homem natural, ou o bom selvagem.
Primeiro crítico do capitalismo, considerado o pensador mais radical do iluminismo,
Rousseau se apresenta como um estranho no ninho iluminista. Afastando-se, grandemente, de
seus pares, Rousseau afirma o homem como ser-sentimento/afetividade/imaginação, numa
evidente problematização do primado da razão, defendido pelos filósofos da ilustração.
Também não pactuaria com os valores burgueses, a exemplo de Voltaire, pseudônimo de
François Marie Arouet (1694-1778) e de Montesquieu, autor d’O espírito das leis (1748).
Verdadeiramente, embora cativado pelo livre comércio, pelas liberdades civis, Voltaire
não hesitaria, à maneira de Rousseau, em defender, intransigentemente, a tolerância, em
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especial a de ordem religiosa, considerando-a como a primeira lei da natureza. Opor-se-ia, com
igual vigor, ao flagelo das guerras expansionistas, o maior dos males da humanidade:

O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo -nos
reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza [...] Evidentemente que qualquer particular que
persiga outro homem, seu irmão, porque não participa das suas opiniões, é um monstro [...] Insensatos que nunca
haveis podido prestar um culto puro a Deus que vos criou! Desgraçados [...] De todas as religiões, a cristã é, sem
dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos
os homens (VOLTAIRE, 1978, p. 290-291).

A fome, a peste e a guerra são os três ingredientes mais famosos deste mundo rasteiro [...] Mas a guerra, que
reúne todos estes dons, é dádiva da imaginação de trezentas ou quatrocentas pessoas espalhadas pela superfície
do globo, sob o nome de príncipes ou de ministros [...] O mais obstinado dos lisonjeadores concordará sem esforço
que a guerra arrasta sempre consigo a peste e a fome, por pouco que conheça os hospitais de campanha [...] Sem
dúvida que é uma arte muito bela, esta de desolar os campos, destruir as habitações e fazer perecer, em ano
normal, quarenta mil em cem mil homens [...] O maravilhoso nesta empresa infernal é que todos os chefes de
assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de irem exterminar o próximo [...] Todos
os vícios reunidos, de todas as idades e de todos os lugares, nunca igualarão os males produzidos por uma só
campanha (VOLTAIRE, 1978, p. 201-203).

Por outro lado, na compreensão de que a sociedade sonegou o direito natural dos homens
à igualdade na qual nasceram, e que eles não tornam a resgatá-lo, a não ser pelos direitos civis, 1
Montesquieu confia que, nas sociedades democráticas, as leis se constituem como signos de
garantia da igualdade entre os homens. Nesse postulado, acabaria por esboçar as bases de poder
sobre as quais se assenta o Estado moderno: o poder executivo, o legislativo e o poder judiciário.
Atento à importância dos regimes democráticos, cuidadoso quanto às possíveis
arbitrariedades contra os cidadãos, Montesquieu defende a autonomia e a independência destes
três poderes, encarando-as como cauções imprescindíveis à liberdade dos cidadãos, segundo se
verifica na argumentação do iluminista francês:

1
“No estado de natureza os homens nascem livres, mas não conseguem manter-se nele. A sociedade arrebatou-
lhes essa liberdade, e não tornam a recuperá-la senão pelas leis” (MONTESQUIEU, 1937, p, 86).
14

Há em cada Estado três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das cousas que dependem
do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil [...] Também não há liberdade
se o poder judiciário não está separado do legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o
poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: porque o juiz seria legislador. Se estivesse ligado
ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo indivíduo ou a
mesma coletividade de principais, ou de nobres, ou do povo, exercessem, acumuladamente, esses três poderes:
o de legislar, o executivo e de julgar os crimes e desavenças entre particulares [...] Se o poder executivo não
tem o direito de veto sobre as iniciativas do legislativo, este se tornará despótico [...] Mas se, em um estado
livre, o legislativo não deve vetar a ação do executivo, compete-lhe, no entanto, examinar e controlar a aplicação
das leis que elabora [...] os juízes da nação não são, como dissemos, senão a boca que pronuncia as palavras da
lei (MONTESQUIEU, 1937, p. 94-110).

Não é demais ressaltar, ante o contexto que se vai descortinando aos nossos olhos, que
o modelo de Estado, inspirado por Montesquieu – que se transformaria, na Europa Ocidental,
após a Segunda Guerra Mundial, no Welfare State (Estado do Bem-Estar Social) – tem sido
fustigado pelo mando, cada vez mais explícito e violento, dos grandes capitalistas que entorna,
em seu avanço, os preceitos democráticos, subtraindo os direitos dos cidadãos.
Nessa colisão com os direitos da ordem democrática, a sobreposição dos interesses do
capital aos bens da cidadania amortece, igualmente, o desempenho do papel do Estado, então
garroteado e submisso à força e às demandas dos banqueiros e dos grandes financistas.
Ao esvaziamento dos poderes do executivo e do legislativo se contrapõe a ampliação
dos domínios do judiciário, segundo pontua Emílio Santoro. Em seu texto-entrevista, “A
democracia não tem futuro”, concedido ao jornal paraibano, Correio da Paraíba, em 09.12.
2012, o pensador italiano sinaliza para o esgotamento do sistema democrático, apanágio
louvaminhado como ícone de civilidade, dos chamados Estados modernos:

Creio que o Estado se transformará [...] O que na Europa a gente já vê é que os parlamentos não contam quase
nada [...] contam muito mais os juízes. E essa será a grande transformação que haverá mais ou menos em dez
anos em todo o Mundo [...] Os governos são muito mais prisioneiros do mercado financeiro, da economia [...]
A liberdade contratual do poder das indústrias, de impor seus próprios contratos, está destruindo a liberdade
dos cidadãos, a vida social. Não há mais vida social [...] Eu estou convencido de que a democracia que a gente
conheceu nos anos 1900 terminou. O problema é que a gente não sabe o que vem adiante e como a democracia
mudou [...] E a democracia como conhecemos não tem futuro (SANTORO, 2012, p. A7).

Arisco às prerrogativas das leis civis, Rousseau, num caminho diverso ao de Voltaire e
ao de Montesquieu, investe contra os valores da sociedade burguesa, como bem sublinha em
sua visão acerca da propriedade privada, do progresso das técnicas e dos avanços científicos,
15

numa evidente contramão às crenças cultuadas pelos escritores iluministas, como demonstram
os fragmentos extraídos do Discurso sobre as ciências e as artes, publicado em 1750:

O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: Isto me pertence, e encontrou criaturas
suficientemente simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Que de crimes, de
guerras, de assassinatos, que de misérias e de horrores teria poupado ao gênero humano aquele que,
desarraigando as estacas ou atulhando o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Guardai-vos de escutar
este impostor! Estais perdidos se vos esqueceis de que os frutos a todos pertencem e de que a terra não é de
ninguém!” (ROUSSEAU, 1991, p. 175 – grifos do autor).

Quantos perigos, quantas rotas falsas na investigação das ciências! [...] Se nossas ciências se revelam vãs no
objetivo que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos produzidos [...] Contudo, se o progresso das
ciências e das artes nada acrescentou à nossa aventura, se corrompeu os costumes, e se a corrupção dos
costumes insultou a pureza do gosto, que se pensar dessa multidão de autores elementares (ROUSSEAU, 1991,
p. 220-229).

Os escritos de Rousseau, verdadeiros apelos ao retorno humano à relação harmoniosa


com a natureza, ao apreço à liberdade e à felicidade humana, repercutiriam, profundamente, na
sociedade europeia, tanto no contexto de suas publicações quanto nos períodos que lhes
sucedem, fornecendo à literatura a imagem mítica do bom selvagem e do mundo natural.
A representação rousseauriana do homem natural se espalharia pelas obras europeias,
como também permeariam as letras das nascentes literaturas das então colônias e/ou recém-
nações americanas, como se pode aferir do indianismo, idealizado e humanista, que dá o tom à
obra de Basílio da Gama, de Cláudio Manuel da Costa e de Santa Rita Durão, no período árcade,
e à produção indianista romântica.
Informados por essa perspectiva, Löwy e Sayre situam a obra de Jacques Rousseau
como gênese da sensibilidade romântica. Retomando a compreensão de Octavio Paz,
consideram os diversos discursos de Rousseau como textos inaugurais do impulso
anticapitalista, precursores, portanto, da manifestação da visão de mundo dos românticos.
Assim, consideram a obra de Rousseau e as de seus discípulos, a exemplo de Chateaubriand,
como literatura romântica, da fase anterior à Revolução Francesa:
16

Rousseau é o autor-chave na gênese do romantismo francês porque, ainda em meados do século XVIII, soube
articular toda a visão romântica do mundo [...] além disso, Octavio Paz observa que “se a literatura moderna
começa com uma crítica da modernidade é Rousseau a figura que encarna esse paradoxo com uma espécie
de exemplaridade”. Vemos aparecer em Rousseau uma configuração romântica a partir de Discours (1750,
1755) e de La Nouvelle Héloïse (1761), mas igualmente em obras escritas no fim de sua vida: Confessions e
Rêveries du promeneur solitaire [...] os discípulos de Rousseau, tais como Bernardin de Saint-Pierre e Restif
de La Bretonne são plenamente românticos: o primeiro em seu idílio trágico, Paul et Virginie; e o segundo
em suas utopias comunistas, patriarcais e campestres. Nesse romantismo anterior à Revolução Francesa,
podemos situar também Chateaubriand porque sua obra Tableaux de la Nature foi redigida entre 1784 e
1790 (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 85-86 – grifos dos autores).

Nesse raciocínio, Michael Löwy e Robert Sayre desconstroem uma perspectiva crítica
bastante rotineira nos compêndios de Literatura e, de forma mais acentuada, nos livros
didáticos originados, no mais das vezes, das mais conflitantes interpretações: a do
estabelecimento de uma relação direta entre a Revolução Francesa e as ideias românticas.
Ora, ao identificar, na obra de Rousseau, a gênese do espírito romântico, Löwy e Sayre
fazem este movimento recuar para aquém da Revolução Francesa e, na mesma moeda, o
avança para além da Revolução Industrial. Assim, criticam acidamente as interpretações que
insistem em ligar, com estreitos laços, o advento do romantismo a determinantes históricos
ou econômicos, valendo-se da contribuição de Henri Peyre, pesquisador francês das letras
românticas, a quem chamam e concedem voz, em sua obra:

Escutemos a opinião de um eminente especialista, Henri Peyre, autor de várias obras sobre a literatura
romântica [...] “Seria arriscado ligar demasiado estreitamente as criações do espírito, isto é, a mais livre
atividade que se possa imaginar, aos acontecimentos da história e à vida econômica... De fato, as relações
entre literatura e sociedade são praticamente indefiníveis... Ligar, como já se tentou fazer, o romantismo ao
advento da revolução industrial... é ainda mais arriscado... Se, em seguida, o romantismo exprimiu, melhor
do que inúmeros historiadores, os transtornos causados pelo afluxo das populações em direção à indústria e
às cidades, a miséria das classes trabalhadoras julgadas também classes perigosas... isso aconteceu porque
Balzac, o Hugo dos Miseráveis e até mesmo Eugène Sue, mais tarde Dickens e Disraeli na Inglaterra, foram
observadores argutos da sociedade e homens magnânimos.” A explicação pelo coração é um pouco limitada
e incapaz de preencher o vazio analítico que resulta da recusa em examinar a relação entre literatura e
sociedade (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 20).

5 A visão romântica: desencantamento e reencantamento do mundo


A partir da segunda metade do século XVII, a Europa assiste a uma vertiginosa
transformação social, operada pela ordem do capital que se vai consolidando e criando um novo
tempo e uma nova feição social, que se denominará de modernidade.
17

Conceito exclusivamente ocidental, a modernidade iria se caracterizar pelo acentuado


desenvolvimento do comércio, da indústria, da técnica, do raciocínio científico e lógico que o
iluminismo afagava. No reverso, também se verifica o desalento ante o raciocínio abstrato e
frio do cálculo, a impessoalidade da burocracia, a miséria espantosa de grandes contingentes
humanos que abandonam o campo em busca das grandes cidades, o abandono infantil, a
humilhação dos trabalhadores, a quebra dos vínculos sociais e afetivos, o poder do dinheiro, o
flagelo da pobreza, a quantificação do mundo e a consequente reificação humana.
Dessa modernidade – e contra ela – desabrocha a sensibilidade romântica, ou poesia
moderna, em sentido lato, com novos temas, novas formas e personagens outras, que põe fim à
lógica do classicismo, retomada pelo renascimento. Nesse quadro, surge uma multiplicidade de
obras que, refratárias a esse desenvolvimento, denunciam, negam e desmontam o progresso ou
o projeto “civilizatório” ocidental, especialmente em seus três países mais desenvolvidos,
França, Alemanha e Inglaterra, de onde se origina a poesia moderna, claramente engajada à
uma perspectiva centrada no humanismo.
Disso resulta uma literatura empenhada, perpassada ora pela perspectiva ética, ora pela
política, ou pela religiosidade, ou simplesmente humanística, ou tudo isso junto, como se vê
nos diversos discursos românticos, a exemplo de Thomas Carlyle que, em seus Sinais dos
Tempos (1829), expressa o horror romântico à mecanização do mundo, com verdadeiro temor
de que esta se estendesse ao humano. Ou mesmo o romance Oliver Twist (1837), do inglês
Charles Dickens, cujo tema se volta para a infância abandonada e ultrajada, para a iniquidade
dos orfanatos de Londres, seus espaços sujos e sórdidos. Também Os miseráveis (1862), do
francês Victor Hugo, narrativa que se constitui um verdadeiro panorama da sociedade francesa,
na qual seu narrador faz uma incisiva defesa da bondade humana, seguindo o pensamento do
socialismo utópico.
No Brasil, essa literatura que toma posição em face das iniquidades sociais teria uma
formidável realização em Castro Alves, como admitem os mais variados críticos. O poeta
abolicionista, como seus pares europeus, reveste de dignidade os mais ultrajados pela divisão
social do mundo da modernidade. Entre nós, é o escravo, sem sombra de dúvida, sobre quem
recaem os ônus mais infames do capitalismo. Contra essa reificação, Castro Alves reverbera,
em seus versos e rimas.
Desencantados, descontentes, revoltados ou nostálgicos em relação a um tempo perdido,
identificado em suas obras como a Idade Média, os românticos europeus recorreram às mais
diversas estratégias, em suas buscas de reencantamento do mundo. Entre os variados recursos,
18

temáticos e formais, do reencantamento romântico, elencamos os que se seguem, ressaltando


que muitos deles se imbricam num verdadeiro redemoinho para os seus leitores.
5.1 Imaginação – para o romantismo, a percepção do real é obra da imaginação; é um
apanágio da fantasia poética. O tema da “imaginação criadora” é a medula da poética romântica.
É também uma ruptura com a estética clássica, que concebia a arte como mimese, como
imitação objetiva do real.
5.2 Fantasia – contra o choque com a realidade hostil, provocadora de desencanto, os
românticos recorrem à fantasia, como estratégia na ruptura dos limites estreitos da realidade e
como canal privilegiado de propiciação ao exercício da imaginação.
5.3 Ensimesmamento – a interioridade, o voltar-se para si, é o ponto de partida do
pensamento romântico. Para os românticos, expressão da alma é a expressão do Eu. Daí
ligarem, em larga medida, o culto do ego ao senso religioso da totalidade.
5.4 Senso de religiosidade – contra o vazio religioso da Modernidade, visto como
ausência de sentido da vida, os românticos retornam às tradições místicas e religiosas, que se
converteriam em estratégias privilegiadas de reencantamento do mundo, consideradas por
muitos críticos como a principal marca romântica.
Na verdade, a importância da religiosidade é, duplamente, assinalada nos prefácios das
obras pioneiras da sensibilidade romântica no Brasil, conforme se lê no introito de Suspiros
poéticos e saudades (1836), de Gonçalves de Magalhães, e no prólogo de Primeiros cantos
(1846), de Gonçalves Dias, onde o poeta indianista apresenta as linhas múltiplas que tecem os
artefatos românticos e a sua concepção do poético.

O poeta sem religião, e sem moral, é como o veneno derramado na fonte, onde morrem quantos aí procuram
aplacar a sede. Ora, nossa religião, nossa moral é aquela que nos ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou
o mundo moderno, aquela que ilumina a Europa, e a América: e só este bálsamo sagrado devem verter os
cânticos dos poetas brasileiros (MAGALHÃES apud CANDIDO; CASTELLO, 1988, p. 169).

Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena política para ler em minha alma,
reduzindo à linguagem harmoniosa e cadente o pensamento que me vem de improviso, e as ideias que em mim
desperta a vista de uma paisagem ou do oceano – o aspecto enfim da natureza. Casar assim o pensamento com
o sentimento – o coração com o entendimento – a ideia com a paixão – colorir tudo isso com a imaginação,
fundir tudo isto com a vida e a natureza, purificar tudo com o sentimento da religião e da divindade; eis a Poesia
– a Poesia grande e santa – a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder
traduzir (DIAS apud CANDIDO; CASTELLO, 1988, p. 179).
19

Não obstante a efetivação da opção religiosa dos românticos em nosso país, como se
verifica na América Latina, o sagrado europeu não se afirmava como dogma, nem tampouco
desfrutava de comodidade, nos versos e nas letras, pouco pacíficas, da literatura brasileira,
mesmo no próprio período do romantismo.
Em 1868, num tom permeado pela heresia, Castro Alves escreve Vozes d’África.
Publicado, postumamente, como poema integrante da coletânea, Os escravos (1883), a poesia
de Castro Alves colide, frontalmente, com os dogmas e as escrituras da religiosidade europeia,
alcançando um inusitado teor herético, a anos-luz do sentimento de adoração ou de devoção
divina, conforme já anotara Heloísa Toller Gomes:

Castro Alves ousou mais do que seus contemporâneos brasileiros e estrangeiros. Em “Vozes d’África”, sua
indignação chega às raias do herético. Não se contentando em atacar a hipocrisia religiosa por seu endosso ou,
quando menos, omissão diante do crime escravista, o poeta volta-se contra o próprio Deus [...] Além de ver no
africano a vítima de um Deus vingativo, que o abandonara há dois mil anos, o católico Castro Alves questiona o
próprio dogma da salvação cristã (GOMES, 1988, p. 70-71).

Nesse discurso sacrílego, o Deus-Cristão desponta como um deus-terrível, deus-


vingança, deus-rancor e das dores humanas, surdo e indiferente aos apelos e sofrimentos de
suas criaturas. Assim, Castro Alves realçaria, em nosso corpus literário, ainda em construção,
o abandono de Deus que seria recorrentemente tematizado nos séculos seguintes, alcançando
os tempos atuais. Adentrado nessa heresia, Castro Alves problematiza a própria eficácia do
sacrifício de Jesus Cristo, questionando, assim, o dogma central da religiosidade cristã:

Vozes d’África (1868 – fragmentos)

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes! Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes Teu sangue não lavou da minha da minha fronte
Embuçado nos céus? A mancha original.
Há dois mil anos te mandei meu grito, ...........................................................................
Que embalde, desde então, corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
.....................................................
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É pois teu peito eterno inexaurível
De vingança e rancor?
........................................................... (ALVES, 1972, p.201-206)

No mesmo ano, como afiançam Valentim Facioli e Carlos Olivieri (1985), Tobias
Barreto escreve “A escravidão”, sobrepujando o patriotismo e a defesa dos escravos à religião.
Nele, o romântico sergipano caracteriza o Deus-Cristão como um deus-erro, cúmplice do delito
da escravatura, disparate divino que a juventude brasileira se propõe a corrigir. Desse modo, o
20

eu lírico em Tobias Barreto inverte os papéis entre a criatura e o seu criador, enquanto põe em
xeque a sabedoria e a justeza demiúrgicas:

A escravidão (1868)

Se Deus é quem deixa o mundo Se não lhe importa o escravo


Sob o peso que o oprime, Que a seus pés queixas deponha,
Se ele consente esse crime, Cobrindo assim de vergonha
Que se chama a escravidão, A face dos anjos seus,
Para fazer homens livres, Em delírio inefável,
Para arrancá-los do abismo, Praticando a caridade,
Existe um patriotismo Nesta hora a mocidade
Maior que a religião. Corrige o erro de Deus!

(BARRETO, 1978, p. 70)

Sem a preocupação com o acento religioso, demanda requisitada nos Manifestos de


Gonçalves de Magalhães e no de Gonçalves Dias, o poeta Ferreira Gullar retoma a discussão
sobre o que se entende por poesia. Nessa retomada, recorre ao discurso meta-poético do vate
maranhense, através de uma inquietante indagação – será arte? – acerca da composição poética,
conforme versifica em seu poema “Traduzir-se”, que integra a obra Na vertigem do dia,
publicada em 1980:

Traduzir-se (1980)
Uma parte de mim Uma parte de mim
é todo mundo: é permanente:
outra parte é ninguém: outra parte
fundo sem fundo. se sabe de repente.

Uma parte de mim Uma parte de mim


é multidão: é só vertigem:
outra parte estranheza outra parte,
e solidão. linguagem.

Uma parte de mim Traduzir uma parte


pesa, pondera: na outra parte
outra parte – que é uma questão
delira. de vida ou morte –
será arte?
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta. (GULLAR, 1989, p. 96)

5.5 Nostalgia – na reação à despoetização e ao prosaísmo da vida burguesa, os


românticos se voltam para os paraísos perdidos, para um passado pré-capitalista ou um pretérito
em que o horror da mecanização do mundo não era visível. Esses paraísos eram identificados
21

no medievalismo ou em terras longínquas – e exóticas – como as florestas americanas, a Índia


e o Oriente, como tematiza Castro Alves:

A bainha do punhal (1883 – fragmentos)

Salve, noites do Oriente, Salve, serralhos severos


Noites de beijos e amor! Como a barba d um Paxá!
Onde os astros são abelhas Zimbórios, que fingem crânios
Do éter na larga flor... Dos crentes fieis de Alá!...
Onde pende a meiga lua, Ciprestes que o vento agita,
Como cimitarra nua Como flechas de Mesquita.
Por sobre um dólmã azul: ..............................................
E a vaga dos Dardanelos
Beija, em lascivos anelos (ALVES, 1972, p. 219-220)
As saudades de Stambul.

5.6 Retorno ao passado – objeto da nostalgia e da melancolia romântica, o eterno


retorno se processava tanto de forma coletiva, a exemplo da tematização do medievalismo,
das tradições da pátria, usualmente confundida como lar, quanto de forma individual, como
expressam os versos de Casimiro de Abreu, voltados à infância, ao seu passado particular:
Meus oito anos (1857)
Oh! souvenirs! printemps! aurores!
V. Hugo
Oh! que saudades que tenho Livre filho das montanhas,
Da aurora da minha vida, Eu ia bem satisfeito,
Da minha infância querida Da camisa aberto o peito,
Que os anos não trazem mais! – Pés descalços, braços nus –
Que amor, que sonhos, que flores, Correndo pelas campinas
Naquelas tardes fagueiras À roda das cachoeiras,
À sombra das bananeiras, Atrás das asas ligeiras
Debaixo dos laranjais! Das borboletas azuis!

Como são belos os dias Naqueles tempos ditosos


Do despontar da existência! Ia colher pitangas,
– Respira a alma inocência Trepava a tirar as mangas,
Como perfumes a flor; Brincava à beira do mar;
O mar é – lago sereno, Rezava às Ave-Marias,
O céu – um manto azulado, Achava o céu sempre lindo,
O mundo – um sonho dourado, Adormecia sorrindo
A vida – um hino d’amor! E despertava a cantar!

Que auroras, que sol, que vida, Oh! Que saudades que tenho
Que noites de melodia Da aurora da minha vida,
Naquela doce alegria, Da minha infância querida
Naquele ingênuo folgar! Que os anos não trazem mais!
O céu bordado d’estrelas, – Que amor, que sonhos, que flores,
A terra de aromas cheia, Naquelas tardes fagueiras
As ondas beijando a areia, À sombra das bananeiras,
E a lua beijando o mar! Debaixo dos laranjais!

Oh! dias da minha infância! (ABREU, [1980?], p. 19-20)


Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã.
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
22

5.7 Mito – narrativa mágica, de interseção entre a religião, a história, a poesia, a


linguagem e a filosofia, o mito oferece um reservatório inesgotável de símbolos e alegorias:
fantasmas, demônios e deuses. Desfruta de um lugar à parte no conjunto dos recursos
românticos de reencantamento. Com esse entendimento, o poeta alemão Karl Wilhelm
Friedrich von Schlegel associa a poesia à mitologia, considerando o mito como carga utópica e
a poesia como poder mágico. Em José de Alencar, o mito do Dilúvio, e o do repovoamento da
terra, seria recontado, na versão indígena, em O guarani (1875), numa reatualização ritualística
procedida por Peri, no intuito de salvar a si e à amada Ceci.

O guarani (1857 – fragmentos)

E o índio ergueu os olhos com uma expressão inefável de reconhecimento. Falou com um tom solene: “Foi
longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens
subiram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com sua esposa. Era Tamandaré; forte entre os fortes;
sabia mais que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia
do céu. Quando todos subiram aos montes ele disse: – Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a
água. Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e deixaram ele só na várzea com sua companheira,
que não o abandonou. Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; aí
esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que o alimentavam. A água veio, subiu e
cresceu; o sol mergulhou e surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desapareceu; a
montanha desapareceu. A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu
céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira. A corrente
cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu acima do
vale, acima da árvore, acima da montanha. Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites;
depois baixou; baixou até que descobriu a terra. Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava
plantada na várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas. Desceu com a sua
companheira, e povoou a terra” (ALENCAR, 1951, p. 538-539, v. 2).

Persistente na discursividade ocidental, fazendo par com a temática da religiosidade, o


discurso mítico continua a inspirar o fazer artístico, na contemporaneidade, em todos seus níveis
e modalidades. Exemplar dessa persistência constitui o texto-canção, “Caldeirão dos mitos”
(1980), do compositor e escritor paraibano Bráulio Tavares, claramente alimentado pelos mitos
que povoam o universo nordestino:

5.8 Culto da natureza – diferente da imitação clássica, a natureza para os românticos


é o afastamento do hic et nunc; é refúgio ao bulício da cidade, locus de manifestação da
originalidade do gênio, não-contaminado pela sociedade. O paisagismo neoclássico cede lugar
ao pitoresco, ao local, se tornando, então, contraponto à modernidade industrial, que vê na
natureza tão-somente as quantidades de matérias-primas que dela pode extrair. A poetização do
confronto, campo x cidade, anima os versos de Fagundes Varela:
23

A cidade (1869 – fragmentos)

A cidade ali está com os seus enganos, Não, não é na cidade que se formam
Seu cortejo de vícios e traições, Os fortes de corações, as crenças grandes,
Seus vastos templos, seus bazares amplos, Como também nos charcos das planícies
Seus ricos paços, seus bordeis salões. Não é que gera-se o condor dos Andes!

A cidade ali está: sobre seus tetos Não, não é na cidade que as virtudes,
Paira dos arsenais o fumo espesso, As vocações eleitas resplandecem,
Rolam nas ruas da vaidade os coches Flores de ar livre, à sombra das muralhas
E ri-se o crime à sombra do progresso. Pendem cedo a cabeça e amarelecem.

A cidade ali está: sob os alpendres Quanta cena infernal sob essas telhas!
Dorme o mendigo ao sol do meio-dia, Quanto infantil vagido de agonia!
Chora a viúva em úmido tugúrio, Quanto adultério! Quanto escuro incesto!
Canta na catedral a hipocrisia. Quanta infâmia escondida à luz do dia!

A cidade ali está: com ela o erro, Quanta atroz injustiça e quantos prantos!
A perfídia, a mentira, a desventura... Quanto drama fatal! Quantos pesares!
Como é suave o aroma das florestas! Quanta fronte celeste profanada!
Como é doce das serras a frescura! Quanta virgem vendida aos lupanares!

A cidade ali está: cada passante Quanto talento desbotado e morto!


Que se envolve das turbas no bulício Quanto gênio atirado a quem mais der!
Tem a maldade sobre a fronte escrita, Quanta afeição cortada! Quanta dúvida
Tem na língua o veneno e nalma o vício. Num carinho de mãe ou de mulher!

Eis a cidade! Ali a guerra, as trevas,


A lama, a podridão, a iniquidade;
Aqui o céu azul, as selvas virgens,
O ar, a luz, a vida, a liberdade!
...........................................................

(VARELA, 1988, p. 118-119)

5.9 Senso de historicidade – orientado pela visão da singularidade da obra, proposição


privilegiada pela corrente alemã, os românticos reivindicam o senso de historicidade para as
artes, concebendo-as em sua relação com o contexto histórico-cultural do país em que surgem,
ou seja, o espírito da nação.
Na ficção histórica romântica, destacamos o escritor inglês, Walter Scott, com quem
Alencar dialoga em seus romances históricos e Manuel Antonio de Almeida que, em seu único
romance, Memórias de um sargento de milícias (1854-1855), reexamina, ficcionalmente, o
mundo da justiça no Brasil do tempo do rei, ressaltando o contínuo cerceamento policialesco,
que intimidava as camadas mais populares de nossa sociedade:
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Memórias de um sargento de milícias (1854/1855 – fragmentos)

Era no tempo do rei [...] Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas, era
naquele tempo cousa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje, depois de passados tantos anos,
restam grandes vestígios desse belo hábito [...] O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo
que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo
o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas de sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas,
nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças
que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial
[...] Era o Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os
movimentos lentos, e a voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria
por certo homem mais apto para o seu cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar. Uma companhia
ordinariamente de granadeiros, às vezes de outros soldados que ele escolhia nos corpos que haviam na cidade,
armados todos de grossas chibatas, comandada pelo Major Vidigal, fazia toda a ronda da cidade de noite, e
toda a mais polícia de dia. Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se tivesse passado uma
façanha do senhor major para pilhar um maroto ou dar caça a um vagabundo. A sua sagacidade era proverbial,
e por isso só o seu nome incutia grande terror [...] Quando algum dos patuscos daquele tempo (que não gozava
de grande reputação de ativo e trabalhador) era surpreendido de noite de capote sobre os ombros e viola a
tiracolo, caminhando em busca de súcia, por uma voz branda que lhe dizia simplesmente “venha cá; onde
vai?” o único remédio que tinha era fugir, se pudesse, porque com certeza não escapava por outro meio de
alguns dias de cadeia, ou pelo menos da casa da guarda na Sé; quando não vinha o côvado e meio às costas,
como consequência necessária (ALMEIDA, 1991, p. 7-13; 24 – grifos do autor).

5.10 Superabundância de sentimento – motivada pela visão maniqueísta romântica,


do bem versus mal, a literatura romântica expressa uma gama variada de emoções que, por
vezes, alcançam o exagero da pieguice e do dramalhão.

5.11 Repúdio às convenções sociais – subvertendo a sociabilidade do artista


neoclássico, os românticos reabilitam os comportamentos não racionais e/ou não
racionalizáveis, valorizando todas as formas de existência subjetiva, tais como o amor, a
emoção pura, as paixões, as intuições, as premonições, os instintos, o sonho, o delírio, o estado
da infância. Essa indisposição às normas sociais, ou volúpia da transgressão, se expressa no
satanismo de Byron. No Brasil, essa tendência apresenta-se, sobretudo, em Manuel Antônio
Álvares de Azevedo:
25

O poeta moribundo (1853)

Poetas! amanhã ao meu cadáver Que ruínas! Que amor petrificado!


Minha tripa cortai mais sonorosa!... Tão antediluviano e gigantesco!
Façam dela uma corda e cantem nela Ora, façam ideia que ternuras
Os amores da vida esperançosa! Terá esta lagarta posta ao fresco!

Cantem esse verão que me alentava... Antes mil vezes que dormir com ela,
O aroma dos currais, o bezerrinho, Que dessa fúria o gozo, amor eterno...
As aves que na sombra suspiravam, Se ali não há também amor de velha,
E os sapos que cantavam no caminho! Deem-me as caldeiras do terceiro inferno1

Coração, por que tremes? Se esta lira No inferno estão suavíssimas belezas,
Nas minhas mãos sem força desafina, Cleópatras, Helenas, Eleonoras;
Enquanto ao cemitério não te levam, Lá se namora em boa companhia,
Casa no marimbau a alma divina! Não pode haver inferno com Senhoras!

Eu morro qual nas mãos da cozinheira Se é verdade que os homens gozadores, ,


O marreco piando na agonia... Amigos de no vinho ter consolos,
Como o cisne de outrora... que gemendo Foram com Satanás fazer colônia,
Entre os hinos de amor se enternecia. Antes lá que do Céu sofrer os tolos!

Coração, por que tremes? Vejo a morte, Ora! e forcem um’alma qual a minha,
Ali vem lazarenta e desdentada... Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça,
Que noiva!... E devo então dormir com ela?... A cantar ladainha eternamente
Se ela ao menos dormisse mascarada! E por mil anos ajudar a Missa!
(AZEVEDO, 2002, p. 76-79)

(AZEVEDO, 2002, p. 76-78)


5.12 Fascínio pela noite – espaço de magia, de mistério, dos sortilégios, a noite vem se
adequar à contraposição romântica à luz, signo emblemático do racionalismo clássico. Nessa
oposição, a noite adquire o prestígio de musa do mundo romântico, conforme a metaforiza Luís
Nicolau Fagundes Varela, em seu poema “Eu amo a noite”:
26

Eu amo a noite (1869 – fragmentos)

Eu amo a noite quando deixa os montes, Amo o furor do vendaval que ruge,
Bela, mas bela de um horror sublime, Das asas densas sacudindo o estrago,
E sobre a face dos desertos quedos Silvos de balas, turbilhões de fumo,
Seu régio selo de mistério imprime. Tribos de corvos em sangrento lago.

Amo o sinistro ramalhar dos cedros Amo as torrentes que da chuva túmidas
Ao rijo sopro da tormenta infrene, Lançam aos ares um rumor profundo,
Quando antevendo a inevitável queda Depois raivosas, carcomendo as margens,
Mandam aos ermos um adeus solene. Vão dos abismos pernoitar no fundo.

Amo os penedos escarpados onde Amo o pavor das soledades, quando


Desprende o abutre o prolongado pio, Rolam as rochas da montanha erguida,
E a voz medonha do caimã disforme E o fulvo raio que flameja e tomba
Por entre os juncos de lodoso rio. Lascando a cruz da solitária ermida.

Amo os lampejos verde-azuis, funéreos, Amo as perpétuas que os sepulcros ornam,


Que às horas mortas erguem-se da terra As rosas brancas desabrochando à lua,
E enchem de susto o viajante incauto Porque na vida não terei mais sonhos,
No cemitério de sombria serra. Porque minh’alma é de esperanças nua.

Amo o silêncio, os areais extensos, Tenho um desejo de descanso, infindo,


Os vastos brejos e os sertões sem dia, Negam-me os homens; onde irei achá-lo?
Porque meu seio como a sombra é triste, A única fibra que ao prazer ligava-me
Porque minh’alma é de ilusões vazia. Senti partir-se ao derradeiro abalo!...
.................................................................
(VARELA. 1988, p. 135-136)

5.13 O feminino romântico – objeto do amor, concebido como essência da vida pelo
romantismo, a mulher é divinizada, retirada do seu cotidiano, de sua humanidade comum e
alçada às alturas de uma pureza arquetípica, tanto nos textos poéticos quanto nos discursos
narrativos. Mas há também outras heroínas. Marion Delorme, do romance homônimo de Victor
Hugo (1829); Marguerite Gautier, de A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho (1848);
Carolina, da narrativa dramática de José de Alencar, As asas de um anjo (1858); e Lúcia,
personagem do romance Lucíola (1862), de autoria também do romancista e dramaturgo
brasileiro.
De suas inúmeras configurações do feminino, realizadas em prosa e em verso, o
romantismo nos deixaria, como legado, uma ampla e diversa galeria de semblantes e de perfis
feminais, como ilustram as narrativas, Iracema: lenda do Ceará (1865), e Lucíola (1862), ambas
de José de Alencar; e os poemas “Elisa” (1859), de Casimiro de Abreu; o “O voo do gênio”
(1870) e “O gondoleiro do amor”, de Castro Alves:, além do antigo provérbio do povo
mexicano, abaixo transcritos:
27

Iracema (1865 – fragmentos)

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos
lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de
palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha rescendia no bosque como seu
hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu,
onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava
apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas (ALENCAR, 1951, p. 31, v. 7).

Lucíola (1862 – fragmentos)

– Aí está a Lúcia, disse Cunha [...] É uma bonita mulher! disse ao meu vizinho, com um ar de
indiferença para disfarçar a minha emoção. – A mais bonita mulher do Rio de Janeiro e também a mais
caprichosa e excêntrica. Ninguém a compreende. – Conheço-a apenas de vista; porém disseram-me que
é uma boa moça, muito amável... – Oh! Posso falar a este respeito. Fui seu amante quatro meses. – E
por que a deixou? Aborreceu-se? – Não a deixei. É o seu costume; um belo dia, sem causa, sem o
mínimo pretexto, declara a um homem que as suas relações estão acabadas; e não há que fazer. Podem
oferecer-lhe somas loucas, é tempo perdido. Também no dia seguinte, ou no mesmo, daí a uma hora,
toma outro amante que não conhece, que nunca viu. – Todas são assim, com pouca diferença: ninguém
sabe qual é o fio que faz dançar essas bonecas de papelão (ALENCAR, 1951, p. 45-46, v. 4).

Elisa (1859 – fragmentos) O voo do gênio (1870 – fragmentos)


................................. ..........................................................
Aos pés dum anjo Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia:
Um homem chora, A brisa morna, a sombra do arvoredo,
Perdão implora... A linfa clara, que murmura a medo,
Ria-se o mundo, A luz que abraça a flor e o céu ao mar.
Ria-se – embora. Ó princesa, a razão já se me perde,
É a mulher És a sereia da encantada Sila.
Que o poeta adora, Anjo, que transformaste-te em Dalila,
Dá-lhe seus cantos, Sansão de novo te quisera amar!
Risos e prantos, .............................................................
E uma alma ardente.
................................... (ALVES, [1986?], p. 33 – grifos do autor)

(ABREU, [1980?], p. 92)

O gondoleiro do amor (1870 – fragmentos) Provérbio mexicano


.....................................
Teu seio é vaga dourada A casa não se firma na terra, mas
Ao tíbio clarão da lua, sobre uma mulher.
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;
..............................................
(ALVES, [1986?], p. 29)
28

5.14 A pátria romântica – como a alma romântica vive – aqui e agora – longe de seu
verdadeiro lar, de sua verdadeira pátria, esta é representada e vivida como exílio, constituindo-
se como carência. Segundo Arnold Hauser, o sentimento de carência de lar e de isolamento
tornou-se a experiência fundamental dos românticos do início do século XIX. Para Walter
Benjamim, o apelo à vida onírica dos românticos indica as dificuldades impostas pela vida real
ao regresso da alma ao lar da terra materna (apud LÖWY; SAYRE, 1995, p.40). No caso da
literatura brasileira, a Canção do exílio (1843), de Gonçalves Dias, se institui como poética
exemplar desse fazer estético:

Canção do exílio (1843)


Kennst du das Land, wo die Citronen [blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen, [glühen?
Kennst du es wohl? – Dahin, dahin!
Möcht’ ich ... ziehn.
Goethe
Conheces o país onde florescem as laranjeiras?
Ardem na escura fronde os frutos de ouro...
Conhecê-lo? Para lá, para lá quisera eu ir!
Tradução de Manuel Bandeira

Minha terra tem palmeiras, Minha terra tem primores,


Onde canta o Sabiá; Que tais não encontro eu cá;
As aves, que aqui gorjeiam, Em cismar – sozinho, à noite –
Não gorjeiam como lá. Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Nosso céu tem mais estrelas, Onde canta o Sabiá.
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida, Não permita Deus que eu morra,
Nossa vida mais amores. Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Em cismar, sozinho, à noite, Que não encontro por cá;
Mais prazer encontro eu lá; Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.
Onde canta o Sabiá.
(DIAS, [1990?], p. 19)

5.15 Ironia – através da ironia, os românticos procuram desfazer as aparências do


mundo quantificado da modernidade, revelando a quebra do princípio da identidade, a cisão do
idêntico, o outro lado da razão. Em Senhora (1875), José de Alencar se utilizaria dessa
estratégia para a sua problematização do amor tornado negócio, graças ao artifício do dote,
arranjo bastante comum no Rio de Janeiro, no tempo do rei e do império.
Acidamente criticado por José de Alencar, principalmente através de Aurélia e do seu
narrador, a temática do casamento burguês é cruamente reduzida a uma grosseira barganha
29

comercial em Senhora, segundo se observa na própria ossatura da obra, dividida em quatro


partes – “O preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate” – numa explícita aproximação da
discursividade das operações financeiras aos procedimentos matrimoniais, mediados pela ética
do dote, que transforma o casamento em empresa nupcial, como assinala, em perspectiva
acusadora, a narrativa de José de Alencar:

Senhora (1875 – fragmentos)

Convencida de que todos os seus inúmeros apaixonados, sem exceção de um, a pretendiam unicamente
pela riqueza, Aurélia reagia contra essa afronta, aplicando a esses indivíduos o mesmo estalão. Assim
costumava ela indicar o merecimento relativo de cada um dos pretendentes, dando-lhes certo valor
monetário. Em linguagem financeira, Aurélia cotava os seus adoradores pelo preço que razoavelmente
poderiam obter no mercado matrimonial. Uma noite, no Cassino, a Lísia Soares, que fazia-se íntima
com ela, e desejava ardentemente vê-la casada, dirigiu-lhe um gracejo acerca do Alfredo Moreira,
rapaz elegante que chegara recentemente da Europa: – É um moço muito distinto, respondeu Aurélia
sorrindo; vale bem como noivo cem contos de réis; mas eu tenho dinheiro para pagar um marido de
maior preço, Lísia; não me contento com esse. Riam-se todos destes ditos de Aurélia, e os lançavam
à conta de gracinhas de moça espirituosa; porém a maior parte das senhoras, sobretudo aquelas que
tinham filhas moças, não cansavam de criticar desses modos desenvoltos, impróprios de meninas bem
educadas. Os adoradores de Aurélia sabiam, pois ela não fazia mistério, do preço de sua cotação no
rol da moça; e longe de se agastarem com a franqueza, divertiam-se com o jogo que muitas vezes
resultava do ágio de suas ações naquela empresa nupcial. Dava-se isto quando qualquer dos
apaixonados tinha a felicidade de fazer alguma coisa a contento da moça e satisfazer-lhe as fantasias;
porque nesse caso ela elevava-lhe a cotação, assim como abaixava a daquele que a contrariava ou
incorria em seu desagrado. Muito devia a cobiça embrutecer esses homens, ou cegá-los a paixão, para
não verem o frio escárnio com que Aurélia os ludibriava nestes brincos ridículos, que eles tomavam
por garridices de menina, e não eram senão ímpetos de uma irritação íntima e talvez mórbida
(ALENCAR, 1951, p. 97-98, v. 11).

6 Romantismo versus classicismo

Recusando a cosmovisão do mundo clássico e a estética neoclássica a ela ligada, o


romantismo se projetou como um grande fenômeno histórico, como a primeira e a maior das
revoluções poéticas do Ocidente, nos termos de Octavio Paz. A substituição da visão
racionalista clássica pela cosmovisão romântica – idealista e metafísica – alteraria,
radicalmente, os modelos e os padrões que até então orientavam a feitura do poético, do
artístico.

Nesse caminho de recusa e de substituição, os românticos contrapõem aos princípios


disciplinadores da estética clássica – objetividade, contenção, ponderação, proporção,
equilíbrio, ordem, harmonia, serenidade, clareza, caráter apolíneo, transparência e
luminosidade, elementos ligados ao domínio do diurno – a subjetividade, a liberdade, a
abundância, a noite, a imaginação e a fantasia, enfim, os indisciplinamentos da interioridade.
30

Simetricamente oposta, também seria a maneira com a qual os românticos apreenderiam


o artista. Se, no classicismo, o valor estético dependia exclusivamente da obra, cabendo ao
artista evaporar-se por trás dela, no romantismo o valor da obra passa a se instalar no artista,
elevado à condição de gênio, dotado de poder demiúrgico, visto como porta-voz do divino, do
infinito. Assim, enquanto o artista clássico é preso às regras formais e ao realismo dos fatos, o
gênio romântico é movido por sua vontade, suas emoções e sentimentos, num exercício de
inusitada liberdade autoral e de ordem formal.
A liberdade romântica impele os seus artistas a investir contra os ditames clássicos da
separação das artes. Opõe à rigidez das fronteiras literárias clássicas – disciplinarmente
separadas e obedientes às suas próprias regras, restritas às suas próprias feições – o diálogo
entre a prosa e a poesia, além de uma fabulosa discussão sobre o verso. Desse diálogo resultaria
a corrosão romântica das velhas formas clássicas, como sugere Alfredo Bosi:

A mesma liberdade desterra formas líricas ossificadas e faz renascer a balada e a canção,
em detrimento do soneto e da ode; ou, abolindo qualquer constrangimento, escolhe o poema
sem cortes fixos, que termina onde cessa a inspiração (Byron, Lamartine, Vigny...). A
epopeia, expressão heroica já em crise no século XVIII, é substituída pelo poema político e
pelo romance histórico, livre das peias de organização interna que marcavam a narrativa em
verso. No teatro, espelho fiel dos abalos ideológicos, as mudanças não seriam menos
radicais: afrouxada a distinção de tragédia e comédia, cria-se o drama, fusão de sublime e
grotesco, que aspira a reproduzir o encontro das paixões individuais contido pelas
bienséances clássicas (BOSI, 1980, p. 105 – grifos do autor).

Da recusa romântica aos códigos estéticos clássicos – de seus gêneros, estilos e técnicas
– provém o gênero romanesco. Misto, apreciado como “a revolução literária do Terceiro
Estado” por Debenedetti (apud BOSI, 1980, p. 106), o romance é considerado o gênero
moderno por excelência e o que melhor expressa a poesia da modernidade. Daí afirmar-se,
continuadamente, que o romance não apenas ofereceu ao espírito romântico as melhores
condições de expressão de seu ideário, como se converteu, exemplarmente, em gênero
privilegiado da sociedade burguesa.

6.1 A música romântica

Por expressar o inexprimível, atenuando, portanto, a lacuna do verbo, a busca da


expressividade musical se tornaria uma das maiores preocupações do romantismo, revelada
no interesse pela canção, em especial a de origem popular. Ao se voltar para as composições
eruditas de Beethoven, o escritor, compositor e pintor alemão Hoffmann sintetizava o que se
31

entendia por música romântica: “põe em movimento a alavanca do medo, do terror, do


arrepio, do sofrimento, e desperta precisamente esse infinito anelo que é a essência do
Romantismo” (HOFFMANN apud BOSI, 1980, p.103).

6.2 Romantismo e dramaturgia

Em relação ao teatro, caberia a Victor Hugo, poeta, romancista e dramaturgo


francês, a responsabilidade pelas formulações românticas nesse campo do artístico.
Criticando o modelo clássico, rigidamente dividido em gêneros reivindicados em estado de
pureza – a comédia e a tragédia – Victor Hugo situa o drama como a expressão privilegiada
da modernidade, enquanto confronta as bases conceituais clássicas, no tocante às unidades de
tempo, de espaço e de ação, igualmente disciplinadas pelo rigorismo clássico:

A unidade de conjunto não repudia de maneira alguma as ações secundárias sobre as quais se deve apoiar-se
a ação principal. É preciso apenas que estas partes, sobriamente subordinadas ao todo, gravitem sem cessar
sobre a ação central e agrupem-se em torno dela em diferentes níveis, ou melhor sobre os diferentes planos
do drama. A unidade do conjunto é a lei da perspectiva do teatro (HUGO apud PRADO, 2005, p. 172).

6.3 Romantismo e linguística

Como se sabe, o romantismo não foi tão-somente um movimento de renovação no


campo literário, mas uma renovação na forma de compreensão do mundo, do homem e das
artes em geral, em suas múltiplas linguagens. A profunda discussão, acerca de formas,
gêneros e linguagens, deslocava os românticos, notadamente os alemães, para o terreno da
linguística. Esse deslocamento se consumaria com as investigações linguísticas do poeta
alemão Frederich Schlegel. Em 1806, Friedrich Schlegel publica suas pesquisas, Sobre a
língua e a ciência dos Hindus, nas quais se debruça sobre a antiga língua da Índia, o sânscrito.
Orientados pelo método histórico-comparativo e pelo desejo romântico de resgate das
culturas antigas e das experiências linguísticas populares, os estudos de Schlegel operam um
descentramento 2, isto é, desaloja o idioma clássico de seu lugar de centro, focalizando, como
referencialidade, o sânscrito. Com Schlegel, a terminologia gramática comparada seria
empregada pela primeira vez, o que lhe garante, segundo nos parece, o lugar de antecipador dos
estudos comparados no campo da linguística.

2
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução Maria Beatriz marques Nizza da Silva. São Paulo:
Perspectiva, 2005, p. 234.
32

Nesse verdadeiro exercício de rotação, os românticos alemães descartam a visão da


gramática tradicional, elaborada pelos filósofos gregos, cuja concepção se pautava pela
padronização e pelo intento de firmar o ático – antigo dialeto falado na região de Atenas, de
onde deriva a base da língua grega clássica – como modelo ideal, como observa o linguista
brasileiro, Mário Eduardo Martelotta:

O sentimento romântico levou os primeiros comparatistas a tentar reconstruir, através do método


comparativo um estado de língua original, considerado idealmente perfeito em função de concepção
da época de que a mudança era uma espécie de degeneração de um estado de língua primitivo e, por
natureza, íntegro [...] a descoberta do sânscrito, antiga língua da Índia, que se mostrou muito parecida
com as línguas da Europa [...] aguçou a curiosidade dos pesquisadores, incentivando os estudos
comparativos entre as línguas. Ou seja, foi a comparação com o sânscrito que deu bases sólidas à
teoria referente ao parentesco e à unidade e origem das línguas indo-europeias. Além disso, forneceu
uma nova fonte de inspiração ao Romantismo, movimento de ideias que se opunham à tradição
greco-latina (MARTELOTTA, 2008, p. 49).

Nessa linha, Franz Boop, também alemão, publica o seu livro Sistema de configuração
do Sânscrito em comparação com o do Grego, Latim, Persa e Germânico (Frankfurt, 1816),
dedicado ao estudo dos verbos do sânscrito, em aproximação com o grego, latim, persa e os das
línguas germânicas. Preocupado, principalmente, com os aspectos morfológicos, Boop
desenvolveu uma comparação sistemática entre os principais ramos indo-europeus, tornando-
se, assim, conhecido como o fundador da gramática comparativa do indo-europeu. Afere-se,
portanto, a importância dos estudos românticos no processo de criação e de sedimentação da
gramática histórico-comparativa e da linguística em geral. Obnubilava-se, assim, “a estrela do
latim no firmamento linguístico”. Agora, é o povo quem é reconhecido como o senhor da língua,
conforme acentua Sílvio Elia, linguista brasileiro, e versifica Manuel Bandeira, num exemplo
de persistente retomada da agenda linguística romântica:

Com o Romantismo esmaece a estrela do latim no firmamento linguístico. O novo nume que surge vem do
Oriente: é o sânscrito [...] Esse novo padrão pode ser resumido nesta frase: o povo é quem faz a língua [...]
Foi essa mesma concepção romântica do povo-dono-da- língua, aliada à doutrina naturalista da evolução
fatal e irreversível dos acontecimentos sociais, que gerou a escola da “língua brasileira”, novo rebento
neolatino alimentado nestas plagas do Atlântico (ELIA, 2005, p. 123-126).

7. Redefinindo o romantismo
Procedendo a um verdadeiro inventário das diversas visões sobre o romantismo,
Michael Löwy e Robert Sayre terminariam por se aventurar pelo caminho pedregoso e
33

escorregadio da conceituação romântica. Em situação mais confortável do que a de muitos


críticos no passado, haja vista o considerável calibre e qualidade da recente fortuna crítica de
que podem dispor, Löwy e Sayre ignoram a advertência do poeta Paul Valéry e se dispõem,
sem perder o senso de rigor, a enveredar na aventura da redefinição do romantismo, entendido
como reação à modernidade que se inaugura.
Ao se lançar a essa empreitada, Löwy e Sayre estabelecem como ponto de partida uma
definição do romantismo como Weltanschuung, ou visão do mundo, isto é, como estrutura
mental coletiva. Desse ponto, apreciam a expressão romântica em toda sua globalidade,
examinando-a em toda a sua extensão e multiplicidade. Essa perspectiva metodológica os
aproxima, harmoniosamente, de Octavio Paz. Este, como Löwy e Sayre, também busca uma
apreensão do romantismo em sua totalidade e diversidade, tomando-o, igualmente, em oposição
à lógica da modernidade:

Desde sua origem, a poesia moderna tem sido uma reação diante, para e contra a modernidade
[...] Desde seu nascimento, a modernidade é uma paixão crítica [...] A arte moderna não é
apenas filha da idade crítica, mas é também crítica de si mesma [...] Sua modernidade é
ambígua: há um conflito entre poesia e modernidade que começa com os pré-românticos e se
prolonga até os nossos dias [...] a poesia moderna nasce com os primeiros românticos e seus
predecessores imediatos de fins do século XVIII, atravessa o século XIX, através de sucessivas
mutações que são apesar de tudo repetições, e chega até o século XX. Trata-se de um
movimento que envolve todos os países do Ocidente, do mundo eslavo ao hispano-americano,
mas que em cada um de seus momentos se concentra e manifesta em dois ou três pontos de
irradiação (PAZ, 1984, p. 12-20; 52-54; 152).

Antes de mais, indiquemos com duas palavras a essência de nossa concepção: para nós, o
romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna,
em nome de valores e ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno). Podemos dizer que,
desde sua origem, o romantismo é iluminado pela dupla luz da estrela da revolta e do ‘sol negro
da melancolia’ [...] O romantismo surge de uma oposição a essa realidade capitalista/moderna
[...] é, queiramos ou não, uma crítica moderna da modernidade [...] uma consciência aguda da
deterioração radical da qualidade das relações humanas na modernidade e a busca nostálgica
da comunidade autêntica (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 34-39; 69 – grifos dos autores).

Na realidade, o conflito literário com o mundo capitalista, que se instaura com a


discursividade romântica, acompanharia a literatura do Ocidente, levando-a a um renhido e
incontornável combate à sociabilidade do capital, como exemplificam os versos de Carlos
34

Drummond de Andrade, dos quais se desprendem os ruídos desse feroz e inextinguível


confronto, exaustivamente reavivado:

Nosso tempo (1945)

………………………………..
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.

(ANDRADE, 1988, p. 107)


35

A ESTÉTICA ROMÂNTICA NO BRASIL

Nós somos um pequeno gênero humano;


possuímos um mundo à parte, cercado por
mares dilatados, novo em quase todas as
artes e ciências, ainda que, de certo modo,
velho nos usos da sociedade civil.

Simón Bolívar
36

A ESTÉTICA ROMÂNTICA NO BRASIL

A universalidade das coisas é a


escada pela qual o homem vai
ao fundo de si mesmo.

Montaigne

Da minha aldeia vejo quanto da


terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão
grande como outra qualquer

Alberto Caieiro

1 Antecipações da sensibilidade romântica

1.1 O arcadismo

A segunda metade do século XVIII se apresenta como o período de surgimento e do


desenvolvimento do arcadismo, na região brasileira de Minas Gerais, então centro da extração
de ouro e de pedras preciosas, cujas atividades se constituíam como a empresa mais lucrativa
de Portugal, entre todas as suas possessões de além-mar.
Nesse contexto, marcado pelo clima ilustrado e pelos neoclassicismos na Europa, cujas
ideias não tardam em chegar à Colônia portuguesa, verifica-se um notável incremento cultural,
que dotaria as nossas expressões literárias de uma consciência de universalidade, conforme
observam Antonio Candido e Aderaldo Castello, ao se reportarem ao papel desempenhado pelo
arcadismo, em nosso trajeto artístico-cultural, como também em suas relações com o
movimento romântico:

O grande feito dos poetas arcádicos, maiores e menores, foi o esforço de trazer à pátria os temas e as técnicas
mentais e artísticas do Ocidente europeu, dando à nossa literatura um alcance potencialmente universal, antes
mesmo que ela tomasse consciência da sua individualidade nacional. Nesse sentido, foram civilizadores por
excelência; daí a peculiar importância do arcadismo, que entre nós não foi apenas, como em Portugal, um
renovador de técnicas e teorias literárias ou um preparador de movimentos novos, mas contribuiu
decisivamente para instituir a literatura brasileira [...] Por tudo isso, quando o romantismo se constituiu e os
homens de letras procuraram antecessores, foram sobretudo os poetas arcádicos, os intelectuais “ilustrados”,
os pregadores patrióticos que invocaram, considerando-se seus herdeiros, vendo neles os fundadores duma
literatura pátria, depois de esboços anteriores. E, apesar das profundas divergências de concepção estética,
tornaram-se, historicamente, os seus herdeiros diretos (CANDIDO; CASTELLO, 1988, p. 83-86 – grifo dos
autores).
37

Nesse sentido, o segundo quartel dos Setecentos exibe-se como a fase inaugural de
formação da literatura brasileira, isto é, quando as nossas manifestações literárias adquirem
traços peculiares de um sistema. Nessa aquisição sistêmica, os poetas árcades instituem a
literatura propriamente dita, de acordo com a concepção esboçada e discutida por Antonio
Candido, em sua Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, publicada em 1957:

Para compreender em que sentido é tomada a palavra formação, e porque se qualificam de decisivos os
momentos estudados, convém principiar distinguindo manifestações literárias, de literatura propriamente dita,
considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas
dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas, (língua, temas, imagens),
certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam
historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de
um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores,
formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo
geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros [...] isto ocorre a partir de meados do século
XVIII, adquirindo plena nitidez na primeira metade do século XIX [...] é com os chamados árcades mineiros,
as últimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos
orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer literatura brasileira. Tais homens foram
considerados fundadores pelos que os sucederam, estabelecendo-se deste modo uma tradição contínua de
estilos, temas, formas ou preocupações. Já que é preciso um começo, tomei como ponto de partida as Academias
dos Seletos e dos Renascidos e os primeiros trabalhos de Cláudio Manuel da Costa, arredondando, para facilitar,
a data de 1750, na verdade puramente convencional (CANDIDO, 1993, p. 23-25, v. 1 – grifos do autor.).

Denominada de Escola Mineira, como a etiquetou Silvio Romero (2001), levando em


consideração sua territorialidade, o arcadismo se inicia, oficialmente, em 1768, data em que
Cláudio Manuel da Costa, jurista e minerador em Vila Rica, publica suas Obras poéticas, em
Coimbra. No mesmo ano, Manuel da Costa fundaria a nossa Arcádia, na atual Ouro Preto, à
época a maior de todas as cidades das Américas.
Derivada da palavra Arcádia – referência remota à região bucólica do Peloponeso, da
antiga Grécia, e alusão mais recente à Arcádia Lusitana, criada em 1756, nos moldes da Arcádia
Romana (Roma–1690) – o arcadismo luso-brasileiro se caracteriza pela ligação ao ideário
italiano, marcado pela busca da redefinição da imitação greco-latina, numa aguçada revisão da
fase renascentista das letras portuguesas, como pondera Aguinaldo José Gonçalves:

Tanto a literatura portuguesa quanto a brasileira (que lhe era considerada parte) basearam-se no
movimento da Arcádia Lusitana a partir da doutrinação de Verney, cujo fio condutor foi combater o
cultismo. Nessa batalha, as novas tendências se basearam na codificação de Boileau, procuraram
redefinir a imitação direta dos gregos e romanos, sobretudo Teócrito, Anacreonte, Virgílio, Horácio,
e tentaram restabelecer vários padrões do período por excelência renascentista na literatura portuguesa:
o século XVI [...] O vínculo, portanto, entre as nossas manifestações neoclássicas e as portuguesas foi
inevitável e isso não se questiona. O que devemos procurar compreender é a cor nacional ou os matizes
da terra brasileira que alteraram o estilo de nossas produções e que determinaram o início de nossa
expressão cultural (GONÇALVES, 1999, p. 347-348).
38

A importância da inspiração italiana – responsável pela problematização da mentalidade


barroco-jesuítica em Portugal, e por uma concepção de razão vinculada ao enciclopedismo
francês, de onde se destaca a figura rousseauriana do homem natural – é ressaltada por Alfredo
Bosi como uma das chaves mais importantes para a compreensão dessa modalidade estética,
como nos chama a atenção o crítico, ao mesmo tempo em que refirma os elos de solidariedade
entre a dicção árcade e o discurso romântico, em nosso solo:

Insisto nas fontes italianas da Arcádia, porque são elas que ressalvam o papel da fantasia e do prazer no tecido
da obra poética. A outra exigência, a da razão, vincula-se ao enciclopedismo francês e impõe-se à medida que
a Ilustração exerce o seu magistério sobre a cultura luso-brasileira. O pioneiro no esforço de reformar a mente
barroco-jesuítica em Portugal foi Luís Antônio Verney, cujo Verdadeiro método de estudar expunha todo um
sistema pedagógico construído sobre modelos racionalistas franceses [...] E há um ponto nodal para
compreender o artifício da vida rústica na poesia arcádica: o mito do homem natural cuja forma extrema é a
figura do bom selvagem. A luta do burguês culto contra a aristocracia do sangue fez-se em termos de Razão e
de Natureza. O Iluminismo que enformou essa luta exibe duas faces: ora a secura geométrica de Voltaire,
vitoriosa nos salões libertinos, ora a afetividade pré-romântica de Rousseau, porta-voz de tendências
passionais, mais populares. Voltaire é ponta-de-lança dos meios urbanos contra os preconceitos da nobreza e
do clero; mas é Rousseau quem abre as estradas largas do pensamento democrático, da pedagogia intuitiva, da
religiosidade natural [...] A volta à natureza, fonte de todo bem, é o lema do Émile de Rousseau [...] Mas tanto
no contexto árcade-ilustrado como no romântico-nostálgico há um apelo à natureza como valor supremo, em
última instância defesa do homem infeliz. As diferenças residem no grau de intensidade com que o eu do
homem moderno procura afirmar-se; e nesse sentido o poeta romântico, mais isolado e impotente em face do
mundo que o cerca do que o poeta árcade, irá muito mais longe na exaltação dos valores que atribui à natureza:
a emotividade que o pressiona é projetada na paisagem que se torna, segundo a palavra intimista de Amiel, um
verdadeiro “état d’âme” (BOSI, 1980, p. 63-65 – grifos do autor).

Informados pela confluência das várias tendências ilustradas – a exemplo das


perspectivas de Rousseau e das concepções de Voltaire – os árcades brasileiros desenvolvem
suas atividades em íntima colaboração com o arcadismo luso, especialmente José Basílio da
Gama (1740-1795), Fr. José de Santa Rita Durão (1722[?]-1784), Silva Alvarenga (1749-1814),
Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e Inácio José de
Alvarenga Peixoto (1744-1793).
A reconhecida aproximação entre as letras portuguesas e as brasileiras não evitou que
estas últimas, em meio às convenções neoclássicas, se voltassem para o ambiente
brasílico/americano, delineando-o com as cores sombrias e tumultuadas da violência do
colonialismo. Assim, veem-se ressaltadas a exploração portuguesa das riquezas do país, o
mando arbitrário e exacerbado de suas autoridades no Brasil, a censura, enfim, a opressão, como
registram os versos do poema “Vila Rica” (1773), de Cláudio Manuel da Costa, e nos versos
das Cartas Chilenas, cuja autoria, após um longo debate, foi atribuída a Tomás Antônio
Gonzaga.
39

Poesia de circunstância ou de opinião, as estrofes inconclusas das Cartas Chilenas


foram divulgadas, possivelmente, entre os anos de 1787 a 1788, que correspondem ao período
de grande efervescência política no Brasil, em especial à fase das reuniões dos conjurados de
Minas Gerais, conforme se afere das memórias poéticas de nossos árcades:

Vila Rica (1773 – fragmentos) Cartas chilenas (1787-1788 – fragmentos)

............................................. ....................................................
A margem deste rio povoada Um reino bem regido não se forma
Vejo da portuguesa gente amada, somente de soldados; tem de tudo:
Toda entregue à solícita porfia, tem milícia, lavoura, e tem comércio.
Com que o rico metal da terra fria ..........................................................
Vai buscar a ambição: vejo de um lado Diz-me, Doroteu, um chefe sábio
Erguer-se uma Cidade, e situado levanta nas conquistas umas tropas,
Junto ao monte, que um vale aos pés estende com que não pode a força do distante,
.......................................................................... conquistador império? Infunde, inspira
Estamos, disse, em uns países novos, nos cabos tanto orgulho, que se atrevam
Onde a polícia não tem inda entrado; a resistir aos mesmos magistrados,
Pode o rigor deixar desconcertado que a pessoa do Augusto representam?
O bom prelúdio desta grande empresa. Maldito, Doroteu, maldito seja
Convém que antes que os meios da aspereza um bruto, que só quer, a todo custo,
Se tente todo o esforço da brandura. entesourar o sórdido dinheiro!
Não é destro cultor o que procura ..........................................................
Decepar aquela árvore que pode Mas ah! prezado amigo, que ditosa
Sanar, cortando um ramo, se lhe acode não fora a nossa Chile, se antes visse
Com sábia mão a reparar o dano. adornado um cavalo com insígnias
Para se radicar do Soberano de general supremo, do que ver-se
O conceito, que pede a autoridade, obrigada a dobrar os seus joelhos
Necessária se faz uma igualdade na presença de um chefe, a quem os deuses
De razão e discurso somente deram, a figura de homem!
............................................. ..............................................................
(COSTA, 1996, p. 386; 420) (GONZAGA, 1996, p. 865-875)

As críticas à violência e à expropriação das riquezas brasileiras, versificadas por Cláudio


Manuel da Costa e por Tomás Antônio Gonzaga, seriam manifestadas, de forma explícita e
audaciosa, por Joaquim José da Silva Xavier, nosso Tiradentes, que delega à usura e à
rapinagem dos europeus a responsabilidade pela pobreza dos brasileiros, caracterizando a
Europa como uma esponja de sugar os bens alheios.
Essa convicção anima Tiradentes, lhe proporcionando uma rara firmeza e altivez,
durante os interrogatórios que se sucederam à Inconfidência, numa postura assimétrica aos
demais conjurados, notadamente aos seus pares literários. Segundo nos informa o historiador
britânico, Kenneth Maxwell, é com a mesma sobranceria que Tiradentes enfrentara todo o
processo inquisitorial que ele encararia a pena de execução:
40

A ênfase fortemente regionalista dos inconfidentes inclinava-se, às vezes, para o nacionalismo econômico. Isto
era mais explícito nos pronunciamentos do alferes Tiradentes, embora ele não estivesse isolado em tal posição.
Silva elogiava a beleza de Minas e apontava seus recursos naturais como os melhores do mundo [...] ele afirmou
que o Brasil era um país que tinha tudo o que precisava, não tendo necessidade de qualquer outro para subsistir.
A razão da pobreza do país, apesar de todas as suas riquezas era “só porque a Europa, como uma esponja, lhe
estivesse chupando toda a substância” [...] A tranquila dignidade com que Tiradentes enfrentou a morte foi um
dos poucos momentos heroicos do fracasso sombrio. Quase um século depois, quando o Brasil implantou a
república, ele foi proclamado herói nacional. E esta condição de herói nacional do alferes dos Dragões de Minas
não é injustificada: em comparação com o de seus companheiros de conspiração, o comportamento de
Tiradentes, ao ser interrogado, foi exemplar, ninguém o sobrepujou em entusiasmo por uma Minas
independente, livre e republicana; reclamou para si o maior risco e não há dúvida alguma de que estava disposto
a assumi-lo. Conforme dizem ter Cláudio Manuel da Costa afirmado, tomara que existissem mais homens dessa
têmpera! (MAXWELL, 2001, p. 153; 222).

O discurso poético-econômico dos árcades e dos inconfidentes se comunicaria à nossa


posteridade literária. Em 1954, já então distanciado do anticolonialismo das nossas produções
vanguardistas, José Paulo Paes escreve o poema “A cristandade”, captando, com singularidade,
os interesses e as falcatruas lusitanas à época da ocupação do Brasil (MENDONÇA, 2012, p.
230). Num tom desabusado, construído pelos recursos da paródia, José Paulo Paes transfigura
o poema sagrado dos cristãos, a prece do Pai Nosso, numa versão mais apropriada ao credo
manifestado pelos conquistadores: o da fé no capital. A um só tempo, denuncia a violência e o
farisaísmo dos portugueses, em seus empreendimentos materiais, no Nordeste e nas minas da
região das Gerais:

A cristandade (1954)

Padre açúcar, O ouro nosso


Que estais no céu De cada dia
Da monocultura, Nos dai hoje
Santificado E perdoai nossas dívidas
Seja o nosso lucro, Assim como perdoamos.
Venha a nós o vosso reino O escravo faltoso
De lúbricas mulatas Depois de puni-lo.
E lídimas patacas, Não nos deixeis cair em tentação
Seja feita De liberalismo,
A vossa vontade, Mas livrai-nos de todo
Assim na casa-grande Remorso, amém.
Como na senzala.
(PAES, 2003, p. 88)

Voltando ao arcadismo, observamos que, mesmo fora de lugar, as premissas da


ilustração germinavam em nossa terra, como sementes em solo adubado, antagonizando com a
realidade na qual se inseriam. Desse antagonismo resultam as mais diversas rebeliões, que se
alastram por Minas Gerais, desde a segunda metade do século XVIII, de acordo com o
41

historiador Luiz Carlos Villalta, que, além de realçar a importância da Inconfidência Mineira,
resgata o sentido original, de conteúdo político, do termo “inconfidência”, no período do século
XVIII:

Na segunda metade do século XVIII, o “Século das Luzes”, Minas Gerais assistiu às denominadas
Inconfidências. Elas ocorreram em Curvelo (1760-1763), Mariana (1768), Sabará (1775),
novamente Curvelo (1776) e, por fim, a chamada Inconfidência Mineira (1788-9), de irradiação
territorial mais ampla. Inconfidência, segundo o Vocabulário portuguez e latino (1712), de
Raphael Bluteau, significava “falta de fidelidade ao seu príncipe” [...] do que se conclui que todas
as ditas Inconfidências envolviam, em algum sentido, uma contestação à monarquia portuguesa,
uma traição ao soberano (VILLALTA, 2007, p. 551 – grifos do autor).

A participação de Cláudio Manuel da Costa, de Tomás Antônio Gonzaga e de Alvarenga


Peixoto decerto contribuiu para a notoriedade da Inconfidência Mineira (1788-1789), que se
sobressairia, em meio às várias insurreições ocorridas. Em seus versares, pontilhados pelas
ideias do iluminismo e por um nascente nacionalismo, os nossos poetas-inconfidentes
estabeleciam uma inquietante relação entre a universalidade e a particularidade, entre a
literatura e o ideário humanista, entre a palavra e a suas práxis.
Ilustrativo dessa interação constitui o Canto genetlíaco (1782), de Alvarenga Peixoto,
editado em Lisboa, em 1794. Natural do Rio de Janeiro, Alvarenga Peixoto é o primeiro poeta
brasileiro a manifestar, em versos, a aspiração nacional de autonomia, sem esquecer-se dos
aviltados pela escravidão, conforme assinala Fábio Lucas: “Preconizando a libertação do país,
incluiu no seu discurso também a libertação dos escravos. Era o que proclamava em 1789”
(LUCAS, 1998, p. 18).
Nessa vigorosa atuação, Alvarenga Peixoto seria o responsável pela escolha do lema da
Inconfidência Mineira – Libertas quae sera tamen – propondo, na ocasião, que a imagem de
um índio, quebrando as cadeias da opressão, acompanhasse a insígnia, retirada do repertório
de Virgílio, como ratifica Kenneth Maxwell (2001, p. 153).
A temática da natureza e a do bom selvagem rousseaurianas se mesclavam ao desejo de
liberdade, embrenhando-se, assim, tanto no discurso poético quanto na dicção política de
Alvarenga Peixoto, que das palavras passaria à ação. Apesar do fim melancólico da utopia
autonomista, similar ao desempenho do poeta durante a fase do inquérito, análogo aos de seus
pares poéticos, Alvarenga Peixoto expressava um acentuado fervor nacionalista, como se
verifica em seu poema, Canto genetlíaco, texto do qual se utiliza em sua ação política. Peixoto
42

também escreveria, em seu degredo na África (1790-1792) Bárbara bela,3 dedicado à esposa
ausente, num tecido poético traçado pelas linhas de uma aguda melancolia e saudade:

Canto Genetlíaco (fragmentos – 1782)

Bárbaros filhos destas brenhas duras, Estes homens de vários acidentes,


nunca mais recordeis os males vossos; pardos e pretos, tintos e tostados,
revolvam-se no horror das sepulturas são os escravos duros e valentes,
dos primeiros avós os frios ossos: aos penosos trabalhos acostumados:
que os heróis das mais altas cataduras Eles mudam aos rios as correntes,
principiam a ser patrícios nossos; rasgam as serras, tendo sempre armados
e o vosso sangue, que esta terra ensopa, de pesada alavanca e duro malho
já produz frutos do melhor da Europa. os fortes braços feitos ao trabalho.
.......................................................... .......................................................
Quando algum dia permitir o Fado Eu só pondero que essa força armada,
que ele o mando real moderar venha, debaixo de acertados movimentos,
e que o bastão do pai, com glória herdado, foi sempre uma com outra disputada
do pulso invicto pendurado tenha, com fins correspondentes aos intentos.
qual esperais que seja o vosso agrado? Isto que tem co’a força disparada
Vós esp’rimentareis como se empenha contra todo o poder dos elementos,
em louvar estas serras e estes ares que bate a forma de terrestre esfera,
e venerar, gostoso, os pátrios lares. Apesar duma vida a mais austera?

Isto, que a Europa barbaria chama, Se o justo e útil pode tão somente.
do seio das delícias, tão diverso, ser o acertado fim das ações nossas,
quão diferente é para quem ama quais se empregam, dizei, mais dignamente
os ternos laços de seu pátrio berço! as forças destes ou as forças vossas
O pastor loiro, que o meu peito inflama, Mandam a destruir a humana gente ,
dará novos alentos ao meu verso, Terríveis legiões, armadas grossas;
para mostrar do nosso herói na boca a procurar o metal, que acode a tudo,
como em grandezas tanto horror se troca. é destes homens o cansado estudo.

Aquelas serras na aparência feias, “São dignos de atenção...” Ia dizendo


– dirá José – oh quanto são formosas! ....................................................
Elas conservam nas ocultas veias Feliz governo, queira o Céu sagrado
a força das potências majestosas; que eu chegue a ver esse ditoso dia,
têm as ricas entranhas todas cheias em que nos torne o século doirado
de prata, oiro e pedras preciosas; dos tempos de Rodrigo e de Maria;
aquelas brutas e escalvadas serras século que será sempre lembrado
fazem as pazes, dão calor às guerras. nos instantes de gosto e de alegria,
...................................................... até os tempos, que o Destino encerra,
de governar José a pátria terra.

(PEIXOTO, 2002, p. 83-89 – grifos nossos)

3
A data da elaboração de Bárbara bela seria questionada por Rodrigues Lapa, sem que este apresente uma data
precisa, permanecendo, assim, a indefinição quanto ao local e ao ano da escritura: “Se a poesia é realmente de
Alvarenga Peixoto, como acreditamos, ela só poderia ser escrita num período de ausência mais longa, ou numa
correição, em 1780, ou logo depois, quando o marido se ausentava para a Campanha, deixando a formosa mulher
em S. João del-Rei” (LAPA, 1996, p. 925).
43

Bárbara bela (1787?)

Bárbara bela, Eu bem queria


do Norte estrela, a noite e o dia
que o meu destino sempre contigo
sabes guiar, poder passar;
de ti ausente, mas orgulhosa
triste, somente sorte invejosa
as horas passo desta fortuna
a suspirar. me quer privar.
Isto é castigo Isto é castigo
que Amor me dá. que Amor me dá.

Por entre as penhas Tu, entre os braços,


de incultas brenhas ternos abraços
cansa-me a vista da filha amada
de te buscar; podes gozar.
porém não vejo Priva-me a estrela
mais que o desejo, de ti e dela,
sem esperança busca dois modos
de te encontrar. de me matar.
Isto é castigo Isto é castigo
que Amor me dá. que Amor me dá.

(PEIXOTO, 2002, p. 61-62)

A preocupação maternal dá o tom da poética de Bárbara Heliodora (1758-1819),


funcionando como elemento de dissimulação do dizer social. Em Conselho a meus filhos,
certamente escrito antes do malogro da Inconfidência, a poeta estrutura seu texto como uma
espécie de manual de bem-viver, onde se destaca, de maneira mais particular, a recomendação
do haver-se com ponderação, siso e com cautela, apontando, literariamente, para um ambiente
asfixiante, construído, simbolicamente, pelos traços da opressão, da delação e de pressagiosos
receios:

Conselho a meus filhos (1787? – fragmentos)

Meninos, eu vou ditar Aplicai ao conversar Quem fala, escreve no ar,


As regras do bem viver; Todos os cinco sentidos, Sem pôr vírgulas nem ponto,
Não basta somente ler, Que as paredes têm ouvidos, E pode quem conta os contos,
É preciso ponderar, E também podem falar: Mil pontos acrescentar;
Que a lição não faz saber, Há bichinhos escondidos Fica um rebanho de tontos
Quem faz sábios é o pensar. Que só vivem de escutar. Sem nenhum adivinhar.

Neste tormentoso mar Quem quer males evitar Com Deus e o rei não brincar,
D’ondas de contradições, Evite-lhes a ocasião É servir e obedecer,
Ninguém soletre feições Que os males por si virão, Amar por muito temer,
Que sempre há de enganar; Sem ninguém os procurar, Mas temer por muito amar,
Das caras a corações E antes que ronque o trovão, Santo temor de ofender
Há muitas léguas que andar. Manda a prudência ferrar. A quem se deve adorar!
......................................... ........................................
(HELIODORA apud LOPES, 2003, p. 253-254)
44

Presentes em nossa memória estética, política e cultural, a Conjuração Mineira e os seus


artífices-mártires seriam incorporados à temática dos românticos, como se vê em “Minha terra”
(1826), poesia nacionalista de Casimiro de Abreu, na qual o eu lírico alude ao mundo e à escrita
de Tomás Antonio Gonzaga. Com renovada força, esse mundo, notadamente em seu episódio
autonomista, ressurgiria na poética modernista. Em 1953, Cecília Meireles lança o seu
Romanceiro da Inconfidência, onde se reporta, solidariamente, a Tiradentes e aos poetas
inconfidentes, relevando a participação feminina, no elogio que faz à Bárbara Heliodora, a bela
de Alvarenga Peixoto:

Minha terra (1856 – fragmentos)


..................................
Foi ali que noutro tempo Quando Dirceu e Marília
À sombra do cajazeiro Em terníssimos enleios
Soltava seus doces carmes Se beijavam com ternura
O Petrarca brasileiro; Em celestes devaneios
E a bela que o escutava Da selva o vate inspirado,
Um sorriso deslizava O sabiá namorado,
Para o bardo que pulsava Na laranjeira pousado
Seu alaúde fagueiro. Soltava ternos gorjeios.
...........................................
(ABREU, 1988?, p. 11-14).

Romanceiro da Inconfidência (1953 – fragmentos)

............................................. E a bandeira já está viva,


Atrás de portas fechadas, e sobe, na noite imensa.
à luz de velas acesas, E os seus tristes inventores
brilham fardas e casacas, já são réus – pois se atreveram
junto com batinas pretas. a falar em Liberdade
E há finas mãos pensativas, (que ninguém sabe o que seja).
entre galões, sedas, rendas, ..................................................
e há grossas mãos vigorosas,
............................................. Córrego, tu por que sofres,
diante daquela menina?
Atrás de portas fechadas, Semelha o cisne, entre as águas;
à luz de velas acesas, na relva, é igual à bonina;
Entre sigilo e espionagem, a seus olhos de princesa
acontece a Inconfidência. o campo em festa se inclina:
E diz o Vigário ao Poeta: vê-la é ver a própria Flora,
“Escreva-me aquela letra pois é Bárbara Eliodora!
do versinho de Vergílio...” ...................................................
E dá-lhe o papel e a pena. Partiu-se a estrela da aurora:
E diz o Poeta ao Vigário, Dona Bárbara Eliodora!
com dramática prudência:
“Tenha meus dedos cortados,
antes que tal verso escrevam...”
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE, (MEIRELES, 1977, p. 451; 532)
ouve-se em redor da mesa.
45

Fazendo aflorar as particularidades da pátria terra, em meio às formas neoclássicas e


aos preceitos da ilustração – o elogio do homem natural, a exaltação da natureza, o
anticolonialismo, o antiescravismo, o antibelicismo, etc. – os poetas da segunda metade dos
Setecentos iniciavam, na Arcádia tropical, o processo de encarnação literária do espírito
nacional que, mais tarde, os românticos cuidariam de cristalizá-lo, como mais uma vez enfatiza
Antonio Candido, caracterizando a literatura brasileira como escritas engajadas às vicissitudes
nacionais:

Este ponto de vista, aliás, é quase imposto pelo caráter da nossa literatura, sobretudo nos momentos estudados;
se atentarmos bem, veremos que poucas têm sido tão conscientes da sua função histórica, em sentido amplo.
Os escritores neoclássicos são quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que
os brasileiros eram tão capazes quanto os europeus; mesmo quando procuravam exprimir uma realidade
puramente individual, segundo os moldes universalistas do momento, estão visando este aspecto. É expressivo
o fato de que mesmo os residentes em Portugal, incorporados à sua vida, timbravam em qualificar-se como
brasileiros, sendo que os mais voltados para temas e sentimentos nossos foram, justamente, os que mais
viveram lá, como Durão, Basílio ou Caldas Barbosa. Depois da Independência o pendor se acentuou, levando
a considerar a atividade literária como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimento a um
programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-
los [...] Esta disposição de espírito, historicamente do maior proveito, exprime certa encarnação literária do
espírito nacional (CANDIDO, 1993, p. 26, v. 1).

Arquitetada pela convenção neoclássica, pelas ideias da ilustração e, nitidamente


inclinada às coisas locais, a poética arcádica inaugura a busca de nossa expressão, como
endossa Cláudio Manuel da Costa, em sua Vila Rica – “Mas sei que a língua pátria, se deseja/
Explicar sempre em tudo a natureza” (COSTA, 2002, p. 388) – ressaltando, por fim, a suavidade
que a língua-pátria empresta ao idioma lusitano: “Na língua pátria o nome tem suave” (COSTA,
2002, p.427). Esse mote, aprofundado, sobremaneira, pelos autores românticos, já caracterizava
o contexto cultural da América Latina do universo colonial, como esclarece Bareiro Saguier,
acentuando a importância dessa questão para o desenvolvimento da dicção literária latino-
americana, importância, esta, que se estende às experimentações atuais:

O problema linguístico é colocado durante o período colonial [...] A quebra da “pureza” idiomática peninsular,
tanto nos domínios da Espanha como no Brasil – ruptura em que não só está presente a fala indígena como a
aportação negra –, tem muita importância dentro da evolução posterior da literatura latino-americana e em
grande parte de suas buscas atuais [...] A ruptura linguística chega a seu ponto crítico e se converte em programa
imediatamente depois da independência. Com efeito, já em 1825 fala-se de “idioma brasileiro”, e pouco mais
tarde na América hispânica, de “idioma nacional” especialmente na Argentina e no México. Esta tomada de
consciência opera-se em dois níveis: o político e o intelectual [...] O movimento modernista é que haveria de
realizar, de maneira consciente no âmbito de uma via culta, a quebra do puríssimo linguístico na literatura
hispano-americana [...] O modernismo brasileiro surge em 1922, e equivale
46

às expressões da vanguarda no resto do continente latino-americano. A brusca sacudidura, o propósito de


revisão radical de valores, proclamados pelos modernistas brasileiros, não podia deixar de incluir o aspecto
linguístico [...] A presença explosiva das buscas expressivas, tal como se vê em Macunaíma de Mário de
Andrade, explica-se ainda mais se se leva em conta a longa ditadura do purismo “classicista” e acadêmico
[...] Fonte importante da linguagem literária foi a fala das minorias étnicas do país. Os modernistas brasileiros
voltaram seus olhos para as culturas indígena e negra, para tomar daquelas palavras, expressões; desta, ritmos,
estruturas e imagens de expressão, além do elemento lexical (BAREIRO SAGUIER, 1972, p. 6-11).

Nesse visível pendor ao americanismo, os poetas árcades rabiscam, em caráter inicial, a


transfiguração da cor local em linhas de recorrência literária. Dessa maneira, se afastariam da
Arcádia lusitana, sem que tal afastamento obnubile – ou esmaeça – as inegáveis linhas da
aproximação poética entre os escritores portugueses e os brasileiros, nesse momento literário,
como bem sintetiza Jorge Antonio Ruedas de La Serna, estudioso mexicano das interações e
das afinidades que informam o arcadismo luso-brasileiro:

Por isso, procuramos aproximar-nos do arcadismo, através de algumas de suas figuras principais,
para estabelecer a filiação dos poetas brasileiros frente a seus pares portugueses. Ao relacionar uns
com os outros e reconstruir seu parentesco, pôde-se verificar que, não obstante frequentar as mesmas
fontes, erigindo os mesmos modelos clássicos e servindo-se de idênticas figuras prestigiosas da poesia
tradicional, o arcadismo brasileiro acaba distanciando-se de seu modelo metropolitano, imerso que se
encontrava no processo dinâmico que abriu sua relação com o poder político e com seu novo
destinatário social (RUEDAS DE LA SERNA, 1995, p. xix – grifos do autor).

2 O romantismo na América Latina

2.1 O contexto latino-americano

No que tange à recepção latino-americana ao romantismo, cumpre notar que esta só se


procede, a partir dos anos 30 do século XIX, poucos anos depois da acolhida dos países do
Leste Europeu – Rússia, Polônia, Hungria – dos povos balcânicos; da Itália e da Espanha.
Na verdade, desde os fins do século XVIII e inícios do XIX, as contradições entre as
Colônias da América Latina e suas Metrópoles se tornavam incontornáveis. As Colônias em
Nuestra América haviam crescido e se desenvolvido, contando já com pequenos, mas
importantes, círculos de intelectuais que começaram, desde o período do arcadismo, a pensar a
Colônia de uma forma mais própria, como ilustra, entre nós, a participação dos poetas Cláudio
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Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Inácio José de Alvarenga Peixoto e Bárbara
Heliodora, na Inconfidência Mineira, em 1789.
Nos princípios do século XIX, a América Latina se constituía como cenário de lutas
acirradas, especialmente nas Colônias espanholas. A essas rebeliões libertárias se devem a
emancipação do Paraguai (1811), do Uruguai (1814), da Argentina (1816), do Chile (1818),
Venezuela e Nova Granada (1819-1821), Equador (1820), Peru (1824) e Bolívia em 1825.
Em 1822, a maioria das Colônias da América Central unia-se ao México, tornando-se
independente. Em 1823, essas Colônias se separaram do México e formaram as Províncias
Unidas do Centro da América. As pressões dos Estados Unidos e da Inglaterra, as discórdias
entre as oligarquias locais terminariam, contudo, provocando a fragmentação desse Centro
Americano. A partir de 1830, essas Colônias se tornariam as atuais Repúblicas da Costa Rica,
Nicarágua, El Salvador, Honduras e Guatemala.
Em relação ao Haiti, invadido e ocupado pelos franceses, a independência se consumaria
em 1925, depois de uma luta sangrenta que se arrastou do século XVIII ao século XIX. Os
haitianos pagariam um preço altíssimo pela sua liberdade. Os senhores de engenho se
recusavam a entregar o país aos negros, preferindo destruí-lo. Queimaram todos os canaviais,
dizimaram todo o gado e arruinaram os engenhos de açúcar. A “casa-grande” se vingava de
maneira cruel, como indicia o historiador estadunidense, John Charles Chasteen, em sua
América Latina: uma história de sangue e fogo, publicada, incialmente, em 2000, traduzida e
lançada, no Brasil, no ano seguinte. Desta obra, em especial, nos valemos para a compreensão
histórico-política, de Latino América.
Por outro lado, a Metrópole francesa envia tropas fortemente armadas que completam o
serviço dos senhores do açúcar. No Haiti, o exército napoleônico pilhou, destroçou e cometeu
um dos massacres mais violentos da história da França. À chacina da população e ao destroço
do Haiti, se seguiria o bloqueio comercial imposto pelos franceses, além de uma dívida imensa
e impagável. Isso explica a pobreza e a desolação do Haiti, em nossa atualidade.
Cuba, localizada no arquipélago caribenho como o Haiti, também teve um caminho duro
e longo até a sua libertação. Inicialmente, é vendida à Inglaterra pelos espanhóis, depois fica
sob a tutela econômica dos EUA, só se libertando com a Revolução Cubana de 1959, que
implantaria um regime de cunho socialista. A resposta dos estadunidenses não tardaria. Estes,
além de suas incursões contra Cuba, impinge ao país um desumano bloqueio econômico que se
estende até hoje.
Movidos por um acirrado sentimento de busca de autoconhecimento e reconhecimento
de si, os países latino-americanos acolhem o ideário romântico europeu. Na América Latina, o
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fervor das rebeliões e dos anseios de independência daria, às primeiras manifestações


românticas, um expressivo e persistente acento de nacionalismo. De fundo germânico, esse
sentimento é explicável em face do contexto libertário e da consequente necessidade de
identidade nacional, como bem anotam o crítico mexicano José Luis Martínez e Antonio
Candido, uníssonos no realce à proximidade entre as literaturas de Latino América:

Com efeito, as gerações latino-americanas que apareceram por volta dos anos trinta do século XIX,
quando as novas repúblicas começavam a se estabilizar e a dirimir seus conflitos internos – com exceção
do Brasil, que foi reino independente até 1889, quando passou ao sistema republicano – , adotaram
integralmente como programa a criação de uma nova literatura que expressasse nossa natureza e nossos
costumes. Em todos os países da região, poetas, romancistas, dramaturgos e ensaístas entregaram-se
laboriosamente à tarefa de cantar o esplendor da natureza americana e a de reproduzir e explorar as
peculiaridades de nosso caráter e costumes, principalmente os populares, que tinham mais sabor e uma
qualidade mais pitoresca (MARTÍNEZ, 1972, p. 63 – grifos nossos).

A literatura se fez linguagem de celebração e terno apego, favorecida pelo Romantismo, com apoio na
hipérbole e na transformação do exotismo em estado de alma. O nosso céu erra mais azul, as nossas
flores mais viçosas, a nossa paisagem mais inspiradora que a de outros lugares, como se lê num poema
que sob este aspecto vale como paradigma, a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, que poderia ter
sido assinado por qualquer um dos seus contemporâneos latino-americanos entre o México e a Terra do
Fogo. A ideia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa.
Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade das instituições por
meio da supervalorização dos aspectos regionais [...] Pátria do pensador, terra do cantador. Um dos
pressupostos ostensivos ou latentes da literatura latino-americana foi esta contaminação, geralmente
eufórica, entre a terra e a pátria, considerando-se que a grandeza da segunda seria uma espécie de
desdobramento natural da pujança atribuída à primeira (CANDIDO, 1987, p. 141 – 142 grifos do autor).

Apesar da indiscutível similaridade entre as letras latino-americanas, o Brasil se


apresentaria, contudo, como particularidade, no quadro histórico-literário, do ambiente de
Latino América, à época do romantismo. Suas experimentações, especialmente as da narrativa
romanesca, gênero criado pela discursividade romântica, são apreciadas, de modo geral, como
realizações mais sólidas e mais consistentes. Dessa forma, o romance brasileiro desfrutaria,
com conforto, do estatuto de melhor elaboração romanesca em nosso continente, como
reconhecem Luis Martínez e Octavio Paz:

A relativa paz de que o Brasil desfrutou no século XIX – em contraste com as persistentes agitações da América
hispânica – contribuiu para o florescimento do romance nesse país, durante a segunda metade do século,
o mais importante da América Latina neste período em seu conjunto. Joaquim Maria Machado de Assis
(1839-1908) é a principal personalidade das letras brasileiras (MARTÍNEZ, 1979, p. 64). (MARTÍNEZ, 1972,
p. 64 – grifos nossos).
49

O romantismo hispano-americano foi ainda mais pobre que o espanhol: reflexo de um reflexo. No entanto, há
uma circunstância histórica que, embora de maneira não imediata, afetou a poesia hispano-americana e a levou
a mudar de rumo. Refiro-me à revolução da Independência [...] Inclusive pode dizer-se que houve nessa época
três grandes revoluções com ideologias análogas: a dos franceses, a dos norte-americanos e a dos hispano-
americanos (o caso do Brasil é diferente). Embora as três tenham triunfado, os resultados foram muito
diversos: as revoluções dos dois primeiros foram fecundas e criaram novas sociedades, enquanto a nossa
inaugurou a desolação que foi nossa história desde o século XIX até nossos dias (PAZ, 1974, p. 113-114 –
grifos nossos).

É, pois, num trajeto desigual, mas combinado, que a nova poesia europeia se instala
nas letras da América Latina. A receptividade latino-americana permitiu ao romantismo
alcançar a parte que lhe faltava para atingir a totalidade do Ocidente. Como bem lembra Octavio
Paz, a despeito das diferenças de línguas e culturas nacionais, a poesia moderna é una, e
abrange também as tradições literárias e culturais latino-americanas, em suas três línguas: a
espanhola, a portuguesa e a francesa (1884, p. 11-12). Desse modo, Octavio Paz enfatiza a nossa
legítima condição de artesãos e de intérpretes das representações do mosaico do mundo
ocidental: “ A despeito das diferenças de línguas e culturas nacionais, a poesia moderna do
Ocidente é una. Contudo, vale a pena esclarecer que o termo ‘Ocidente’ também abrange as
tradições poéticas anglo-americanas e latino-americanas (em seus três ramos: a espanhola, a
portuguesa e a francesa)” (PAZ, 1984, p. 11-12).

2.2 O jeitinho brasileiro

Enquanto os países da América Latina, de língua espanhola e de língua francesa, através


de uma série de revoluções, estatuíam a ruptura com suas Metrópoles, o Brasil, em ritmo
diverso, estreitava seus laços com Portugal. Em 1808, a família real portuguesa e a sua corte,
seus funcionários e soldados, chegam e se instalam no Rio de Janeiro, transformando a Colônia
em sede da monarquia lusa, em locus de refúgio e de amparo à nobreza portuguesa, escudados
pelos britânicos, em vista das anunciadas e possíveis investidas francesas contra os lusitanos.
Pressionado pelas ameaças napoleônicas de invasão a Lisboa, D. João VI, então Príncipe
Regente de Portugal, escapa para o Brasil, sob a proteção da armada inglesa, abandonando o
povo português à própria sorte. Ironicamente, a transferência da coroa lusitana concretiza o
temor expresso pelo colonialista Ambrósio Fernandes Brandão, em 1618, em sua obra Diálogos
e grandezas do Brasil: “Não permita Deus que padeça a nação portuguesa tantos danos que
venha o Brasil a ser o seu refúgio e amparo” (BRANDÃO, 1997, p. 15).
50

A transferência da Coroa portuguesa para o Brasil altera profundamente nossa feição


colonial. A cidade do Rio de Janeiro, acanhada para os padrões europeus, se transfigura: duplica
sua população e começa a exibir as convenções e as etiquetas sociais, trazidas pela enorme
comitiva de D. João que se constituía, além dos responsáveis pela segurança real, por inúmeros
artistas, intelectuais e pesquisadores que desembarcam na cidade, atraídos pela curiosidade
espaço tropical e pela presença da corte lusitana.
No terreno da economia, a abertura dos portos é a primeira medida tomada por D. João
VI, seguindo-se outras resoluções que revogam os entraves à produção e ao comércio da
Colônia, incompatíveis, agora, com a nova condição brasileira, de sede da monarquia
portuguesa, segundo apontam as pesquisas de Francisco Iglésias, autor do livro Trajetória
política do Brasil: 1500-1964, editado no ano de 1993.
Na cultura, as transformações foram igualmente importantes. Permitiu-se a importação
de livros, a instalação de tipografias, imprimiram-se nossas primeiras obras, criou-se uma
biblioteca, foram fundados os primeiros cursos e escolas de nível superior, surgiram, enfim, os
nossos primeiros jornais. O Brasil começava a “viver um processo de independência virtual”,
que garantiria ao nosso país preservar a sua unidade, como anota Antonio Candido: “De fato,
tornando-se sede da Monarquia o Brasil não apenas teve a sua unidade garantida, mas começou
a viver um processo de independência virtual, tornada afetiva em 1822” (CANDIDO, 2002, p.
10).
Em 1816, após a morte de sua mãe, D. João VI torna-se rei do Brasil e de Portugal. O
Brasil é alçado à condição de Reino Unido de Portugal. Verifica-se, nesse cenário, a criação da
Academia de Belas Artes, que oferece variados cursos no terreno da arte visual. Começa
também a se desenvolver, com notória qualidade, a nossa arte musical, com o aparecimento de
importantes cantores e compositores. Principiam-se os esboços da parceria entre a poesia e o
discurso musical.
Estratégia eficaz, a aliança entre a poesia e a musicalidade facilitou a propagação de
nossa escassa poesia, enquanto permitia o seu acesso a uma população, de parca instrução
escolar, cuja maioria absoluta não dominava a escrita, condição cultural comum aos séculos
XVIII e XIX. Esse consórcio, entre o poético e o musical, seria visto por Antonio Candido
como uma aproximação feliz entre o arcadismo e o movimento romântico, não obstante as
diferentes convenções adotadas por essas modalidades literárias:
51

Tomemos para isso um exemplo: a aliança entre poesia e música, a partir de uma verificação, a saber, que a
notória pobreza poética das literaturas neolatinas no século XVIII foi até certo ponto redimida pela música, que
levou poemas medianos e mesmo medíocres ao nível de canções encantadoras, inclusive no caso luso-
brasileiro, graças à modinha [...] A sua voga deve muito ao árcade Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), que
viveu e morreu em Portugal como uma espécie de mensageiro das coisas do Brasil e, sendo poeta de certo valor,
foi também compositor e cantor à guitarra. No Brasil, a modinha se associou de maneira durável à poesia
erudita, e já no começo do século XIX corriam musicados muitos versos de Tomás Antônio Gonzaga,
acontecendo o mesmo dali por diante com a obra da maioria dos nossos poetas (até, podemos dizer, a atual
MPB – Música Popular Brasileira). Essa aliança foi uma ponte feliz entre Arcadismo e Romantismo,
exprimindo traços que irmanam os dois períodos por cima da ruptura estética. No tempo de D. João VI e
de D, Pedro I, alguns músicos de valor, como os citados João Maurício e Marcos Portugal compuseram
modinhas, e Segismundo Neukomm harmonizou algumas do compositor popular José Joaquim da Câmara [...]
O Romantismo levou ao máximo esta tendência, enchendo o século XIX de poesia cantada, que assim fez
chegar ao povo textos dos poetas mais importantes, que de outro modo se teriam difundido muito menos em
país de pouca instrução e hábitos reduzidos de leitura. Ainda hoje é frequente ouvirmos canções tornadas
anônimas pela incorporação ao patrimônio popular, cujas letras são versos de Castro Alves, Gonçalves Dias,
Casimiro de Abreu (CANDIDO, 2002, p. 91- 93 – grifos nossos).

Nessa continuidade renovada, os românticos inserem novos contornos aos tópicos e às


tonalidades arcádicas, num caminho pontilhado pela dialética da tradição e da renovação, à
maneira do nosso próprio arcadismo, que pagara, também, seus tributos à tradição, conclusão a
que chega o crítico mexicano, Jorge Antonio Ruedas de La Serna (1995).
A recorrência à tradição, em meio aos processos de renovação, é uma espécie de linha
ideológica, resultante de nossas contradições histórico-culturais, que permanece como farol
escritural, segundo endossa a antologia crítica sobre o modernismo, Tradição e contradição
(1987), elaborada por expressivos críticos brasileiros, que terminariam por reconhecer, em seus
ensaios, esse traço enquanto arquiteto geral da cultura brasileira, corroborando, assim, os
estudos precursores de Antonio Candido que, desde a sua Formação, apontava para o
sentimento da dialética que informa o pensamento nacional, como verifica o filósofo brasileiro,
Paulo Eduardo Arantes:

Sem muito exagero pode-se dizer que em Antonio Candido há dialética por todos os lados. Ou
pelo menos uma inclinação muito marcada pela palavra. Não faltam exemplos, aliás bem
conhecidos, de emprego explícito e enfático do termo clássico. Enumero alguns. Em primeiro
lugar, o mais abrangente deles: caso fosse possível estabelecer uma lei geral de nossa evolução
mental, ela tomaria a forma de uma dialética do localismo e do cosmopolitismo. Esta de resto a
perspectiva que comanda um livro decisivo como Formação da Literatura Brasileira. Assim
sendo estaríamos autorizados a ver dialética no duplo encaixe do livro: tendências universalistas e
particularistas estão presentes nos dois grandes momentos da nossa formação literária, Arcádia e
Romantismo (ARANTES, 1992, p. 9 – grifo do autor).

Nesse sentimento, desde os momentos iniciais de divulgação da nova sensibilidade


ocidental, a literatura brasileira se vai realizando, num curioso processo de atualização das
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temáticas do passado, num tratamento, contudo, que não oblitera os traços da diversidade. Tais
distinções podem ser aferidas, ora através da comparação entre a perspectiva de poder almejada
pelos poetas setecentistas – a do despotismo esclarecido – e a ambicionada pelos escritores
românticos, a do governo dos de baixo; ora através do cotejo entre o visor árcade da natureza
(nativista) e o olhar romântico (nacionalista); além de outros rearranjos estéticos, a exemplo da
ressignificação da melancolia.
Entre essas remodelações, se destaca o surgimento do viés de religiosidade popular,
como realça Candido em seu discurso crítico, e ilustra, em tom poético, Manuel Bandeira. Este
não apenas traz as entidades sagradas europeias à intimidade e ao convívio, mas, sobretudo,
procede a um curioso e subversivo abrasileiramento dos ícones cristãos, numa explícita
demonstração de que a desconstrução da discursividade religiosa se cristalizara como uma das
temáticas mais recorrentes em nossa ficcionalidade:

Outro traço importante desse período foi o novo sentimento de civismo, atualização do apreço ilustrado
pelo bom governo. Os intelectuais brasileiros do fim do século XVIII pensavam sobretudo em louvar a ação
dos governantes esclarecidos, vinda de cima e recebida como dádiva. No começo do século XIX, e
sobretudo depois da Independência em 1822, esse ponto de vista foi substituído pelo de participação política
do cidadão, que deveria tomar a iniciativa de estabelecer o bom governo, de baixo para cima, a fim de
promover o império da razão [...] aqui e ali começam a aparecer algumas mudanças discretas nos temas e
no tom. A melancolia, por exemplo, vai sendo cada vez mais associada à noite e à lua, ao salgueiro e à
saudade, sobretudo ao pormenor dos lugares. Modificação paralela ocorre no tratamento da natureza, pois
a tradição nativista se liga então ao novo sentimento de orgulho nacional, que prenuncia o patriotismo. É
preciso destacar outro traço, cheio de consequências: o advento de uma religiosidade que se distancia da
devoção convencional para apresentar-se como experiência afetiva, que confere certa nobreza espiritual e
foi sendo considerada cada vez mais posição moderna, oposta ao paganismo ornamental da tradição
(CANDIDO, 2002, p. 13- 17).

O anjo da guarda (1930) Conto cruel (1936)

Quando minha irmã morreu, A uremia não o deixava dormir.


(Devia ter sido assim) A filha deu uma injeção de sedol.
Um anjo moreno, violento e bom – Papai verá que vai dormir.
– brasileiro O pai aquietou-se e esperou. Dez minutos... Quinze
Veio ficar ao pé de mim. minutos... Vinte minutos... Quem disse que o sono
O meu anjo da guarda sorriu chegava? Então, ele implorou chorando:
E voltou para junto do Senhor. – Meu Jesus Cristinho!
Mas Jesus Cristinho nem se incomodou.

(BANDEIRA, 1976, p. 94) (BANDEIRA, 1976, p. 134)


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Além do surgimento da cordialidade religiosa,4 ombreada aos suaves nomes


ameríndios, ao código sagrado dos cristãos também se emaranhariam os traços religiosos de
origem indígena e africana. Na verdade, desde a aportação compulsória no Brasil, os africanos
não se esquecem de suas deusas e de seus deuses, reatualizando-os e ritualizando-os, entre nós,
num processo dialético marcado pela resistência e assimilação, que transfiguraria a pureza da
sacralidade europeia, tornando o mosaico religioso do Brasil num tecido de matizes vários e de
discursos outros, como exalta Darcy Ribeiro e exemplifica Jorge Amado, em Mar morto (1936),
ambos voltados para o culto brasileiro à Iemanjá:

O fundamental, porém, é que milagrosamente o povo, sobretudo o negro-massa, continua tendo


erupções de criatividade. Esse é o caso do culto a Iemanjá, que em poucos anos transformou-se
completamente. Essa entidade negra, que se cultuava a 2 de fevereiro na Bahia e a 8 de março em
São Paulo, foi arrastada pelos negros do Rio de Janeiro para 31 de dezembro. Com isso aposentamos
o velho e ridículo Papai Noel, barbado, comendo frutas europeias secas, arrastado num carro puxado
por veados. Em seu lugar, surge, depois da Grécia, a primeira santa que fode. A Iemanjá não se vai
pedir a cura do câncer ou da AIDS, pede-se um amante carinhoso e que o marido não bata tanto [...]
Isso significa que, apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental. Uma nova Roma,
uma matriz ativa da civilização neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e
em sangue índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a
viver mais alegre e mais feliz (RIBEIRO, 1995, p. 264-265).

Mar morto (1936 – fragmentos)

Lívia pensa com raiva em Iemanjá. Ela é a mãe-d’água é a dona do mar, e por isso, todos os homens
que vivem em cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens a
não ser quando eles morrem no mar. Os que morrem na tempestade são seus preferidos. E aqueles
que morrem salvando outros homens, esses vão com ela pelos mares em fora, igual a um navio,
viajando por todos os portos, correndo por todos os mares. Destes ninguém encontra os corpos, que
eles vão com Iemanjá. Para ver a mãe-d’água muitos já se jogaram no mar sorrindo e não mais
apareceram. Será que ela dorme com todos eles no fundo das águas? Lívia pensa nela com raiva
(AMADO, 1979, p. 21 – grifos nossos).

4
Terminologia advinda da expressão “homem cordial”, criada pelo poeta Ribeiro Couto e propagada por Sérgio
Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936), essa expressão é tomada por Holanda como o sentimento da
aversão brasileira ao convencionalismo e à ritualidade social, como enfatiza o autor – “Nenhum povo está mais
distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nessa forma ordinária de convívio social é, no fundo,
justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência [...] A manifestação normal do respeito entre outros
povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade” (HOLANDA, 1988, p. 107).
Posteriormente, em carta a Cassiano Ricardo (1948), incluída na edição da qual nos utilizamos, Sérgio Buarque
de Holanda volta às ponderações sobre esse traço do caráter nacional, ressaltando que a cordialidade não se
restringe à bondade e à afabilidade, nem tampouco exclui a discórdia e a inimizade: “Não precisarei recorrer ao
dicionário para lembrar que essa palavra – cordial –, em seu verdadeiro sentido, e não apenas no sentido
etimológico, como v. quer presumir, se relaciona a coração e exprime justamente o que pretendi dizer. Como, além
disso, se acreditou, mal ou bem, que o coração é sede dos sentimentos, e não apenas dos bons sentimentos, minha
nova explicação, ao lembrar que a inimizade ‘bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra
nascem do coração’” (HOLANDA, 1988, p. 144-145).
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Apesar da gritante diferença entre a fé indígena – abstraída de santos e de santas, de


deuses e de deusas, de dias santificados, dedicados a determinadas divindades – e os códigos
religiosos dos cristãos e dos africanos, o sistema de crenças ameríndias também inspiraria a
nossa literatura, como se pode aferir nos romances Quarup (1967), de Antônio Callado; Maíra
(1976), de Darcy Ribeiro; além do texto, de cunho etnológico e indigenista, Uirá sai à procura
de Deus (1974), relato verídico, no qual Darcy Ribeiro abre, à dicção nativa, o discurso sobre
o papel e a importância desempenhada por Maíra, na cosmogonia dos nossos ancestrais da
nação Urubu: “– Tudo era claridade, não existia nada. – No princípio não existia nada, só Maíra
e aquele clarão. – Maíra fez a terra e os rios grandes, depois mandou um macaco gigantesco
plantar a mata. – Quando a mata já estava pronta, Maíra fez as gentes” (RIBEIRO, 1980, p. 20).
Dessa forma, os autores da segunda metade do século XX retomam a temática da fé
indígena, exaustivamente trabalhada pelos modernistas, ligados, ou não, à perspectiva
antropófaga de Oswald e de Mário de Andrade, a exemplo do poema “Uiara” (1928), voltado
para a cosmogonia Marajoara, de Cassiano Ricardo, integrante do Grupo Verde-Amarelo:

Uiara (1928)

No país do sol ouro sem noção


onde só havia sol do que seria o ouro
(noite não havia) sol sem solução
havia uma mulher mulher gravada a ouro
verde olho de ouro num friso marajoara
vestida de sol cabelo muito verde
imagem da manhã olhos-muito-ouro
sem noção do amanhã
verde sem ideia chamava-se Uiara.
do que se diz verde
(que não se alcança)
(RICARDO, 1999, p. 10)

Em 1821, pressionado por seus súditos europeus, D. João VI retorna a Portugal,


recomendando ao filho que, se a independência brasileira se tornasse inevitável, ele mesmo a
proclamasse. Foi o que fez D. Pedro em 1822. Nesse caminho, o Brasil não passava de Colônia
à República, como os nossos países coirmãos, mas de Colônia à Monarquia, preservando os
privilégios das camadas dominantes e esquecendo-se do grave problema da escravidão, a mais
longa de nosso continente. A abolição da escravatura só se daria em 1888, um ano antes da
proclamação do regime republicano.
Ao se voltarem para esse contexto, Sousândrade e Murilo Mendes transformam o
jeitinho de nossa transição, em matéria poética. Movidos por um impulso crítico-irônico, tanto
55

o poeta romântico quanto o poeta modernista problematizam a atipicidade de nossa autonomia.


O primeiro se reportando ao conselho de D. João VI a D. Pedro; o segundo trazendo à sua poesia
o fato pouco conhecido de que D. Pedro proclamara a nossa independência, acometido por uma
forte diarreia:

O Tatuturema (1867 – fragmentos) A pescaria (1932)

(D. João VI, escrevendo a seu filho:) Foi nas margens do Ipiranga, Vamos cair no fadinho
Pedro (credo! que sustos!) Em meio a uma pescaria. Pra celebrar o sucesso.”
Se há de ao reino empalmar Sentindo-se mal, D. Pedro A Tuna de Coimbra surge
Algum aventureiro, – Comera demais cuscuz – Com as guitarras afiadas,
O primeiro Desaperta a barriguilha Mas as mulatas dengosas
Sejas... toca a coroar! E grita, roxo de raiva: Do Club Flor do Abacate
“Ou me livro d’esta cólica Entram, firmes, no maxixe,
(SOUSÂNDRADE, 1995, p. 85) Ou morro logo d’ua vez!” Abafam o fado com a voz,
O príncipe se aliviou, Levantam, sorrindo, as pernas...
Sai no caminho cantando: E a colônia brasileira
“Já me sinto independente. Toma a direção da farra.
Safa! vi perto a morte! (MENDES, 1994, p. 164-165)

Nesse jeitinho, lento e gradual, marcado pelos pactos e pelos conchavos de nossas elites,
se processaria a emancipação política do Brasil. Diferenciando-se do processo emancipatório
latino-americano, nossa independência se constituiria como uma solução conciliatória aos
interesses das populações dominantes, ciosas em manter suas posições e privilégios, à revelia
dos interesses das camadas dominadas. Nesse contexto, caracterizado pela conciliação, e por
um acentuado condensamento cultural, a estética romântica surge e se desenvolve em nosso
país.
Apesar da sinuosidade à brasileira, os grupos dirigentes não impediriam as turbulências
verificadas no país, notadamente na região nordestina, dos inícios de 1800. Entre elas,
destacam-se o movimento conspiratório dos Suassunas (Pernambuco – 1801), a Revolução
Pernambucana (1817), a Independência da Bahia (1821-1823), a Confederação do Equador
(1823-1824), todas norteadas pelo desejo separatista.
Na Revolução de 1817 e na Confederação do Equador, o romântico nordestino, Joaquim
do Amor Divino Caneca (1779-1825), participaria com notabilidade. Poeta e jornalista,
seduzido pelos valores liberais, Frei Caneca, a exemplo dos poetas mineiros, se envolveria nos
movimentos autonomistas de seu tempo. De sua atuação política, movida por um acentuado
patriotismo, resultaria a sua execução, determinada por D. Pedro I, então imperador do Brasil.
Um dos escritores mais expressivos e atuantes dessa fase do mundo escritural pernambucano,
Frei Caneca, além de jornalista, pode ser considerado como um dos precursores do romantismo
56

brasileiro, como se pode verificar em seu poema – apresentado em suas duas versões –
elaborado quando ele toma conhecimento de sua condenação: a morte por enforcamento.

Entre Marília e a pátria (1825)

Entre Marília e Dirceu Tem fim a vida daquele


Coloquei meu coração Que a vida não soube amar;
A pátria roubou-me todo A vida do patriota
Marília que chore em vão. Não pode o tempo acabar.
Quem passa a vida que eu passo O servil acaba inglório
Não deve a morte temer; Da existência a curta idade
Com a morte não se assusta Mas não morre o liberal
Que está sempre a morrer. Vive toda a eternidade.
A medonha catadura
Da morte feia e cruel
Do rosto só muda a cor (CANECA, 2009, p. 84-85)
Da pátria ao filho infiel

Entre Marília e a pátria (variante)

Entre Marília e a pátria Apenas forem crescendo,


Coloquei meu coração: Cresçam co’as armas na mão,
A pátria roubou-m’o todo; Saibam morrer, como eu morro;
Marília que chore em vão. Marília que chore em vão.

Marília, pede a teus filhos, Defender os pátrios lares,


Por minha própria abenção, É dever do cidadão.
Morram, como eu, pela pátria; Quando exalem pela pátria;
Marília que chore em vão. Marília que chore em vão.

(CANECA, 2013)

O martírio de Frei Caneca, o Inconfidente do Nordeste, assim como seus escritos


poéticos e jornalísticos, se tornaram ao largo do tempo, em assunto estético dos mais variados
gêneros literários, reexaminados, notadamente, pelos intelectuais, poetas e dramaturgos
nordestinos, como bem ilustram as obras Frei Joaquim do Amor Divino Caneca (2001),
organizada por Evaldo Cabral de Mello; Suplício de Frei Caneca: oratório dramático (1977),
do cearense Cláudio Aguiar e o notável Auto do Frade: poema para vozes, de João Cabral de
Melo Neto, escrito em 1984:
57

Auto do Frade (1994 – fragmentos)

O PROVINCIAL E O CARCEREIRO: A GENTE NAS CALÇADAS:

– Dorme. – Dizem que quando vinha preso


– Dorme como se não fosse com ele. alguém lhe ofereceu a fuga.
– Dorme como uma criança dorme. – Alguns aceitaram de saída
– Dorme como em pouco, morto, vai dormir. e hoje andam soltos pelas ruas.
–Ignora todo esse circo lá embaixo. – Outros se foram para Bolívar
– Não é circo. É a lei que monta o espetáculo. que livrara várias repúblicas.
......................................................................... – Mas a daqui, compreendeu,
precisa ainda de mais luta.
FREI CANECA:
A GENTE NAS CALÇADAS:
– O raso Fora-de-Portas
de minha infância menina, – Pela estrada dita Ribeira
onde o mar era redondo, onde o Capibaribe sua,
verde-azul, e se fundia com tropa pequena e rompida
com um céu também redondo foi ao Ceará por ajuda.
de igual luz e geometria! – Campina Grande, Paraíba,
Girando sobre mim mesmo, guarda a casa de sua cura,
girava em redor a vista e em Acauã, lá no Ceará
pelo imenso meio-círculo se rende com a tropa viúva.
de Guararapes a Olinda.
Eu era um ponto qualquer A GENTE NAS CALÇADAS:
na planície sem medida,
em que as coisas recortadas – Foi contra seu Imperador
pareciam mais precisas, é o que se diz no veredicto.
mais lavadas, mais dispostas – E separatista ademais;
segundo clara justiça. saberá Dom Pedro o que é isso?
Era tão clara a planície, – Pensa que é ladrão de cavalos
tão justas as coisas via, ou que é capitão de bandidos.
que uma cidade solar Pensa não ser mal português,
pensei que construiria. sim de brasileiro, algum vício.
Nunca pensei que tal mundo ............................................
com sermões o implantaria.
Sei que traçar no papel FREI CANECA:
é mais fácil que na vida.
Sei que o mundo jamais é – – Esta alva de condenado
a página pura e passiva. substituiu-me a batina.
O mundo não é uma folha Não penso que ainda venha
de papel, receptiva: a vestir outra camisa.
o mundo tem alma autônoma, Certo também é mortalha
é de alma inquieta e explosiva. e nela sairei da vida.
Mas o sol me deu a ideia Não sei por que os condenados
de um mundo claro algum dia. vestem sempre esta batina,
Risco nesse papel praia, como se a forca fizesse
em sua brancura crítica, disso a questão mais estrita.
que exige sempre a justeza Será que a morte é de branco
em qualquer caligrafia; onde coisa não habita,
que exige que as coisas nele ou se habita, dá na soma
sejam de linhas precisas; uma brancura negativa?
e que não faz diferença Ou será que é uma cidade
entre a justeza e a justiça. toda de branco vestida
........................................... .........................................

(MELO NETO, 1994, p. 465-495)


58

A despeito das diferenças apontadas entre o Brasil e os países que se formariam no


continente latino-americano – de código linguístico,5 de gradação estética e de trajetória de suas
emancipações políticas – as manifestações românticas expressam, todavia, uma gritante
similaridade que o passar do tempo, com seus novos e dolorosos desafios ao mundo latino-
americano, não consegue apagar, antes parece reforçar as similitudes de nossas fabulações, de
nossos dilemas e de nossos interesses.

3 O romantismo no Brasil

3.1. Do surgimento

Costuma-se assinalar o ano de 1836 como a data do surgimento do romantismo no


Brasil. Nesse ano, é editada, em Paris, Niterói, revista brasiliense dirigida por Gonçalves de
Magalhães, Torres Homem e Araújo Porto Alegre. Constituindo-se, em sua primeira edição,
como um aglomerado de textos de temática variada, a revista traz, disputando um apertado
espaço, entre artigos de astronomia, química, economia, o estudo de Gonçalves de Magalhães
“Ensaio sobre a história da literatura do Brasil”.
Esse texto se tornaria o marco fundador da poesia romântica entre nós. De Paris,
Magalhães lançava as sementes do romantismo no Brasil. Em 1837, ao retornar, Gonçalves de
Magalhães é recepcionado como o fundador da literatura brasileira, propriamente dita. Apesar
das diferenças materiais e ideológicas que separam o Brasil da Europa – lá, a modernidade, a
máquina, o operário, a exploração do trabalho; cá, o latifúndio, a escravidão, a ideologia do favor
– o ideário estético do romantismo europeu encontraria correspondência em nosso contexto de
autonomia política.
Éramos um povo em busca de nação e de sua correspondente expressão, segundo
reconhecem os intérpretes brasileiros em geral. Aos artistas nacionais agradava a chancela
romântica da tematização das particularidades regionais. A acolhida foi geral. Em suas recepções
à nova sensibilidade europeia, nossos escritores dialogaram com todas as correntes românticas,
logrando elaborar obras de valor notável, comparáveis às produções das metrópoles, como
aprecia Alfredo Bosi:

5
As diferenças linguístico-culturais na América Latina, impostas pelo Tratado de Tordesilhas, seriam lamentadas
por José Veríssimo, em sua saudação a Rubén Darío, na Academia Brasileira de Letras (1912) – “filhos do mesmo
continente, quase da mesma terra, oriundos de povos, em suma da mesma raça, ou pelo menos da mesma formação
cultural, com grandes interesses comuns, vivemos nós, Latino-Americanos, pouco mais que alheios e indiferentes
uns aos outros e nos ignorando quase que por completo” – suscitando, ainda, a apreensiva indagação de Mário de
Andrade (1926) – “no rincão da Sulamérica o Brasil é um estrangeiro enorme?” – conforme registra Jorge
Schwartz, em seu texto “Abaixo Tordesilhas!”, reacendendo essa discussão, na Revista Estudos Avançados, São
Paulo, v.7, n. 17, p. 185-200, jan./abr., 1993.
59

Assim, apesar das diferenças de situação material, pode-se dizer que se formaram em nossos homens de
letras configurações mentais paralelas às respostas que a inteligência europeia dava a seus conflitos
ideológicos. Os exemplos mais persuasivos vêm dos melhores escritores. O romance colonial de Alencar e
a poesia indianista de Gonçalves Dias nascem da aspiração de fundar em um passado mítico a nobreza
recente do país, assim como – mutatis mutandis – as ficções de W. Scott e de Chateaubriand rastreavam na
Idade Média feudal e cavaleiresca os brasões contrastados por uma burguesia em ascensão. De resto,
Alencar, ainda fazendo “romance urbano”, contrapunha a moral do homem antigo à grosseria dos novos-
ricos; e fazendo romance regionalista, a coragem do sertanejo às vilezas do citadino. A correspondência
faz-se íntima na poesia dos estudantes boêmios, que se entregam ao spleen de Byron e ao mal du siècle de
Musset, vivendo na província uma existência doentia e artificial, desgarrada de qualquer projeto histórico
e perdida no próprio narcisismo: Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Fagundes Varela... Como os seus
ídolos europeus, os nossos românticos exibem fundos traços de defesa e evasão, que os leva a posturas
regressivas: no plano da relação com o mundo (retorno à mãe-natureza, refúgio no passado, reinvenção do
bom selvagem, exotismo) e no das relações com o próprio eu (abandono à solidão, ao sonho, ao devaneio,
às demasias da imaginação e dos sentidos) [...] Enfim, o paralelo alcança a última fase do movimento, já
na segunda metade do século, quando vão cessando as nostalgias aristocráticas, já sem função na dinâmica
social, e se adensam em torno do mito do progresso os ideais das classes médias avançadas. Será o
Romantismo público e oratório de Hugo, de Carducci, de Michelet, e do nosso Antônio Castro Alves (BOSI,
1980, p. 101).

Na verdade, os anos que se seguem a 1822 se caracterizam por uma extraordinária


atmosfera de otimismo e de entusiasmo, em face da recente autonomia política. Nesse ambiente,
marcado pela euforia da dissolução dos vínculos que nos prendiam a Portugal, surge o
romantismo. A nova modalidade estética caía como uma dádiva, em toda a América Latina, às
voltas com a definição de suas próprias identidades.
Aos poetas latino-americanos, o romantismo se afigurava como caminho favorável às
suas pretensões. Estética particularista, seu amplo mosaico de concepções e de modelos, em
contramão ao classicismo, facultava a liberdade de expressão aos países recém-saídos da tutela
do colonialismo. Propiciava, também, o aparecimento das escolas nacionais, num processo de
democratização da literatura, como anota Antonio Candido, ressaltando a enorme importância
do romantismo nas configurações de nossas identidades culturais:

Um elemento importante nos anos de 1820 e 1830 foi o desejo de autonomia literária, tornado mais
vivo depois da Independência. Então, o Romantismo apareceu aos poucos como caminho favorável
à expressão própria da nação recém-fundada, pois fornecia concepções e modelos que permitiam
afirmar o particularismo, e portanto a identidade, em oposição à Metrópole, identificada com a
tradição clássica [...] O desejo de autonomia encontrou, como vimos, apoio sólido na estética
particularista aplicada aos países do Novo Mundo. Ela foi importante na medida em que propunha
o característico em lugar do genérico, levando a valorizar o pitoresco, na paisagem e nas
populações. Levava também a privilegiar a singularidade do sentimento individual, que deveria
procurar expressões únicas, e não se acomodar no discurso tópico dos clássicos [...] Sob este
aspecto, as diferentes formas de particularização foram importantes como fator de democratização
da literatura, inclusive atenuando um pouco o abismo que antes separava a literatura erudita da
literatura popular [...] Sendo mais acessível, a literatura do tempo do Romantismo pôde popularizar-
se mais e dar voz aos que não tinham meios de exprimir-se em nível erudito.
60

Continuação...

Por isso ela contribuiu para a ideia que o brasileiro ia formando de si mesmo, ou seja, para o
sentimento de identidade, por meio de mecanismos que ampliaram e tornaram mais comunicativa
a mensagem. Ao mesmo tempo, implantou a noção ideologicamente importante que a nossa
produção literária era própria (CANDIDO, 2002, p. 20; 88-95 – grifo do autor).

No Brasil, a visão europeia da pátria/lar, vivida em estado de perda ou de exílio, se


tornaria experiência fundamental de nossa literatura, frequentando-a em todas as tendências e
modalidades, ao ponto de Mário de Andrade alçá-la ao status ficcional de “entidade nacional
dos brasileiros”, como grifa no prefácio, não publicado, de Macunaíma (ANDRADE apud
PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 188).
Na verdade, esse ente, criado e propagado pela estética romântica, se espalharia,
tematicamente, em todos os nossos discursos culturais, estruturados, no mais das vezes, pelas
mais díspares e antagônicas ideologias. A força literária do nacionalismo seduziria até mesmo
os autores arredios a essa temática, como Álvares de Azevedo, no poema “Na minha terra”,
publicado postumamente, Sousândrade, em suas “Harpas selvagens”, fornecendo, ainda,
matéria poética para a poesia abolicionista de Castro Alves, como se vê em sua “Canção do
africano”:

Na minha terra (1853 – fragmentos)

Amo o vento da noite sussurrante E a névoa e flores e o doce ar


A tremer nos pinheiros [cheiroso
E a cantiga do pobre caminhante Do amanhecer na serra,
No rancho dos tropeiros; E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu da minha terra;
E os monótonos sons de uma viola
No tardio verão, E o longo vale de florinhas cheio
E a estrada que além se desenrola E a névoa que desceu,
No véu da escuridão; Como véu de donzela em branco
[seio,
A restinga d’areia onde rebenta As estrelas do céu.
O oceano a bramir, ...................................................
Onde a lua na praia macilenta E eu amo as flores e o doce ar
Vem pálida luzir; [mimoso
Do amanhecer da serra
E o céu azul e o manto nebuloso
Do céu da minha terra!

(AZEVEDO, 1991, p. 16-17)


61

Harpas selvagens (1857 – fragmentos)

................................................

Eu careço de amar, viver careço Ingrato o filho que não ama os berços
Nos montes do Brasil, no Maranhão, Do seu primeiro sol. Eu se algum dia
Dormir aos berros da arenosa praia Tiver de descansar a vida errante,
Da ruinosa Alcântara, evocando Caminhos de Paris não me verão:
Amor... Pericuman!... morrer... meu Deus! Através os meus vales solitários
Quero fugir d’Europa, nem meus ossos Eu irei me assentar, e as brisas tépidas
Descansar em Paris, não quero, não! Que os meus cabelos pretos perfumavam,
Oh! por que a vida desprezei dos lares, Dos meus cabelos velhos a asa trêmula
Onde minh’alma sempre forças tinha Embranquecerão: quando eu nascia
Para elevar-se à natureza e aos astros? Meu primeiro suspiro elas me deram;
Aqui tenho somente uma janela Meu último suspiro eu lhes darei.
E uma jeira de céu, que uma só nuvem
A seu grado me tira; e o sol me passa
Ave rápida, ou como o cavaleiro:
E lá! a terra toda, este sol todo –
E num céu anilado eu m’envolvia,
Como a água se perde dentro dele. (SOUSÂNDRADE, 2002, p. 181-182)

A canção do africano (1863)

Lá na úmida senzala, O sol faz lá tudo em fogo, O escravo então foi deitar-se,
Sentado na estreita sala, Faz em brasa toda a areia; Pois tinha de levantar-se
Junto ao braseiro, no chão, Ninguém sabe como é belo Bem antes do sol nascer,
Entoa o escravo o seu canto, Ver de tarde a papa-ceia! E se tardasse, coitado,
E ao cantar correm-lhe em pranto Teria de ser surrado,
Saudades do seu torrão... Aquelas terras tão grandes, Pois bastava escravo ser.
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras E a cativa desgraçada
De um lado, uma negra escrava Dão vontade de pensar... Deita seu filho, calada,
Os olhos no filho crava, E põe-se triste a beijá-lo,
Que tem no colo a embalar... “Lá todos vivem felizes, Talvez temendo que o dono
E à meia voz lá responde Todos dançam no terreiro; Não viesse, em meio do sono,
Ao canto, e o filhinho esconde, A gente lá não se vende De seus braços arrancá-lo!
Talvez pra não o escutar! Como aqui, só por dinheiro.” .

Minha terra é lá bem longe, O escravo calou a fala,


Das bandas de onde o sol vem; Porque na úmida sala
Esta terra é mais bonita, O fogo estava a apagar
Mas à outra eu quero bem! E a escrava acabou seu canto,
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!

(ALVES, 1972, p. 31-33)


62

3.2 A nação em busca de sua expressão

Desde os séculos iniciais do colonialismo lusitano, o ambiente do Brasil se


caracterizava, linguisticamente, pelo predomínio das línguas gerais, denominação à dicção
tupi, já então adulterada pela inserção das letras portuguesas, efetivada pelo trabalho de
expropriação do código linguístico indígena, um verdadeiro crime de lesa-cultura, praticado
pelos jesuítas contra os nativos brasileiros e, de modo geral, contra os povos de Latino América
(MENDONÇA, 2012).
Na segunda metade do século XVIII, esse quadro se modifica. Portugal, sob a tutela do
Marquês de Pombal, altera a sua política linguística. As línguas gerais são banidas de nosso
território, e os seus usos e manifestações arbitrariamente criminalizadas. Não obstante esse
golpe fatal, as expressões indígenas – há muito internalizadas pelos falantes dos mais diversos
recantos brasileiros – persistem em permanecer em nossos falares, infiltrando-se no discurso
culto do neoclassicismo à brasileira.
Apesar dessa contaminação linguística, as demandas estéticas – tais como a temática, a
paisagem e as expressões linguísticas locais – se afiguraram como subitens do neoclassicismo,
sem pretensão programática, ou formulação, conscientemente planejada. Isso não impediu, no
entanto, que esses traços de brasilidade se tecessem em meio à fatura arcádica, tornando-a
gênese do romantismo brasileiro, ou o nosso protorromantismo, como compreende Sílvio
Romero:

Antes de iniciar-se francamente a reação romântica que, em geral com pouca justiça, se faz datar de
1836 com a publicação dos Suspiros Poéticos, já havia muitos sinais de que a revolução entre nós
começada pelos mineiros, que podemos chamar os proto-românticos, já se tinha consumado numa
série de poetas que precederam a Gonçalves de Magalhães, ainda que muitas das produções daqueles
só viessem à luz em livros muito mais tarde. A estes poetas é que devemos assinalar um modesto lugar
na fase de transição para o romantismo (ROMERO, 2001, p. 192 – grifos do autor).

Apesar do tom, da temática e do ambiente local informarem, visivelmente, a elaboração


arcádica, seria com o romantismo, no entanto, que a questão da língua cresceria em importância
e urgência. Desejosos também da independência literária, os românticos lançam mão do legado
vocabular dos indígenas e, posteriormente dos africanos, utilizando-o como barras de
diferenciação do código linguístico europeu. Nesse procedimento, os autores românticos
driblam o incômodo da dependência expressiva, enquanto asseguram a fundação de nosso
código literário, como bem explicita José de Alencar, em cartas ao Sr. J. Serra, colididas na
obra O nosso cancioneiro (1874).
63

Nessas cartas, de caráter metaliterário, o autor de Iracema discorre sobre as táticas


desenvolvidas para a criação da expressão brasileira, rebatendo, com propriedade, as críticas
lusitanas, dirigidas contra a literatura brasileira que se ia tecendo, em especial à miscigenação
idiomática que se estabelecia, juntamente, com as novas letras. O acento brasileiro, antes
reconhecido pelo uso oral, adentraria na escrita de nossa arte verbal, como alicerce estratégico
à criação de uma língua literária nacional, num desejo consciente e programático dos nossos
românticos, como expressa José de Alencar:

Já vê o meu ilustrado colega, que aleijaríamos nossa língua tão rica, se lhe tolhêssemos esse genuíno teor de
locução que traz de origem. É o que pretendem nossos irmãos; e tacham-nos de não sabermos português [...]
Agora que já satisfiz o desejo de dar a lume, sob seu patrocínio, essa rapsódia cearense, podia aproveitar o
ensejo para deduzir dela considerações mui cabidas na questão da nacionalidade da nossa literatura, que em
meu conceito envolve necessariamente a da modificação da língua [...] Depois da independência, senão antes,
começamos a balbuciar a nossa literatura, pagamos, como era natural, o tributo à imitação, depois entramos a
sentir em nós a alma brasileira, e a vazá-la nos escritos, com a linguagem que aprendemos de nossos pais.
Prosseguíamos na modesta senda, quando em Portugal principiou a cruzada contra a nossa embrionária e frágil
literatura, a ponto de negar-se-lhe até uma individualidade própria. Não era generoso, e não era justo [...] Não
nos ressentimos, ainda assim, com esse espírito de colonização literária [...] Se nós, os brasileiros
escrevêssemos livros no mesmo estilo e com o mesmo sabor dos melhores que nos envia Portugal, não
passaríamos de uns autores emprestados; renegaríamos nossa pátria, e não só ela, como a nossa natureza, que
é o berço dessa pátria (ALENCAR, 1993, p. 31; 54-61).

Nesses postulados, os românticos brasileiros, na esteira de nossa tradição linguística,


elegem a língua oral – de origem indígena – como seu sânscrito, por direito e legitimidade,
elevando-a à condição de língua literária. Essa perspectiva, de quebra do purismo linguístico
lusitano, perpassaria, com pujança e numa especiosa constância, os mais diversos panoramas
de nossa arte escritural. Elemento privilegiado de nosso corpus estético, o idioma literário, em
sua tematização e subversão às regras lusitanas, se comunicaria à sociedade, convertendo-se
em “língua geral duma sociedade à busca de conhecimento”, como grifa Antonio Candido, ao
observar o extraordinário poder de comunicação do nosso verbo literário (1993, p. 27, v. 1).
Do arcadismo aos dias atuais, a temática linguística continua a espicaçar a nossa
inteligência, a inspirar a nossa literatura, mobilizando seus romancistas, dramaturgos e poetas,
como indiciam os versos de Oswald de Andrade, dos poemas “O gramático”, “Pronominais” e
“Vício na fala”, da obra Pau-Brasil (1925); os de Chacal, em “Papo de índio” (1971); as rimas
de Cacaso, em “Dinhêru” (2001), texto-canção feito em parceria com Nélson Angelo, e as de
José Paulo Paes, em “Lisboa: aventuras” (1988), poesia que dialoga com a perspectiva
romântica de independência idiomática, mais notadamente, com a ponto de vista de Gonçalves
Dias, versificado na “Canção do exílio”:
64

O gramático (1925) Pronominais (1925) Vício na fala (1925)

Os negros discutiam Dê-me um cigarro Para dizerem milho dizem mio


Que o cavalo sipantou Diz a gramática Para melhor dizem mió
Mas o que mais sabia Do professor e do aluno Para pior pió
Disse que era E do mulato sabido Para telha dizem teia
Sipantarrou Mas o bom negro e o bom branco Para telhado dizem teiado
Da Nação Brasileira E vão fazendo telhados
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

(ANDRADE, 1990, p. 86) (ANDRADE, 1990, p.120) (ANDRADE, 1990, p. 80)

Papo de índio (1971)

veiu uns ômi de saia preta


cheiu di caixinha e pó branco
qui eles disserum qui chamava açucri.
aí eles falarum e nós fechamu a cara.
depois eles arrepetirum e nós fechamu o corpo.
aí eles insistirum e nós comemu eles

(CHACAL, 1984, p. 20).

Dinhêru (2001)

No tempo em que era soltêro


Sonhava em me casá
Meu pai me falô primêro
Dinhêru cê vai ganhá
Ganhá o tempo primêro
Não custa nada esperá
Não custa ficá soltêro
Primêro vai trabaiá
O tempo custa dinhêru
Dinhêru custa ganhá

(CACASO, 1985, p. 159)


65

LISBOA: AVENTURAS (1988)


tomei um expresso

cheguei de foguete
subi num bonde

desci de um elétrico

pedi cafezinho

serviram-me uma bica

quis comprar meias

só vendiam peúgas

fui dar à descarga


disparei um autoclisma

gritei “ó cara!”

responderam-me “ó pá!”

positivamente

as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá

(PAES, 2003, p. 166)

Evidenciada à exaustão, a relevância da cultura indígena, para a produção de nossos


saberes, ultrapassaria o campo restrito da literatura, se apresentando como fonte de
conhecimentos outros, adentrando em outras áreas do saber. A riqueza cultural dos nativos
brasileiros não passaria despercebida a José de Alencar. Um tanto solto das amarras
eurocêntricas, ao se referir à teogonia nativa, Alencar a representa como manancial dadivoso
ao fabuloso narrativo, em uma de suas epístolas críticas acerca d’A confederação dos Tamoios
(1856), de Gonçalves de Magalhães, censurando-lhe, na ocasião, a ausência do universo
sagrado aborígine, no poema épico do fundador oficial do romantismo brasileiro:

Não posso admitir, como já o disse uma vez, essa desculpa de que a religião indígena não tinha
tradições nem culto externo; além de não ser isto exato [...] A teogonia indígena, mesmo
imperfeita como era, ou como chegou ao nosso conhecimento, dava matéria para lindos
episódios; esse Deus do trovão, que manifestava a sua cólera lançando o raio; esse grande
dilúvio, que cobriu os píncaros elevados dos Andes; essas lutas de raças conquistadoras, que se
haviam substituído umas às outras; tudo isso posto na boca de um pajé, e nessa linguagem
primitiva da natureza, havia de ter algum encanto (ALENCAR, 1994, p. 209 – grifo do autor).
66

A complexidade dos códigos culturais dos nossos antepassados tampouco deixaria de


ser anotada por Gonçalves Dias. Numa aprofundada discordância com a escravidão e com o
genocídio indígenas, o poeta concebe os costumes ameríndios como a própria poesia, ou
traçado especular que não apenas desvendaria a nossa natureza, mas, sobretudo, nos prepararia
para um futuro que se vislumbrava como destino incerto, de acordo com as considerações de
Gonçalves Dias, que define o colonialismo como fato monstruoso, como calamidade que nos
comprometeria o porvir:

A escravidão dos índios foi um grande erro, e a sua destruição foi e será uma grande calamidade.
Convinha que alguém nos revelasse até que ponto este erro foi injusto e monstruoso, até onde chegaram
essas calamidades no passado, até onde chegarão no futuro: eis a história. Convinha também que nos
descrevesse os seus costumes, que nos instruísse nos seus usos e na sua religião, que nos reconstruísse
todo esse mundo perdido, que nos iniciasse nos mistérios do passado como caminho do futuro, para que
enfim saibamos donde viemos e para onde vamos; convinha enfim que o poeta se lembrasse de tudo
isto, porque tudo isto é poesia; e a poesia é a vida do povo, como a política é o seu organismo. Que
imenso trabalho não seria este! Mas também quantas lições para a política, quantas verdades para a
história; quanta beleza para a poesia (DIAS apud MATOS, 1988, p. 79-80).

Um século depois, com o modernismo, Oswald de Andrade procede à retomada da


proposta antecipada por José de Alencar e por Gonçalves Dias, defendendo, igualmente, a
revisão e a reabilitação do universo indígena, desqualificado e satanizado pelos colonialistas.
Assim, em seu último texto, de 1954, além do elogio ao pensamento nativo, notadamente o da
antropofagia, destaca a importância do conceito de vida construído pelo homem ameríndio,
avultando o seu aproveitamento para a criação e o desenvolvimento da filosofia no Brasil, em
oposição às formulações europeias. Em 2000, o filósofo brasileiro Renato Janine Ribeiro,
reacende a discussão oswaldiana, lamentando o equívoco dos filósofos do Brasil, que ainda
creditam, aos países materialmente desenvolvidos, o apanágio da universalidade:

A reabilitação do primitivo é uma tarefa que compete aos americanos. Todo mundo sabe o
conceito deprimente de que se utilizaram os europeus para fins colonizadores [...] Ora, ao
nosso indígena não falta sequer uma alta concepção da vida para se opor às filosofias
vigentes que o encontraram e o procuraram submeter [...] A Antropofagia fazia lembrar que
a vida é devoração opondo-se a todas as ilusões salvacionistas [...] Devido ao meu estado
de saúde, não posso tornar mais longa esta comunicação que julgo essencial a uma revisão
de conceitos sobre o homem da América. Faço pois um apelo a todos os estudiosos desse
grande assunto para que tomem em consideração a grandeza do primitivo, o seu sólido
conceito de vida como devoração e levem avante toda uma filosofia que está para ser feita
(ANDRADE, 1992, p. 231- 232).
67

Isso vale em particular para a filosofia política [...] Em outras palavras, continuamos achando que
o universal pertence ao Primeiro Mundo, e que estamos confinados no particular. Pouco importam
os inúmeros trabalhos que, nestas décadas, a começar pelo Manifesto Antropofágico, de Oswald
de Andrade, mostraram como nossa condição de esguelha, de viés, de través pode permitir uma
leitura pelo menos original: em filosofia, continuamos reféns de alguma dependência. (RIBEIRO,
2000, p.10-12).

3.3 A tradução na língua da nação


No “Posfácio” da primeira edição de Iracema (1865), José de Alencar, ao criticar
duramente a linguagem épica de Gonçalves de Magalhães, chama a nossa atenção para o grande
desafio do gênio brasileiro, imbuído da tarefa de traduzir, para a compreensão nacional, as
ideias-força e a visão de mundo da inteligência europeia. Ante esse árduo trabalho, Alencar
reafirma a importância e o valor da linguística indígena para o processo de abrasileiramento do
discurso literário:

Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as ideias, embora rudes e grosseiras, dos
índios; mas nessa tradução está a grande dificuldade; é preciso que a língua civilizada se molde quanto possa
à singeleza primitiva da língua bárbara; e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos
e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem. O conhecimento da língua indígena é o melhor
critério para a nacionalidade da literatura (ALENCAR, 1994, p. 98).

Nesse cuidadoso processo de individualização de nosso discurso ficcional, os


românticos dispensariam o mesmo esmero aos temas e aos assuntos, além dos ambientes, por
eles representados. Em 1858, um reconhecido tradutor e intérprete brasileiro de obras europeias,
Odorico Mendes, redige sua proposta temático-literária intentando, visivelmente, a apreensão
simbólica do Brasil como um todo. Reconhecendo, em nosso corpus literário, a marcante
presença de duas dicções ficcionais, a que se debruçava sobre o tipo citadino, considerado o
‘mais civilizado’ e a que se inclinava ao homem do universo natural, Odorico Mendes propõe
a inclusão da temática do mundo sertanejo e dos homens negros, vistas, então, como
componentes discursivos imprescindíveis à sedimentação de nossa nacionalidade literária:

Em 1858, um grande erudito, Odorico Mendes (1799-1864), em nota da sua tradução das Bucólicas,
de Virgílio, identificava quatro áreas temáticas na literatura brasileira, correspondendo aos diferentes
tipos humanos: a referente aos “mais civilizados”, que pouco se distinguiam dos europeus; a referente
aos selvagens; e a que deveria tomar como objeto os sertanejos, deixados de lado até então, e que ele
considerava mais ou menos equivalentes aos pastores da bucólica, e típicos do interior, merecendo
maior atenção dos escritores. A seguir acrescenta a possibilidade de um grupo inspirador, os negros,
e conclui dizendo que ao abordar esses elementos característicos, os autores assegurariam uma
literatura propriamente nacional. Estas observações interessam porque são uma espécie de
premonição do que começaria a ocorrer: a introdução do romance regionalista e o interesse crescente
pelo negro, em verso e prosa, nos anos de 1860 e 1870 (CANDIDO, 2002, p. 50 – grifos nossos).
68

A extrema preocupação com a nacionalização de nosso repertório estético aponta,


inequivocamente, para a grande questão que circunda a criação literária, e das artes em geral,
na América Latina: o da dependência cultural às metrópoles europeias, condição oriunda de
nossa fatalidade histórica. Ante esse desconforto, os artistas latino-americanos se dedicam à
incessante busca de nossa natureza cultural, num movimento ininterrupto, como explicita o
crítico brasileiro, Roberto Schwarz, e o escritor paraguaio Rubén Bareiro Saguier:

Brasileiros e latino-americanos fazemos constantemente a experiência do caráter postiço, inautêntico,


imitado da vida cultural que levamos. Essa experiência tem sido um dado formador de nossa reflexão
crítica desde os tempos da Independência. Ela pode ser e foi interpretada de muitas maneiras, por
românticos, naturalistas, modernistas, esquerda, direita, cosmopolitas, nacionalistas etc., o que faz supor
que corresponda a um problema durável e de fundo. Antes de arriscar uma explicação a mais, digamos
portanto que o mencionado mal-estar é um fato (SCHWARZ, 1987, p. 29 grifos do autor).

Dada a diversidade de componentes, um problema latino-americano essencial foi, e continua sendo,


encontrar sua identidade cultural, situação que a literatura reflete, ao procurar apropriar-se de uma
linguagem e concretizar um conteúdo, num idioma em certa medida emprestado, e dentro de um
contexto político não unificado. A procura se intensifica, e o conflito torna-se evidente, em certos
momentos críticos de tomada de consciência: a emancipação romântica, o modernismo, o romance
social e a literatura de nossos dias (BAREIRO SAGUIER, 1979, p. 3).

No tocante a esse desconforto ou mal-estar latino-americano, gerado pela nossa


dependência cultural, caberia a Carlos Drummond de Andrade a sua interpretação poética.
Numa linguagem perpassada pela mais fina ironia, o poeta mineiro versifica essa questão como
se anota em “Papai Noel às avessas”, poema que compõe a coletânea de Alguma poesia, editada
em 1930:

Papai Noel às avessas (1930 – fragmentos)

PAPAI NOEL entrou pelas portas dos fundos Aquele quarto é o das crianças.
(no Brasil as chaminés não são praticáveis), Papai entrou compenetrado.
entrou cauteloso que nem marido depois da farra. Os meninos dormiam sonhando outros natais
Tateando na escuridão torceu o comutador muito mais lindos
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas, mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal. soldados mulheres elefantes navios
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos, e um presidente de república de celuloide.
achou um queijo e comeu. Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender. no interminável lenço vermelho alcobaça.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças Fez a trouxa e deu o nó
(no Brasil os papai-noéis são todos de cara raspada) .......................................................................
.................................................................................. Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
(ANDRADE, 1988, p. 23-24) apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.
69

Sobre essa reflexão, se debruça Antonio Candido, em seu estudo sobre a relação entre
as nossas manifestações românticas e as matrizes europeias. Examinando, com atenção, as
estratégias de adaptação e de acomodação das letras europeias, ou os seus modos de tradução,
como quer José de Alencar, Candido identifica três mecanismos de fatura textual aos quais
denominará de transposição, de substituição e de invenção. Os processos de transposição e de
substituição definem, conforme ressalta o crítico, a nossa relativa diferença, nos
proporcionando, assim, a consciência própria ante as elaborações europeias, neles residindo,
porquanto, a originalidade de nossos escritos:

Processo de transposição

A transposição consiste em passar para o contexto brasileiro as expressões, concepções, lendas,


imagens, situações ficcionais, estilos das literaturas europeias, numa apropriação (perfeitamente
legítima) que se integra e dá ao leitor a impressão de alguma coisa que é muito nossa, e ao mesmo
tempo faz sentir a presença das raízes culturais. No poemeto “Juvenília”, de Fagundes Varela, a
atmosfera encantada de magia é obtida por meio de um arsenal que exprime outros contextos:
“pérola de Ofir”, “fada”, “silfo”. Mas como isso é expresso numa tonalidade sentimental que nos
habituamos a considerar como própria, os elementos transpostos funcionam ao modo de ingredientes
de um universo familiar, o que não surpreende se considerarmos que, apesar das alegações rituais
do nacionalismo literário mais extremado, a nossa cultura dominante é a mesma que gerou aquelas
imagens e entidades. Por isso, em gerações anteriores, Silva Alvarenga transpusera esquemas
estróficos e rítmicos tomados a Paolo Rolli e Metastasio para elaborar os seus melodiosos rondós,
que sempre pareceram corresponder ao que há de mais autêntico na sensibilidade brasileira. Mas há
casos em que a transposição parece inassimilável, como quando Bernardo Guimarães coloca flocos
de neves nas árvores de certas paisagens de seus versos, sabendo-se que a sua experiência se refere
à natureza tropical. No entanto, eles acabam funcionando, porque evocam a paisagem dos países de
onde nos veio a civilização e que, portanto, a imaginação dos brasileiros incorpora como parte de
um patrimônio que afinal de contas está nas suas raízes (CANDIDO, 2002, p. 96-97 – grifos do
autor).

Processo de substituição

A substituição é um processo mais profundo do ponto de vista da linguagem e da interpenetração


cultural. Nele, o escritor brasileiro põe de lado a terminologia, as entidades, as situações da literatura
europeia e os substitui por outros, claramente locais, a fim de que desempenhem o mesmo papel.
Por exemplo substituem o cavaleiro pelo índio, o fidalgo pelo fazendeiro, o torneio pela vaquejada,
como se pode ver em O sertanejo, de José de Alencar. Assim, na introdução ao poema “Os timbiras”
o gosto pelas ruínas é substituído pela descrição da aljava rota que pende dos ombros do índio
vencido e vai deixando cair as flechas inúteis, simbolizando o fim da sua sociedade. No mesmo
sentido, o poeta declara que não quer mais se inspirar na fonte Castália nem subir ao Parnaso, mas,
encostado num tronco de palmeira, tenciona traduzir a melodia selvagem dos ventos, que são a voz
de uma outra realidade. Ao fazer isso, não deseja como prêmio a coroa clássica de louros, mas outra,
feita de flores brasileiras, que já mencionamos antes neste escrito. Em tal caso, a situação épica e os
moldes de composição permanecem ajustados à prática das literaturas matrizes, mas os temas e as
imagens foram substituídos, de maneira a produzir uma espécie de duplicação, que corresponde ao
novo mundo natural e cultural (CANDIDO, 20p02, p. 97-99 – grifo do autor).
70

Processo de invenção

Podemos falar em invenção quando o escritor parte do patrimônio europeu para criar variantes
originais, como ocorre num poema de Álvares de Azevedo, “Meu sonho”, no qual ele fecunda o
modelo da balada macabra de tipo alemão (como a “Lenora”, de Bürger), deformando-o a fim de
obter algo diferente. A balada se caracteriza, pelas suas próprias origens populares, por ser uma
narrativa sobre personagens exteriores ao poeta; mas a de Álvares de Azevedo descreve o drama
interior, elaborando imagens que projetam as tensões do ser, de modo a resultar um tipo novo de
composição poética. Essa transformação de um gênero narrativo em gênero intimista pode ser
considerado invenção, que todavia não apaga o laço orgânico em relação às literaturas da Europa,
das quais (nunca é demais repetir quando se fala do Romantismo com a sua forte componente
nativista) a brasileira é um ramo [...] Foi, portanto, por meio de empréstimos ininterruptos que nos
formamos, definimos a nossa diferença relativa e conquistamos consciência própria. Os mecanismos
de adaptação, as maneiras pelas quais as influências foram definidas e incorporadas é que constituem
a “originalidade”, que no caso é a maneira de incluir em contexto novo os elementos que vêm de
outro (CANDIDO, 2002, p. 99-101 – grifos do autor)

No tocante à visão de originalidade, o texto de Antonio Candido se aproxima das


reflexões do ensaísta Silviano Santiago. Estudioso da questão da dependência cultural, Santiago
considera as traduções ou desvios da discursividade europeia, procedidos, laboriosamente, pelos
textos latino-americanos como forma de assinalar a presença de Latino América no acervo
literário ocidental, contribuindo, assim, para o desenvolvimento da arte e da cultura do Ocidente.
Essa posição é expressa, mais particularmente, em seu texto, “O entre-lugar do discurso latino-
americano”, que compõe a obra Uma literatura nos trópicos, publicada em 1978 e reeditada em
2000, no qual Silviano Santiago endossa e defende o trabalho de distinção, executado pelos
nossos escritores:

A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos
conceitos de unidade e de pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado,
perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação
dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. A América Latina institui seu lugar no
mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que
transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo [...] A
passividade reduziria seu papel efetivo ao desaparecimento por analogia. Guardando seu lugar na
segunda fila, é no entanto preciso que assinale sua diferença, marque sua presença, uma presença muitas
vezes de vanguarda. O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro
que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador. Falar, escrever, significa: falar contra,
escrever contra (SANTIAGO, 2000, p. 16-17 – grifos do autor).

Na verdade, longe da passividade, os escritores brasileiros expressam um deliberado


propósito de transgressão ao modelo europeu, acalentando o desejo de uma criação original,
nunca sonhada pela velha literatura de um velho mundo, como acentua José de Alencar (1994,
p. 158). O projeto de afirmação de nossa particularidade expressiva, de nosso gênio, porquanto,
71

passaria, necessariamente, pelo árduo trabalho de tradução ou rearranjo dos textos europeus,
como sinaliza Alencar, ao descrever o trajeto que precedeu à feitura de As asas de um anjo
(1858), sua primeira obra sobre o mundo da cortesã.
Num exercício de releitura dos textos europeus, orientado pela comparação e pela
remodelação do tema teatral francês, Alencar reescreve o destino da mulher decaída, afastando-
se, assim, da mera transposição, desbotada e macilenta do assunto europeu, como acentua o
autor, no “Prólogo” da primeira edição de As asas de um anjo (1859). De esse torcer o molde
europeu, para dar-lhe uma configuração abrasileirada, deriva a diferença entre Carolina,
personagem-cortesã de Alencar, e as suas predecessoras europeias, como abaliza o próprio
autor, ora no Prólogo, ora no artigo jornalístico, publicado, anteriormente, em 22 de junho de
1858, quando da encenação de seu drama, interditada pela polícia graças às “cenas de forte
impacto emocional para a época” (AGUIAR, 1984, p. 114) que o tema da prostituição
provocava:

Assistindo à A Dama das Camélias, ou As Mulheres de Mármore, cada um se figura que Margarida
Gautier e Marco são apenas duas moças um tanto loureiras, e acha espírito em tudo quanto elas
fazem ou dizem; assistindo a As asas de um anjo, o espectador encontra a realidade diante de seus
olhos, e espanta-se sem razão de ver no teatro, sobre a cena, o que vê todos os dias à luz do sol, no
meio da rua, nos passeios e espetáculos (ALENCAR, 1977, p. 254, v. 1).

Victor Hugo poetizou a perdição na sua Marion Delorme; A. Dumas Filho enobreceu-a n’A Dama das
Camélias; eu moralizei-a n’As Asas de um Anjo; o amor, que é poesia de Marion, e a regeneração de
Margarida, é o martírio de Carolina; eis a única diferença, não falando do que diz respeito à arte, que
existe entre aqueles três tipos (ALENCAR, 1977, p. 257, v. 1).

Nessas traduções, de cunho temático e formal, os românticos brasileiros fundam a


literatura nacional, instituindo nosso lugar no acervo ficcional do Ocidente, criando assim um
pequeno mundo, unicamente nosso, em meio aos mundos europeus, como deseja e realiza José
de Alencar, em seu primeiro romance, Cinco Minutos (1856, p. 75). Mais tarde, com o
aparecimento da sociologia, os cientistas sociais brasileiros aderem às perspectivas dos literatos
tornando-se, como estes, artífices e arquitetos dos semblantes da nação brasileira, conforme
concorre o entendimento do sociólogo Octávio Ianni, leitor assíduo de nossa ficcionalidade:
72

É mais do que evidente que a sociologia e a literatura nascem e desenvolvem-se desafiadas, influenciadas
ou fascinadas pela questão nacional. Colaboraram decisivamente na elaboração do mapa da nação,
ajudando a estabelecer o território e a fronteira, a história e a tradição, a língua e os dialetos, a religião e as
seitas, os símbolos e as façanhas, os santos e os heróis, os monumentos e as ruínas [...] a sociedade nacional
é o emblema por excelência de grande parte da produção sociológica [...] São também muitas e notáveis as
narrativas literárias nas quais manifesta-se a preocupação aberta ou implícita, consciente ou inconsciente,
pela questão nacional [...] É provável que a literatura disponha de muitos recursos para lidar com a nação,
com um todo ou em alguns dos seus aspectos (IANNI, 1999, p. 14-16).
73

AUTORES E OBRAS

Uma derradeira observação: vista de modo amplo,


em suas lacunas e realizações, nossa literatura é de
testemunho – em favor dos aspectos positivos da
civilização e de crítica contra a barbárie que o
processo civilizatório ainda leva consigo. Dela
emana um empenho ético, de raiz humanista, que
pode ser objeto de discussão ou de revisão, mas
nunca de renúncia.

Flávio Aguiar
74

AUTORES E OBRAS

Cada povo tem sua literatura


própria, cada homem tem seu
caráter particular, cada árvore
seu fruto específico.

Gonçalves de Magalhães

Não há povo e não há homem


que possa viver sem ela.

Antonio Candido

GONÇALVES DE MAGALHÃES (1811 – 1882)


Domingos José Gonçalves de Magalhães, Visconde de Araguaia.
Obras: Poesias (1832); Suspiros poéticos e saudades (1836); Antônio José (1838); Olgiato (1839); A
Confederação dos Tamoios (1856); Os Mistérios (1858); Fatos do espírito humano (1858); Urânia
(1862); Cânticos fúnebres (1864); Opúsculos históricos e literários (1865); A alma e o cérebro (1876);
Comentários e pensamentos (1880).

Comentário crítico
Gonçalves de Magalhães (1811-82) publicou, retomando Denis, o “Ensaio sobre a história da literatura brasileira”, no qual
traçava o programa renovador, completado pelo do prefácio do livro que publicou no mesmo ano, Suspiros poéticos e
saudades, considerado pelos contemporâneos o ponto de partida da transformação literária e iniciador da literatura
propriamente brasileira. Magalhães foi um caso interessante de renovador sem força renovadora. O seu medíocre livro de
estreia, Poesias (1832), é rotineiramente neoclássico, mas tem o toque nacionalista do tempo: patriotismo aceso e
celebração da liberdade política, banhados na embriaguês da cidadania recente (CANDIDO, 2002, p. 26).

Saudação à pátria à vista do Rio de Janeiro no meu regresso da Europa – em14 de maio de 1837

Eis o pétreo gigante majestoso, Ah nunca, nunca apaixonado amante


Sobre as cerúleas ondas ressupino, Com mais transporte viu por entre a selva
Guardando a entrada do meu pátrio Rio! Brilhar o rosto do querido objeto,
Ei-lo c’o pé assinalando a barra Que ele em seus braços apertar deseja.
Do golfo ingente, que do mundo as naves Aqui meu corpo está, ali minha alma!
Todas pode conter no âmbito imenso, Ah seu eu asas tivesse,
Sem par na Natureza!... Nem mais um’hora no baixel ficara!
Ei-lo!... do sol nascente os primos raios Deixando os mares
Já lhe douram a nobre, altiva fronte; Precipitado,
E ele como que acorda do seu sono, Rompendo os ares
O cobertor de névoa sacudindo! Qual veloz águia
Terras da minha pátria, eu vos saúdo, A ti voara,
Depois de longa ausência! Oh pátria cara!
Eu te saúdo, oh sol da minha infância! E apavonado,
Inda brilhar te vejo nestes climas, Todo garboso
Da Providência esmero, Soltando iria
Onde se apraz a amiga liberdade Nova harmonia,
Tão grata aos corações americanos! Que o céu formoso
Minha terra saudosa, Grato escutara.
Terra de minha mãe, como és tão bela. Mas nesse adejo,
Se em ti não venho achar da Europa o fausto, Onde o desejo
Pelo suor dos séculos regado, Me transportara?
75

Continuação...

Também não acharei suas misérias, Onde?... Eu não sinto


Maiores que o seu brilho. Presságio triste.
Verdes montanhas que cercais meu berço, Meu pai existe,
Como sublime sois, como sois grande! E a mãe querida
Também respira;
Por vós são estas lágrimas de júbilo E o mesmo instinto
Que em êxtase minha alma aos olhos manda, Me conduzira
Ao respirar teus ares! Ao tugúrio de meus pais,
Por vós agora o coração palpita A quem envio meus ais.
Com desusado impulso
Do inefável prazer em que me inundo.

(MAGALHÃES, 1985, p. 17-19)

Noite tempestuosa (1862)

Que tempo horrível; Eu neste leito, Aqui sozinho,


Que noite escura; À dor exposto, Para animar-me
Nem uma estrela Somente choro Contigo todo
No céu fulgura! Por ver teu rosto. Quero ocupar-me.
Negros vapores Tudo mereces, A tua imagem
Vão se estendendo, Oh minha bela; Ante mim vaga
E o espaço enchendo; Tu és a estrela Ela me afaga;
Na serra ao longe Que só procuro E co’um sorriso
Ronca o trovão. Constante ver. Me faz sorrir.

Fuzis cintilam; Chovesse embora, Teu doce nome


E o vento irado Não me importara; Pronunciando,
Nas trevas zune A chuva, o vento, Meu sofrimento
Desenfreado. Tudo afrontara. Vou acalmando.
Espessas nuvens, Nem fora muito, O que mais sinto
Que no ar negrejam, Se a dor cruenta, É a inclemência
Rotas gotejam Que me atormenta, Da dura ausência,
Pertinaz chuva, Não fosse assídua Que sem remédio
Que alaga o chão. Em seu rigor. Devo sentir.

Noite mais negra Mas ah! não posso,


Minha alma enluta; Não posso erguer-me!
Maior tormenta Manda suspiro
Cá dentro luta. Que venha ver-me.
O quadro horrendo Por ti mandado
Da Natureza Esse suspiro
Mal a fereza Ao meu retiro
Exprimir pode Daria alívio
Do meu sofrer. À minha dor.

(MAGALHÃES, 1985, p. 19-21)


76

GONÇALVES DIAS (1823 – 1864)


Obras: Meditação (1845-6); Primeiros cantos (1846); Segundos cantos e Sextilhas de Frei Antão
(1848); Últimos cantos (1851); O Brasil e Oceania (1852); Cantos (1857); Os timbiras (1857);
Dicionário da língua tupi (1858).

Comentário crítico
Gonçalves Dias se destaca no medíocre panorama da primeira fase romântica pelas qualidades superiores de inspiração e
consciência artística. Contribui ao lado de José de Alencar para dar à literatura, no Brasil, uma categoria perdida desde os
árcades maiores e, ao modo de Cláudio Manuel, fornece aos sucessores o molde, o padrão a que se referem como inspiração
e exemplo [...] A “Canção do Exílio” (banalizada a ponto de perder a magia que no entanto a percorre de ponta a ponta)
representa bem o seu ideal literário; beleza na simplicidade, fuga ao adjetivo, procura da expressão de tal maneira justa
que outra seria difícil [...] A maioria dos poetas e mesmos jornalistas considerava Gonçalves Dias, desde meados do
século, como o verdadeiro criador da literatura nacional. Em 1849, Álvares de Azevedo via nele a fonte de inspiração para
os novos e, por meio do “livro renovador, Os Primeiros Cantos”, regenerador da “rica poesia nacional de Basílio da Gama
e Durão” (CANDIDO, 1993, p. 71, v. 2 – grifo do autor).

Leito de folhas verdes (1851)

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo A flor que desabrocha ao romper d'alva
À voz do meu amor moves teus passos? Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Da noite a viração, movendo as folhas, Eu sou aquela flor que espero ainda
Já nos cimos do bosque rumoreja. Doce raio do sol que me dê vida.

Eu sob a copa da mangueira altiva Sejam vales ou montes, lago ou terra,


Nosso leito gentil cobri zelosa Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,

Com mimoso tapiz de folhas brandas, Vai seguindo após ti meu pensamento;
Onde o frouxo luar brinca entre flores. Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, Meus olhos outros olhos nunca viram,
Já solta o bogari mais doce aroma! Não sentiram meus lábios outros lábios,
Como prece de amor, como estas preces, Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
No silêncio da noite o bosque exala. A arazóia na cinta me apertaram.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas, Do tamarindo a flor jaz entreaberta,


Correm perfumes no correr da brisa, Já solta o bogari mais doce aroma
A cujo influxo mágico respira-se Também meu coração, como estas flores,
Um quebranto de amor, melhor que a vida! Melhor perfume ao pé da noite exala!

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes


À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!

(DIAS, [1990?], p. 75)


77

ÁLVARES DE AZEVEDO (1831 – 1852)


Obras: Lira dos vinte anos (1853); Noite na taverna (1855); O Conde Lopo (1886).

Comentário crítico
Álvares de Azevedo foi um dos poetas mais lidos e queridos do Brasil, enquanto estiveram em voga as cadências
melodiosas, o tom sentimental ou satânico e o entrechoque abrupto das paixões, peculiares ao Romantismo [...] Boa parte
de suas poesias se refere à noite, onde decorrem todas as suas narrativas e ações dramáticas, – seja ao relento, seja nos
interiores que vão da sordidez dos d’A noite na taverna e da pobre estalagem do Macário, aos salões luxuosos d’O livro
de Fra Gondicário e os ambientes de opulenta orgia d’O Conde Lopo [...] É também a hora do sonho e do pesadelo, como
em Macário, “Meu sonho” e na visão macabra do Conde Lopo galopando entre esqueletos, a caminho de um ritual
pavoroso (CANDIDO, 2002, p. 9-13).

Meu sonho (Terceira parte da Lira dos vinte anos – 1853)

EU

Cavaleiro das armas escuras, Tu escutas... Na longa montanha


Onde vais pelas trevas impuras Um tropel teu galope acompanha?
Com a espada sanguenta na mão? E um clamor de vingança retumba?
Por que brilham teus olhos ardentes Cavaleiro, quem és? – que mistério,
E gemidos nos lábios frementes Quem te força da morte no império
Vertem fogo do teu coração? Pela noite assombrada a vagar?

Cavaleiro, quem és? o remorso? O FANTASMA


Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através... Sou o sonho de tua esperança,
Oh! da estrada acordando as poeiras Tua febre que nunca descansa,
Não escutas gritar as caveiras O delírio que te há de matar!...
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras, (AZEVEDO, 2002, p. 88-89)


Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...

Dinheiro (Segunda parte da Lira dos vinte anos – 1853)

Sem ele não há cova – quem enterra Fora a canalha de vazios bolsos!
Assim grátis, a Deo? O batizado O mundo é para todos... Certamente
Também custa dinheiro. Quem namora Assim o disse Deus – mas esse texto
Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio? Explica-se melhor e doutro modo.
Demais, as Danaes também o adoram, Houve um erro de imprensa no Evangelho:
Quem imprime seus versos, quem passeia, O mundo é um festim, concordo nisso,
Quem sobe a Deputado, até Ministro, Mas não entra ninguém sem ter as louras.
Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,
Embora gênio, talentosa fronte,
Alma Romana, se não tem dinheiro? (AZEVEDO, 2002, p. 82)
78

JUNQUEIRA FREIRE (1832 – 1855)


Obras: Inspirações do claustro (1855); Poesias completas (1944).

Comentário crítico
Em Junqueira Freire é precisamente esse convívio tenso entre eros e thanatos que sela a personalidade do religioso e do
artista malogrado. “Contrário a si mesmo, cantando por aspirações opostas, aparece-nos o homem atrás do poeta”, dele
disse Machado de Assis; e nessas palavras ia um elogio, mas também uma restrição. Louvor à sinceridade com que se
projetou no verso o drama do individuo atado a uma falsa vocação; crítica ao modo de ser dessa poesia, que, toda centrada
no eu do emissor, não encontrou o correlato da invenção formal [...] Inspirações do Claustro podemos ler como um
documento pungente de um moço enfermiço dividido entre a sensualidade, os terrores da culpa e os ideais religiosos, mas
não como uma obra de poesia (BOSI, 1980, p. 124-125 – grifos do autor):

Martírio (1855)

Beijar-te a fronte linda: Sentir que me resguardas:


Beijar-te o aspecto altivo: Sentir que me arreceias:
Beijar-te a tez morena: Sentir que me repugnas:
Beijar-te o rir lascivo: Sentir que até me odeias:

Beijar-te o ar que aspiras: Eis a descrença e a crença,


Beijar-te o pó que pisas: Eis o absinto e a flor,
Beijar-te a voz que soltas: Eis o amor e o ódio,
Beijar-te a luz que visas: Eis o prazer e a dor!

Sentir teus modos frios: Eis o estertor de morte,


Sentir tua apatia: Eis o martírio eterno,
Sentir até repúdio: Eis o ranger dos dentes,
Sentir essa ironia: Eis o penar do inferno!

(FREIRE, 2000, p. 190)

Morte (185? – fragmentos)

Pensamento gentil de paz eterna, Amei-te sempre: – e pertencer-te quero


Amiga morte, vem. Tu és o termo Para sempre também, amiga morte.
De dous fantasmas que a existência formam, Quero o chão, quero a terra – esse elemento:
– Dessa alma vã e desse corpo enfermo. Que não se sente dos vaivéns da sorte.

Pensamento gentil de paz eterna, .....................................................................


Amiga morte, vem. Tu és o nada, Por isso, ó morte, eu amo-te e não temo:
Tu és a ausência das moções da vida, Por isso, ó morte, eu quero-te comigo.
Do prazer que nos custa a dor passada. Leva-me à região da paz horrenda,
Leva-me ao nada, leva-me contigo.
Pensamento gentil de paz eterna,
Amiga morte, vem. Tu és apenas
A visão mais real das que nos cercam, (FREIRE, 2000, p. 193-195)
Que nos extingues as visões terrenas.
...............................................................
79

CASIMIRO DE ABREU (1839 – 1860)


Obras: Camões e o Jaú (1856); As Primaveras (1859); Obras Completas (1940); Poesias Completas
(1948).

Comentário crítico
Ainda na linha de compreensão do público médio é que se deve apreciar a popularidade de Casimiro de Abreu, que operou
uma descida de tom em relação à poesia de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Junqueira Freire. Na verdade pouco
deferiria destes se o critério de comparação se esgotasse na escolha dos temas, valorizados em si mesmos: a saudade da
infância, o amor à natureza, os fogachos de adolescente, a religião sentimental, o patriotismo difuso. Mas o que singulariza
o poeta é o modo de compor, que remonta, em última análise, ao seu modo de conhecer a realidade na linguagem e pela
linguagem. Casimiro reduzia a natureza e o próximo a um ângulo visual menor: o do seu temperamento sensual e
menineiro que o aproxima bastante dos literatos fluminenses coevos, do tipo de Laurindo Rabêlo e Joaquim Manuel de
Macedo. Ele adelgaça a expressão dos afetos, tão ardentes em Gonçalves Dias, tão apaixonados em Álvares de Azevedo
(BOSI, 1980, p.127 – grifos do autor).

Minha Terra (1856 – fragmentos)

Minha terra tem palmeiras


Onde canta o sabiá.
G. Dias.

Todos cantam sua terra, Foi ali que noutro tempo


Também vou cantar a minha; À sombra do cajazeiro
Nas débeis cordas da lira Soltava seus doces carmes
Hei de fazê-la rainha. O Petrarca brasileiro;
– Hei de dar-lhe a realeza E a bela que o escutava
Nesse trono de beleza Um sorriso deslizava
Em que a mão da natureza Para o bardo que pulsava
Esmerou-se em quanto tinha. Seu alaúde fagueiro.

Correi pras bandas do sul; Quando Dirceu e Marília


Debaixo dum céu de anil Em terníssimos enleios
Encontrareis o gigante Se beijavam com ternura
Santa Cruz, hoje Brasil: Em celestes devaneios
– É uma terra de esplendores, Da selva o vate inspirado,
Alcatifada de flores, O sabiá namorado,
Onde a brisa fala amores Na laranjeira pousado
Nas belas tardes de abril. Soltava ternos gorjeios.

Tem tantas belezas, tantas, Foi ali, foi no Ipiranga,


A minha terra natal, Que com toda a majestade
Que nem as sonha um poeta Rompeu de lábios augustos
E nem as canta um mortal! O brado da liberdade;
– É uma terra encantada, Aquela voz soberana
– Mimoso jardim de fada – Voou na plaga indiana
Do mundo todo invejada, Desde o palácio à choupana,
Que o mundo não tem igual, Desde a floresta à cidade!
80

Continuação...

Não, não tem, que Deus fadou-a Um povo ergueu-se cantando


Dentre todas – a primeira: – Mancebos e anciãos –
Deu-lhe esses campos bordados, E, filhos da mesma terra,
Deu-lhe os leques da palmeira, Alegres deram-se as mãos;
E a borboleta que adeja Foi belo ver esse povo
Sobre as flores que ela beija, Em suas glórias tão novo,
Quando o vento rumoreja Bradando cheio de fogo:
Na folhagem da mangueira. – Portugal! somos irmãos!

É um país majestoso Quando nasci, esse brado


Essa terra de Tupá, Já não soava na serra,
Desde o Amazonas ao Prata, Nem os ecos da montanha
Do Rio Grande ao Pará! Ao longe diziam – guerra!
– Tem serranias gigantes Mas não sei o que sentia
E tem bosques verdejantes, Quando, a sós, eu repetia
Que repetem incessantes Cheio de nobre ousadia
Os cantos do sabiá. O nome da minha terra!

Ao lado da cachoeira, Se brasileiro eu nasci,


Que se despenha fremente, Brasileiro hei morrer,
Dos galhos da sapucaia Que um filho daquelas matas
Nas horas do sol ardente, Ama o céu que o viu nascer;
Sobre um solo d’açucenas, Chora, sim, porque tem prantos
Suspensa a rede de penas E são sentidos e santos
Ali nas tardes amenas Se choram pelos encantos
Se embala o índio indolente. Que nunca mais há de ver.
.............................................
(ABREU, 1980?, p. 11-14)

Minha mãe (1855)

Oh! l’amour d’une mère! amour que nul n’oublie.


V. Hugo

Da pátria formosa distante saudoso, De noite, alta noite, quando eu já dormia


Chorando e gemendo meus cantos de dor, Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,
Eu guardo no peito a imagem querida Quem é que meus lábios dormentes roçava,
Do mais verdadeiro, do mais santo amor: Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?
– Minha Mãe! – – Minha Mãe! –

Nas horas caladas das noites de estio Feliz o bom filho que pode contente
Sentado sozinho co’a face na mão, Na casa paterna de noite e de dia
Eu choro e soluço por quem me chamava Sentir as carícias do anjo de amores,
– “Ó filho querido do meu coração!” – Da estrela brilhante que a vida nos guia!
– Minha Mãe! – – Minha Mãe! –

No berço, pendente dos ramos floridos, Por isso eu agora na terra do exílio,
Em que eu pequenino feliz dormitava: Sentado sozinho co’a face na mão,
Quem é que esse berço com todo cuidado Suspiro e soluço por quem me chamava:
Cantando cantigas alegres embalava? – “Ó filho querido do meu coração!” –
– Minha Mãe! – – Minha Mãe! –

(ABREU, 1980?, p. 16-17)


81

Amor e medo (1858)

Quando eu te fujo e me desvio cauto Ai! se eu te visse, Madalena pura,


Da luz de fogo que te cerca, ó bela, Sobre o veludo reclinada a meio,
Contigo dizes, suspirando amores: Olhos cerrados na volúpia doce,
“ – Meu Deus, que gelo, que frieza aquela!” Os braços frouxos – palpitante o seio!...

Como te enganas! meu amor é chama, Ai! se eu te visse em languidez sublime,


Que se alimenta no voraz segredo, Na face as rosas virginais do pejo,
E se te fujo é que te adoro louco... Trêmula a fala, a protestar baixinho...
És bela – eu moço; tens amor, eu – Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
[medo!...

Tenho medo de mim, de ti, de tudo, Diz: – que seria da pureza de anjo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes, Das vestes alvas, do candor das asas?
Das folhas secas, do chorar das fontes, – Tu te queimaras, a pisar descalça,
Das horas longas a correr velozes. – Criança louca – sobre um chão de
[brasas!

O véu da noite me atormenta em dores, No fogo vivo eu me abrasara inteiro!


A luz da aurora me intumesce os seios, Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
E ao vento fresco do cair das tardes Vil, machucara com meu dedo impuro
Eu me estremeço de cruéis receios. As pobres flores da grinalda virgem!

É que esse vento que na várzea – ao longe, Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Do colmo o fumo caprichoso ondeia, Toda a inocência que teu lábio encerra,
Soprando um dia tornaria incêndio E tu serias no lascivo abraço,
A chama viva que teu riso ateia! Anjo enlodado nos pauis da terra.

Ai! se abrasado crepitasse o cedro, Depois... desperta no febril delírio,


Cedendo ao raio que a tormenta envia, – Olhos pisados – como um vão lamento,
Diz: – que seria da plantinha humilde, Tu perguntaras: – que é da minha c’roa?...
Que à sombra dele tão feliz crescia? Eu te diria: desfolhou-a o vento!...

A labareda que se enrosca ao tronco Oh! não me chames coração de gelo!


Torrara a planta qual queimara o galho, Bem vês; traí-me no fatal segredo.
E a pobre nunca reviver pudera, Se de ti fujo é que te adoro e muito,
Chovesse embora paternal orvalho! És bela – eu moço; tens amor, eu –
[medo!...

Ai! se eu te visse no calor da sesta,


A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco, (ABREU, 1980?, p. 80-81)
Soltos cabelos nas espáduas nuas!...
82

SOUSÂNDRADE (1833 – 1902)


Obras: Harpas selvagens (1857); O Guesa (1871)

Comentário crítico
A poesia brasileira, em pelo menos três momentos, representa os centros financeiros como o local infernal e a fonte de
seus males, inclusive os da poesia. A mais contundente e direta é o canto X, “Inferno de Wall Estreet”, de 1877/1888, do
grande poema “O Guesa”, de Sousândrade, poeta maranhense [...] O que torna o canto mais surpreendente é a intenção
crítico-satírica, ou seja, o modo pelo qual julga a cidade de Nova York, um centro próspero equivalente às mais modernas
capitais europeias. O poeta, em vez de se embasbacar com as maravilhas da técnica e da vida moderna, o que seria o mais
provável – como acontece com D. Pedro II e sua comitiva, que, na época, visita a Exposição do Centenário da
Independência dos Estados Unidos –, ele faz uma crítica aguda da vida americana e que vai bem além da moralista.
Sousândrade aprecia os movimentos de subida e decida das Bolsas e como, com eles, as riquezas se formam e se desfazem.
Ao mesmo tempo, observa como os valores morais e espirituais acompanham esses movimentos, mas somente em trajeto
de descendimento e corrosão, sem que conheçam uma contrapartida ascendente, como os duplos e compensatórios da
circulação da riqueza material. A imagem que o poeta cria da cidade é a do lugar onde os negócios (e como resultados de
seus próprios movimentos) se misturam com a prostituição, a fraude, os vícios, a idolatria, a hipocrisia. Aí tudo se mescla,
o alto e o baixo, o sublime e o grotesco, o belo e o horrível, o espírito e o corpo, mas sempre em detrimento dos primeiros,
pois, nesses contatos e aproximações promíscuas, tudo se vilipendia e nada se regenera [...] Os valores da racionalidade
econômica, obter o máximo de ganho com o mínimo de recursos, regem seu estilo telegráfico, desarticulado, truncado e
rápido, como o do jornal, das revistas e dos meios de publicidade. (RONCARI, 2007, p. 271-272)

Canto X de O Guesa (1873-188?)

No dia de bons anos a lady nobre, Gelada a terra, o ar vivo, o sol brilhante,
Recamados drawingrooms deslumbrantes Aos lagos, que ondas foram sonorosas
Às recepções, radiosa de brilhantes, De margens d’ecos, o rapaz e as rosas,
Deusa o colo alvo e cândido descobre Vêm ao baile do gelo: delirante,
A que adornos desmaiam. Suntuosos, Envolta em vestes de veludos quentes,
Bufetes e o bouquet. Sorrindo a miss A menina, nos pés, viveza e graça,
No adorável serviço de meiguice, O aro prendendo dos patins luzentes,
Que não dos escanções silenciosos, Letras sobre o cristal girando traça.
Linda oferece a mãozinha branca, A Bíblia da família à noite é lida;
Dizem que beberagem para amor – Aos sons do piano os hinos entoados,
Porém sorrindo of’rece, ingênua e franca, E a paz e o chefe da nação querida
O ponche de champanha abrasador. São na prosperidade abençoados.
Entanto às hops não sendo, das montanhas, – Mas no outro dia cedo a praça, o stock,
Sem dúvida que é este o mais propício Sempre acesas crateras do negócio,
Risonho dia ao doce compromisso O assassínio, o audaz roubo, o divórcio,
Do coração, que o filtro tal se assanha: Ao smart Yankee astuto, abre New York.
São callers os papás; nem os consente ...................................................................
Boa etiqueta em casa; e o soberano
Cetro tem-no a mulher – Quão docemente
Alvora o dia que é primeiro do ano!

(SOUSÂNDRADE, 2002, p. 245-246 – grifos do autor)


83

O inferno de Wall Street (1877 – fragmentos)

(Freeloves meditando nas free-burglars belas artes:)

– Roma, começou pelo roubo;


New York, rouba a nunca acabar,
O Rio, antropófago;
= Ofiófago
Newark... tudo de pernas pra o ar...

(W. Childs, A.M. elegiando sobre o filho de Sarah Stevens:)


– Por sobre o fraco a morte esvoaça...
Chicago em chama, em chama Boston,
De amor Hell-Gate é esta frol...
Que John Caracol,
Chuva e sol,
Gil-engendra em gil rouxinol...
Civilização... ão!... Court-hall!

(Fletcher historiando com chaves de São Pedro e pedras de São Paulo:)

– Brasil, é braseiro de rosas;


A União, estados de amor:
Floral... sub espinhos
Daninhos;
Espinhal... sub flor e mais flor.
.............................................................................

(Longfellow queixando-se; trio dos pais:)

– Dói! dói! dói a perversidade


Com que às filhas de nosso amor
O mundo denigra!
= S’emigra
Para o inferno uivando de dor

(Octogenário Bryant trabalhando:)

– Que bem que descantam as gralhas,


Jeová! Jeová! Ku-Klux
Criando outros mundos
Profundos,
Fazem as trevas... da luz!
..............................................................................

(SOUSÂNDADE, 2002, p. 360-363 – grifos do autor)


84

FAGUNDES VARELA (1841 – 1875)


Obras: Noturnas (1861); O estandarte auriverde (1863); Vozes da América (1864); Cantos e fantasias
(1865); Cantos meridionais (1869); Cantos do ermo e da cidade (1869), Anchieta ou O evangelista da
selva (1875); Cantos religiosos (1878); Diário de Lázaro (1880).

Comentário crítico
Mas o epígono por excelência, o maior dentre os menores poetas saídos das Arcadas paulistas, foi, sem dúvida, Fagundes
Varela, o único nome de relevo na poesia da década de 60 [...] Seria fácil rastrear em sua produção descurada e prolixa
sugestões e mesmo decalques de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu. Explorou todos os temas
românticos, não excetuado o do índio que, na altura do Evangelho nas Selvas, redigido entre 1870 e 1875, já não figurava
com fonte de inspiração em nossas letras. Por outro lado, Varela foi, mais que os seus modelos, sensível à lira patriótica
de filiação liberal [...] Um lugar à parte na sua produção, pela constância do fôlego, ocupa o “Cântico do Calvário”, escrito
em memória do filho. Nessa bela elegia em versos brancos Varela redime-se da sensação de já lido com que o marcara a
secura do crítico (BOSI, 1980, p. 129-131 – grifos do autor).

Cântico do calvário (1865 – fragmentos)

Eras na vida a pomba predileta Que refletia os fugitivos quadros


Que sobre um mar de angústias conduzia Dos suspirados tempos que se foram!
O ramo da esperança!... eras a estrela Não mais perdido em vaporosas cismas
Que entre as névoas do inverno cintilava Escutarei ao pôr-do-sol, nas serras,
Apontando o caminho ao pegureiro!... Vibrar a trompa sonorosa e leda
Eras a messe de um dourado estio!... Do caçador que aos lares se recolhe!
Eras o idílio de um amor sublime!... Não mais! A areia tem corrido, e o livro
Eras a glória, a inspiração, a pátria, De minha infanda história está completo.
O porvir de teu pai! – Ah! no entanto, Pouco tenho que andar! Um passo ainda,
Pomba – varou-te a flecha do destino! E o fruto de meus dias, negro, podre,
Astro – engoliu-te o temporal do norte! Do galho eivado rolará por terra!
Teto – caíste! Crença – já não vives! Ainda um treno! e o vendaval sem freio
Correi, correi, ó lágrimas saudosas, Ao soprar quebrará a última fibra
Legado acerbo da ventura extinta, Da lira infausta que nas mãos sustenho!
Dúbios archotes que a tremer clareiam Tornei-me o eco das tristezas todas
A lousa fria de um sonhar que é morto! Que entre os homens achei! o lago escuro
Correi! Um dia vos verei mais belas Onde ao clarão dos fogos da tormenta
Que os diamantes de Ofir e de Golconda (sic) Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Fulgurar na coroa de martírios Por toda a parte em que arrastei meu manto
Que me circunda a fronte cismadora! Deixei um traço fundo de agonia!...
São mortos para mim da noite os fachos, .....................................................................
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
E à vossa luz caminharei nos ermos!
Estrelas do sofrer, gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! sede benditas!
O’filho de minh'alma! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!
Quando as garças vierem do ocidente,
Buscando um novo clima onde pousarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos! (VARELA, 1988, p. 96-97)
Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
85

MARIA FIRMINA DOS REIS (1825 – 1917)


Professora, romancista, poeta, contista, compositora e abolicionista, Maria Firmina dos Reis é
considerada, por inúmeros críticos, como a primeira romancista brasileira e, de maneira unânime,
como a precursora dos escritos antiescravistas no Brasil.
Obras: Úrsula (1859); Gupeva (1861); Cantos à beira-mar (1871); A escrava (1887); Hino da
libertação dos escravos [letra e música], (1888).

Comentário crítico
Ao antecipar o Castro Alves poeta dos escravos (cuja produção vai de 1876 a 1883), o Joaquim Manoel de Macedo de
Vítimas-algozes (1869) e o Bernardo Guimarães da virtuosa Escrava Isaura (1875), para ficarmos na literatura
antiescravista mais conhecida, Maria Firmina dos Reis desconstrói não apenas a primazia do abolicionismo branco,
masculino e senhorial [...] Ao estabelecer uma diferença discursiva que contrasta em profundidade com o abolicionismo
hegemônico na literatura brasileira de seu tempo, a autora constrói para si mesma um outro lugar: o da literatura afro-
brasileira [...] Texto fundador, Úrsula polemiza com a tese segundo a qual nos falta um “romance negro”, pois apesar de
centrado nas vicissitudes da heroína branca, pela primeira vez em nossa literatura, tem-se uma narrativa da escravidão
conduzida por um ponto de vista interno e por uma perspectiva afrodescendente. Assim, o romance da escritora
maranhense vem fazer companhia às Trovas burlescas de Luiz Gama, também de 1859, no momento inaugural em que os
remanescentes de escravos querem tomar com as mãos o sonho de, através da literatura, construir um país sem opressão
(DUARTE, 2009, p. 277-278 – grifos do autor).

Úrsula (1859 – fragmentos)

Liberdade! liberdade... ah! eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura –
Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu.
Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer
a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias, e aí
com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração,
divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias d’aquelas vastas praias.
Ah! meu filho! [...] Vou te contar o meu cativeiro. Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e
o inhame e o mendubim eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza
parece entregar-se toda a brandos folgares [...] entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim,
eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão
incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência
semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher
milho. Ah! nunca mais devia eu vê-la... Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando
um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente, que aí me
aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era
uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade:
os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer,
julguei morrer, mas não me foi possível... A sorte me reservava ainda longos combates. Quando me
arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! meu
Deus! o que passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!... Meteram-me a mim e a
mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio.
Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos
nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão
fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais
ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água
imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso
lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas
humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência (REIS, p. 115-117 –
grifos da autora).
86

LUIZ GAMA (1830 – 1882)


Poeta revolucionário, Luiz Gonzaga Pinto da Gama lutou contra a escravidão e tudo o que a ela estava
associado, Luiz Gama é considerado o precursor de Castro Alves. No campo de sua atuação jurídica,
ficou famoso pela frase, “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em
legítima defesa” (GAMA apud BENEDITO, 2006, p. 5).
Obras: Primeiras trovas burlescas de Getulino (1859).

Comentário crítico
A mãe de Gama foi a legendária nagô Luíza Mahin, e seu pai um fidalgo de origem portuguesa cujo nome não se conhece.
Segundo consta, Luiz Gama, em criança, foi vendido pelo próprio pai. Anos mais tarde, conseguiu provar a ilegalidade de
sua situação de escravo, uma vez que filho de mãe livre, e obteve a liberdade. Tanto Gama quanto Patrocínio foram
essencialmente autodidatas e militaram brilhantemente em favor da abolição [...] Mas o texto realmente famoso de Luiz
Gama chama-se “Quem sou eu?”, sendo mais conhecido como “A bodarrada”. Neste poema satírico de 138 versos, Gama
brinca com as diversas acepções populares da palavra “bode”. Na gíria brasileira, “bode” é mestiço, mulato. É também
indivíduo libidinoso, sátiro. Além disso, o bode “berra”, perturba o sossego – exatamente o que o autor pretende fazer com
seu poema. Sem alusões a fatos de sua vida pessoal, Gama define-se como homem e como poeta e, a par disso, denuncia
ferinamente a hipocrisia e os vícios reinantes [...] A galhofa torna-se verrina e o poema ganha em seriedade: Gama põe o
dedo em fundas chagas sociais, associando o poderio econômico ao comércio e à exploração escravista [...]
Simultaneamente jocoso e cáustico, trazendo à lembrança Gregório de Matos, o final do poema assume um tom lúdico
numa atitude que hoje chamaríamos de “carnavalizadora” (GOMES, 1988, p. 85-91 – grifos da autora).

Quem sou eu? (A bodarrada – 1859)


Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrita
Esta palavra – "Ninguém!" –

Augusto Emílio Zaluar

Amo o pobre, deixo o rico, E só acha horrendo crime Deputados, senadores,


Vivo como o Tico-tico; No mendigo, que deprime. Gentis-homens, vereadores;
Não me envolvo em torvelinho, – Neste dou com dupla força. Belas Damas emproadas,
Vivo só no meu cantinho: Té que a manha perca ou torça. De nobreza empantufadas;
Da grandeza sempre longe Fujo às léguas do lojista, Repimpados principotes,
Como vive o pobre monge. Do beato e do sacrista – Orgulhosos fidalgotes,
Tenho mui poucos amigos, Crocodilos disfarçados, Frades, Bispos, Cardeais,
Porém bons, que são antigos, Que se fazem muito honrados Fanfarrões imperiais,
Fujo sempre à hipocrisia, Mas que, tendo ocasião, Gentes pobres, nobres gentes
À sandice, à fidalguia; São mais feros que o Leão. Em todos há meus parentes.
Das manadas de Barões? Fujo ao cego lisonjeiro, Entre a brava militança –
Anjo Bento, antes trovões. Que, qual ramo de salgueiro, Fulge e brilha alta bodança;
Faço versos, não sou vate, Maleável, sem firmeza, Guardas, Cabos, Furriéis,
Digo muito disparate, Vive à lei da natureza; Brigadeiros, Coronéis,
Mas só rendo obediência Que, conforme sopra o vento, Destemidos Marechais,
À virtude, à inteligência: Dá mil voltas num momento. Rutilantes Generais,
Eis aqui o Getulino O que sou, e como penso, Capitães de mar-e-guerra,
Que no plectro anda mofino. Aqui vai com todo o senso, – Tudo marra, tudo berra –
Sei que é louco e que é pateta Posto que já veja irados Na suprema eternidade,
Quem se mete a ser poeta; Muitos lorpas enfunados, Onde habita a Divindade,
Que no século das luzes, Vomitando maldições, Bodes há santificados,
Os birbantes mais lapuzes, Contra as minhas reflexões. Que por nós são adorados.
Compram negros e comendas, Eu bem sei que sou qual Grilo, Entre o coro dos Anjinhos
Têm brasões, não – das Calendas, De maçante e mau estilo; Também há muitos bodinhos. –
87

Continuação…

E com tretas e com furtos E que os homens poderosos O amante de Siringa


Vão subindo a passos curtos; Desta arenga receosos Tinha pêlo e má catinga;
Fazem grossa pepineira, Hão de chamar-me tarelo, O deus Mendes, pelas costas,
Só pela arte do Vieira, Bode, negro, Mongibelo; Na cabeça tinha pontas;
E com jeito e proteções, Porém eu que não me abalo, Jove quando foi menino,
Galgam altas posições! Vou tangendo o meu badalo Chupitou leite caprino;
Mas eu sempre vigiando Com repique impertinente, E, segundo o antigo mito,
Nessa súcia vou malhando Pondo a trote muita gente. Também Fauno foi cabrito.
De tratante, bem ou mal, Se negro sou, ou sou bode Nos domínios de Plutão,
Com semblante festival. Pouco importa. O que isto pode? Guarda um bode o Alcorão;
Dou de rijo no pedante Bodes há de toda casta, Nos lundus e nas modinhas
De pílulas fabricante, Pois que a espécie é muito vasta... São cantadas as bodinhas:
Que blasona arte divina, Há cinzentos, há rajados, Pois se todos têm rabicho,
Com sulfatos de quinina, Baios, pampas e malhados, Para que tanto capricho?
Trabuzanas, xaropadas, Bodes negros, bodes brancos, Haja paz, haja alegria,
E mil outras patacoadas, E, sejamos todos francos, Folgue e brinque a bodaria;
Que, sem pingo de rubor, Uns plebeus, e outros nobres, Cesse pois a matinada,
Diz a todos, que é DOUTOR! Bodes ricos, bodes pobres, Porque tudo é bodarrada! –
Não tolero o magistrado, Bodes sábios, importantes,
Que do brio descuidado, E também alguns tratantes... (GAMA, 1944, p. 55-58)
Vende a lei, trai a justiça, Aqui, nesta boa terra,
– Faz a todos injustiça – Marram todos, tudo berra;
Com rigor deprime o pobre Nobres Condes e Duquesas,
Presta abrigo ao rico, ao nobre, Ricas Damas e Marquesas

CASTRO ALVES (1847-1871)


Obras: Espumas flutuantes (1870); Gonzaga ou a Revolução de Minas (1875); A cachoeira de Paulo
Afonso (1876); Os escravos (1883).

Comentário crítico
Castro Alves (1847-71), em cuja obra a poesia do Romantismo encontrou o fecho brilhante, pois em seguida só se produziu
coisa de segunda e terceira ordem [...] era dotado do que se chamava naquele tempo de “inspiração generosa”, isto é,
facilidade torrencial de composição, associada à prodigiosa concatenação verbal dos improvisadores [...] Com ele rompe-
se o masoquismo lamuriento que estava na moda até então, e nos seus poemas os sentimentos parecem um ato de afirmação
vital. Tanto mais quanto tinha a capacidade de inventar metáforas expressivas e dinamizar o verso por meio do contraste
e da antítese, empregados ao gosto de Victor Hugo [...] A sua fama foi devida sobretudo à poesia humanitária e social.
Deixando de lado o índio, voltou-se para o negro e tornou- se o poeta dos escravos, com uma generosidade e um ânimo
libertário que fizeram da sua obra uma força nos movimentos abolicionistas. Com ele o escravo se tornou assunto nobre
da literatura e o seu generoso ânimo poético soube criar para cantá-lo situações e versos de grande eficácia, como se vê
em “O navio negreiro”, no qual usa diversos metros e organiza a narrativa com expressivo senso de movimento
(CANDIDO, 2002, p. 73-75 – grifos do autor).
88

O Navio Negreiro (1868 – fragmentos)

’Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Brinca o luar – dourada borboleta; Que música suave ao longe soa!
E as vagas após ele correm... cansam Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Como turba de infantes inquieta. Pelas vagas sem fim boiando à toa!

’Stamos em pleno mar... Do firmamento Homens do mar! O’ rudes marinheiros,


Os astros saltam como espumas de ouro... Tostados pelo sol dos quatro mundos!
O mar em troca acende as ardentias, Crianças que a procela acalentara
– Constelações do líquido tesouro... No berço destes pélagos profundos!

’Stamos em pleno mar... Dois infinitos Esperai!... esperai!... deixai que eu beba
Ali se estreitam, n’um abraço insano Esta selvagem, livre poesia...
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Orquestra – é o mar, que ruge pela proa,
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... E o vento, que nas cordas assobia...
...................................................................
’Stamos em pleno mar... abrindo as velas Por que foges assim, barco ligeiro?
Ao quente arfar das virações marinhas, Por que foges do pávido poeta?
Veleiro brigue corre à flor dos mares, Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Como roçam na vaga as andorinhas... Que semelha no mar – doudo cometa!

Donde vem? onde vai? Das naus errantes .....................................................................


Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora


Sentir deste painel a majestade!...
Embaixo – o mar... em cima – o firmamento... (ALVES, 1972, p. 169-173)
E no mar e no céu – a imensidade!

JOSÉ DO PATROCÍNIO (1853-1905)


Obras: Os ferrões (1875), Motta Coqueiro ou A pena de morte (1877), Os retirantes (1879),
Manifesto da Confederação Abolicionista (1883), Pedro Espanhol (1884)

Comentário crítico
Diferentemente de Luiz Gama, Patrocínio deu preferência à ficção sobre a poesia. Seu romance de maior renome,
Mota Coqueiro, não tem a escravidão mas sim a pena de morte como tema principal. Apesar disso, a obra fornece
uma interessante contribuição – e rara, em nossa literatura – em termos da representação da vida escrava. A
comunidade escravizada é descrita por alguém que conhece e se interessa verdadeiramente pelas coisas negras, e
surge dotada de vida própria, não como mero apêndice da vida dos brancos [...] Não é como “romancista de tese”
que Patrocínio manifesta originalidade, mas sim no momento em que se depara com suas conflitadas raízes
africanas e decide utilizá-las como matéria literária [...] Além das intenções explícitas do autor – a tese contra a
pena de morte – é a escravidão que toma vida, no romance de Patrocínio (GOMES, 1988, p. 91-93).
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Motta Coqueiro ou A pena de morte (1877 – fragmentos)

– Balbina sabe de tudo, exclamou a feiticeira; casa não tem parede, gente não tem segredo, bicho
não tem maldade para Balbina. Filho de você é de Manuel João; mas o pai não se importa mais
com a mãe de seu filho. O espanto avassalou a crioula, que se debulhou em lágrimas. – Não chora,
não, criança; mundo é assim mesmo. Balbina criou o filho dos brancos, Balbina foi boa para o
menino. Quando o filho dos brancos estava doente, Balbina sentia como se fosse filho dela.
Menino já está grande; os brancos jogam fora Balbina; põem a escrava de outro dono no meio dos
escravos dos brancos. Língua má corta em Balbina, brancos dão ouvido; Balbina é surrada, como
negro ladrão. Balbina sofre calada, porque maior é Deus. Tem amizade ao filho dos brancos, que
não é filho de Balbina. Podia soprar a casa-grande; mandar a cobra-coral tirar nos brancos o
sangue que correu das costas de Balbina, mas não quer; sofre calada [...] O chocalho está dizendo
que o filho de Carolina tem de sofrer cativeiro do mau senhor. Brancos podem surrar, podem
vender o filho da sua escrava, e a escrava há de chorar e tomar ojeriza dos brancos. Antes o filho
não nasça, se há de passar tantos trabalhos; antes vá para os anjos no tabuleiro com rosas e
girassóis. A cobra zangada ou morde a quem a zanga, ou morde o seu corpo dela. A mãe que tem
de ficar sem o filho, que é seu sangue, é como a cobra zangada. [...] O candeeiro continuou aceso
na senzala de Balbina, e quem espiasse pela fresta da janela, e aplicasse atentamente o ouvido,
vê-la-ia sentada, com o cachimbo negro à boca. De vez em quando, porém, ela tirava o cachimbo
e pronunciava estas palavras agoureiras. – Hum, hum, os brancos? A negra criou o menino; era a
mãe preta, e eles não deram nem um canto da casa grande para ela morar. Tomaram o menino das
mãos da negra e meteram nelas a enxada. Depois o chicote fez feridas nas costas da feiticeira, e o
menino nem olha mais para ela. A ririô machucada morde, a escrava desprezada mata [...] Teve
toda a razão a dissimulada Balbina quando considerou gravíssima a enfermidade de Carolina.
Atentando contra a vida do filho, conforme o expediente aconselhado pela feiticeira, pôs em risco
a própria vida [...] Ninguém que a visse aí poderia suspeitar que a feiticeira contemplava a sua
obra sombria de vingança; estava serena, nada denunciava sequer um traço de remorso [...]
Balbina jurou que sabia que o seu senhor tinha mandado matar a família de Francisco Benedito
[...] a população pedia sangue para desafrontar-se [...] O verdadeiro criminoso devia alegrar-se na
sua barbaridade ao ver como a sociedade demonstrava compreender a justiça [...] A notícia da
condenação do fazendeiro voou ruidosamente, levando consigo a satisfação e a confiança dos
crédulos adoradores da justiça humana [...] Balbina e Carolina, cujos depoimentos serviram de
base à condenação do fazendeiro, foram libertas pela generosidade popular [...] Balbina podia
sorrir tranquilamente; queria apenas vingar-se e conseguiu também a liberdade (PATROCÍNIO,
1977, p. 68-70; 230-257 – grifos do autor).

TOBIAS BARRETO (1839-1889)


Obras: Glosa (1864); O gênio da humanidade (1866); Amar (1866); A escravidão (1868); Que
Mimo! (1874); Ensaios e estudos de filosofia e crítica (1875); Estudos alemães (1880); Dias e
noites (1881); Brasilien, wie es ist (1876); Menores e loucos em direito criminal (1884);
Discursos (1887);Questões vigentes de filosofia e de direito (1888); Polêmicas (1901), etc.

Comentário crítico
Tobias Barreto de Meneses (1838-89) foi um talento de fortes qualidades sugestivas; era um revolucionário, um
abridor de novos horizontes. Daí a influência que exerceu nas três esferas principais de atividade a que se dedicou
e que correspondem a três épocas perfeitamente distintas de sua vida: a poesia na primeira fase do Recife, de 1862
a 1870; a crítica de filosofia e de literatura, no período da Escada, de 1871 a 1881; o direito, no último estádio
recifense, de 1882 a 1889 [...]. O sincretismo dos fatos mostra-nos que Machado de Assis, Fagundes Varela e
Tobias Barreto começaram pelo mesmo tempo [...] Foi o iniciador e o mais conspícuo representante do hugoanismo
condoreiro na poesia, do alemanismo na crítica, do transformismo darwiniano no direito no Brasil (ROMERO,
2001, p. 219-223 – grifos do autor).
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Que mimo!... (1874)

Tu és morena e sublime Teu corpo que tem o cheiro


Como a hora do sol posto. De cem capelas de rosas,
E, no crepúsculo eterno Que t'enche a roupa de quebros,
Que te envolve o lindo rosto, De ondulações graciosas,
O céu desfolha canduras Teu corpo derrama essências
De alvoradas e jasmins, Como uma campina em flor:
E passam roçando n'alma Beijá-lo!... fora loucura;
As asas dos querubins... Gozá-lo!... morrer de amor...

(BARRETO, 1978, p. 209)

Epicurismo (1881)

Se as crenças são um engodo,


Se falha o verbo da fé,
Se o homem se acaba todo,
Com a matéria que ele é,
Se o coração nada aspira,
Se este bater é mentira,
Se além não há desfrutar,
Da vida a ideia suprema,
O grande, o sábio problema,
É viver muito e gozar...

(BARRETO, 1978, p. 86)

TEIXEIRA E SOUSA (1812 – 1861)


Obras: O filho do pescador (1843); Tardes de um pintor ou as intrigas de um jesuíta; Gonzaga
ou a conjuração de Tiradentes; A providência; Maria ou a menina roubada; As fatalidades de
dois jovens (1843-1856).

Comentário crítico
Considera-se oficialmente como sendo o primeiro romancista propriamente dito Antônio Gonçalves Teixeira e
Sousa (1812-61), autor também do primeiro poema longo de tema indianista, por sinal muito ruim: “Três dias de
um noivado” (1844). Um ano antes tinha publicado O filho do pescador, e em seguida publicou mais cinco
romances até 1856. Escritor de terceira ordem, apostou na peripécia e na mais desabalada complicação, ao modo
dos livros de aventura e mistério que eram então devorados pelo público, tanto aqui (onde ele era bem pequeno)
quanto na Europa. No entanto, não chegou à popularidade, e dos seus livros só dois tiveram segunda edição até
hoje (CANDIDO, 2002, p. 40-41).
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O filho do pescador (1843 – fragmentos)

A gentil madrugadora da Copa-Cabana tendo lentamente passeado a rua do jardim, foi


finalmente sentar-se sobre um banco, debaixo dos longos e frondosos ramos de uma
veneranda mangueira, sobre cujo tronco dois séculos haviam deixado seus tardos vestígios;
e depois de ter feito vaguear seus olhos pelo amplo dos mares, que ante ela se desenrolava,
trouxe-os ao depois contemplar as ondas, que em incessante lida vinham com murmurinho
rouco despedaçar seus furores de encontro à impassível dureza dos sobranceiros rochedos.
Ela meditava! Há poucos minutos durava esta cena muda, quando alguém de um modo
afetuoso murmurou seu nome! Ela ergue-se rapidamente, e voltando a ver quem a chama,
um mancebo está de joelhos a seus pés... A moça o encara e fala. – Senhor... – Eu te amo
mais do que a minha própria vida... – A mim!...Senhor, a mim?... – Sim, a ti, minha bela
náufraga... a ti... acredita-me, eu te amo... – A mim! Tão pobre! Vítima da desgraça! cercada
da miséria, escapada a um naufrágio que se tu... – E que importa tudo isso? Eu te amo, e é
quanto basta. Sai, pois, da desgraça, sim, vem aos meus braços; vem ser minha, minha para
sempre, minha esposa enfim!... – Senhor, mas vosso pai... – Ele consentirá, oh! sem dúvida
[...] – Mas eu sou tão pobre... – E o que importa? Não tenho bastantes bens de fortuna para
a nossa felicidade? Não te amo eu? Sendo igualmente por ti amado, que mais precisaremos?
Nada, pois, nos falta, temos riquezas... oh! tanto não é mister a quem ama. – Pois bem,
senhor, fazei o que quiserdes, eu vos sou grata [...] Poucos minutos depois dessa cena, um
diálogo era energicamente sustentado entre o mancebo e um venerando ancião; este dizia: –
E pensaste bem, meu filho, no que queres fazer? – Sim, meu pai [...] – E o que é amor? Ah!
meu filho! Eu já fui moço! Como tu és; também já por mim passou esse delicioso tempo [...]
O que é amor? Um afeto que principia por um prazer dos olhos, uma dor no coração e uma
aflição de alma! [...] Não muito tarde vêm todos os fastios de que é suscetível uma vida
monótona; o coração arfa ambicionando uma desordem, cuja consequência seja uma nova
vida por uma nova ordem de acontecimentos, para pasto do coração. Os laços, então já
formados e indissolúveis, tornam-se de um peso insuportável: sofrê-los, é fastio; desatá-los,
é desonra [...] – Mas, meu pai, eu amo... – Em verdade esse é o argumento o mais enérgico
e o mais eloquente de moço amante. E se eu não levar a bem um tal casamento? – Meu pai...
disse o mancebo, beijando ardentemente a mão do velho. – Oh! nada de violências; faz o
que quiseres e Deus abençoe os teus destinos. Peço-te, porém, uma coisa, e é que, se algum
dia a experiência justificar-me, exclames no meio do teu arrependimento: Oh! meu pai!...
(SOUSA, 1997, p. 5-12).

JOAQUIM MANUEL DE MACEDO (1820 – 1882).


Obras:
A moreninha (1844); O moço loiro (1845); Os dois amores (1848); Rosa (1849); Vicentina
(1853); O forasteiro (1855); Os romances da semana (1861); O Rio do Quarto (1869); A luneta
mágica (1869); As vítimas-algozes (1869); Nina (1869); As mulheres de mantilha (1871); O
cego (1849); Cobé (1849); O fantasma branco (1856); O primo da Califórnia (1858); Luxo e
verdade (1860); A torre em concurso (1863); Lusbela (1862); O novo Otelo (1863); Cincinato
Quebra-Louça (1873); A nebulosa (1857).

Comentário crítico
Foi professor do Colégio Pedro II, deputado, jornalista [...] Autor teatral e romancista muito produtivo, exerceu
um papel importante, como exemplo para os moços, pois com ele o romance ganhou categoria em nossa literatura.
A publicação d’A moreninha [...] marca uma data, sob este aspecto. Além disso, foi também poeta e autor didático,
fez compilações biográficas e sátiras de costumes, num atividade variada e intensa. O seu teatro é por vezes
meritório; o seu romance envelheceu muito, dada a puerilidade dos entrechos, o tom rasteiro do estilo e a
mediocridade das ideias. Mas em alguns de seus livros estes defeitos são compensados por certo interesse peculiar,
92

que decorre do realismo familiar e despretensioso, baseado na observação dos costumes e na bonomia do tom. Daí
o valor documentário que muitos têm, e o encanto, para grande número de leitores, da sua habilidade em variar
sobre o tema do namoro, como honrado preâmbulo da sua vida de família (CANDIDO; CASTELLO, 1988, p.
171-172).

A moreninha (1844 – fragmentos)

Bravo! exclamou Filipe, entrando e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho. Bravo!...
interessante cena! Mas certo que desonrosa fora para casa de um estudante de Medicina e já no sexto ano,
a não valer-lhe o adágio antigo: – o hábito não faz o monge. – Temos discurso!... atenção!... ordem!...
gritaram a um tempo três vozes. – Coisa célebre! acrescentou Leopoldo. Filipe sempre se torna orador
depois do jantar... – E dá-lhe para fazer epigramas, disse Fabrício. – Naturalmente, acudiu Leopoldo, que,
por dono da casa, maior quinhão houvera no cumprimento do recém-chegado; naturalmente Bocage,
quando tomava carraspanas, descompunha os médicos. – C’est trop fort! bocejou Augusto, espreguiçando-
se no canapé em que se achava deitado. – Como quiserem, continuou Filipe, pondo-se em hábitos menores;
mas por minha vida que a carraspana de hoje ainda me concede apreciar devidamente aqui o meu amigo
Fabrício, que talvez acaba de chegar de alguma visita diplomática, vestido com esmero e alinho, porém
tendo a cabeça encapuzada com a vermelha e velha carapuça do Leopoldo; este, ali escondido dentro do
seu robe de chambre cor de burro quando foge, e sentado em uma cadeira tão desconjuntada que, para não
cair com ela, põe em ação todas as leis de equilíbrio, que estudou em Pouillet; acolá, enfim, o meu
romântico Augusto, em ceroulas, com as fraldas à mostra, estirado em um canapé em tão bom uso, que
ainda agora mesmo fez com que Leopoldo se lembrasse de Bocage. Oh! VV. SS. tomam café!... Ali o
senhor descansa a xícara azul em um pires de porcelana... aquele tem uma chávena com belos lavores
dourados, mas o pires é cor-de-rosa... aquele outro nem porcelana, nem lavores, nem cor azul ou de rosa,
nem xícara... nem pires... aquilo é uma tigela num prato... – Carraspana!... carraspana!... gritaram os três.
– O’ moleque! prosseguiu Filipe, voltando-se para o corredor, traze-me café, ainda que seja no púcaro em
que o coas; pois creio que, a não ser a falta de louças, já teu senhor mo teria oferecido. – Carraspana!...
carraspana!... – Sim, continuou ele, eu vejo que vocês... – Carraspana!... carraspana!... – Não sei de nós
quem mostra... – Carraspana!... carraspana!... Seguiram-se alguns momentos de silêncio, ficaram os quatro
estudantes assim a modo de moças quando jogam o siso. Filipe não falava, por conhecer o propósito em
que estavam os três de lhe não deixar concluir uma só proposição; e estes, porque esperavam vê-lo abrir a
boca para gritar-lhe: carraspana!... Enfim, foi ainda Filipe o primeiro que falou, exclamando de repente: –
Paz! paz!... – Ah! já?... disse Leopoldo, que era o mais influído. – Filipe é como o galego, disse um outro;
perderia tudo para não guardar silêncio durante uma hora (MACEDO, 1990, p. 11-12).

MANUEL DE ALMEIDA (1831-1861)


Obras: Memórias de um sargento de milícias (1853); Obra dispersa (1991).

Comentário crítico
Não há nenhuma personagem íntegra no sentido positivo, nas Memórias de um Sargento de Milícias. Todos têm
seus pontos fracos. Alguns mesmo só têm pontos fracos, não apresentam aspectos bons, como é o caso de José
Manuel, de Maria Saloia, que só no sentido negativo é que são íntegros. Mesmo o compadre, que é quem mais se
aproxima de um padrão ideal, tem o arranjei-me no seu passado, e sua bondade é mais próxima da tolice. E o
Vidigal, então? O terror do Rio de Janeiro, o mantenedor da ordem e da moral, quem diria que abriria mão de seus
caros princípios ante um mero cochicho de Maria Regalada? [...] É desse modo que Manuel Antonio de Almeida
caracteriza a personagem Leonardo, que resulta num herói sem nenhum caráter, ou melhor, que apresenta os traços
fundamentais do estereótipo do brasileiro. Manuel Antonio de Almeida é o primeiro a fixar em literatura o caráter
nacional brasileiro, tal como terá longa vida em nossas letras. Na ficção e na ensaística, particularmente do século
XX, será constante a atribuição dessas características ao brasileiro: vagabundagem, preguiça, sensualidade,
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indisciplina, vivacidade de espírito – nossa modalidade de “inteligência” – e sobretudo simpatia. Creio que se pode
saudar em Leonardo o ancestral de Macunaíma (GALVÃO, 1976, p. 29-32 – grifos da autora).

Memórias de um sargento de milícias (1853 – fragmentos)

Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão
decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance,
tomava-o imediatamente, espanava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que encontrava, esfregava-o
em uma parede, e acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia custar
aos ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de traquinas, guloso; quando
não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava; trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não
se emendava, que era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas. Assim
chegou aos sete anos. Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se
seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais
cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses
atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos através
das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais
novidade. Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em casa, para tratar de negócios do
oficio, sempre em horas desencontradas: porém isto também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três
ou quatro vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto causou-lhe
sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu
precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu. À vista disto nada havia a duvidar: o pobre
homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco
uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os punhos cerrados. – Grandessíssima!... E
a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer com todo o corpo. A Maria recuou dous
passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava com qualquer cousa. – Tira-te lá, ó Leonardo!
– Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te essa boca a socos... – Safe-se daí! Quem lhe
mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo? Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a
dor da traição, e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos sobre a Maria, que depois
de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr, a chorar e a gritar: – Ai... ai... acuda, senhor compadre...
senhor compadre!... Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês, e não podia largá -lo.
Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas. Encolheu-se a choramingar em um canto. O menino
assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio: enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava,
este ocupava-se tranquilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar, e em fazer delas
uma grande coleção de cartuchos. Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver alguma cousa mais do que
seu ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno. Enfurece-se de novo: suspendeu o
menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma meia-volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos
atirando-o sentado a quatro braças de distância. – És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um
pontapé te acabe a casta. O menino suportou tudo com coragem de mártir, apenas abriu ligeiramente a boca quando
foi levantado pelas orelhas: mal caiu, ergueu-se, embarafustou pela porta fora, e em três pulos estava dentro da
loja do padrinho, e atracando-se-lhe às pernas (ALMEIDA, 1991, p. 11-13).
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JOSÉ DE ALENCAR (1829 – 1877)

Obras: Cinco minutos (1856); O Guarani (1857); A viuvinha (1857); Lucíola (1862); Diva
(1864); Iracema (1865); As minas de prata (1864-1865); O gaúcho (1870); A pata da gazela
(1870); O tronco do ipê (1871); Guerra dos mascates (1873-1974); Til (1872); Sonhos d'ouro
(1872); Alfarrábios (1873); Ubirajara (1874); O sertanejo (1875); Senhora (1875); Encarnação
(1893); O crédito (1857); Verso e reverso (1857); Demônio familiar (1857); As asas de um anjo
(1858); Mãe (1860); A expiação (1867); O jesuíta (1875); Ao correr da pena (1874); Como e
por que sou romancista (1893); Cartas sobre a confederação dos tamoios (1856); Ao imperador:
cartas políticas de Erasmo e Novas cartas políticas de Erasmo (1865); Ao povo: cartas políticas
de Erasmo (1866); O sistema representativo (1866).

Comentário crítico
Bem diferente foi a obra romanesca de José Martiniano de Alencar (1829-77), ao todo vinte romances publicados
entre 1856 a 1877, dando exemplo da importância que o gênero havia adquirido na literatura brasileira,
ultrapassando o nível modesto dos predecessores e demonstrando capacidade narrativa bem mais definida. É uma
obra bastante ambiciosa. A partir de certa altura, Alencar pretendeu abranger com ela, sistematicamente, os
diversos aspectos do país no tempo e no espaço, por meios de narrativas sobre os costumes urbanos, sobre as
regiões, sobre o índio. Para pôr em prática esse projeto, quis forjar um estilo novo, adequado aos temas e baseado
numa linguagem que, sem perder a correção gramatical, se aproximasse da maneira brasileira de falar. Ao fazer
isso, estava tocando o nó do problema (caro aos românticos) da independência estética em relação a Portugal. Com
efeito, caberia aos escritores não apenas focalizar a realidade brasileira, privilegiando as diferenças patentes na
natureza e na população, mas elaborar a expressão que correspondesse à diferenciação linguística que nos ia
distinguindo cada vez mais dos portugueses, numa grande aventura dentro da mesma língua. Como mais t arde
Mário de Andrade no Modernismo, José de Alencar atacou a questão da identidade pelo aspecto fundamental da
linguagem [...] A sua obra atraiu a maioria dos leitores pelo que tinha de romanesco no sentido estrito, tanto sob o
aspecto de sentimentalismo quanto de heroísmo rutilante. O guarani (1857), cuja ação decorre no século XVI e é
o mais popular dos seus livros, tem essas duas coisas, além de facilitar pelo próprio enredo a escrita poética e
empolada que marcou o Romantismo. Amor, bravura, perfídia se combinam nele para dar ao leitor o espetáculo de
um Brasil plasticamente belo, enobrecido pelas qualidades ideais do epônimo indígena (CANDIDO, 2002, p. 62-
66).

O guarani (1857 – fragmentos)

Lealdade

A habitação que descrevemos pertencia a D. Antônio de Mariz, fidalgo português de cota d’armas e
um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Era dos cavalheiros que mais se haviam distinguido
nas guerras da conquista contra a invasão dos franceses e os ataques dos selvagens. Em 1567
acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro e, depois da vitória alcançada pelos portugueses, auxiliou
o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa
capitania. Fez parte em 1578 da célebre expedição do Dr. Antônio de Salema contra os franceses,
que haviam estabelecido uma feitoria em Cabo Frio para fazerem o contrabando de pau-brasil.
Serviu por este mesmo tempo de provedor da real fazenda, e depois da alfândega do Rio de Janeiro;
mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela república e a sua dedicação ao rei. Homem de
valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas
descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu
merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre
o sertão, a qual depois de haver explorado deixou por muito tempo devoluta. A derrota de
Alcacerquibir e o domínio espanhol que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de
Mariz. Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo
juramento da nobreza, e que só a ele devia preito e menagem. Quando pois, em 1582, foi aclamado
no Brasil D. Filipe II como o sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada
e retirou-se do serviço. Por algum tempo esperou a projetada expedição de D. Pedro da Cunha, que
pretendeu transportar ao Brasil a coroa portuguesa, colocada então sobre a cabeça do seu legitimo
herdeiro, D. Antônio, prior do Crato. Depois, vendo que esta expedição não se realizava, e que seu
braço e sua coragem de nada valiam ao rei de Portugal, jurou que ao menos lhe guardaria fidelidade
até a morte. Tomou os seus penates, o seu brasão, as suas armas, a sua
95

Continuação...

família, e foi estabelecer-se naquela sesmaria que lhe concedera Mem de Sá. Aí, de pé sobre a eminência
em que ia assentar o seu novo solar, D. Antônio de Mariz, erguendo o vulto direito, e lançando um olhar
sobranceiro pelos vastos horizontes que abriam em torno, exclamou: – Aqui sou português! Aqui pode
respirar à vontade um coração leal que nunca desmentiu a fé do juramento. Nesta terra que me foi dada
pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma
de teus filhos. Eu o juro! Descobrindo-se, curvou o joelho em terra e estendeu a mão direita sobre o abismo,
cujos ecos adormecidos repetiram ao longe a última frase do juramento prestado sobre o altar da natureza,
em face do sol que transmontava. Isto se passara em abril de 1593; no dia seguinte, começaram os trabalhos
da edificação de uma pequena habitação que serviu de residência provisória, até que os artesãos vindos do
reino construíram e decoraram a casa que já conhecemos. D. Antônio tinha ajuntado fortuna durante os
primeiros anos de sua vida aventureira; e não só por capricho de fidalguia, mas em atenção a sua família,
procurava dar a essa habitação construída no meio de um sertão todo o luxo e comodidade possíveis. Além
das expedições que fazia periodicamente à cidade do Rio de Janeiro, para comprar fazendas e gêneros de
Portugal, que trocava pelos produtos da terra, mandara vir do reino alguns oficiais mecânicos e hortelãos,
que aproveitavam os recursos dessa natureza tão rica, para proverem os seus habitantes de todo o
necessário. Assim, a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português, menos as ameias e a barbacã, as
quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis, que ofereciam uma defesa
natural e uma resistência inexpugnável. Na posição em que se achava, isto era necessário por causa das
tribos selvagens, que, embora se retirassem sempre das vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos e
se entranhassem pelas florestas, costumavam contudo fazer correrias e atacar os brancos à traição. Em um
círculo de uma légua da casa, não havia senão algumas cabanas em que moravam aventureiros pobres,
desejosos de fazer fortuna rápida, e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de
dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro e pedras preciosas, que iam vender na
costa. Estes, apesar das precauções que tomavam contra os ataques dos índios, fazendo paliçadas e
reunindo-se uns aos outros para defesa comum, em ocasião de perigo vinham sempre abrigar-se na casa de
D. Antônio de Mariz, a qual fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Média. O fidalgo os recebia como
rico-homem que devia proteção e asilo aos vassalos; socorria-os em todas as suas necessidades, e era
estimado e respeitado por todos que vinham, confiados na vizinhança, estabelecer-se por esses lugares.
Deste modo, em caso de ataque de índios, os moradores da casa do Paquequer não podiam contar senão
com os seus próprios recursos; e por isso D. Antônio, como homem prático e avisado que era, havia-se
premunido para qualquer ocorrência. Ele mantinha, como todos os capitães de descobertas daqueles tempos
coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam nas suas explorações e correrias pelo interior; eram
homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e
agilidade do índio de quem haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, soldados e selvagens ao
mesmo tempo. D. Antônio de Mariz, que os conhecia, havia estabelecido entre eles uma disciplina militar
rigorosa, mas justa; a sua lei era a vontade do chefe; o seu dever a obediência passiva, o seu direito uma
parte igual na metade dos lucros. Nos casos extremos, a decisão era proferida por um conselho de quatro,
presidido pelo chefe; e cumpria-se sem apelo, como sem demora e hesitação. Pela força da necessidade,
pois, o fidalgo se havia constituído senhor de baraço e cutelo, de alta e baixa justiça dentro de seus
domínios; devemos porém declarar que rara vez se tornara precisa a aplicação dessa lei rigorosa; a
severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia [...] Assim vivia,
quase no meio do sertão, desconhecida e ignorada essa pequena comunhão de homens, governando-se com
as suas leis, os seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza, e ligados a seu chefe pelo
respeito, pelo hábito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem
sobre as massas (ALENCAR, 1951, p. 86-90).
96

BERNARDO GUIMARÃES (1825 – 1884)


Obras: Cantos da solidão (1852); O ermitão de Muquém (1869); A voz do Pajé (1914); Poesias
(1865); Lendas e romances (1871); O garimpeiro (1872); História e tradições da Província de
Minas Gerais (1872); O seminarista (1872); O índio Afonso (1873); A escrava Isaura (1875);
Novas poesias (1876); Maurício ou Os paulistas em São João del-Rei (1877); A ilha maldita
(1879); O pão de ouro (1879); Folhas de outono (1883); Rosaura, a enjeitada (1883).

Comentário crítico
O regionalismo de Bernardo Guimarães mistura elementos tomados à narrativa oral, os “causos” e as “estórias”
de Minas e Goiás, com uma boa dose de idealização. Esta, embora não tão maciça como em Alencar, é responsável
por uma linguagem adjetivosa e convencional na maioria dos quadros agrestes [...] As obras mais lidas de
Bernardo Guimarães, O Seminarista e A Escrava Isaura, devem a sua popularidade menos a um progresso na
fabulação ou no traçado das personagens do que à garra dos problemas explícitos: o celibato clerical no primeiro,
a escravidão no segundo [...] A Escrava Isaura já foi chamado A cabana do Pai Tomás nacional. Há evidente
exagero na asserção. O nosso romancista estava mais ocupado em contar as perseguições que a cobiça de um
senhor vilão movia à bela Isaura que em reconstruir as misérias do regime servil. E, apesar de algumas palavras
sinceras conta as distinções de cor (cap. XV), toda a beleza da escrava é posta no seu não parecer negra, mas nívea
donzela, como vem descrita desde o primeiro capítulo (BOSI, 1980, p. 157-159).

A escrava Isaura (1875 – fragmentos)

Subamos os degraus, que conduzem ao alpendre, todo engrinaldado de viçosos festões e lindas flores,
que serve de vestíbulo ao edifício. Entremos sem cerimônia. Logo à direita do corredor encontramos
aberta uma larga porta, que dá entrada à sala de recepção, vasta e luxuosamente mobiliada. Acha-se ali
sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça. As linhas do perfil desenham -se
distintamente entre o ébano da caixa do piano, e as bastas madeixas ainda mais negras do que ele. São
tão puras e suaves essas linhas, que fascinam os olhos, enlevam a mente, e paralisam toda análise. A
tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não
sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo donoso e do mais puro lavor sustenta
com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se despenham
caracolando pelos ombros em espessos e luzidios rolos, e como franjas negras escondiam quase
completamente o dorso da cadeira, a que se achava recostada. Na fronte calma e lisa como mármore
polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro
guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração. Tinha a face voltada para as janelas, e o olhar
vago pairava-lhe pelo espaço. Os encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza, e
diremos quase pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinária azul-clara desenhava-lhe
perfeitamente com encantadora simplicidade o porte esbelto e a cintura delicada, e desdobrando-se-lhe
em roda em amplas ondulações parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como Vênus
nascendo da espuma do mar, ou como um anjo surgindo dentre brumas vaporosas. Uma pequena cruz
de azeviche presa ao pescoço por uma fita preta constituía o seu único ornamento. Apenas terminado
o canto, a moça ficou um momento a cismar com os dedos sobre o teclado como escutando os
derradeiros ecos da sua canção. Entretanto abre-se sutilmente a cortina de cassa de uma das portas
interiores, e uma nova personagem penetra no salão. Era também uma formosa dama ainda no viço da
mocidade, bonita, bem feita e elegante. A riqueza e o primoroso esmero do trajar, o porte altivo e
senhoril, certo balanceio afetado e langoroso dos movimentos davam-lhe esse ar pretensioso, que
acompanha toda moça bonita e rica, ainda mesmo quando está sozinha. Mas com todo esse luxo e
donaire de grande senhora nem por isso sua grande beleza deixava de ficar algum tempo eclipsada em
presença das formas puras e corretas, da nobre singeleza, e dos tão naturais e modestos ademanes da
cantora. Todavia Malvina era linda, encantadora mesmo, e posto que vaidosa de sua formosura e alta
posição, transluzia-lhe nos grandes e meigos olhos azuis toda a nativa bondade de seu coração
(GUIMARÃES, 1990, p. 11-12).
97

VISCONDE TAUNAY (1843 – 1899)


Obras: La Retraite de La Laguna (1871); Inocência (1872); A mocidade de Trajano (1872);
Lágrimas do Coração (1873); Ouro sobre Azul (1875); Estudos críticos, (1881-1883); Amélia
Smith (1886); No Declínio (1889); O Encilhamento (1894); Reminiscências (1908).

Comentário crítico
Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-99) representa o caso bem brasileiro do filho de estrangeiros de tal maneira
identificado à nova pátria que se torna intérprete privilegiado da sua realidade. Militar de carreira, tinha boa formação
intelectual e artística, sendo bom desenhista e compositor, qualidades que soube transpor para a sua prosa, capaz de
descrever a natureza com força pictórica [...] O seu romance mais famoso é Inocência (1872), que alguns consideram
o melhor produto do Regionalismo e é de fato bem realizado, graças à habilidade com que descreve a paisagem e os
costumes do sertão remoto, quadro no qual soube contar com singeleza a tocante paixão que envolve a protagonista
(CANDIDO, 2002, p. 78-79).

Inocência (1872 – fragmentos)

Todos vós bem sentis a ação secreta


Da natureza em seu governo eterno;
E de ínfimas camadas subterrâneas
Da vida o indício à superfície emerge.
Goethe

Então com passo tranquilo metia-me eu por algum


recanto da floresta, algum lugar deserto, onde nada me
indicasse a mão do homem, nem me denunciasse a
servidão e o domínio; asilo em que pudesse crer ter
primeiro entrado, onde nenhum importuno viesse
interpor-se entre mim e a natureza.
J. J. Rousseau

Corta extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima província de Mato Grosso a estrada
que da vila de Sant’Ana do Paranaíba vai ter ao sítio abandonado de Camapuã. Desde aquela povoação, assente
próximo ao vértice do ângulo em que confinam os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso
até ao Rio Sucuriú, afluente do majestoso Paraná, isto é, no desenvolvimento de muitas dezenas de léguas,
anda-se comodamente, de habitação em habitação, mais ou menos chegadas umas às outras; rareiam, porém,
depois as casas, mais e mais, e caminham-se largas horas, dias inteiros sem se ver morada nem gente até ao
retiro de João Pereira, guarda avançada daquelas solidões, homem chão e hospitaleiro, que acolhe com carinho
o viajante desses alongados páramos, oferece-lhe momentâneo agasalho e o provê da matalotagem precisa
para alcançar os campos de Miranda e Pequiri, ou da Vacaria e Nioac, no Baixo Paraguai. Ali começa o sertão
chamado bruto [...]. Ao homem do sertão afiguram-se tais momentos incomparáveis, acima de tudo quanto
possa idear a imaginação no mais vasto círculo de ambições. Satisfeita a sede que lhe secara as fauces, e
comidas umas colheres de farinha de mandioca ou de milho, adoçada com rapadura, estira-se a fio comprido
sobre os arreios desdobrados e contempla descuidoso o firmamento azul, as nuvens que se espacejam nos ares,
a folhagem lustrosa e os troncos brancos das pindaíbas, a copa dos ipês e as palmas dos buritis a ciciar a modo
de harpas eólias, músicas sem conta com o perpassar da brisa. Como são belas aquelas palmeiras! O estípite
liso, pardacento, sem manchas mais que pontuadas estrias, sustenta denso feixe de pecíolos longos e canulados,
em que assentam flabelas abertas como um leque, cujas pontas se acurvam flexíveis e tremulantes. Na base e
em torno da coma, pendem, amparados por largas espatas, densos cachos de cocos tão duros, que a casca
luzidia, revestida de escamas romboidais e de um amarelo alaranjado, desafia por algum tempo o férreo bico
das araras. Também, com que vigor trabalham as barulhentas aves antes de conseguir a apetecida e saborosa
amêndoa! Em grupos juntam-se elas, umas vermelhas como chispas soltas de intensa labareda, outras
versicolores, outras, pelo contrário, de todo azuis, de maior viso e que, por parecerem negras em distância,
têm o nome de araraúnas. Ali ficam alcandoradas, balouçando-se gravemente e atirando, de espaço a espaço,
às imensidades das dilatadas campinas notas estridentes, quando não seja um clamor sem fim, ao quererem
muitas disputar o mesmo cacho. Quase sempre, porém, estão a namorar-se aos pares, pousadas uma bem
encostadinha à outra. Vê tudo aquilo o sertanejo com olhar carregado de sono. Caem-lhe pesadas as pálpebras;
bem se lembra de que por ali podem rastejar venenosas alimárias, mas é fatalista; confia no destino e, sem
mais preocupação adormece com serenidade. Correm as horas: vem o Sol descambando; refresca a brisa, e
sopra rijo o vento. Não ciciam mais os buritis; gemem, e convulsamente agitam as flabeladas palmas. É a tarde
que chega (TAUNAY, 1998, p. 11-15 – grifos do autor).
98

FRANKLIN TÁVORA (1842 – 1888)


Obras: A Trindade maldita (1861); Os índios do Jaguaribe (1862); A casa de palha (1866); Um
casamento no arrabalde (1869); Cartas de Semprônio a Cincinato (1870); O Cabeleira (1876);
O matuto (1878); Lourenço (1881); Lendas e tradições populares do Norte (1878).

Comentário crítico
A unidade política, preservada às vezes por circunstâncias quase miraculosas, pode fazer esquecer a diversidade
que presidiu à formação e desenvolvimento da nossa cultura. A colonização se processou em núcleos separados,
praticamente isolados entre si: o desenvolvimento econômico e a evolução social foram, assim, bastante
heterogêneos, consideradas as diferentes regiões. Um historiador contemporâneo, Alfredo Ellis Jr., se recusa a
falar em Colônia, ou Brasil Colônia, acentuando o fato, assinalado desde Handelmann e fecundado por João
Ribeiro, de que houve na América não uma, senão várias Colônias portuguesas. Trazendo a ideia para o terreno
literário, Viana Moog procurou interpretar a nossa literatura em função das que chamou “ilhas de culturas mais
ou menos autônomas e diferenciadas”, caracterizada cada uma pelo seu genius loci particular. Comprovante desta
ideia engenhosa, e em parte verdadeira, é sem dúvida o caso do Nordeste, que se destaca na geografia, na história
e na cultura brasileira com impressionante autonomia e nitidez [...] Franklin Távora sentiu tudo isto
profundamente, ao ponto de tentar uma espécie de félibrige; só que félibrige pela metade, dentro não apenas do
mesmo país, mas da mesma língua. “Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua,
porque o gênio de um não se confunde com o de outro. Cada um tem as suas aspirações, seus interesses, e há de
ter, se já não tem, sua política”. Desvio evidente que, levando-o a dissociar o que era uno e fazer de características
regionais princípio de independência, traía de certo modo a grande tarefa romântica de definir uma literatura
nacional. O seu regionalismo parece fundar-se em três elementos, que ainda hoje constituem, em proporções
variáveis, a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste. Primeiro o senso da terra, da paisagem que
condiciona tão estreitamente a vida de toda a região, marcando o ritmo da sua história pela famosa “intercadência”
de Euclides da Cunha. Em seguida, o que se poderia chamar patriotismo regional, orgulhoso das guerras
holandesas, do velho patriarcado açucareiro, das rebeliões nativistas. Finalmente, a disposição polêmica de
reivindicar a preeminência do Norte, reputado mais brasileiro, “onde abundam os elementos para a formação de
uma literatura propriamente brasileira, filha da terra. A razão é obvia: o Norte ainda não foi invadido como está
sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro”. Távora foi o primeiro “romancista do Nordeste”, no sentido em que
ainda hoje entendemos a expressão; e deste modo abriu caminho a uma linhagem ilustre, culminada pela geração
de 1930, mais de meio século depois das suas tentativas, reforçadas a meio caminho pelo baiano fluminense d’Os
Sertões (CANDIDO, 1993, p. 267-26, v. 2 – grifo do autor).

Prefácio de O Cabeleira (1876 – fragmentos)

Meu amigo [...] No Cabeleira ofereço-te um tímido ensaio do romance histórico, segundo eu entendo este gênero
da literatura. À crítica pernambucana, mais do que a outra qualquer, cabe dizer se o meu desejo não foi iludido; e
a ela, seja qual for a sua sentença, curvarei a cabeça sem replicar. As letras têm, como a política, um certo caráter
geográfico; mais do Norte, porém, do que do Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura
propriamente brasileira, filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de
dia em dia pelo estrangeiro. A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as índoles, e os
costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua
genuína expressão. Por infelicidade do Norte, porém, dentre os muitos filhos seus que figuram com grande brilho
nas letras pátrias, poucos têm seriamente cuidado de construir o edifício literário dessa parte do império que, por
sua natureza magnificente e primorosa, por sua história tão rica de feitos heroicos, por seus usos, tradições e poesia
popular há de ter cedo ou tarde uma biblioteca especialmente sua. Esta pouquidade de arquitetos faz-se notar com
especialidade no romance, gênero em que o Norte, a meu ver, pode entretanto figurar com brilho e bizarria
inexcedível. Esta verdade dispensa demonstração. Quem não sabe que na história conta ele J. F. Lisboa, Baena,
Abreu e Lima, Vieira da Silva, Henriques Leal, Muniz Tavares, A J. de Melo, Fernandes Gama, e muitos outros
que podem bem competir com Varnhagen, Pereira da Silva e Fernandes Pinheiros; que o primeiro filólogo
brasileiro, Sotero dos Reis, é nortista; que é nortista Gonçalves Dias, a mais poderosa e inspirada musa de nossa
terra; e que igualmente o são Tenreiro Aranha, Odorico Mendes, Franco de Sá, Almeida Braga, José Coriolano,
Cruz Cordeiro, Ferreira Barreto, Maciel Monteiro, Bandeira de Melo, Torres Bandeira, que valem bem Magalhães,
A. de Azevedo, Varela, Porto Alegre, Casimiro de Abreu, Cardoso de Meneses. Teixeira de Melo? No romance,
porém, já não é assim. O Sul campeia sem êmulo nesta arena, onde têm colhido notáveis louros: Macedo, o
observador gracioso dos costumes da cidade; Bernardo Guimarães, o desenhista fiel dos usos rústicos;
Machado de Assis, cultor estudioso do gênero que foi vasto campo de glórias para Balzac; Taunay que se
particulariza pela fluência, e pelo faceto da narrativa; Almeidinha, que a todos estes se avantajou na correção dos
99
Continuação...

desenhos, posto houvesse deixado um só quadro, um só painel, quadro brilhante, painel imenso, em que há vida,
graça e colorido nativo. Estes talentos, além de outros que me não lembram de momento, não têm, ao menos por
agora, competidores no Norte, onde aliás não há falta de talentos de igual esfera. Não me é lícito esquecer aqui,
ainda que se trata do romance do Sul, um engenho de primeira grandeza, que, com ser do Norte, tem concorrido
com suas mais importantes primícias para a formação da literatura austral. Quero referir-me ao Exmo. Sr.
Conselheiro José Martiniano de Alencar, a quem já tive ocasião de fazer justiça nas minhas conhecidas Cartas a
Cincinato. Quando, pois, está o Sul em tão favoráveis condições, que até conta entre os primeiros luminares das
suas letras este distinto cearense, têm os escritores do Norte que verdadeiramente estimam seu torrão, o dever de
levantar ainda com luta e esforços os nobres foros dessa grande região, exumar seus tipos legendários, fazer
conhecidos seus costumes, suas lendas, sua poesia, máscula, nova, vívida e louçã tão ignorada no próprio temp lo
onde se sagram as reputações, assim literárias, como políticas, que se enviam às províncias. Não vai nisto, meu
amigo, um baixo sentimento de rivalidade que não aninho em meu coração brasileiro. Proclamo uma verdade
irrecusável. Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua, porque o gênio de um não
se confunde com o do outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses, e há de ter, se já não tem, sua política.
Enfim não posso dizer tudo, e reservarei o desenvolvimento, que tais ideias exigem, para a ocasião em que te enviar
o segundo livro desta série, o qual talvez venha ainda este ano, à luz da publicidade. Depois de haveres lido O
Cabeleira, melhor me poderás entender a respeito da criação da literatura setentrional, cujos moldes não podem
ser, segundo me parece, os mesmos em que vai sendo vazada a literatura austral que possuímos (TÁVORA, 1973,
p. 15-16).

Autor dos fins do romantismo, Franklin Távora publica O Cabeleira apenas cinco anos
antes das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, quando a nossa
literatura já se encaminha pela perspectiva realista e naturalista. Mesmo assim, a prosa de
Távora ilustra, explicitamente, o diálogo plural, profundo e contínuo entre os nossos autores e
os românticos europeus, como se afere de sua apropriação inventiva da tese das duas literaturas,
elaborada pela corrente romântica francesa, mais especificamente, pela romancista e crítica da
literatura europeia, Mme de Staël:

Há, parece-me, duas literaturas completamente distintas, a que vem do Sul e a que desce do Norte,
aquela de que Homero é a fonte primeira, aquela de que Ossian é a sua origem. Sem dúvida que
os ingleses e alemães imitaram frequentemente os antigos. Desse fecundo estudo retiraram úteis
lições; mas suas belezas originais trazem a marca da mitologia do Norte, têm uma espécie de
semelhança, uma certa grandeza poética de que Ossian é o primeiro tipo (STAËL apud ELIA,
2005, p. 116).

Além da importância estética para uma das principais modalidades do modernismo


brasileiro, a do Nordeste, como afirma Heloísa Toller Gomes – “Delinearam-se, naqueles anos,
as duas principais vertentes do modernismo literário brasileiro: a vertente do Sul [...] e o
modernismo regionalista do Nordeste” (GOMES, 2003, p. 646) – a perspectiva política de
Franklin Távora, a concepção das duas regiões brasileiras, seria revisitada nas últimas décadas
do século XX, como exemplifica o texto-canção, “Nordeste independente” (1984), também
conhecido como “Imagine o Brasil”, composição elaborada pelo escritor e compositor
100

paraibano, Bráulio Tavares, em parceria com o poeta repentista pernambucano, Ivanildo


Vilanova:

Nordeste independente (1984)

Já que existe no Sul esse conceito O Brasil ia ter que importar


Que o Nordeste é ruim, seco e ingrato Do Nordeste algodão, cana, caju,
Já que existe a separação de fato Carnaúba, laranja, babaçu
É preciso torná-la de direito Abacaxi e o sal de cozinhar
Quando um dia qualquer isso for feito O arroz, o agave do lugar
Todos dois vão lucrar imensamente O petróleo, a cebola, a aguardente
Começando uma vida diferente O Nordeste é autossuficiente,
Da que a gente até hoje tem vivido O seu lucro seria garantido
Imagine o Brasil ser dividido Imagine o Brasil ser dividido
E o Nordeste ficar independente E o Nordeste ficar independente

Dividindo a partir de Salvador Se isso aí se tornar realidade


O Nordeste seria outro país E alguém do Brasil nos visitar
Vigoroso, leal, rico e feliz Nesse nosso país vai encontrar
Sem dever a ninguém no exterior Confiança, respeito e amizade
Jangadeiro seria o senador Tem o pão repartido na metade,
O cassaco-da-roça era o suplente Tem o prato na mesa, a cama quente
Cantador-de-viola o presidente Brasileiro será irmão da gente
E o vaqueiro era o líder do partido Vai pra lá que será bem recebido
Imagine o Brasil ser dividido Imagine o Brasil ser dividido
E o Nordeste ficar independente E o Nordeste ficar independente

Em Recife o distrito industrial Eu não quero com isso que vocês


O idioma ia ser “nordestinense”; Imaginem que eu tento ser grosseiro
A bandeira, de renda cearense; Pois se lembrem que o povo brasileiro
“Asa Branca” era o hino nacional; É amigo do povo português
O folheto era o símbolo oficial Se um dia a separação se fez
A moeda, o tostão de antigamente; Todos os dois se respeitam no presente;
Conselheiro seria o inconfidente; Se isso aí já deu certo antigamente
Lampião, o herói inesquecido Nesse exemplo concreto e conhecido,
Imagine o Brasil ser dividido Imagine o Brasil ser dividido
E o Nordeste ficar independente E o Nordeste ficar independente

(TAVARES; VILANOVA, 1984)

Afere-se, assim, que a recorrência ao romantismo, e à temática por ele suscitada, o da


cultura e da identidade nacional, se processa em nossos mais diversos discursos culturais, nos
mais variados momentos histórico-literários, desde o seu surgimento, como se observou,
através do texto de Ivanildo Vilanova e Bráulio Tavares, o primeiro oriundo de Pernambuco, o
segundo nascido no Estado paraibano. Como quer que seja, o repertório romântico, como uma
espécie de locus de retorno, continua a inspirar a nossa imaginação criadora, tanto em seus
modos eruditos quanto em suas formas populares. Nessa perspectiva, nos voltaremos para a
leitura de textos emblemáticos dessa constante operação de regresso aos assuntos e aos modos
do romantismo, pela via da tradição e da contradição, no capítulo que se segue.
101

RETOMADA E ATUALIDADE DAS MARCAS ROMÂNTICAS

O Brasil não é para principiantes.

Tom Jobim

E pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz.

Chico Buarque
102

RETOMADA E ATUALIDADE DAS MARCAS ROMÂNTICAS

O que hoje é evidência foi outrora imaginação.

William Blake

Criamos assim um pequeno mundo, unicamente nosso.

José de Alencar

1. As marcas românticas na poesia parnasiana e simbolista

Raimundo Correia

Banzo (1898)

Visões que n’alma o céu do exílio incuba, Como o guaraz nas rubras penas dorme,
Mortais visões! Fuzila o azul infando... Dorme em nimbos de sangue o sol culto...
Coleia, basilisco de ouro, ondeando Fuma o saibro africano incandescente...
O Níger... Bramem leões de fulva juba...

Uivam chacais... Ressoa a fera tuba Vai co’a sombra crescendo o vulto enorme
Dos cafres, pelas grotas retumbando, do baobá... E cresce n’alma o vulto
E a estralada das árvores, que um bando De uma tristeza, imensa, imensamente...
De paquidermes colossais derruba..
(CORREIA, 1948, p.181, v. 1)

Olavo Bilac

Música brasileira (1918)

Tens, às vezes, o fogo soberano És samba e jongo, xiba e fado, cujos


Do amor: encerras na cadência, acesa Acordes são desejos e orfandades
Em requebros e encantos de impureza, De selvagens, cativos e marujos:
Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza E em nostalgias e paixões consistes,


Dos desertos, das matas e do oceano: Lasciva dor, beijo de três saudades,
Bárbara poracé, banzo africano, Flor amorosa de três raças tristes.
E soluços de trova portuguesa.
(BILAC, 1978, p. 177)
103

Cruz e Sousa

Escravocratas (18??)

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio O basta gigantesco, imenso, extraordinário –
Manhosos, agachados – bem como um crocodilo, Da branca consciência – o rútilo sacrário
Viveis sensualmente à luz dum privilégio No tímpano do ouvido – audaz não me soar.
Na pose bestial dum cágado tranquilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas Eu quero em rude verso altivo adamastórico,


Ardentes do olhar – formando uma vergasta Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas, Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!
E vibro-me à espinha – enquanto o grande basta

(SOUSA, 2008, p. 67, v. 1)

Perante a morte (1905)

Perante a Morte empalidece e treme, Silêncio e prece no fatal segredo,


Treme perante a Morte, empalidece. Perante o pasmo do sombrio medo
Coroa-te de lágrimas, esquece Da Morte e os seus aspectos reverentes...
O Mal cruel que nos abismos geme.
Silêncio para o desespero insano,
Ah! longe o Inferno que flameja e freme, O furor gigantesco e sobre-humano,
Longe a Paixão que só no horror floresce... A dor sinistra de ranger os dentes!
A alma precisa de silêncio e prece,
Pois na prece e silêncio nada teme. (SOUSA, 2008, p. 541, v. 1)

Jorge de Lima

Foi mudando, mudando (1947)

Tempos e tempos passaram Foi negro, índio ou foi cristão?


Por sobre teu ser. Quem foi que mudou teu leite,
Da era cristã de 1500 teu sangue, teus pés,
até estes tempos severos de hoje, teu modo de amar,
quem foi que formou de novo teu ventre, teus santos, teus ódios,
teus olhos, tua alma? teu fogo,
Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão? teu suor,
Os modos de rir, o jeito de andar, tua espuma,
pele, tua saliva, teus abraços, teus suspiros, tuas comidas,
gozo, tua língua?
coração... Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?
Negro, índio ou cristão?
Quem foi que te deu esta sabedoria, (LIMA, 1974, p. 174-175, v.1)
mais dengo e alvura,
cabelo escorrido, tristeza do mundo,
desgosto da vida, orgulho de branco, algemas, resgates, alforrias?
104

Rei é Oxalá, rainha é Iemanjá (1947)

Rei é Oxalá que nasceu sem se criar. que nos escravizam, que nos exploram,
Rainha é Iemanjá que pariu Oxalá sem se manchar. a nós operários africanos,
Grande santo é Ogum em seu cavalo encantado. servos do mundo,
Eu cumba vos dou curau. Dai-me licença angana. servos dos outros servos.
Porque a vós respeito, Oxalá! Iemanjá! Ogum!
e a vós peço vingança Há mais de dois mil anos o meu grito nasceu!
contra os demais aleguás e capiangos brancos,
Agô!
(LIMA, 1974, p. 174, v. 1)

2. As linhas românticas no realismo / naturalismo

Machado de Assis

Epitáfio do México (1864)

Dobra o joelho: – é um túmulo. Venceu a força indômita:


Embaixo amortalhado Mas a infeliz vencida
Jaz o cadáver tépido A mágoa, a dor, o ódio,
De um povo aniquilado; Na face envilecida
A prece melancólica Cuspiu-lhe. E a eterna mácula
Reza-lhe em torno à cruz. Seus louros murchará.

Ante o universo atônito E quando a voz fatídica


Abriu-se estranha liça, Da santa liberdade
Travou-se a luta férvida Vier em dias prósperos
Da força e da justiça; Clamar à humanidade,
Contra a justiça, ó século, Então revivo o México
Venceu a espada e o obus. Da campa surgirá.

(ASSIS, 1994, p. 22, v. 3).

HINO PATRIÓTICO (1863)

Brasileiros! haja um brado Pela liberdade ufana, Brasileiros! haja um brado


Nesta terra do Brasil: Ufana pela honradez, Nesta terra do Brasil:
Antes a morte de honrado Esta terra americana, Antes a morte de honrado
Do que a vida infame e vil! Bretão, não te beija os pés. Do que a vida infame e vil!

O leopardo aventureiro, Brasileiros! haja um brado...


Garra curva, olhar feroz,
Busca o solo brasileiro, Nação livre, é a nossa glória,
Ruge e investe contra nós. Rejeitar grilhão servil;
Pareça a nossa memória
Brasileiros! haja um brado... Salva a honra do Brasil.

Quer estranho despotismo Brasileiros! haja um brado...


Lançar-nos duro grilhão;
Será o sangue o batismo Podes vir, nação guerreira;
Da nossa jovem nação. Nesta suprema aflição,
Cada peito é uma trincheira,
Brasileiros! haja um brado... Cada bravo um Cipião. (ASSIS, 1994, p. 298-299, v. 3)
105

Pai contra mãe (1906 – fragmentos)

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos [...] Há meio século, os escravos fugiam com frequência.
Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem
todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que
servia de padrinho, e mesmo o dono não era mau; além disso, o sentimento de propriedade moderava a
ação, porque dinheiro também dói (ASSIS, 1994, p. 659, v. 1).

Aluísio Azevedo

O mulato (1891 – fragmentos)

E Raimundo revoltava-se. “Pois, melhores que fossem as suas intenções, todos ali o evitavam, porque
a sua pobre mãe era preta e fora escrava? Mas, que culpa tinha ele em não ser branco e não ter nascido
livre?... Não lhe permitiam casar com uma branca? De acordo! Vá que tivessem razão! mas por que
insultá-lo e persegui-lo? Ah! Amaldiçoada fosse aquela maldita raça de contrabandistas que introduziu
o africano no Brasil! Maldita mil vezes maldita! Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo
desespero e a mesma humilhação sem remédio? E quantos outros não gemiam no tronco, debaixo do
relho? E lembrar-se que ainda havia surras e assassinos irresponsáveis, tanto nas fazendas como nas
capitais!... Lembrar-se de que ainda nasciam cativos, porque muitos fazendeiros, apalavrados com o
vigário da freguesia, batizavam ingênuos como nascidos antes da Lei do Ventre Livre!... Lembrar-se
que a consequência de tanta perversidade seria uma geração de infelizes, que teriam de passar por aquele
inferno em que agora se debatia vencido! E ainda o governo tinha escrúpulos de acabar por uma vez
com a escravatura; ainda dizia descaradamente que o negro era uma propriedade, como se o roubo, por
ser comprado e revendido, em primeira mão ou em segunda, ou em milésima, deixasse por isso de ser
um roubo para ser uma propriedade!” (AZEVEDO, 2001, p.162-163).

Euclides da Cunha

Os sertões (1902 – fragmentos)

O sertanejo

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do
litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica
impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso,
desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza,
sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados [...] É o homem
permanentemente fatigado. Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra
remorada, no gosto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na
tendência constante à imobilidade e quietude. Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é
mais surpreendente do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se,
em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o
desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos,
novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada
pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos
os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta,
inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento
surpreendente de força e agilidade extraordinárias. Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-
se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja (CUNHA, 1992, p. 95-96).
106

Lima Barreto

Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919 – fragmentos)

Gonzaga de Sá, dizia-me: – A mais estúpida mania dos brasileiros, a mais estulta e lorpa, é a da aristocracia.
Abre aí um jornaleco, desses de bonecos, e logo dás com uns clichês muito negros... Olha que ninguém
quer ser negro no Brasil!... Dás com uns clichês muito negros encimados pelos títulos: Enlace Souza e
Fernandes, ou Enlace Costa e Alves. Julgas que se trata de grandes famílias nobres? Nada disso. São
doutores arrivistas, que se casam muito naturalmente com filhas de portugueses enriquecidos. Eles
descendem de fazendeiros arrebentados, sem nenhuma nobreza e os avós da noiva estão ainda à rabiça do
arado na velha gleba de Minho e doidos pelo caldo de unto à tarde. Sabes bem que não tenho superstição
de raça, de cor, de sangue, de casta, de coisa alguma. Para mim, só há indivíduos e eu, mais do que ninguém,
pois descendo dos Sás que fundaram esta minha cidade, podia tê-las. Mas sei o que era necessário para tê-
las. Precisava, para me considerar nobre, que meus avós tivessem obedecido, a todas as regras da nobreza.
Eles se casaram em toda parte, eles nunca se importaram com os seus forais, agora vou eu tolamente gritar
por aí, pela rua do Ouvidor: eu sou Sá, nobre, fidalgo, escudeiro etc., etc., pois descendo de Salvador de Sá
etc.; etc. Isto digo eu que sou Sá!... Agora imagina tu um Fernandes aí qualquer com tais prosápias! Uma
instituição só é válida quando é mantida com as suas leis – os nobres aqui degradaram-se porque não
respeitaram as regras da Linhagem... Sabes bem o que quer dizer degradar nos códigos de nobreza? – Sei!
E’ voltar, por inobservância de disposições deles, ao terceiro estado, onde, para a verdadeira nobreza, está
incluída a burguesia. Os Colberts, os antepassados dos grandes ministros... Degradaram-se,
voluntariamente, para ser tapeceiros em Lyon, creio eu – concluiu o meu amigo [...] Um pouco longe do
botequim, ele me fez parar e falou-me assim: – Fugi dessa gente de Petrópolis, porque, para mim, eles são
estrangeiros, invasores, as mais das vezes sem nenhuma cultura e sempre rapinantes, sejam nacionais ou
estrangeiro. Eu sou Sá, sou do Rio de Janeiro, com seus tamoyos, seus negros, seus mulatos, seus cafuzos
e seus “galegos” também... (BARRETO, 1956, p. 57-59 – grifos do autor)

Clara dos Anjos (1925 – fragmentos)

Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao calor, à meiguice, ao entono amoroso daquela voz. Era
mesmo um bom, um sincero, um namorado, mais que isto, um noivo – esse Cassi. – Por que você não me
“pede” a papai? – perguntou-lhe um dia. Cassi, sem hesitação, com o mais convincente tom de franqueza,
respondeu: – Não posso ainda, meu bem [...] Os sintomas de gravidez, por ora, não se faziam sentir. É
verdade que tinha náuseas, enjoos, sem nem motivo; mas ela dissimulava-os tão bem, que sua mãe nada
percebia. Dona Engrácia mesmo era de seu natural pouco sagaz e tinha grande confiança na vigilância que
exercia sobre a filha [...] Na rua, Clara pensou em tudo aquilo [...] Agora é que tinha a noção exata da sua
situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ou vir
os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era
muito menos no conceito de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!... A educação que
recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a
honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente...
O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela
gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um
carteiro! O que era preciso, tanto a ela quanto às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade,
como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra
todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a
fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam... Chegaram em casa;
Joaquim ainda não tinha vindo. Dona Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha
e da mãe. Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente
sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero: – Mamãe! Mamãe! – Que é minha filha? – Nós não
somos nada nesta vida (BARRETO, 1988, p. 112-124).
107

3. Os traços românticos no modernismo e na contemporaneidade

Francisco de Assis e Carlos Lyra

O subdesenvolvido (CPC – Centro Popular de Cultura: UNE – 1962)


Letra: Francisco de Assis
Música: Carlos Lyra

O Brasil é uma terra de amores E os nossos amigos americanos


alcatifada de flores Com muita fé, com muita fé
onde a brisa fala amores Nos deram e nós plantamos
nas lindas tardes de abril. Só café, só café
Correi pras bandas do sul É uma terra em que se plantando tudo dá
debaixo de um céu de anil Mas eles resolveram que nós devíamos plantar
encontrareis um gigante deitado Só café, só café
Santa Cruz Bento que bento é frade
Hoje o Brasil. Na boca do forno – forno
Mas um dia o gigante despertou Tirai um bolo – bolo
deixou de ser gigante adormecido Fareis tudo que seu mestre mandar?
e dele um anão se levantou Faremos todos, faremos todos
era um país subdesenvolvido Começaram a nos vender e a nos comprar
Comprar borracha – vender pneu
Subdesenvolvido Comprar minério – vender navio
Subdesenvolvido P’ra nossa vela – vender pavio
Subdesenvolvido Só mandaram o que sobrou de lá.
Subdesenvolvido Matéria plástica, que entusiástica, que coisa
elástica, que coisa drástica
E passado o período colonial Rock balada, filme de mocinho
O país passou a ser um bom quintal Ar refrigerado e chiclet de bola
E depois de dada a conta a Portugal E coca-cola
Instaurou-se o latifúndio nacional Subdesenvolvido, etc.
Subdesenvolvido, etc. O povo brasileiro tem personalidade
Então o bravo povo brasileiro Não se impressiona com facilidade
Em perigos e guerras esforçado Embora pense como americano
Mais que prometia a força humana “I’m going to kill that indian
Plantou couve, colheu banana before he kills me”
Bravo esforço do povo brasileiro Embora dance como americano
Mandou vir capital lá do estrangeiro Embora cante como americano
Subdesenvolvido, etc. Eh boi
As nações do mundo para cá mandaram eh roçado bão
Os seus capitais tão desinteressados o meior do meu sertão
As nações, coitadas, queriam ajudar, não é? comero o boi
E aquela Ilha Velha não roubou ninguém Subdesenvolvido, etc.
País de pouca terra só nos fez um bem O povo brasileiro embora pense

Um Big-Ben um Big-Ben Dance e cante como americano


Ben-Ben Não come como americano
Ben-Ben Vive menos, sofre mais
Nos deu luz (Ah!) Isso é muito importante
Tirou o ouro (Oh…) Muito mais do que importante
Nos deu trem (Ah!) Pois difere o brasileiro dos demais
Mas levou o nosso tesouro Personalidade, personalidade, personalidade
Subdesenvolvido, etc. Sem igual
Mas data houve em que se acabaram Porém
Os tempos duros e sofridos Subdesenvolvida
Pois um dia aqui chegaram Subdesenvolvida
Os capitais dos Países Amigos Subdesenvolvida
País amigo, desenvolvido Essa é a vida nacional!
País amigo, País amigo
Amigo do subdesenvolvido (ASSIS; LYRA, 1986, p. 224-226)
País amigo, país amigo
108

Mário de Andrade

CARTA PRAS ICAMIABAS Macunaíma (1928 – fragmentos)


Às mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas,
Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis,
São Paulo.

Senhoras:

Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura dessa missiva [...] De outras e muitas
grandezas vos poderíamos ilustrar, senhoras Amazonas, não fora perlongar demasiado esta epístola;
todavia, com afirmar-vos que esta é, por sem dúvida, a mais bela cidade terráquea, muito hemos feito em
favor destes homens de prol. Mas cair-nos-iam as faces, si ocultáramos no silêncio, uma curiosidade
original deste povo. Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam
numa língua e escrevem noutra. Assim chegado a estas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem
nos inteirarmos da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou por certo não
foi das menores tal originalidade linguística. Nas conversas, utilizam-se os paulistanos dum linguajar
bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e
força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. Destas e daquelas nos inteiramos, solícito; e nos será
grata empresa vô-las ensinarmos aí chegado. Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os
naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino,
de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum penegirista,
meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões! De tal originalidade e riqueza
vos há de ser grato ter sciéncia, e mais ainda vos espantareis com saberdes, que à grande e quasi total
maioria, nem essas duas línguas bastam, senão que se enriquecem do mais lídimo italiano, por mais musical
e gracioso, e que por todos os recantos da urbs é versado. De tudo nos inteiramos satisfactoriamente, graças
aos deuses; e muitas horas hemos ganho, discreteando sobre o z do termo Brazil e a questão do pronome
"se". Outrossim, hemos adquirido muitos livros bilíngues, chamados "burros", e o dicionário Pequeno
Larousse; e já estamos em condições de citarmos no original latino muitas frases célebres dos filósofos e
os testículos da Bíblia. Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida
civilização, hão elevado esta grande cidade os seus maiores, também chamados de políticos. Com este
apelativo se designa uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de vós, que os diríeis monstros.
Monstros são na verdade mas na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiéncia, da honestidade e da
moral; e embora algo com os homens se pareçam, originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco têm
de humanos. Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande na gíria familiar, e que demora na
oceánica cidade do Rio de Janeiro – a mais bela do mundo, na opinião de todos os estrangeiros, e que por
meus olhos verifiquei. Finalmente, senhoras Amazonas e muito amadas súbditas, assaz hemos sofrido e
curtido árduos e constantes pesares, depois que os deveres da nossa posição, nos apartaram do Império do
Mato Virgem. Por cá tudo são delícias e venturas, porém nenhum gozo teremos e nenhum descanso,
enquanto não rehouvermos o perdido talismã. Hemos por bem repetir entretanto que as nossas relações com
o doutor Venceslau são as milhores possíveis; que as negociações estão entaboladas e perfeitamente
encaminhadas; e bem poderíeis enviar de antemão as alvíçaras que enunciamos atrás. Com pouco o vosso
abstémio Imperador se contenta; si não puderdes enviar duzentas igaras cheias de bagos de cacau, mandai,
cem, ou menos cinquenta! Recebei a bênção do vosso Imperador e mais saúde e fraternidade. Acatai com
respeito e obediéncia estas mal traçadas linhas; e, principalmente, não vos esqueçais das alvíçaras e das
polonesas, de que muito hemos mister.
Ci guarde a Vossas Excias.
Macunaíma,
Imperator.

(ANDRADE, 1986, p. 59-66)


109

O trovador (1922)

Sentimentos em mim do asperamente


dos homens das primeiras eras…
As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...

Sou um tupi tangendo um alaúde!

(ANDRADE, 1955, p. 37)

Improviso do mal da América (1928)

Grito imperioso de brancura em mim...

Eh coisas de minha terra, passados e formas de agora,


Eh ritmos de síncopa e cheiros lentos de sertão,
Varando contracorrente o mato impenetrável do meu ser...
Não me completam mais que um balango de tango,
Que uma reza de indiano no templo de pedra,
Que a façanha do chim comunista guerreando,
Que prantina de piá, encastoado de neve, filho de lapão.

São ecos. Mesmos ecos com a mesma insistência filtrada


Que ritmos de síncopa e cheiro do mato meu.
Me sinto branco, fatalizadamente um ser de mundos que
[nunca vi.
Campeio na vida a jacumã que mude a direção destas
[igaras fatigadas
E faça tudo ir indo de rodada mansamente
Ao mesmo rolar de rio das aspirações e das pesquisas...
Não acho nada, quási nada, e meus ouvidos vão escutar
[amorosos
Outras vozes de outras falas de outras raças, mais
[formação, mais forçura.
Me sinto branco na curiosidade imperiosa de ser.
Lá fora o corpo de São Paulo escorre vida ao guampaço
[dos arranha-céus,
E dança na ambição compacta de dilúvios de penetras.
Vão chegando italianos didáticos e nobres;
Vão chegando a falação barbuda de Unamuno
Emigrada pro quarto-de-hóspedes acolhedor da Sulamérica;
Bateladas de húngaros, búlgaros, russos se despejam na
[cidade...
Trazem vodca no sapiquá de veludo,
Detestam caninha, detestam mandioca e pimenta,
Não dançam maxixe, nem dançam catira, nem sabem amar
[suspirado.
E de-noite monótonos reunidos na mansarda, bancando
[conspiração
As mulheres fumam feito chaminés sozinhas,
Os homens destilam vícios aldeões na catinga;
110

Continuação...

E como sempre entre eles tem sempre um que manda


[sempre em todos,
Tudo calou de supetão, e no ar amulegado da noite que
[sua...
– Coro? Onde se viu agora coro a quatro vezes, minha
[gente! –
São coros, coros ucranianos batidos ou místicos,
[Sehnsucht d’além-mar!
Home... Sweet home... Que sejam felizes aqui!

Mas eu não posso não me sentir negro nem vermelho!


De certo que essas cores também tecem minha roupa
[arlequinal,
Mas eu não me sinto negro, mas eu não me sinto vermelho,
Me sinto só branco, relumeando caridade e acolhimento,
Purificado nas revoltas contra os brancos, as pátrias, as
[guerras, as posses, as preguiças e ignorâncias!
Me sinto só branco agora, sem ar neste ar-livre da América!
Me sinto só branco, só branco em minha alma crivada
[de raças!
(ANDRADE, 1955, 209-210)

Ode ao burguês (1922 – fragmentos)

Eu insulto o burguês! O burguês níquel, .............................................................................


o burguês-burguês! Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
A digestão bem feita de São Paulo! Morte ao burguês de giolhos,
O homem-curva! o homem-nádegas! cheirando religião e que não crê em Deus!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Ódio fundamento, sem perdão!

Eu insulto as aristocracias cautelosas! Fora! Fu! Fora o bom burguês!...


Os barões lampiões! os condes Joões! Os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos (ANDRADE, 1955, p. 44-45)
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam “Printemps” com as unhas!

Manuel Bandeira

Sextilhas românticas (1948 – fragmentos)

.......................................... Sou assim, por vício inato.


Sou romântico? Concedo. Ainda hoje gosto de Diva,
Exibo, sem evasiva, Nem não posso renegar
A alma ruim que Deus me deu. Peri, tão pouco índio, é fato,
Decorei “Amor e medo”, Mas tão brasileiro... Viva,
“No lar”, “Meus oito anos”... Viva Viva José de Alencar!
José Casimiro Abreu!
(BANDEIRA, 1976, p. 168-169)
111

Evocação do Recife (1930 – fragmentos)

..............................................................................
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
..............................................................................

(BANDEIRA, 1976, p. 106-107)

Consoada (Opus 10 – 1952)

Quando a Indesejada das gentes chegar


(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
(BANDEIRA, 1976, p. 202)

Oswald de Andrade

Canto de regresso à pátria (1925)

Minha terra tem palmares Ouro terra amor e rosas


Onde gorjeia o mar Eu quero tudo de lá
Os passarinhos daqui Não permita Deus que eu morra
Não cantam como os de lá Sem que volte para lá

Minha terra tem mais rosas Não permita Deus que eu morra
E quase que mais amores Sem que volte pra São Paulo
Minha terra tem mais ouro Sem que veja a Rua 15
Minha terra tem mais terra E o progresso de São Paulo

(ANDRADE, 1990, p. 139)


112

Meus oito anos (1927)

Oh que saudades que eu tenho Eu tinha doces visões


Da aurora de minha vida Da cocaína da infância
Das horas Nos banhos de astro-rei
De minha infância Do quintal de minha ânsia
Que os anos não trazem mais A cidade progredia
Naquele quintal de terra Em roda de minha casa
Da Rua de Santo Antônio Que os anos não trazem mais
Debaixo da bananeira Debaixo da bananeira
Sem nenhum laranjais Sem nenhum laranjais

(ANDRADE, 1991, p. 28)

Manifesto Antropófago (1928 – fragmentos)

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A


transformação permanente do Tabu em totem [...] Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua
surrealista. A idade de ouro [...] A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens
físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o
auxílio de algumas formas gramaticais [...] Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação.
Tínhamos Política que é a ciência da distribuição [...] A alegria é a prova dos nove. No matriarcado
de Pindorama [...] A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu
filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É
preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. Contra a realidade
social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucuras, sem
prostituições, e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama (ANDRADE, 1990, p. 48-52 – grifos
nossos).

Murilo Mendes

Canção do exílio (1930)

Minha terra tem macieiras da Califórnia nossas frutas mais gostosas


onde cantam gaturamos de Veneza. mas custam cem mil réis a dúzia.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista, Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
os sargentos do exército são monistas, cubistas, e ouvir um sabiá com certidão de idade!
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir (MENDES, 1994, p. 87)
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas

Homo brasiliensis (1932)

O homem
É o único animal que joga no bicho.

(MENDES, 1994, p. 187)


113

Carlos Drummond de Andrade

Europa, França e Bahia (1930)

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.


Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

O pulo da Mancha num segundo.


Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.
Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um
[tapete para Sua Graciosa Majestade
[Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.

Submarinos inúteis retalham mares vencidos.


O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados.
Hamburgo, embigo do mundo.
Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros
[dentro de alguns anos.
A Itália explora conscienciosamente vulcões apagados,
vulcões que nunca estiveram acesos
a não ser na cabeça de Mussolini.
E a Suíça cândida se oferece
numa coleção de postais de altitudes altíssimas.

Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.

Não há mais Turquia.


O impossível dos serralhos esfacela erotismos prestes a declanchar.
Mas a Rússia tem as cores da vida.
A Rússia é vermelha e branca.
Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista
[e no túmulo de Lênin em Moscou
[parece que um coração enorme está
[batendo, batendo
mas não bate igual ao da gente...

Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a “Canção do exílio”.
Como era mesmo a “Canção do exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!

(ANDRADE, 1988, p. 8)
114

Prece do brasileiro (1970)

MEU DEUS, E você me responde suavemente:


só me lembro de vós para pedir, Escute, meu cronista e meu cristão:
mas de qualquer modo sempre é uma lembrança. essa cantiga é antiga
Desculpai vosso filho, que se veste e de tão velha não entoa não.
de humildade e esperança Você tem a Sudene abrindo frentes
e vos suplica: Olhai para o Nordeste de trabalho de emergência, antes fechadas.
onde há fome, Senhor, e desespero tem a ONU, que manda toneladas
rodando nas estradas de pacotes à espera de haver fome.
entre esqueletos de animais. Tudo está preparado para a cena
dolorosamente repetida
Em Iguatu, Parambu, Baturité, no mesmo palco. O mesmo drama, toda vida.
Tauá
(vogais tão fortes não chegam até vós?) No entanto, você sabe,
vede as espectrais você lê os jornais, vai ao cinema,
procissões de braços estendidos, até um livro de vez em quando lê
assaltos, sobressaltos, armazéns se o Buzaid não criar problemas:
arrombados e – o que é pior – não tinham nada. Em Israel, minha primeira pátria
Fazei, Senhor, chover a chuva boa, (a segunda é a Bahia)
aquela que, florindo e reflorindo, soa desertos se transformam em jardins
qual cantata de Bach em vossa glória em pomares, em fontes, em riquezas.
e dá vida ao boi, ao bode, à erva seca, E não é por milagre:
ao pobre sertanejo destruído obra do homem e da tecnologia.
no que tem de mais doce e mais cruel: Você, meu brasileiro,
a terra estorricada sempre amada. não acha que já é tempo de aprender
e de atender àquela brava gente
Fazei, chover, Senhor, e já! numa certeira fugindo à caridade de ocasião
ordens às nuvens. Ou desobedecem e ao vício de esperar tudo da oração?
a vosso mando, as revoltosas? Tudo
é pois contestação? Fosse eu Vieira Jesus disse e sorriu. Fiquei calado.
(o padre) e vos diria, malcriado, Fiquei, confesso, muito encabulado,
muitas e boas... mas sou vosso fã mas pedir, pedir sempre ao bom amigo
omisso, pecador, bem brasileiro. é balda que carrego aqui comigo.
Comigo é na macia, no veludo/lã Disfarcei e sorri. Pois é, meu caro.
e matreiro, rogo, não Vamos mudar de assunto. Eu ia lhe falar
ao Senhor Deus dos Exércitos (Deus me livre) noutro caso, mais sério, mais urgente.
mas ao Deus que Bandeira, com carinho
botou em verso: “meu Jesus Cristinho”. Escute aqui, ó irmãozinho.
E mudo até o tratamento: por que vós, Meu coração, agora, tá no México
tão gravata-e-colarinho, tão batendo pelos músculos de Gérson,
vossa excelência? a unha de Tostão, a ronha de Pelé,
O você comunica muito mais a cuca de Zagalo, a calma de Leão
e se agora o trato de você, e tudo mais que liga o meu país
ficamos perto, vamos papeando e uma bola no campo e uma taça de ouro.
como dois camaradas bem legais, Dê um jeito, meu velho, e faça que essa taça
um, puro; o outro, aquela coisa, sem milagres ou com ele nos pertença
quase que maldito para sempre, assim seja... Do contrário
mas amizade é isso mesmo: salta ficará a Nação tão malincônica,
o vale, o muro, o abismo do infinito. tão roubada em seu sonho e seu ardor
Meu querido Jesus, que é que há? que nem sei como feche a minha crônica.
Faz sentido deixar o Ceará
sofrer em ciclo a mesma eterna pena?

(ANDRADE, 1988, p. 938-940 – grifos do autor)


115

Nova canção do exílio (1945)

UM sabiá Onde é tudo belo


na palmeira, longe. e fantástico,
Estas aves cantam só, na noite,
um outro canto. seria feliz.
(Um sabiá,
O céu cintila na palmeira, longe.)
sobre flores úmidas.
Vozes na mata, Ainda um grito de vida e
e o maior amor. voltar
para onde é tudo belo
Só, na noite, e fantástico:
seria feliz: a palmeira, o sabiá,
um sabiá, o longe.
na palmeira, longe.

(ANDRADE, 1988, p. 117)

O Deus de cada homem (1973)

Quando digo “meu Deus”, Quando digo “meu Deus”,


afirmo a prosperidade. grito orfandade.
Há mil deuses pessoais O rei que me ofereço
em ninchos da cidade. rouba-me a liberdade.

Quando digo “meu Deus”, Quando digo “meu Deus”,


crio cumplicidade. choro minha ansiedade.
Mais fraco, sou mais forte Não sei que fazer dele
do que a desirmandade. na microeternidade.

(ANDRADE, 1988, p. 404-405)

Único (1973)

O único assunto é Deus o único impossível é Deus


o único problema é Deus o único absurdo é Deus
o único enigma é Deus o único culpado é Deus
0 único possível é Deus e o resto é alucinação.

(ANDRADE, 1988, p. 404)

Ribeiro Couto

Fátima (1946)

A que falou com meiguice Mas não foi durante o dia, Que nestas serras e campos
A três crianças do povo Com muita gente a esperá-la Nossa Senhora, escondia,
Por aqui andou de novo, E a igreja de grande gala: Só sai à noite, vestida
Pena é que ninguém a visse. Foi tarde e tudo dormia. De estrelas e pirilampos.

(COUTO, 2002, p. 135)


116

José Paulo Paes


À moda da casa (1967) Canção do exílio facilitada (1967)

feijoada lá? sofá...


marmelada ah! sinhá...
goleada
quartelada sabiá... cá?
papá... bah!
maná...

(PAES, 2003, p. 121) (PAES, 2003, p. 130)

DO NOVÍSSIMO TESTAMENTO (1980)

e levaram-no maniatado

e despindo-o o cobriram com uma capa de


escarlata

e tecendo uma coroa d’espinhos puseram-lha na


cabeça e em sua mão direita uma cana e
ajoelhando diante dele o escarneciam

e cuspindo nele tiraram-lhe a cana e batiam-lhe


com ela na cabeça

e depois de o haverem escarnecido tiraram-lhe


a capa vestiram-lhe os seus vestidos e o levaram
a crucificar

o secretário da segurança admitiu os excessos


dos policiais e afirmou que já mandara abrir
inquérito para punir os responsáveis

(PAES, 2003, p. 149)

Ao shopping center (1988)

Pelos teus círculos Cada loja é um novo


vagamos sem rumo prego em nossa cruz.
nós almas penadas Por mais que compremos
do mundo do consumo. estamos sempre nus

De elevador ao céu nós que por teus círculos


pela escada ao inferno: vagamos sem perdão
os extremos se tocam à espera (até quando?)
no castigo eterno. da Grande Liquidação.

(PAES, 2003, p. 197)


117

Mário Chamie

SIDERURGIA S.O.S. (1967)

Se der o ouro: sidéreo opus horáriO

Sem sol o sal do erário: saláriO

Se der orgia/semistério: o empresáriO

Siderurgia do opus o só do eráriO

Se der a via do pus opus erradO

Se der o certo no errado: o empregadO

Se der errado no certo: o emprecáriO

(CHAMIE, 1978, p. 82)

Graciliano Ramos

Memórias do cárcere (1953 – fragmentos)

Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara
colônia alemã. Pior: numa colônia italiana. Mussolini era um grande homem, e escritores nacionais celebravam
nas folhas as virtudes do óleo de rícino [...] Achava-me ali diante de criaturas supliciadas e, consequentemente,
envilecidas. A minha educação estúpida não admitia que um ser humano fosse batido e pudesse conservar qualquer
vestígio de dignidade [...] Mas surra – santo Deus! – era a degradação irremediável. Lembrava o eito, a senzala, o
tronco, o feitor, o capitão-de-mato. O relho, a palmatória, sibilando, estalando no silêncio da meia-noite, chumaço
de pano sujo na boca de um infeliz, cortando-lhe a respiração. E nenhuma defesa [...] Exposição humilhante era a
sórdida latrina, completamente visível. Sobre o vaso imundo havia uma torneira; recorríamos a ela para lavar as
mãos e o rosto, escovar os dentes. As dejeções seriam feitas em público. A ausência de porta, de simples cortina,
só se explicava por um intuito claro da ordem: vilipendiar os hóspedes [...] Várias pessoas estavam ali sem
processo, algumas deviam quebrar a cabeça a indagar porque as tratavam daquele jeito; não havia julgamento e
expunham claro o desejo de assassiná-las. Não nos faziam ameaça vã, como notei depois [...] Isso me trouxe ao
pensamento a brandura dos nossos costumes, a índole pacífica nacional apregoada por sujeitos de má fé ou
idiotas. Em vez de meter-nos em forno crematório, iam destruir-nos pouco a pouco. Certamente era absurdo
responsabilizar o Brasil, quarenta milhões de habitantes [...] Uma noite chegaram-nos gritos medonhos [...] Vão
levar Olga Benário [...] Em duro silêncio, fumando sem descontinuar, sentia na alma um frio desalento. Mas por
que, na horrível ignomínia, haviam dado preferência a duas criaturas débeis? Elisa Berger, presa, era tão inofensiva
quanto o marido, preso também. Contudo iam oferecê-la aos carrascos alemães, e Harry Berger permanecia aqui,
ensandecido na tortura [...] À noite, na sala 4, Elisa despertava banhada num suor de agonia, os olhos espavoridos.
A lembrança dos tormentos não a deixava; um relógio interior indicava o instante exato em que, meses atrás, a
seviciavam na presença de Harry, imóvel, impotente. Olga Prestes, casada com brasileiro, estava grávida. Teria
filho entre inimigos, numa cadeia. Ou talvez morresse antes do parto. A subserviência das autoridades reles a um
despotismo longínquo enchia-me de tristeza e vergonha. Almas de escravos, infames; adulação torpe à ditadura
ignóbil. Nasceria longe uma criança, envolta nas brumas do Norte; ventos gelados lhe magoariam a carne trêmula
e roxa. Miséria – e nessa miséria abatimento profundo [...] Tarde, a matilha sugeriu um acordo: Olga e Elisa seriam
acompanhadas por amigos, nenhum mal lhes fariam. Aceita a proposta, arrumaram a bagagem, partiram juntas a
Campos da Paz Filho e Maria Werneck. Ardil grosseiro. Apartaram-nos lá fora. Campos da Paz e Maria Werneck
regressaram logo ao Pavilhão dos Primários. Olga Prestes e Elisa Berger nunca mais foram vistas. Soubemos
depois que tinham sido assassinadas num campo de concentração na Alemanha (RAMOS, 1976, p. 50; 138; 194
[v.1]; 65; 263- 267 [v.2] – grifos nossos).
118

Racionais MC’s
Capítulo 4, versículo 3 (1998 – fragmentos)
Letra e música: Mano Brown

"60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo"
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente
......................................................................................
Vinte e sete anos contrariando a estatística
Seu comercial de TV não me engana
Eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
..............................................................
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Apoiado por mais de 50 mil manos
Efeito colateral que o seu sistema fez
Racionais capítulo 4 versículo 3. (RACIONAIS MC’S, 1998)

Vanderley Caixe

Os que caminham no pátio da prisão (1999)

CENTENAS de criminosos caminham ao meu lado;


todos os criminosos, pobres!
Aqui, não há criminosos ricos!
Por anos inteiros, os pobres caminham ao meu lado.
Os ricos não caminham, aqui!
Este é o caminho dos pobres!
NO PÁTIO da prisão, um ladrão caminha ao meu lado.
Nas portas de ferro, vários guardas nos vigiam.
Nos muros e nas muralhas, os soldados estão atentos.
Nas suas casas, os juízes e promotores dormem
o sono dos justos,
assalariados augustos!
E a sociedade está salva dos criminosos pobres.

(CAIXE, 1999, p. 16)

Sérgio de Castro Pinto

geração 60 (1983)
a carta branca do montilla
não era de alforria.

o papagaio era calado.

o cuba-libre nos prendia.

e em barris de carvalho
o tempo envilecia.

(PINTO, 1996, p. 55)


119

Rinaldo de Fernandes

O perfume de Roberta (2005 – fragmentos)

O mendigo atravessava a avenida, passa pela Kombi estacionada do restaurante, vem vindo na minha
direção. Chega até a minha mesa, pede-me um trocado, a barba, com os golpes do vento, tremendo. Puxo a
carteira, passo-lhe uma moeda [...] O mendigo vê os tênis amarelos perto da planta, apanha-os, enfia nos
pés, arrodeia pelo outro lado (o garçom, dependurado na cadeira, de novo cochilando). Atravessa
novamente a avenida, segue na direção de um prédio inacabado de alguns andares, as paredes pretas,
deterioradas [...] Após o casal voltar para a mesa, o homem segue até o garçom, faz gestos duros, querendo
saber dos tênis. O garçom, batendo muito as pestanas, passa a mão no rosto, diz que não sabe de nada. O
homem dá um grito, diz que não pode, os tênis estavam ali [...] – Quem foi? Eu tento me erguer, ele planta
a mão no meu ombro: – Fala! Aponto para o outro lado da avenida: – Suba ali no edifício, no último andar
[...] Dá para perceber pelos buracos o homem subindo escadas, detendo-se em portas, dobrando corredores.
Um homem caçando um mendigo dentro de um velho prédio [...] Vejo quando o homem, no alto, arrasta o
mendigo pelos cabelos, bate-lhe com a cabeça no cimento aos berros: – Filho da puta! Segura mais firme e
volta a bater com o outro no cimento. Algo agora brilha (sangue? suor?) [...] Sinto que a vontade do homem
é mesmo jogar o mendigo lá de cima, do quarto andar, de atirá-lo em cima dos restos de tábuas
(FERNANDES, 2005, p. 17-19).

Leila Miccolis
Pena de morte (1976 – fragmentos)

Eram bastante bons


aqueles tempos de ódio
em que planejávamos nossos assassinatos,
pelo simples prazer de nos vingarmos:
..................................................................

(MICCOLIS, 1981, p. 150)

Max Gonzaga

Classe Média (2005)


Letra e música: Max Gonzaga

Sou classe média Mas se o assalto é em moema


Papagaio de todo telejornal O assassinato é no "jardins"
Eu acredito A filha do executivo é estuprada até o fim
Na imparcialidade da revista semanal Aí a mídia manifesta a sua opinião regressa
Sou classe média De implantar pena de morte, ou reduzir a idade penal
Compro roupa e gasolina no cartão E eu que sou bem informado concordo e faço passeata
Odeio "coletivos" Enquanto aumenta a audiência e a tiragem do jornal
E vou de carro que comprei a prestação Porque eu não "to nem ai"
Só pago impostos Se o traficante é quem manda na favela
Estou sempre no limite do meu cheque especial Eu não "to nem aqui"
Eu viajo pouco, no máximo um pacote cvc tri-anual Se morre gente ou tem enchente em itaquera
Mas eu "to nem ai" Eu quero é que se exploda a periferia toda
Se o traficante é quem manda na favela Toda tragédia só me importa quando bate em minha porta
Eu não "to nem aqui" Porque é mais fácil condenar quem já cumpre pena de
Se morre gente ou tem enchente em itaquera vida
Eu quero é que se exploda a periferia toda
Mas fico indignado com estado quando sou incomodado (GONZAGA, 2005 – grifos nossos)
Pelo pedinte esfomeado que me estende a mão
O para-brisa ensaboado
É camelo, biju com bala
E as peripécias do artista malabarista do farol
120

Chico Buarque

Iracema voou (1998)

Iracema voou Canto lírico


Para a América Não dá mole pra polícia
Leva roupa de lã Se puder, vai ficando por lá
E anda lépida Tem saudade do Ceará
Vê um filme de quando em vez Mas não muita
Não domina o idioma inglês Uns dias, afoita
Lava chão numa casa de chá Me liga a cobrar:
– É Iracema da América
Tem saído ao luar
Com um mímico
Ambiciona estudar

(BUARQUE HOMEM, 2009, p. 294)

Chico Buarque de Holanda & Ruy Guerra


Fado tropical (1972-1973)

Oh, musa do meu fado Se trago as mãos distantes do meu peito


Oh, minha mãe gentil É que há distância entre intenção e gesto
Te deixo consternado E se o meu coração nas mãos estreito
No primeiro abril Me assombra a súbita impressão de incesto
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou Quando me encontro no calor da luta
E em tua densa mata Ostento a aguda empunhadura à proa
Se perdeu e se encontrou Mas eu o meu peito se desbotoa
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
“Sabe, no fundo eu sou um sentimental Pois que senão o coração perdoa...”
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa
dosagem de lirismo... (além da sífilis, é claro) Guitarras e sanfonas
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em Jasmins, coqueiros, fontes
torturar, esganar, trucidar Sardinhas, mandioca
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...” Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Com avencas na caatinga Que corre Trás-os-Montes
Alecrins no canavial E numa pororoca
Licores na moringa Deságua no Tejo
Um vinho tropical Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
E a linda mulata Ainda vai tornar-se um império colonial
Com rendas do Alentejo Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
De quem numa bravata Ainda vai tornar-se um império colonial
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal (BUARQUE; GUERRA, 2009, p. 112-113)

“Meu coração tem um sereno jeito


E as minhas o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
121

Tom Jobim &Chico Buarque de Holanda


Sabiá (1968)

Vou voltar Vou voltar


Sei que ainda vou voltar Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar Não vai ser em vão
Foi lá e é ainda lá Que fiz tantos planos
Que eu hei de ouvir cantar De me enganar
Uma sabiá Como fiz enganos
Cantar uma sabiá De me encontrar
Como fiz estradas
Vou voltar De me perder
Sei que ainda vou voltar Fiz de tudo e nada
Vou deitar à sombra De te esquecer
De uma palmeira
Que já não há Vou voltar
Colher a flor Sei que ainda vou voltar
Que já não dá Para o meu lugar
E algum amor Foi lá e é ainda lá
Talvez possa espantar Que eu hei de ouvir cantar
As noites que eu não queria Uma sabiá
E anunciar o dia Cantar uma sabiá

(JOBIM; BUARQUE, 2009, p. 68-69)

Cacaso (António Carlos de Brito)

Jogos florais (1975)

I II
Minha terra tem palmeiras Minha terra tem Palmares
onde canta o tico-tico. memória cala-te já.
Enquanto isso o sabiá Peço licença poética
vive comendo o meu fubá. Belém capital Pará.

Ficou moderno o Brasil Bem, meus prezados senhores


ficou moderno o milagre: dado o avançado da hora
a água já não vira vinho, errata e efeitos do vinho
vira direto vinagre. o poeta sai de fininho.

(será mesmo com 2 esses (CACASO, 1985, p. 110-111)


que se escreve paçarinho?)

Logias e analogias (1974)

No Brasil a medicina vai bem


mas o doente ainda vai mal.
Qual o segredo profundo
desta ciência original?
É banal: certamente
não é o paciente
que acumula capital.

(CACASO, 1985, p. 108)


122

Bráulio Tavares

Caldeirão dos mitos (1980)

Eu vi o céu à meia-noite Vi um magrelo amarelado


Se avermelhando num clarão Passando a perna no patrão
Como incêndio anunciado Não foi ninguém da Inglaterra
No apocalipse de São João Nem de Paris, nem do Japão
Porém não era nada disso Era Pedro Malazarte
Era um Curisco, era um Lampião Era João Grilo e era Cancão

Eu vi um risco nos espaços Eu vi o sol ao meio-dia


Era um revoo do sanhaçu No meio do chão do Ceará
Eu vi o dia amanhecendo Não era o coro dos Arcanjos
No ronco do maracatu Nem era a voz de Jeová
Não era lança de São Jorge Era uma cascavel armando o bote
Era o espinho do mandacaru Balançando o maracá

Vi um profeta conduzindo Vi uma mão fazer o barro


Nos arraiais as multidões Um homem forte
Pra construir um chão sagrado Um homem nu
Com espingardas e facões Um homem branco como eu

Não foi Moisés na Palestina Um homem preto como tu


Foi Conselheiro andando nos sertões. Porém não foi a mão de Deus
Foi Vitalino de Caruaru
Eu vi o som na escadaria
Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó
Não era o eco das trombetas
De Josué em Jericó
Era um fole de oito baixos
A tocar numa noite de forró (TAVARES, 1980)

Solano Trindade

CONVERSA (1961)

– Eita negro! Eita! quanta coisa


quem foi que disse tu tens pra contar...
que a gente não é gente? não conta mais nada,
quem foi esse demente, pra eu não chorar –
se tem olhos não vê...

– Que foi que fizeste mano E tu, Manoel,


pra tanto falar assim? que andaste a fazer
– Plantei os canaviais do nordeste – Eu sempre fui malandro,
– E tu, mano, o que fizeste? Ó tia Maria,
– Eu plantei algodão gostava de terreiro,
nos campos do sul como ninguém,
pros homens de sangue azul subi para o morro,
que pagavam o meu trabalho fiz sambas bonitos,
com surras de cipó-pau. conquistei as mulatas
bonitas de lá...
123

Continuação...

– Basta, mano, Eita negro!


para eu não chorar, – Quem foi que disse
e tu, Ana, que a gente não é gente?
conta-me tua vida, Quem foi esse demente,
na senzala, no terreiro se tem olhos não vê.
– Eu...
Cantei embolada,
pra sinhá dormir,
fiz tranças nela,
pra sinhá sair,
tomando cachaça,
servi de amor,
dancei no terreiro,
pra sinhozinho,
apanhei surras grandes, (TRINDADE, 1987, p. 150-151)
sem mal eu fazer.

Conceição Evaristo

VOZES-MULHERES (2008)

A voz de minha bisavó A voz de minha filha


ecoou criança recorre todas as nossas vozes
nos porões do navio. recolhe em si
ecoou lamentos as vozes mudas caladas
de uma infância perdida. engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
A voz de minha avó recolhe em si
ecoou obediência a fala e o ato.
aos brancos-donos de tudo. O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
A voz de minha mãe se fará ouvir a ressonância
ecoou baixinho revolta o eco da vida-liberdade.
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda


ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome. (EVARISTO, 2008, p. 10-11)
124

Paulo César Pinheiro

CABOCLO GUARACY (2010)

Eu vi brilhar, eu vi
No meio da mata, eu vi
A pena de prata
Do Caboclo Guaracy

O seu arco é de ouro do sol


Sua flecha é um raio de lua
Guardião da floresta
Real sentinela
Da mata que é sua

Ele é filho da dona do rio


E se benze com a erva que queima
Bebe a água da casca
Do pé de aroeira
E licor de Jurema.

Kiô, kiô, kiô, kiô, que era


Seu Guaracy vigia a mata
Seu Guaracy domina a fera

(PINHEIRO, 2010, p. 242)


125

4 O romantismo em nossa feição patriótica

Hino Nacional (1822)


Letra: Joaquim Osório Duque Estrada
Música: Francisco Manuel da Silva

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas Deitado eternamente em berço esplêndido,


De um povo heroico o brado retumbante, Ao som do mar e à luz do céu profundo,
E o sol da Liberdade, em raios fúlgidos, Fulguras, ó Brasil, florão da América,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante. Iluminado ao sol do Novo Mundo!

Se o penhor dessa igualdade Do que a terra mais garrida


Conseguimos conquistar com braço forte, Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
Em teu seio, ó Liberdade, "Nossos bosques têm mais vida";
Desafia o nosso peito a própria morte! "Nossa vida" no teu seio "mais amores".

Ó Pátria amada, Ó Pátria amada,


Idolatrada Idolatrada
Salve! Salve! Salve! Salve!

Brasil, um sonho intenso, um raio vívido Brasil, de amor eterno seja símbolo
De amor e de esperança à terra desce, O lábaro que ostentas estrelado,
Se em teu formoso céu, risonho e límpido, E diga o verde-louro dessa flâmula
A imagem do Cruzeiro resplandece. – Paz no futuro e glória no passado.

Gigante pela própria natureza, Mas, se ergues da justiça a clava forte,


És belo, és forte, impávido colosso, Verás que um filho teu não foge à luta,
E o teu futuro espelha essa grandeza. Nem teme, quem te adora, a própria morte.

Terra adorada, Terra adorada,


Entre outras mil, Entre outras mil,
És tu Brasil. És tu Brasil.
Ó Pátria amada! Ó Pátria amada!

Dos filhos deste solo és mãe gentil, Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada, Brasil! Pátria amada, Brasil!
126

Hino à Bandeira (1906)


Poesia: Olavo Bilac
Música: Francisco Braga
Contemplando o teu vulto sagrado,
Salve, lindo pendão da esperança, Compreendemos o nosso dever;
Salve, símbolo augusto da paz! E o Brasil, por seus filhos amado,
Tua nobre presença à lembrança Poderoso e feliz há de ser.
A grandeza da Pátria nos traz.
Recebe o afeto que se encerra
Recebe o afeto que se encerra Em nosso peito juvenil,
Em nosso peito juvenil, Querido símbolo da terra,
Querido símbolo da terra, Da amada terra do Brasil!
Da amada terra do Brasil!
Sobre a imensa Nação Brasileira,
Em teu seio formoso retratas Nos momentos de festa ou de dor,
Este céu de puríssimo azul, Paira sempre, sagrada bandeira,
A verdura sem par destas matas, Pavilhão da Justiça e do Amor!
E o esplendor do Cruzeiro do Sul.
Recebe o afeto que se encerra
Recebe o afeto que se encerra Em nosso peito juvenil,
Em nosso peito juvenil, Querido símbolo da terra,
Querido símbolo da terra, Da amada terra do Brasil!
Da amada terra do Brasil!

Hino da Proclamação da República (1890)


Letra: Medeiros e Albuquerque
Música: Leopoldo Américo Miguez

Seja um pálio de luz desdobrado


Sob a larga amplidão destes céus
Este canto rebel, que o passado
Vem remir dos mais torpes labéus!
Seja um hino de glória que fale
De esperanças de um novo porvir!
Com visões de triunfos embale
Quem por ele lutando surgir!

Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!

Nós nem cremos que escravos outrora


Tenha havido em tão nobre país...
Hoje o rubro lampejo da aurora
Acha irmãos, não tiranos hostis.
Somos todos iguais ao futuro
Saberemos, unidos, levar
Nosso augusto estandarte que, puro
Brilha, ovante, da Pátria no altar!

Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!
.....................................................
127

A canção do expedicionário (1944)


Letra: Guilherme de Almeida
Música: Spartaco Rossi

Você sabe de onde eu venho? Você sabe de onde eu venho?


Venho do morro, do Engenho, E de uma Pátria que eu tenho
Das selvas, dos cafezais, No bojo do meu violão;
Da boa terra do coco, Que de viver em meu peito
Da choupana onde um é pouco, Foi até tomando jeito
Dois é bom, três é demais, De um enorme coração.
Venho das praias sedosas, Deixei lá atrás meu terreno,
Das montanhas alterosas, Meu limão, meu limoeiro,
Dos pampas, do seringal, Meu pé de jacarandá,
Das margens crespas dos rios, Minha casa pequenina
Dos verdes mares bravios Lá no alto da colina,
Da minha terra natal. Onde canta o sabiá.

Por mais terras que eu percorra, Por mais terras que eu percorra, etc., etc.
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá; Venho do além desse monte
Sem que leve por divisa Que ainda azula o horizonte,
Esse "V" que simboliza Onde o nosso amor nasceu;
A vitória que virá: Do rancho que tinha ao lado
Nossa vitória final, Um coqueiro que, coitado,
Que é a mira do meu fuzil, De saudade já morreu.
A ração do meu bornal, Venho do verde mais belo,
A água do meu cantil, Do mais dourado amarelo,
As asas do meu ideal, Do azul mais cheio de luz,
A glória do meu Brasil. Cheio de estrelas prateadas
Que se ajoelham deslumbradas,
Eu venho da minha terra, Fazendo o sinal da Cruz!
Da casa branca da serra
E do luar do meu sertão; Por mais terras que eu percorra,
Venho da minha Maria Não permita Deus que eu morra
Cujo nome principia Sem que volte para lá;
Na palma da minha mão, Sem que leve por divisa
Braços mornos de Moema, Esse "V" que simboliza
Lábios de mel de Iracema A vitória que virá:
Estendidos para mim. Nossa vitória final,
Ó minha terra querida Que é a mira do meu fuzil,
Da Senhora Aparecida A ração do meu bornal,
E do Senhor do Bonfim! A água do meu cantil,
As asas do meu ideal, A glória do meu Brasil.
Por mais terras que eu percorra etc., etc.
128

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