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Castro Alves
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SUMÁRIO
O ROMANTISMO NA EUROPA..................................................................................................................... 4
1 Das dificuldades de conceituação do romantismo..............................................................................................5
2 Da abrangência da visão romântica.....................................................................................................................6
3 Do surgimento do fenômeno romântico..............................................................................................................9
4 Da gênese romântica..........................................................................................................................................11
5 A visão romântica: desencantamento e reencantamento do mundo..................................................................17
6 Romantismo versus classicismo........................................................................................................................30
7 Redefinindo o romantismo................................................................................................................................34
AUTORES E OBRAS..........................................................................................................................................73
REFERÊNCIAS..................................................................................................................................................128
O ROMANTISMO NA EUROPA
O ROMANTISMO NA EUROPA
Thomas Carlyle
Ao afirmar que seria necessário ter perdido todo o espírito de rigor para se aventurar na
busca de definição do romantismo, o poeta francês Paul Valéry (1871–1945) sintetizava, em
poucas palavras, as dificuldades teórico-críticas, em face da conceituação e da definição da
escritura romântica, modalidade literária que se origina e floresce no Ocidente, espaço
geográfico-cultural ao qual se restringiu.
Na verdade, desde o seu surgimento, o fenômeno romântico se apresenta como um
enigma aparentemente indecifrável e, concretamente, mutável e escorregadio, que confunde e
espicaça a curiosidade dos mais diversos críticos e teóricos da literatura do mundo ocidental,
de onde provém e onde persiste em ressurgir até os dias atuais. Esses ressurgimentos
complicam, ainda mais, a apreensão crítica da estética romântica, dificultando a sua
demarcação, conforme realçam Löwy e Sayre:
Uma vez que isso é reconhecido, começam as verdadeiras questões: que fogo é esse? O que é
que o alimenta? E por que razão se propaga em todas as direções? [...] Depois de ter limitado,
durante muito tempo, o fenômeno romântico aos movimentos que se denominavam ou eram
designados como tal na primeira metade do século XIX, a história literária acabou, por vezes,
reconhecendo sua continuação na segunda metade desse século; evitou, porém, prolongá-la para
além desse período (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 11; 219).
A contradição entre história e poesia pertence a todas as sociedades, porém somente na idade moderna
manifesta-se de modo explícito. O sentimento e a consciência da discórdia entre sociedade e poesia
converteram-se a partir do romantismo, no tema central, muitas vezes secreto, de nossa poesia. Neste livro
procurei descrever, sob a perspectiva de um poeta hispano-americano, o movimento poético moderno e suas
relações contraditórias com o que denominamos ‘modernidade’ (PAZ, 1984, p. 11 – grifo do autor).
Segundo Michael Löwy e Robert Sayre, estudiosos da arte romântica europeia e, como
Octavio Paz, autores-chave desse tópico disciplinar, as dificuldades de apreensão da
complexidade do fato romântico se devem à sua diversidade, ao seu caráter fabulosamente
contraditório, à sua natureza de coincidentia oppositorum, conforme expressam em sua obra
Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade, de 1995:
O que é o romantismo? Enigma aparentemente indecifrável, o fato romântico parece desafiar a análise, não só
porque sua diversidade superabundante resiste às tentativas de redução a um denominador comum, mas
também e sobretudo por seu caráter fabulosamente contraditório, sua natureza de coincidentia oppositorum:
simultânea (ou alternadamente) revolucionário e contrarrevolucionário, individualista e comunitário,
cosmopolita e nacionalista, realista e fantástico, retrógrado e utopista, revoltado e melancólico, democrático e
aristocrático, ativista e contemplativo, republicano e monarquista, vermelho e branco, místico e sensual. Tais
contradições permeiam não só o fenômeno romântico no seu conjunto, mas a vida e a obra de um único e
mesmo autor, e por vezes um único e mesmo texto (LÖWY; SAYRE, 1995, p. – grifos dos autores).
A palavra romântico já significou um tão grande número de coisas que, em si, não significa nada.
Deixou de exercer a função de um signo verbal. Receio que o único remédio radical – a saber, que todos
nós deixemos de falar do romantismo – não venha ser adotado (LOVEJOY, apud LÖWY; SAYRE,
1995, p. 10).
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Ora, como é observado por Stefanos Rozanis em sua recente crítica a Lovejoy, a multiplicidade
das expressões literárias, do romantismo nos diferentes países não ultrapassa o nível de um
problema filológico limitado – enquanto manifestação de particularidades nacionais e
individuais – que não coloca, de modo algum, em questão a unidade essencial do fenômeno [...]
Quanto a Wellek, ao polemizar contra o nominalismo de Lovejoy, afirma que os movimentos
românticos formam uma unidade e possuem um conjunto coerente de ideias que se implicam
reciprocamente: a imaginação, a natureza, o símbolo e o mito [...] Peckham propõe definir o
romantismo como uma revolução do espírito europeu contra o pensamento estático/mecânico e
em favor de um organicismo dinâmico. Seus valores comuns são: a mudança, o crescimento, a
diversidade, a imaginação criadora e o inconsciente (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 10-14).
Não há dúvida de que os ideólogos nazistas inspiraram-se em alguns temas românticos; mas isso não autoriza a
reescrever toda a história do romantismo político como um simples prefácio histórico do Terceiro Reich [...] De
que maneira incluir Rousseau nesse quadro teórico? [...] Evidentemente, para esse tipo de análise, os românticos
ingleses e franceses (“ocidentais”) não podem ser considerados como “verdadeiros” românticos. E o que dizer
dos românticos alemães jacobinos e revolucionários (Hölderlin, Büchner, etc.)? É claro, vai ser preciso situar
esses textos em seu contexto histórico (nos anos 1939-1945), favorável a uma percepção do romantismo em
geral, e de sua versão alemã em particular (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 16-17 – grifos dos autores).
feminilidade dos objetos românticos, num discurso marcado pelos tons pejorativos da
discriminação à mulher, conforme se verifica em seus argumentos.
Em seus escritos sobre o romantismo, Carl Schmitt assinala uma pretensa insuficiência
moral do lirismo romântico. Traduzida como passividade ou falta de virilidade, essa
insuficiência da poética romântica derivaria, segundo ele, da exaltação do feminino posta em
circulação pelos artistas do romantismo, como anotam Löwy e Sayre (1995, p. 12).
Em rota similar, Benedetto Croce observa as contradições que permeiam o objeto
artístico romântico. Numa visível reduplicação dos velhos estereótipos que circundam,
historicamente, o universo feminino, Croce acredita que tais contradições se devem à natureza
da alma romântica: “feminina, impressionável, sentimental, incoerente e volúvel” (CROCE
apud LÖWY; SAYRE, 1995, p. 12).
Com Pierre Lasserre, esse tom não se alteraria. Para esse teórico, a idiossincrasia
romântica se deve à sua essência feminina que espalha, por toda parte, “os instintos e o trabalho
da mulher, entregue a si”, num puro subjetivismo que o romantismo “sistematiza, glorifica,
diviniza”, como pontua Lasserre (apud Löwy; Sayre, 1995, p. 12). Tais interpretações seriam
recusadas pelo poeta e teórico Octavio Paz.
Muito à vontade com a centralidade feminina do romantismo, Octavio Paz observa a
multiplicidade romântica, a sua ramificação pelos mais variados discursos culturais do
Ocidente, perscrutando-lhes o sentido e a significação. Nessa assimetria, demarca-lhe a
singularidade em relação aos movimentos e estilos do passado, enquanto reconhece o impulso
à fusão entre a vida e a poesia, como o dínamo da estética romântica:
Foi a primeira e mais ousada das revoluções poéticas, a primeira a explorar os domínios subterrâneos do
sonho, do pensamento inconsciente e do erotismo; a primeira, também, a fazer da nostalgia do passado uma
estética e uma política [...] O romantismo foi um movimento literário, mas também foi uma moral, uma erótica
e uma política. Se não foi uma religião, foi algo mais que uma estética e uma filosofia: um modo de pensar,
sentir, enamorar-se, combater, viajar. Um modo de viver e um modo de morrer [...] A poesia romântica não
foi só uma mudança de estilo e linguagens: foi uma mudança de crenças, e é isto o que a distingue dos
movimentos e estilos poéticos do passado. Nem a arte barroca nem o neoclássico foram rupturas do sistema
de crenças do Ocidente (PAZ, 1984, p. 63; 83-88 – grifos nossos).
Em 1978, após quatro anos da edição da obra de Octavio Paz, essa inclinação teórica
seria retomada no Brasil, com a publicação do livro O romantismo, organizado por Jacob
Guinsburg. Verdadeiro painel da visão crítica em nosso país, essa obra, através de seus
múltiplos textos e autores, tenta descortinar a complexidade do romantismo, como já indicia
Guinsburg em seu texto introdutório a essa coletânea crítica:
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O que é o Romantismo? Uma escola, uma tendência, uma forma, um fenômeno histórico, um estado de
espírito? Provavelmente tudo isto junto e cada item em separado [...] Ele não é apenas uma configuração
estilística ou, como querem alguns, uma das duas modalidades polares e antitéticas [...] Mas é também
uma escola historicamente definida, que surgiu num dado momento, em condições concretas e com
respostas características à situação que se lhe apresentou [...] é um fato histórico que assinala, na história
da consciência humana, a relevância da consciência histórica. É, pois, uma forma de pensar que pensou
e se pensou historicamente (GUINSBURG, 2002, p. 13-14).
continente europeu. Para Octavio Paz, a proeminência do romantismo alemão e inglês se deve
menos a sua antecipação cronológica do que à sua formidável penetração crítica e sua
originalidade poética.
Ressaltando a qualidade literária das produções românticas na Alemanha e na Inglaterra,
elogiando os seus escritos programáticos, verdadeiros manifestos revolucionários, Octavio Paz
terminaria por creditar, a essa excelência discursiva, a permanência de uma tradição que se
comunicaria à posteridade, para a qual, insistentemente, o poeta mexicano chama a atenção de
seu leitor, reforçando o caráter de atualidade das expressões românticas.
Tais perspectivas, em conjunto, seriam retomadas e redimensionadas pelos estudos de
Jacques Bousquet e pelas pesquisas de Karl Mannheim, escritores que, à semelhança de Octavio
Paz, são frequentemente chamados ao texto de Michael Löwy e de Robert Sayre.
Em acordo com o pensamento de Bousquet e de Mannheim, Löwy e Sayre focalizam o
início do romantismo no espaço temporal da segunda metade do século XVIII, elegendo,
igualmente, a França, a Alemanha e a Inglaterra como precursoras e fiadoras do
desenvolvimento, da divulgação e da disseminação da nova arte europeia. Nessa escolha, Löwy
e Sayre descartam a visão da França como refratária às ideias iniciais da estética romântica,
amparando-se, explicitamente, nos trabalhos de Bousquet e Mannheim:
Com efeito, a Alemanha e a Inglaterra já foram propostas como candidatas a esse título: a primeira quase
sempre por motivo de uma vocação particular devido a seu caráter e destino social; a segunda em razão de seu
avanço socioeconômico. No entanto, se olharmos detalhadamente a história cultural desses três países no
século XVIII, parece que essas afirmações são contestáveis e estaremos de acordo com Karl Mannheim para
quem o Romantismo apareceu praticamente ao mesmo tempo nesses três países europeus [...] Jacques
Bousquet refuta de maneira convincente a ideia de que a França teve um atraso considerável [...] Houve,
portanto, na França ao mesmo tempo que na Alemanha e Inglaterra, um denso tecido cultural romântico e não
somente algumas obras-guia. Quanto à questão das pretensas influências anglo-germânicas, Bousquet prova
que a dos autores alemães não teve grande importância e a dos ingleses foi muito menor do que se afirmou
(LÖWY; SAYRE, 1995, p. 79-80 – grifos dos autores).
Elencando os mais variados argumentos que corroboram as suas próprias opiniões, isto
é, de que o surgimento do espírito romântico se processou de forma sincrônica e assemelhada,
porém independente, em seus três países-centros, Löwy e Sayre procedem a um verdadeiro
inventário das perspectivas teóricas acerca do romantismo. Nessa catalogação do espólio crítico
romântico, especialmente o elaborado no século XX, nossos autores demonstram que à
diversidade e à multiplicidade que caracterizam o fato romântico corresponde, igualmente, a
uma fabulosa e inquietante pluralidade crítica:
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Em sua forma mais banal, essa abordagem opõe o romantismo ao “classicismo”. Por exemplo, segundo o
Larousse du XXe siècle, “são chamados românticos os escritores que, no início do século XIX, se liberaram das
regras de composição e do estilo do classicismo. Na França, o romantismo foi uma reação profunda contra a
literatura clássica nacional, enquanto vai constituir, na Inglaterra e Alemanha, o fundo primitivo do gênio
autóctone” [...] Sem ultrapassarem a visão estritamente literária do romantismo, outros críticos consideram
inadequada a definição que se limita a levar em consideração as “regras de composição não clássicas” ou a “alma
nacional” e tentam encontrar um ou vários denominadores comuns mais substanciais. É o caso, em particular,
dos três mais conhecidos especialistas norte-americanos da história do romantismo: M. H. Abrams, René Wellek
e Morse Peckham. (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 12-13 – grifos dos autores).
4 Da gênese romântica
A sensibilidade dos pré-românticos não tardará em se transformar na paixão dos românticos. A primeira é um
acordo com o mundo natural, a segunda é a transgressão da ordem social. Ambas são de natureza humanizada
[...] A nostalgia moderna de um tempo original e de um homem reconciliado com a natureza expressa uma
atitude nova [...] O sonho de uma comunidade igualitária e livre, herança comum de Rousseau, reaparece entre
os românticos alemães [...] O tema revolucionário do comunismo libertário se entrelaça assim ao tema religioso
do restabelecimento da inocência original (PAZ, 1984, p.54-64).
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Raciocinando sobre os princípios que estabelece, devia este autor dizer que, sendo o estado natural aquele em
que o cuidado com a nossa conservação é o menos prejudicial à conservação alheia, o estado natural,
consequentemente, seria o mais adequado à paz e o mais conveniente ao gênero humano [...] De sorte que se
poderia dizer que os selvagens não são perversos precisamente porque não sabem em que consiste o serem
bons, porque não é o desenvolvimento dos conhecimentos, nem o freio da lei, mas a tranquilidade das paixões
e a ignorância do vício que os impedem de praticar o mal (ROUSSEAU, 1991, p. 165-166).
O homem natural é tudo para si mesmo: é a unidade numérica, o inteiro absoluto, que só se relaciona consigo
mesmo ou com o seu semelhante. O homem civil é apenas uma unidade fracionária que se liga ao denominador,
e cujo valor está em sua relação com o todo, que é o corpo social. As boas instituições sociais são as que melhor
sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para
a unidade comum [...] jamais será nem homem, nem cidadão; não será bom nem para si mesmo, nem
para os outros. Será um desses homens de hoje, um francês, um inglês, um burguês; não será nada [...]
O homem civil nasce, vive e morre na escravidão; enquanto conservar a figura humana, estará acorrentado por
nossas instituições (ROUSSEAU, 2004, p. 11-16 – grifos nossos).
Eu insulto o burguês! O burguês níquel, Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
O burguês-burguês! Oh! purée de batatas morais!
A digestão bem-feita de São Paulo! Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
O homem-curva! o homem-nádegas! Ódio aos temperamentos regulares!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
Eu insulto as aristocracias cautelosas! sempiternamente as mesmices convencionais!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
que vivem dentro de muros sem pulos; Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos Todos para a Central do meu rancor inebriante!
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam o “Printemps” com as unhas! Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
Eu insulto o burguês-funesto! cheirando religião e que não crê em Deus!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Fora os que algarismam os amanhãs! Ódio fundamento, sem perdão!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arquelinal! Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
(ANDRADE, 1955, p. 44- 45 – grifos nossos)
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi
Padaria Suíça! Morte ao Adriano!
“ – Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”
especial a de ordem religiosa, considerando-a como a primeira lei da natureza. Opor-se-ia, com
igual vigor, ao flagelo das guerras expansionistas, o maior dos males da humanidade:
O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo -nos
reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza [...] Evidentemente que qualquer particular que
persiga outro homem, seu irmão, porque não participa das suas opiniões, é um monstro [...] Insensatos que nunca
haveis podido prestar um culto puro a Deus que vos criou! Desgraçados [...] De todas as religiões, a cristã é, sem
dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos
os homens (VOLTAIRE, 1978, p. 290-291).
A fome, a peste e a guerra são os três ingredientes mais famosos deste mundo rasteiro [...] Mas a guerra, que
reúne todos estes dons, é dádiva da imaginação de trezentas ou quatrocentas pessoas espalhadas pela superfície
do globo, sob o nome de príncipes ou de ministros [...] O mais obstinado dos lisonjeadores concordará sem esforço
que a guerra arrasta sempre consigo a peste e a fome, por pouco que conheça os hospitais de campanha [...] Sem
dúvida que é uma arte muito bela, esta de desolar os campos, destruir as habitações e fazer perecer, em ano
normal, quarenta mil em cem mil homens [...] O maravilhoso nesta empresa infernal é que todos os chefes de
assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de irem exterminar o próximo [...] Todos
os vícios reunidos, de todas as idades e de todos os lugares, nunca igualarão os males produzidos por uma só
campanha (VOLTAIRE, 1978, p. 201-203).
Por outro lado, na compreensão de que a sociedade sonegou o direito natural dos homens
à igualdade na qual nasceram, e que eles não tornam a resgatá-lo, a não ser pelos direitos civis, 1
Montesquieu confia que, nas sociedades democráticas, as leis se constituem como signos de
garantia da igualdade entre os homens. Nesse postulado, acabaria por esboçar as bases de poder
sobre as quais se assenta o Estado moderno: o poder executivo, o legislativo e o poder judiciário.
Atento à importância dos regimes democráticos, cuidadoso quanto às possíveis
arbitrariedades contra os cidadãos, Montesquieu defende a autonomia e a independência destes
três poderes, encarando-as como cauções imprescindíveis à liberdade dos cidadãos, segundo se
verifica na argumentação do iluminista francês:
1
“No estado de natureza os homens nascem livres, mas não conseguem manter-se nele. A sociedade arrebatou-
lhes essa liberdade, e não tornam a recuperá-la senão pelas leis” (MONTESQUIEU, 1937, p, 86).
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Há em cada Estado três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das cousas que dependem
do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil [...] Também não há liberdade
se o poder judiciário não está separado do legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o
poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: porque o juiz seria legislador. Se estivesse ligado
ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo indivíduo ou a
mesma coletividade de principais, ou de nobres, ou do povo, exercessem, acumuladamente, esses três poderes:
o de legislar, o executivo e de julgar os crimes e desavenças entre particulares [...] Se o poder executivo não
tem o direito de veto sobre as iniciativas do legislativo, este se tornará despótico [...] Mas se, em um estado
livre, o legislativo não deve vetar a ação do executivo, compete-lhe, no entanto, examinar e controlar a aplicação
das leis que elabora [...] os juízes da nação não são, como dissemos, senão a boca que pronuncia as palavras da
lei (MONTESQUIEU, 1937, p. 94-110).
Não é demais ressaltar, ante o contexto que se vai descortinando aos nossos olhos, que
o modelo de Estado, inspirado por Montesquieu – que se transformaria, na Europa Ocidental,
após a Segunda Guerra Mundial, no Welfare State (Estado do Bem-Estar Social) – tem sido
fustigado pelo mando, cada vez mais explícito e violento, dos grandes capitalistas que entorna,
em seu avanço, os preceitos democráticos, subtraindo os direitos dos cidadãos.
Nessa colisão com os direitos da ordem democrática, a sobreposição dos interesses do
capital aos bens da cidadania amortece, igualmente, o desempenho do papel do Estado, então
garroteado e submisso à força e às demandas dos banqueiros e dos grandes financistas.
Ao esvaziamento dos poderes do executivo e do legislativo se contrapõe a ampliação
dos domínios do judiciário, segundo pontua Emílio Santoro. Em seu texto-entrevista, “A
democracia não tem futuro”, concedido ao jornal paraibano, Correio da Paraíba, em 09.12.
2012, o pensador italiano sinaliza para o esgotamento do sistema democrático, apanágio
louvaminhado como ícone de civilidade, dos chamados Estados modernos:
Creio que o Estado se transformará [...] O que na Europa a gente já vê é que os parlamentos não contam quase
nada [...] contam muito mais os juízes. E essa será a grande transformação que haverá mais ou menos em dez
anos em todo o Mundo [...] Os governos são muito mais prisioneiros do mercado financeiro, da economia [...]
A liberdade contratual do poder das indústrias, de impor seus próprios contratos, está destruindo a liberdade
dos cidadãos, a vida social. Não há mais vida social [...] Eu estou convencido de que a democracia que a gente
conheceu nos anos 1900 terminou. O problema é que a gente não sabe o que vem adiante e como a democracia
mudou [...] E a democracia como conhecemos não tem futuro (SANTORO, 2012, p. A7).
Arisco às prerrogativas das leis civis, Rousseau, num caminho diverso ao de Voltaire e
ao de Montesquieu, investe contra os valores da sociedade burguesa, como bem sublinha em
sua visão acerca da propriedade privada, do progresso das técnicas e dos avanços científicos,
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numa evidente contramão às crenças cultuadas pelos escritores iluministas, como demonstram
os fragmentos extraídos do Discurso sobre as ciências e as artes, publicado em 1750:
O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: Isto me pertence, e encontrou criaturas
suficientemente simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Que de crimes, de
guerras, de assassinatos, que de misérias e de horrores teria poupado ao gênero humano aquele que,
desarraigando as estacas ou atulhando o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Guardai-vos de escutar
este impostor! Estais perdidos se vos esqueceis de que os frutos a todos pertencem e de que a terra não é de
ninguém!” (ROUSSEAU, 1991, p. 175 – grifos do autor).
Quantos perigos, quantas rotas falsas na investigação das ciências! [...] Se nossas ciências se revelam vãs no
objetivo que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos produzidos [...] Contudo, se o progresso das
ciências e das artes nada acrescentou à nossa aventura, se corrompeu os costumes, e se a corrupção dos
costumes insultou a pureza do gosto, que se pensar dessa multidão de autores elementares (ROUSSEAU, 1991,
p. 220-229).
Rousseau é o autor-chave na gênese do romantismo francês porque, ainda em meados do século XVIII, soube
articular toda a visão romântica do mundo [...] além disso, Octavio Paz observa que “se a literatura moderna
começa com uma crítica da modernidade é Rousseau a figura que encarna esse paradoxo com uma espécie
de exemplaridade”. Vemos aparecer em Rousseau uma configuração romântica a partir de Discours (1750,
1755) e de La Nouvelle Héloïse (1761), mas igualmente em obras escritas no fim de sua vida: Confessions e
Rêveries du promeneur solitaire [...] os discípulos de Rousseau, tais como Bernardin de Saint-Pierre e Restif
de La Bretonne são plenamente românticos: o primeiro em seu idílio trágico, Paul et Virginie; e o segundo
em suas utopias comunistas, patriarcais e campestres. Nesse romantismo anterior à Revolução Francesa,
podemos situar também Chateaubriand porque sua obra Tableaux de la Nature foi redigida entre 1784 e
1790 (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 85-86 – grifos dos autores).
Nesse raciocínio, Michael Löwy e Robert Sayre desconstroem uma perspectiva crítica
bastante rotineira nos compêndios de Literatura e, de forma mais acentuada, nos livros
didáticos originados, no mais das vezes, das mais conflitantes interpretações: a do
estabelecimento de uma relação direta entre a Revolução Francesa e as ideias românticas.
Ora, ao identificar, na obra de Rousseau, a gênese do espírito romântico, Löwy e Sayre
fazem este movimento recuar para aquém da Revolução Francesa e, na mesma moeda, o
avança para além da Revolução Industrial. Assim, criticam acidamente as interpretações que
insistem em ligar, com estreitos laços, o advento do romantismo a determinantes históricos
ou econômicos, valendo-se da contribuição de Henri Peyre, pesquisador francês das letras
românticas, a quem chamam e concedem voz, em sua obra:
Escutemos a opinião de um eminente especialista, Henri Peyre, autor de várias obras sobre a literatura
romântica [...] “Seria arriscado ligar demasiado estreitamente as criações do espírito, isto é, a mais livre
atividade que se possa imaginar, aos acontecimentos da história e à vida econômica... De fato, as relações
entre literatura e sociedade são praticamente indefiníveis... Ligar, como já se tentou fazer, o romantismo ao
advento da revolução industrial... é ainda mais arriscado... Se, em seguida, o romantismo exprimiu, melhor
do que inúmeros historiadores, os transtornos causados pelo afluxo das populações em direção à indústria e
às cidades, a miséria das classes trabalhadoras julgadas também classes perigosas... isso aconteceu porque
Balzac, o Hugo dos Miseráveis e até mesmo Eugène Sue, mais tarde Dickens e Disraeli na Inglaterra, foram
observadores argutos da sociedade e homens magnânimos.” A explicação pelo coração é um pouco limitada
e incapaz de preencher o vazio analítico que resulta da recusa em examinar a relação entre literatura e
sociedade (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 20).
O poeta sem religião, e sem moral, é como o veneno derramado na fonte, onde morrem quantos aí procuram
aplacar a sede. Ora, nossa religião, nossa moral é aquela que nos ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou
o mundo moderno, aquela que ilumina a Europa, e a América: e só este bálsamo sagrado devem verter os
cânticos dos poetas brasileiros (MAGALHÃES apud CANDIDO; CASTELLO, 1988, p. 169).
Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena política para ler em minha alma,
reduzindo à linguagem harmoniosa e cadente o pensamento que me vem de improviso, e as ideias que em mim
desperta a vista de uma paisagem ou do oceano – o aspecto enfim da natureza. Casar assim o pensamento com
o sentimento – o coração com o entendimento – a ideia com a paixão – colorir tudo isso com a imaginação,
fundir tudo isto com a vida e a natureza, purificar tudo com o sentimento da religião e da divindade; eis a Poesia
– a Poesia grande e santa – a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder
traduzir (DIAS apud CANDIDO; CASTELLO, 1988, p. 179).
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Não obstante a efetivação da opção religiosa dos românticos em nosso país, como se
verifica na América Latina, o sagrado europeu não se afirmava como dogma, nem tampouco
desfrutava de comodidade, nos versos e nas letras, pouco pacíficas, da literatura brasileira,
mesmo no próprio período do romantismo.
Em 1868, num tom permeado pela heresia, Castro Alves escreve Vozes d’África.
Publicado, postumamente, como poema integrante da coletânea, Os escravos (1883), a poesia
de Castro Alves colide, frontalmente, com os dogmas e as escrituras da religiosidade europeia,
alcançando um inusitado teor herético, a anos-luz do sentimento de adoração ou de devoção
divina, conforme já anotara Heloísa Toller Gomes:
Castro Alves ousou mais do que seus contemporâneos brasileiros e estrangeiros. Em “Vozes d’África”, sua
indignação chega às raias do herético. Não se contentando em atacar a hipocrisia religiosa por seu endosso ou,
quando menos, omissão diante do crime escravista, o poeta volta-se contra o próprio Deus [...] Além de ver no
africano a vítima de um Deus vingativo, que o abandonara há dois mil anos, o católico Castro Alves questiona o
próprio dogma da salvação cristã (GOMES, 1988, p. 70-71).
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes! Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes Teu sangue não lavou da minha da minha fronte
Embuçado nos céus? A mancha original.
Há dois mil anos te mandei meu grito, ...........................................................................
Que embalde, desde então, corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
.....................................................
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É pois teu peito eterno inexaurível
De vingança e rancor?
........................................................... (ALVES, 1972, p.201-206)
No mesmo ano, como afiançam Valentim Facioli e Carlos Olivieri (1985), Tobias
Barreto escreve “A escravidão”, sobrepujando o patriotismo e a defesa dos escravos à religião.
Nele, o romântico sergipano caracteriza o Deus-Cristão como um deus-erro, cúmplice do delito
da escravatura, disparate divino que a juventude brasileira se propõe a corrigir. Desse modo, o
20
eu lírico em Tobias Barreto inverte os papéis entre a criatura e o seu criador, enquanto põe em
xeque a sabedoria e a justeza demiúrgicas:
A escravidão (1868)
Traduzir-se (1980)
Uma parte de mim Uma parte de mim
é todo mundo: é permanente:
outra parte é ninguém: outra parte
fundo sem fundo. se sabe de repente.
Que auroras, que sol, que vida, Oh! Que saudades que tenho
Que noites de melodia Da aurora da minha vida,
Naquela doce alegria, Da minha infância querida
Naquele ingênuo folgar! Que os anos não trazem mais!
O céu bordado d’estrelas, – Que amor, que sonhos, que flores,
A terra de aromas cheia, Naquelas tardes fagueiras
As ondas beijando a areia, À sombra das bananeiras,
E a lua beijando o mar! Debaixo dos laranjais!
E o índio ergueu os olhos com uma expressão inefável de reconhecimento. Falou com um tom solene: “Foi
longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens
subiram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com sua esposa. Era Tamandaré; forte entre os fortes;
sabia mais que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia
do céu. Quando todos subiram aos montes ele disse: – Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a
água. Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e deixaram ele só na várzea com sua companheira,
que não o abandonou. Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; aí
esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que o alimentavam. A água veio, subiu e
cresceu; o sol mergulhou e surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desapareceu; a
montanha desapareceu. A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu
céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira. A corrente
cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu acima do
vale, acima da árvore, acima da montanha. Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites;
depois baixou; baixou até que descobriu a terra. Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava
plantada na várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas. Desceu com a sua
companheira, e povoou a terra” (ALENCAR, 1951, p. 538-539, v. 2).
A cidade ali está com os seus enganos, Não, não é na cidade que se formam
Seu cortejo de vícios e traições, Os fortes de corações, as crenças grandes,
Seus vastos templos, seus bazares amplos, Como também nos charcos das planícies
Seus ricos paços, seus bordeis salões. Não é que gera-se o condor dos Andes!
A cidade ali está: sobre seus tetos Não, não é na cidade que as virtudes,
Paira dos arsenais o fumo espesso, As vocações eleitas resplandecem,
Rolam nas ruas da vaidade os coches Flores de ar livre, à sombra das muralhas
E ri-se o crime à sombra do progresso. Pendem cedo a cabeça e amarelecem.
A cidade ali está: sob os alpendres Quanta cena infernal sob essas telhas!
Dorme o mendigo ao sol do meio-dia, Quanto infantil vagido de agonia!
Chora a viúva em úmido tugúrio, Quanto adultério! Quanto escuro incesto!
Canta na catedral a hipocrisia. Quanta infâmia escondida à luz do dia!
A cidade ali está: com ela o erro, Quanta atroz injustiça e quantos prantos!
A perfídia, a mentira, a desventura... Quanto drama fatal! Quantos pesares!
Como é suave o aroma das florestas! Quanta fronte celeste profanada!
Como é doce das serras a frescura! Quanta virgem vendida aos lupanares!
Era no tempo do rei [...] Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas, era
naquele tempo cousa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje, depois de passados tantos anos,
restam grandes vestígios desse belo hábito [...] O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo
que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo
o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas de sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas,
nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças
que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial
[...] Era o Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os
movimentos lentos, e a voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria
por certo homem mais apto para o seu cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar. Uma companhia
ordinariamente de granadeiros, às vezes de outros soldados que ele escolhia nos corpos que haviam na cidade,
armados todos de grossas chibatas, comandada pelo Major Vidigal, fazia toda a ronda da cidade de noite, e
toda a mais polícia de dia. Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se tivesse passado uma
façanha do senhor major para pilhar um maroto ou dar caça a um vagabundo. A sua sagacidade era proverbial,
e por isso só o seu nome incutia grande terror [...] Quando algum dos patuscos daquele tempo (que não gozava
de grande reputação de ativo e trabalhador) era surpreendido de noite de capote sobre os ombros e viola a
tiracolo, caminhando em busca de súcia, por uma voz branda que lhe dizia simplesmente “venha cá; onde
vai?” o único remédio que tinha era fugir, se pudesse, porque com certeza não escapava por outro meio de
alguns dias de cadeia, ou pelo menos da casa da guarda na Sé; quando não vinha o côvado e meio às costas,
como consequência necessária (ALMEIDA, 1991, p. 7-13; 24 – grifos do autor).
Cantem esse verão que me alentava... Antes mil vezes que dormir com ela,
O aroma dos currais, o bezerrinho, Que dessa fúria o gozo, amor eterno...
As aves que na sombra suspiravam, Se ali não há também amor de velha,
E os sapos que cantavam no caminho! Deem-me as caldeiras do terceiro inferno1
Coração, por que tremes? Se esta lira No inferno estão suavíssimas belezas,
Nas minhas mãos sem força desafina, Cleópatras, Helenas, Eleonoras;
Enquanto ao cemitério não te levam, Lá se namora em boa companhia,
Casa no marimbau a alma divina! Não pode haver inferno com Senhoras!
Coração, por que tremes? Vejo a morte, Ora! e forcem um’alma qual a minha,
Ali vem lazarenta e desdentada... Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça,
Que noiva!... E devo então dormir com ela?... A cantar ladainha eternamente
Se ela ao menos dormisse mascarada! E por mil anos ajudar a Missa!
(AZEVEDO, 2002, p. 76-79)
Eu amo a noite quando deixa os montes, Amo o furor do vendaval que ruge,
Bela, mas bela de um horror sublime, Das asas densas sacudindo o estrago,
E sobre a face dos desertos quedos Silvos de balas, turbilhões de fumo,
Seu régio selo de mistério imprime. Tribos de corvos em sangrento lago.
Amo o sinistro ramalhar dos cedros Amo as torrentes que da chuva túmidas
Ao rijo sopro da tormenta infrene, Lançam aos ares um rumor profundo,
Quando antevendo a inevitável queda Depois raivosas, carcomendo as margens,
Mandam aos ermos um adeus solene. Vão dos abismos pernoitar no fundo.
5.13 O feminino romântico – objeto do amor, concebido como essência da vida pelo
romantismo, a mulher é divinizada, retirada do seu cotidiano, de sua humanidade comum e
alçada às alturas de uma pureza arquetípica, tanto nos textos poéticos quanto nos discursos
narrativos. Mas há também outras heroínas. Marion Delorme, do romance homônimo de Victor
Hugo (1829); Marguerite Gautier, de A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho (1848);
Carolina, da narrativa dramática de José de Alencar, As asas de um anjo (1858); e Lúcia,
personagem do romance Lucíola (1862), de autoria também do romancista e dramaturgo
brasileiro.
De suas inúmeras configurações do feminino, realizadas em prosa e em verso, o
romantismo nos deixaria, como legado, uma ampla e diversa galeria de semblantes e de perfis
feminais, como ilustram as narrativas, Iracema: lenda do Ceará (1865), e Lucíola (1862), ambas
de José de Alencar; e os poemas “Elisa” (1859), de Casimiro de Abreu; o “O voo do gênio”
(1870) e “O gondoleiro do amor”, de Castro Alves:, além do antigo provérbio do povo
mexicano, abaixo transcritos:
27
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos
lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de
palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha rescendia no bosque como seu
hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu,
onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava
apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas (ALENCAR, 1951, p. 31, v. 7).
– Aí está a Lúcia, disse Cunha [...] É uma bonita mulher! disse ao meu vizinho, com um ar de
indiferença para disfarçar a minha emoção. – A mais bonita mulher do Rio de Janeiro e também a mais
caprichosa e excêntrica. Ninguém a compreende. – Conheço-a apenas de vista; porém disseram-me que
é uma boa moça, muito amável... – Oh! Posso falar a este respeito. Fui seu amante quatro meses. – E
por que a deixou? Aborreceu-se? – Não a deixei. É o seu costume; um belo dia, sem causa, sem o
mínimo pretexto, declara a um homem que as suas relações estão acabadas; e não há que fazer. Podem
oferecer-lhe somas loucas, é tempo perdido. Também no dia seguinte, ou no mesmo, daí a uma hora,
toma outro amante que não conhece, que nunca viu. – Todas são assim, com pouca diferença: ninguém
sabe qual é o fio que faz dançar essas bonecas de papelão (ALENCAR, 1951, p. 45-46, v. 4).
5.14 A pátria romântica – como a alma romântica vive – aqui e agora – longe de seu
verdadeiro lar, de sua verdadeira pátria, esta é representada e vivida como exílio, constituindo-
se como carência. Segundo Arnold Hauser, o sentimento de carência de lar e de isolamento
tornou-se a experiência fundamental dos românticos do início do século XIX. Para Walter
Benjamim, o apelo à vida onírica dos românticos indica as dificuldades impostas pela vida real
ao regresso da alma ao lar da terra materna (apud LÖWY; SAYRE, 1995, p.40). No caso da
literatura brasileira, a Canção do exílio (1843), de Gonçalves Dias, se institui como poética
exemplar desse fazer estético:
Convencida de que todos os seus inúmeros apaixonados, sem exceção de um, a pretendiam unicamente
pela riqueza, Aurélia reagia contra essa afronta, aplicando a esses indivíduos o mesmo estalão. Assim
costumava ela indicar o merecimento relativo de cada um dos pretendentes, dando-lhes certo valor
monetário. Em linguagem financeira, Aurélia cotava os seus adoradores pelo preço que razoavelmente
poderiam obter no mercado matrimonial. Uma noite, no Cassino, a Lísia Soares, que fazia-se íntima
com ela, e desejava ardentemente vê-la casada, dirigiu-lhe um gracejo acerca do Alfredo Moreira,
rapaz elegante que chegara recentemente da Europa: – É um moço muito distinto, respondeu Aurélia
sorrindo; vale bem como noivo cem contos de réis; mas eu tenho dinheiro para pagar um marido de
maior preço, Lísia; não me contento com esse. Riam-se todos destes ditos de Aurélia, e os lançavam
à conta de gracinhas de moça espirituosa; porém a maior parte das senhoras, sobretudo aquelas que
tinham filhas moças, não cansavam de criticar desses modos desenvoltos, impróprios de meninas bem
educadas. Os adoradores de Aurélia sabiam, pois ela não fazia mistério, do preço de sua cotação no
rol da moça; e longe de se agastarem com a franqueza, divertiam-se com o jogo que muitas vezes
resultava do ágio de suas ações naquela empresa nupcial. Dava-se isto quando qualquer dos
apaixonados tinha a felicidade de fazer alguma coisa a contento da moça e satisfazer-lhe as fantasias;
porque nesse caso ela elevava-lhe a cotação, assim como abaixava a daquele que a contrariava ou
incorria em seu desagrado. Muito devia a cobiça embrutecer esses homens, ou cegá-los a paixão, para
não verem o frio escárnio com que Aurélia os ludibriava nestes brincos ridículos, que eles tomavam
por garridices de menina, e não eram senão ímpetos de uma irritação íntima e talvez mórbida
(ALENCAR, 1951, p. 97-98, v. 11).
A mesma liberdade desterra formas líricas ossificadas e faz renascer a balada e a canção,
em detrimento do soneto e da ode; ou, abolindo qualquer constrangimento, escolhe o poema
sem cortes fixos, que termina onde cessa a inspiração (Byron, Lamartine, Vigny...). A
epopeia, expressão heroica já em crise no século XVIII, é substituída pelo poema político e
pelo romance histórico, livre das peias de organização interna que marcavam a narrativa em
verso. No teatro, espelho fiel dos abalos ideológicos, as mudanças não seriam menos
radicais: afrouxada a distinção de tragédia e comédia, cria-se o drama, fusão de sublime e
grotesco, que aspira a reproduzir o encontro das paixões individuais contido pelas
bienséances clássicas (BOSI, 1980, p. 105 – grifos do autor).
Da recusa romântica aos códigos estéticos clássicos – de seus gêneros, estilos e técnicas
– provém o gênero romanesco. Misto, apreciado como “a revolução literária do Terceiro
Estado” por Debenedetti (apud BOSI, 1980, p. 106), o romance é considerado o gênero
moderno por excelência e o que melhor expressa a poesia da modernidade. Daí afirmar-se,
continuadamente, que o romance não apenas ofereceu ao espírito romântico as melhores
condições de expressão de seu ideário, como se converteu, exemplarmente, em gênero
privilegiado da sociedade burguesa.
A unidade de conjunto não repudia de maneira alguma as ações secundárias sobre as quais se deve apoiar-se
a ação principal. É preciso apenas que estas partes, sobriamente subordinadas ao todo, gravitem sem cessar
sobre a ação central e agrupem-se em torno dela em diferentes níveis, ou melhor sobre os diferentes planos
do drama. A unidade do conjunto é a lei da perspectiva do teatro (HUGO apud PRADO, 2005, p. 172).
2
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução Maria Beatriz marques Nizza da Silva. São Paulo:
Perspectiva, 2005, p. 234.
32
Nessa linha, Franz Boop, também alemão, publica o seu livro Sistema de configuração
do Sânscrito em comparação com o do Grego, Latim, Persa e Germânico (Frankfurt, 1816),
dedicado ao estudo dos verbos do sânscrito, em aproximação com o grego, latim, persa e os das
línguas germânicas. Preocupado, principalmente, com os aspectos morfológicos, Boop
desenvolveu uma comparação sistemática entre os principais ramos indo-europeus, tornando-
se, assim, conhecido como o fundador da gramática comparativa do indo-europeu. Afere-se,
portanto, a importância dos estudos românticos no processo de criação e de sedimentação da
gramática histórico-comparativa e da linguística em geral. Obnubilava-se, assim, “a estrela do
latim no firmamento linguístico”. Agora, é o povo quem é reconhecido como o senhor da língua,
conforme acentua Sílvio Elia, linguista brasileiro, e versifica Manuel Bandeira, num exemplo
de persistente retomada da agenda linguística romântica:
Com o Romantismo esmaece a estrela do latim no firmamento linguístico. O novo nume que surge vem do
Oriente: é o sânscrito [...] Esse novo padrão pode ser resumido nesta frase: o povo é quem faz a língua [...]
Foi essa mesma concepção romântica do povo-dono-da- língua, aliada à doutrina naturalista da evolução
fatal e irreversível dos acontecimentos sociais, que gerou a escola da “língua brasileira”, novo rebento
neolatino alimentado nestas plagas do Atlântico (ELIA, 2005, p. 123-126).
7. Redefinindo o romantismo
Procedendo a um verdadeiro inventário das diversas visões sobre o romantismo,
Michael Löwy e Robert Sayre terminariam por se aventurar pelo caminho pedregoso e
33
Desde sua origem, a poesia moderna tem sido uma reação diante, para e contra a modernidade
[...] Desde seu nascimento, a modernidade é uma paixão crítica [...] A arte moderna não é
apenas filha da idade crítica, mas é também crítica de si mesma [...] Sua modernidade é
ambígua: há um conflito entre poesia e modernidade que começa com os pré-românticos e se
prolonga até os nossos dias [...] a poesia moderna nasce com os primeiros românticos e seus
predecessores imediatos de fins do século XVIII, atravessa o século XIX, através de sucessivas
mutações que são apesar de tudo repetições, e chega até o século XX. Trata-se de um
movimento que envolve todos os países do Ocidente, do mundo eslavo ao hispano-americano,
mas que em cada um de seus momentos se concentra e manifesta em dois ou três pontos de
irradiação (PAZ, 1984, p. 12-20; 52-54; 152).
Antes de mais, indiquemos com duas palavras a essência de nossa concepção: para nós, o
romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna,
em nome de valores e ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno). Podemos dizer que,
desde sua origem, o romantismo é iluminado pela dupla luz da estrela da revolta e do ‘sol negro
da melancolia’ [...] O romantismo surge de uma oposição a essa realidade capitalista/moderna
[...] é, queiramos ou não, uma crítica moderna da modernidade [...] uma consciência aguda da
deterioração radical da qualidade das relações humanas na modernidade e a busca nostálgica
da comunidade autêntica (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 34-39; 69 – grifos dos autores).
………………………………..
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.
Simón Bolívar
36
Montaigne
Alberto Caieiro
1.1 O arcadismo
O grande feito dos poetas arcádicos, maiores e menores, foi o esforço de trazer à pátria os temas e as técnicas
mentais e artísticas do Ocidente europeu, dando à nossa literatura um alcance potencialmente universal, antes
mesmo que ela tomasse consciência da sua individualidade nacional. Nesse sentido, foram civilizadores por
excelência; daí a peculiar importância do arcadismo, que entre nós não foi apenas, como em Portugal, um
renovador de técnicas e teorias literárias ou um preparador de movimentos novos, mas contribuiu
decisivamente para instituir a literatura brasileira [...] Por tudo isso, quando o romantismo se constituiu e os
homens de letras procuraram antecessores, foram sobretudo os poetas arcádicos, os intelectuais “ilustrados”,
os pregadores patrióticos que invocaram, considerando-se seus herdeiros, vendo neles os fundadores duma
literatura pátria, depois de esboços anteriores. E, apesar das profundas divergências de concepção estética,
tornaram-se, historicamente, os seus herdeiros diretos (CANDIDO; CASTELLO, 1988, p. 83-86 – grifo dos
autores).
37
Nesse sentido, o segundo quartel dos Setecentos exibe-se como a fase inaugural de
formação da literatura brasileira, isto é, quando as nossas manifestações literárias adquirem
traços peculiares de um sistema. Nessa aquisição sistêmica, os poetas árcades instituem a
literatura propriamente dita, de acordo com a concepção esboçada e discutida por Antonio
Candido, em sua Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, publicada em 1957:
Para compreender em que sentido é tomada a palavra formação, e porque se qualificam de decisivos os
momentos estudados, convém principiar distinguindo manifestações literárias, de literatura propriamente dita,
considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas
dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas, (língua, temas, imagens),
certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam
historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de
um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores,
formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo
geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros [...] isto ocorre a partir de meados do século
XVIII, adquirindo plena nitidez na primeira metade do século XIX [...] é com os chamados árcades mineiros,
as últimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos
orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer literatura brasileira. Tais homens foram
considerados fundadores pelos que os sucederam, estabelecendo-se deste modo uma tradição contínua de
estilos, temas, formas ou preocupações. Já que é preciso um começo, tomei como ponto de partida as Academias
dos Seletos e dos Renascidos e os primeiros trabalhos de Cláudio Manuel da Costa, arredondando, para facilitar,
a data de 1750, na verdade puramente convencional (CANDIDO, 1993, p. 23-25, v. 1 – grifos do autor.).
Tanto a literatura portuguesa quanto a brasileira (que lhe era considerada parte) basearam-se no
movimento da Arcádia Lusitana a partir da doutrinação de Verney, cujo fio condutor foi combater o
cultismo. Nessa batalha, as novas tendências se basearam na codificação de Boileau, procuraram
redefinir a imitação direta dos gregos e romanos, sobretudo Teócrito, Anacreonte, Virgílio, Horácio,
e tentaram restabelecer vários padrões do período por excelência renascentista na literatura portuguesa:
o século XVI [...] O vínculo, portanto, entre as nossas manifestações neoclássicas e as portuguesas foi
inevitável e isso não se questiona. O que devemos procurar compreender é a cor nacional ou os matizes
da terra brasileira que alteraram o estilo de nossas produções e que determinaram o início de nossa
expressão cultural (GONÇALVES, 1999, p. 347-348).
38
Insisto nas fontes italianas da Arcádia, porque são elas que ressalvam o papel da fantasia e do prazer no tecido
da obra poética. A outra exigência, a da razão, vincula-se ao enciclopedismo francês e impõe-se à medida que
a Ilustração exerce o seu magistério sobre a cultura luso-brasileira. O pioneiro no esforço de reformar a mente
barroco-jesuítica em Portugal foi Luís Antônio Verney, cujo Verdadeiro método de estudar expunha todo um
sistema pedagógico construído sobre modelos racionalistas franceses [...] E há um ponto nodal para
compreender o artifício da vida rústica na poesia arcádica: o mito do homem natural cuja forma extrema é a
figura do bom selvagem. A luta do burguês culto contra a aristocracia do sangue fez-se em termos de Razão e
de Natureza. O Iluminismo que enformou essa luta exibe duas faces: ora a secura geométrica de Voltaire,
vitoriosa nos salões libertinos, ora a afetividade pré-romântica de Rousseau, porta-voz de tendências
passionais, mais populares. Voltaire é ponta-de-lança dos meios urbanos contra os preconceitos da nobreza e
do clero; mas é Rousseau quem abre as estradas largas do pensamento democrático, da pedagogia intuitiva, da
religiosidade natural [...] A volta à natureza, fonte de todo bem, é o lema do Émile de Rousseau [...] Mas tanto
no contexto árcade-ilustrado como no romântico-nostálgico há um apelo à natureza como valor supremo, em
última instância defesa do homem infeliz. As diferenças residem no grau de intensidade com que o eu do
homem moderno procura afirmar-se; e nesse sentido o poeta romântico, mais isolado e impotente em face do
mundo que o cerca do que o poeta árcade, irá muito mais longe na exaltação dos valores que atribui à natureza:
a emotividade que o pressiona é projetada na paisagem que se torna, segundo a palavra intimista de Amiel, um
verdadeiro “état d’âme” (BOSI, 1980, p. 63-65 – grifos do autor).
............................................. ....................................................
A margem deste rio povoada Um reino bem regido não se forma
Vejo da portuguesa gente amada, somente de soldados; tem de tudo:
Toda entregue à solícita porfia, tem milícia, lavoura, e tem comércio.
Com que o rico metal da terra fria ..........................................................
Vai buscar a ambição: vejo de um lado Diz-me, Doroteu, um chefe sábio
Erguer-se uma Cidade, e situado levanta nas conquistas umas tropas,
Junto ao monte, que um vale aos pés estende com que não pode a força do distante,
.......................................................................... conquistador império? Infunde, inspira
Estamos, disse, em uns países novos, nos cabos tanto orgulho, que se atrevam
Onde a polícia não tem inda entrado; a resistir aos mesmos magistrados,
Pode o rigor deixar desconcertado que a pessoa do Augusto representam?
O bom prelúdio desta grande empresa. Maldito, Doroteu, maldito seja
Convém que antes que os meios da aspereza um bruto, que só quer, a todo custo,
Se tente todo o esforço da brandura. entesourar o sórdido dinheiro!
Não é destro cultor o que procura ..........................................................
Decepar aquela árvore que pode Mas ah! prezado amigo, que ditosa
Sanar, cortando um ramo, se lhe acode não fora a nossa Chile, se antes visse
Com sábia mão a reparar o dano. adornado um cavalo com insígnias
Para se radicar do Soberano de general supremo, do que ver-se
O conceito, que pede a autoridade, obrigada a dobrar os seus joelhos
Necessária se faz uma igualdade na presença de um chefe, a quem os deuses
De razão e discurso somente deram, a figura de homem!
............................................. ..............................................................
(COSTA, 1996, p. 386; 420) (GONZAGA, 1996, p. 865-875)
A ênfase fortemente regionalista dos inconfidentes inclinava-se, às vezes, para o nacionalismo econômico. Isto
era mais explícito nos pronunciamentos do alferes Tiradentes, embora ele não estivesse isolado em tal posição.
Silva elogiava a beleza de Minas e apontava seus recursos naturais como os melhores do mundo [...] ele afirmou
que o Brasil era um país que tinha tudo o que precisava, não tendo necessidade de qualquer outro para subsistir.
A razão da pobreza do país, apesar de todas as suas riquezas era “só porque a Europa, como uma esponja, lhe
estivesse chupando toda a substância” [...] A tranquila dignidade com que Tiradentes enfrentou a morte foi um
dos poucos momentos heroicos do fracasso sombrio. Quase um século depois, quando o Brasil implantou a
república, ele foi proclamado herói nacional. E esta condição de herói nacional do alferes dos Dragões de Minas
não é injustificada: em comparação com o de seus companheiros de conspiração, o comportamento de
Tiradentes, ao ser interrogado, foi exemplar, ninguém o sobrepujou em entusiasmo por uma Minas
independente, livre e republicana; reclamou para si o maior risco e não há dúvida alguma de que estava disposto
a assumi-lo. Conforme dizem ter Cláudio Manuel da Costa afirmado, tomara que existissem mais homens dessa
têmpera! (MAXWELL, 2001, p. 153; 222).
A cristandade (1954)
historiador Luiz Carlos Villalta, que, além de realçar a importância da Inconfidência Mineira,
resgata o sentido original, de conteúdo político, do termo “inconfidência”, no período do século
XVIII:
Na segunda metade do século XVIII, o “Século das Luzes”, Minas Gerais assistiu às denominadas
Inconfidências. Elas ocorreram em Curvelo (1760-1763), Mariana (1768), Sabará (1775),
novamente Curvelo (1776) e, por fim, a chamada Inconfidência Mineira (1788-9), de irradiação
territorial mais ampla. Inconfidência, segundo o Vocabulário portuguez e latino (1712), de
Raphael Bluteau, significava “falta de fidelidade ao seu príncipe” [...] do que se conclui que todas
as ditas Inconfidências envolviam, em algum sentido, uma contestação à monarquia portuguesa,
uma traição ao soberano (VILLALTA, 2007, p. 551 – grifos do autor).
também escreveria, em seu degredo na África (1790-1792) Bárbara bela,3 dedicado à esposa
ausente, num tecido poético traçado pelas linhas de uma aguda melancolia e saudade:
Isto, que a Europa barbaria chama, Se o justo e útil pode tão somente.
do seio das delícias, tão diverso, ser o acertado fim das ações nossas,
quão diferente é para quem ama quais se empregam, dizei, mais dignamente
os ternos laços de seu pátrio berço! as forças destes ou as forças vossas
O pastor loiro, que o meu peito inflama, Mandam a destruir a humana gente ,
dará novos alentos ao meu verso, Terríveis legiões, armadas grossas;
para mostrar do nosso herói na boca a procurar o metal, que acode a tudo,
como em grandezas tanto horror se troca. é destes homens o cansado estudo.
3
A data da elaboração de Bárbara bela seria questionada por Rodrigues Lapa, sem que este apresente uma data
precisa, permanecendo, assim, a indefinição quanto ao local e ao ano da escritura: “Se a poesia é realmente de
Alvarenga Peixoto, como acreditamos, ela só poderia ser escrita num período de ausência mais longa, ou numa
correição, em 1780, ou logo depois, quando o marido se ausentava para a Campanha, deixando a formosa mulher
em S. João del-Rei” (LAPA, 1996, p. 925).
43
Neste tormentoso mar Quem quer males evitar Com Deus e o rei não brincar,
D’ondas de contradições, Evite-lhes a ocasião É servir e obedecer,
Ninguém soletre feições Que os males por si virão, Amar por muito temer,
Que sempre há de enganar; Sem ninguém os procurar, Mas temer por muito amar,
Das caras a corações E antes que ronque o trovão, Santo temor de ofender
Há muitas léguas que andar. Manda a prudência ferrar. A quem se deve adorar!
......................................... ........................................
(HELIODORA apud LOPES, 2003, p. 253-254)
44
Este ponto de vista, aliás, é quase imposto pelo caráter da nossa literatura, sobretudo nos momentos estudados;
se atentarmos bem, veremos que poucas têm sido tão conscientes da sua função histórica, em sentido amplo.
Os escritores neoclássicos são quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que
os brasileiros eram tão capazes quanto os europeus; mesmo quando procuravam exprimir uma realidade
puramente individual, segundo os moldes universalistas do momento, estão visando este aspecto. É expressivo
o fato de que mesmo os residentes em Portugal, incorporados à sua vida, timbravam em qualificar-se como
brasileiros, sendo que os mais voltados para temas e sentimentos nossos foram, justamente, os que mais
viveram lá, como Durão, Basílio ou Caldas Barbosa. Depois da Independência o pendor se acentuou, levando
a considerar a atividade literária como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimento a um
programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-
los [...] Esta disposição de espírito, historicamente do maior proveito, exprime certa encarnação literária do
espírito nacional (CANDIDO, 1993, p. 26, v. 1).
O problema linguístico é colocado durante o período colonial [...] A quebra da “pureza” idiomática peninsular,
tanto nos domínios da Espanha como no Brasil – ruptura em que não só está presente a fala indígena como a
aportação negra –, tem muita importância dentro da evolução posterior da literatura latino-americana e em
grande parte de suas buscas atuais [...] A ruptura linguística chega a seu ponto crítico e se converte em programa
imediatamente depois da independência. Com efeito, já em 1825 fala-se de “idioma brasileiro”, e pouco mais
tarde na América hispânica, de “idioma nacional” especialmente na Argentina e no México. Esta tomada de
consciência opera-se em dois níveis: o político e o intelectual [...] O movimento modernista é que haveria de
realizar, de maneira consciente no âmbito de uma via culta, a quebra do puríssimo linguístico na literatura
hispano-americana [...] O modernismo brasileiro surge em 1922, e equivale
46
Por isso, procuramos aproximar-nos do arcadismo, através de algumas de suas figuras principais,
para estabelecer a filiação dos poetas brasileiros frente a seus pares portugueses. Ao relacionar uns
com os outros e reconstruir seu parentesco, pôde-se verificar que, não obstante frequentar as mesmas
fontes, erigindo os mesmos modelos clássicos e servindo-se de idênticas figuras prestigiosas da poesia
tradicional, o arcadismo brasileiro acaba distanciando-se de seu modelo metropolitano, imerso que se
encontrava no processo dinâmico que abriu sua relação com o poder político e com seu novo
destinatário social (RUEDAS DE LA SERNA, 1995, p. xix – grifos do autor).
Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Inácio José de Alvarenga Peixoto e Bárbara
Heliodora, na Inconfidência Mineira, em 1789.
Nos princípios do século XIX, a América Latina se constituía como cenário de lutas
acirradas, especialmente nas Colônias espanholas. A essas rebeliões libertárias se devem a
emancipação do Paraguai (1811), do Uruguai (1814), da Argentina (1816), do Chile (1818),
Venezuela e Nova Granada (1819-1821), Equador (1820), Peru (1824) e Bolívia em 1825.
Em 1822, a maioria das Colônias da América Central unia-se ao México, tornando-se
independente. Em 1823, essas Colônias se separaram do México e formaram as Províncias
Unidas do Centro da América. As pressões dos Estados Unidos e da Inglaterra, as discórdias
entre as oligarquias locais terminariam, contudo, provocando a fragmentação desse Centro
Americano. A partir de 1830, essas Colônias se tornariam as atuais Repúblicas da Costa Rica,
Nicarágua, El Salvador, Honduras e Guatemala.
Em relação ao Haiti, invadido e ocupado pelos franceses, a independência se consumaria
em 1925, depois de uma luta sangrenta que se arrastou do século XVIII ao século XIX. Os
haitianos pagariam um preço altíssimo pela sua liberdade. Os senhores de engenho se
recusavam a entregar o país aos negros, preferindo destruí-lo. Queimaram todos os canaviais,
dizimaram todo o gado e arruinaram os engenhos de açúcar. A “casa-grande” se vingava de
maneira cruel, como indicia o historiador estadunidense, John Charles Chasteen, em sua
América Latina: uma história de sangue e fogo, publicada, incialmente, em 2000, traduzida e
lançada, no Brasil, no ano seguinte. Desta obra, em especial, nos valemos para a compreensão
histórico-política, de Latino América.
Por outro lado, a Metrópole francesa envia tropas fortemente armadas que completam o
serviço dos senhores do açúcar. No Haiti, o exército napoleônico pilhou, destroçou e cometeu
um dos massacres mais violentos da história da França. À chacina da população e ao destroço
do Haiti, se seguiria o bloqueio comercial imposto pelos franceses, além de uma dívida imensa
e impagável. Isso explica a pobreza e a desolação do Haiti, em nossa atualidade.
Cuba, localizada no arquipélago caribenho como o Haiti, também teve um caminho duro
e longo até a sua libertação. Inicialmente, é vendida à Inglaterra pelos espanhóis, depois fica
sob a tutela econômica dos EUA, só se libertando com a Revolução Cubana de 1959, que
implantaria um regime de cunho socialista. A resposta dos estadunidenses não tardaria. Estes,
além de suas incursões contra Cuba, impinge ao país um desumano bloqueio econômico que se
estende até hoje.
Movidos por um acirrado sentimento de busca de autoconhecimento e reconhecimento
de si, os países latino-americanos acolhem o ideário romântico europeu. Na América Latina, o
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Com efeito, as gerações latino-americanas que apareceram por volta dos anos trinta do século XIX,
quando as novas repúblicas começavam a se estabilizar e a dirimir seus conflitos internos – com exceção
do Brasil, que foi reino independente até 1889, quando passou ao sistema republicano – , adotaram
integralmente como programa a criação de uma nova literatura que expressasse nossa natureza e nossos
costumes. Em todos os países da região, poetas, romancistas, dramaturgos e ensaístas entregaram-se
laboriosamente à tarefa de cantar o esplendor da natureza americana e a de reproduzir e explorar as
peculiaridades de nosso caráter e costumes, principalmente os populares, que tinham mais sabor e uma
qualidade mais pitoresca (MARTÍNEZ, 1972, p. 63 – grifos nossos).
A literatura se fez linguagem de celebração e terno apego, favorecida pelo Romantismo, com apoio na
hipérbole e na transformação do exotismo em estado de alma. O nosso céu erra mais azul, as nossas
flores mais viçosas, a nossa paisagem mais inspiradora que a de outros lugares, como se lê num poema
que sob este aspecto vale como paradigma, a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, que poderia ter
sido assinado por qualquer um dos seus contemporâneos latino-americanos entre o México e a Terra do
Fogo. A ideia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa.
Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade das instituições por
meio da supervalorização dos aspectos regionais [...] Pátria do pensador, terra do cantador. Um dos
pressupostos ostensivos ou latentes da literatura latino-americana foi esta contaminação, geralmente
eufórica, entre a terra e a pátria, considerando-se que a grandeza da segunda seria uma espécie de
desdobramento natural da pujança atribuída à primeira (CANDIDO, 1987, p. 141 – 142 grifos do autor).
A relativa paz de que o Brasil desfrutou no século XIX – em contraste com as persistentes agitações da América
hispânica – contribuiu para o florescimento do romance nesse país, durante a segunda metade do século,
o mais importante da América Latina neste período em seu conjunto. Joaquim Maria Machado de Assis
(1839-1908) é a principal personalidade das letras brasileiras (MARTÍNEZ, 1979, p. 64). (MARTÍNEZ, 1972,
p. 64 – grifos nossos).
49
O romantismo hispano-americano foi ainda mais pobre que o espanhol: reflexo de um reflexo. No entanto, há
uma circunstância histórica que, embora de maneira não imediata, afetou a poesia hispano-americana e a levou
a mudar de rumo. Refiro-me à revolução da Independência [...] Inclusive pode dizer-se que houve nessa época
três grandes revoluções com ideologias análogas: a dos franceses, a dos norte-americanos e a dos hispano-
americanos (o caso do Brasil é diferente). Embora as três tenham triunfado, os resultados foram muito
diversos: as revoluções dos dois primeiros foram fecundas e criaram novas sociedades, enquanto a nossa
inaugurou a desolação que foi nossa história desde o século XIX até nossos dias (PAZ, 1974, p. 113-114 –
grifos nossos).
É, pois, num trajeto desigual, mas combinado, que a nova poesia europeia se instala
nas letras da América Latina. A receptividade latino-americana permitiu ao romantismo
alcançar a parte que lhe faltava para atingir a totalidade do Ocidente. Como bem lembra Octavio
Paz, a despeito das diferenças de línguas e culturas nacionais, a poesia moderna é una, e
abrange também as tradições literárias e culturais latino-americanas, em suas três línguas: a
espanhola, a portuguesa e a francesa (1884, p. 11-12). Desse modo, Octavio Paz enfatiza a nossa
legítima condição de artesãos e de intérpretes das representações do mosaico do mundo
ocidental: “ A despeito das diferenças de línguas e culturas nacionais, a poesia moderna do
Ocidente é una. Contudo, vale a pena esclarecer que o termo ‘Ocidente’ também abrange as
tradições poéticas anglo-americanas e latino-americanas (em seus três ramos: a espanhola, a
portuguesa e a francesa)” (PAZ, 1984, p. 11-12).
Tomemos para isso um exemplo: a aliança entre poesia e música, a partir de uma verificação, a saber, que a
notória pobreza poética das literaturas neolatinas no século XVIII foi até certo ponto redimida pela música, que
levou poemas medianos e mesmo medíocres ao nível de canções encantadoras, inclusive no caso luso-
brasileiro, graças à modinha [...] A sua voga deve muito ao árcade Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), que
viveu e morreu em Portugal como uma espécie de mensageiro das coisas do Brasil e, sendo poeta de certo valor,
foi também compositor e cantor à guitarra. No Brasil, a modinha se associou de maneira durável à poesia
erudita, e já no começo do século XIX corriam musicados muitos versos de Tomás Antônio Gonzaga,
acontecendo o mesmo dali por diante com a obra da maioria dos nossos poetas (até, podemos dizer, a atual
MPB – Música Popular Brasileira). Essa aliança foi uma ponte feliz entre Arcadismo e Romantismo,
exprimindo traços que irmanam os dois períodos por cima da ruptura estética. No tempo de D. João VI e
de D, Pedro I, alguns músicos de valor, como os citados João Maurício e Marcos Portugal compuseram
modinhas, e Segismundo Neukomm harmonizou algumas do compositor popular José Joaquim da Câmara [...]
O Romantismo levou ao máximo esta tendência, enchendo o século XIX de poesia cantada, que assim fez
chegar ao povo textos dos poetas mais importantes, que de outro modo se teriam difundido muito menos em
país de pouca instrução e hábitos reduzidos de leitura. Ainda hoje é frequente ouvirmos canções tornadas
anônimas pela incorporação ao patrimônio popular, cujas letras são versos de Castro Alves, Gonçalves Dias,
Casimiro de Abreu (CANDIDO, 2002, p. 91- 93 – grifos nossos).
Sem muito exagero pode-se dizer que em Antonio Candido há dialética por todos os lados. Ou
pelo menos uma inclinação muito marcada pela palavra. Não faltam exemplos, aliás bem
conhecidos, de emprego explícito e enfático do termo clássico. Enumero alguns. Em primeiro
lugar, o mais abrangente deles: caso fosse possível estabelecer uma lei geral de nossa evolução
mental, ela tomaria a forma de uma dialética do localismo e do cosmopolitismo. Esta de resto a
perspectiva que comanda um livro decisivo como Formação da Literatura Brasileira. Assim
sendo estaríamos autorizados a ver dialética no duplo encaixe do livro: tendências universalistas e
particularistas estão presentes nos dois grandes momentos da nossa formação literária, Arcádia e
Romantismo (ARANTES, 1992, p. 9 – grifo do autor).
temáticas do passado, num tratamento, contudo, que não oblitera os traços da diversidade. Tais
distinções podem ser aferidas, ora através da comparação entre a perspectiva de poder almejada
pelos poetas setecentistas – a do despotismo esclarecido – e a ambicionada pelos escritores
românticos, a do governo dos de baixo; ora através do cotejo entre o visor árcade da natureza
(nativista) e o olhar romântico (nacionalista); além de outros rearranjos estéticos, a exemplo da
ressignificação da melancolia.
Entre essas remodelações, se destaca o surgimento do viés de religiosidade popular,
como realça Candido em seu discurso crítico, e ilustra, em tom poético, Manuel Bandeira. Este
não apenas traz as entidades sagradas europeias à intimidade e ao convívio, mas, sobretudo,
procede a um curioso e subversivo abrasileiramento dos ícones cristãos, numa explícita
demonstração de que a desconstrução da discursividade religiosa se cristalizara como uma das
temáticas mais recorrentes em nossa ficcionalidade:
Outro traço importante desse período foi o novo sentimento de civismo, atualização do apreço ilustrado
pelo bom governo. Os intelectuais brasileiros do fim do século XVIII pensavam sobretudo em louvar a ação
dos governantes esclarecidos, vinda de cima e recebida como dádiva. No começo do século XIX, e
sobretudo depois da Independência em 1822, esse ponto de vista foi substituído pelo de participação política
do cidadão, que deveria tomar a iniciativa de estabelecer o bom governo, de baixo para cima, a fim de
promover o império da razão [...] aqui e ali começam a aparecer algumas mudanças discretas nos temas e
no tom. A melancolia, por exemplo, vai sendo cada vez mais associada à noite e à lua, ao salgueiro e à
saudade, sobretudo ao pormenor dos lugares. Modificação paralela ocorre no tratamento da natureza, pois
a tradição nativista se liga então ao novo sentimento de orgulho nacional, que prenuncia o patriotismo. É
preciso destacar outro traço, cheio de consequências: o advento de uma religiosidade que se distancia da
devoção convencional para apresentar-se como experiência afetiva, que confere certa nobreza espiritual e
foi sendo considerada cada vez mais posição moderna, oposta ao paganismo ornamental da tradição
(CANDIDO, 2002, p. 13- 17).
Lívia pensa com raiva em Iemanjá. Ela é a mãe-d’água é a dona do mar, e por isso, todos os homens
que vivem em cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens a
não ser quando eles morrem no mar. Os que morrem na tempestade são seus preferidos. E aqueles
que morrem salvando outros homens, esses vão com ela pelos mares em fora, igual a um navio,
viajando por todos os portos, correndo por todos os mares. Destes ninguém encontra os corpos, que
eles vão com Iemanjá. Para ver a mãe-d’água muitos já se jogaram no mar sorrindo e não mais
apareceram. Será que ela dorme com todos eles no fundo das águas? Lívia pensa nela com raiva
(AMADO, 1979, p. 21 – grifos nossos).
4
Terminologia advinda da expressão “homem cordial”, criada pelo poeta Ribeiro Couto e propagada por Sérgio
Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936), essa expressão é tomada por Holanda como o sentimento da
aversão brasileira ao convencionalismo e à ritualidade social, como enfatiza o autor – “Nenhum povo está mais
distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nessa forma ordinária de convívio social é, no fundo,
justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência [...] A manifestação normal do respeito entre outros
povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade” (HOLANDA, 1988, p. 107).
Posteriormente, em carta a Cassiano Ricardo (1948), incluída na edição da qual nos utilizamos, Sérgio Buarque
de Holanda volta às ponderações sobre esse traço do caráter nacional, ressaltando que a cordialidade não se
restringe à bondade e à afabilidade, nem tampouco exclui a discórdia e a inimizade: “Não precisarei recorrer ao
dicionário para lembrar que essa palavra – cordial –, em seu verdadeiro sentido, e não apenas no sentido
etimológico, como v. quer presumir, se relaciona a coração e exprime justamente o que pretendi dizer. Como, além
disso, se acreditou, mal ou bem, que o coração é sede dos sentimentos, e não apenas dos bons sentimentos, minha
nova explicação, ao lembrar que a inimizade ‘bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra
nascem do coração’” (HOLANDA, 1988, p. 144-145).
54
Uiara (1928)
(D. João VI, escrevendo a seu filho:) Foi nas margens do Ipiranga, Vamos cair no fadinho
Pedro (credo! que sustos!) Em meio a uma pescaria. Pra celebrar o sucesso.”
Se há de ao reino empalmar Sentindo-se mal, D. Pedro A Tuna de Coimbra surge
Algum aventureiro, – Comera demais cuscuz – Com as guitarras afiadas,
O primeiro Desaperta a barriguilha Mas as mulatas dengosas
Sejas... toca a coroar! E grita, roxo de raiva: Do Club Flor do Abacate
“Ou me livro d’esta cólica Entram, firmes, no maxixe,
(SOUSÂNDRADE, 1995, p. 85) Ou morro logo d’ua vez!” Abafam o fado com a voz,
O príncipe se aliviou, Levantam, sorrindo, as pernas...
Sai no caminho cantando: E a colônia brasileira
“Já me sinto independente. Toma a direção da farra.
Safa! vi perto a morte! (MENDES, 1994, p. 164-165)
Nesse jeitinho, lento e gradual, marcado pelos pactos e pelos conchavos de nossas elites,
se processaria a emancipação política do Brasil. Diferenciando-se do processo emancipatório
latino-americano, nossa independência se constituiria como uma solução conciliatória aos
interesses das populações dominantes, ciosas em manter suas posições e privilégios, à revelia
dos interesses das camadas dominadas. Nesse contexto, caracterizado pela conciliação, e por
um acentuado condensamento cultural, a estética romântica surge e se desenvolve em nosso
país.
Apesar da sinuosidade à brasileira, os grupos dirigentes não impediriam as turbulências
verificadas no país, notadamente na região nordestina, dos inícios de 1800. Entre elas,
destacam-se o movimento conspiratório dos Suassunas (Pernambuco – 1801), a Revolução
Pernambucana (1817), a Independência da Bahia (1821-1823), a Confederação do Equador
(1823-1824), todas norteadas pelo desejo separatista.
Na Revolução de 1817 e na Confederação do Equador, o romântico nordestino, Joaquim
do Amor Divino Caneca (1779-1825), participaria com notabilidade. Poeta e jornalista,
seduzido pelos valores liberais, Frei Caneca, a exemplo dos poetas mineiros, se envolveria nos
movimentos autonomistas de seu tempo. De sua atuação política, movida por um acentuado
patriotismo, resultaria a sua execução, determinada por D. Pedro I, então imperador do Brasil.
Um dos escritores mais expressivos e atuantes dessa fase do mundo escritural pernambucano,
Frei Caneca, além de jornalista, pode ser considerado como um dos precursores do romantismo
56
brasileiro, como se pode verificar em seu poema – apresentado em suas duas versões –
elaborado quando ele toma conhecimento de sua condenação: a morte por enforcamento.
(CANECA, 2013)
3 O romantismo no Brasil
3.1. Do surgimento
5
As diferenças linguístico-culturais na América Latina, impostas pelo Tratado de Tordesilhas, seriam lamentadas
por José Veríssimo, em sua saudação a Rubén Darío, na Academia Brasileira de Letras (1912) – “filhos do mesmo
continente, quase da mesma terra, oriundos de povos, em suma da mesma raça, ou pelo menos da mesma formação
cultural, com grandes interesses comuns, vivemos nós, Latino-Americanos, pouco mais que alheios e indiferentes
uns aos outros e nos ignorando quase que por completo” – suscitando, ainda, a apreensiva indagação de Mário de
Andrade (1926) – “no rincão da Sulamérica o Brasil é um estrangeiro enorme?” – conforme registra Jorge
Schwartz, em seu texto “Abaixo Tordesilhas!”, reacendendo essa discussão, na Revista Estudos Avançados, São
Paulo, v.7, n. 17, p. 185-200, jan./abr., 1993.
59
Assim, apesar das diferenças de situação material, pode-se dizer que se formaram em nossos homens de
letras configurações mentais paralelas às respostas que a inteligência europeia dava a seus conflitos
ideológicos. Os exemplos mais persuasivos vêm dos melhores escritores. O romance colonial de Alencar e
a poesia indianista de Gonçalves Dias nascem da aspiração de fundar em um passado mítico a nobreza
recente do país, assim como – mutatis mutandis – as ficções de W. Scott e de Chateaubriand rastreavam na
Idade Média feudal e cavaleiresca os brasões contrastados por uma burguesia em ascensão. De resto,
Alencar, ainda fazendo “romance urbano”, contrapunha a moral do homem antigo à grosseria dos novos-
ricos; e fazendo romance regionalista, a coragem do sertanejo às vilezas do citadino. A correspondência
faz-se íntima na poesia dos estudantes boêmios, que se entregam ao spleen de Byron e ao mal du siècle de
Musset, vivendo na província uma existência doentia e artificial, desgarrada de qualquer projeto histórico
e perdida no próprio narcisismo: Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Fagundes Varela... Como os seus
ídolos europeus, os nossos românticos exibem fundos traços de defesa e evasão, que os leva a posturas
regressivas: no plano da relação com o mundo (retorno à mãe-natureza, refúgio no passado, reinvenção do
bom selvagem, exotismo) e no das relações com o próprio eu (abandono à solidão, ao sonho, ao devaneio,
às demasias da imaginação e dos sentidos) [...] Enfim, o paralelo alcança a última fase do movimento, já
na segunda metade do século, quando vão cessando as nostalgias aristocráticas, já sem função na dinâmica
social, e se adensam em torno do mito do progresso os ideais das classes médias avançadas. Será o
Romantismo público e oratório de Hugo, de Carducci, de Michelet, e do nosso Antônio Castro Alves (BOSI,
1980, p. 101).
Um elemento importante nos anos de 1820 e 1830 foi o desejo de autonomia literária, tornado mais
vivo depois da Independência. Então, o Romantismo apareceu aos poucos como caminho favorável
à expressão própria da nação recém-fundada, pois fornecia concepções e modelos que permitiam
afirmar o particularismo, e portanto a identidade, em oposição à Metrópole, identificada com a
tradição clássica [...] O desejo de autonomia encontrou, como vimos, apoio sólido na estética
particularista aplicada aos países do Novo Mundo. Ela foi importante na medida em que propunha
o característico em lugar do genérico, levando a valorizar o pitoresco, na paisagem e nas
populações. Levava também a privilegiar a singularidade do sentimento individual, que deveria
procurar expressões únicas, e não se acomodar no discurso tópico dos clássicos [...] Sob este
aspecto, as diferentes formas de particularização foram importantes como fator de democratização
da literatura, inclusive atenuando um pouco o abismo que antes separava a literatura erudita da
literatura popular [...] Sendo mais acessível, a literatura do tempo do Romantismo pôde popularizar-
se mais e dar voz aos que não tinham meios de exprimir-se em nível erudito.
60
Continuação...
Por isso ela contribuiu para a ideia que o brasileiro ia formando de si mesmo, ou seja, para o
sentimento de identidade, por meio de mecanismos que ampliaram e tornaram mais comunicativa
a mensagem. Ao mesmo tempo, implantou a noção ideologicamente importante que a nossa
produção literária era própria (CANDIDO, 2002, p. 20; 88-95 – grifo do autor).
................................................
Eu careço de amar, viver careço Ingrato o filho que não ama os berços
Nos montes do Brasil, no Maranhão, Do seu primeiro sol. Eu se algum dia
Dormir aos berros da arenosa praia Tiver de descansar a vida errante,
Da ruinosa Alcântara, evocando Caminhos de Paris não me verão:
Amor... Pericuman!... morrer... meu Deus! Através os meus vales solitários
Quero fugir d’Europa, nem meus ossos Eu irei me assentar, e as brisas tépidas
Descansar em Paris, não quero, não! Que os meus cabelos pretos perfumavam,
Oh! por que a vida desprezei dos lares, Dos meus cabelos velhos a asa trêmula
Onde minh’alma sempre forças tinha Embranquecerão: quando eu nascia
Para elevar-se à natureza e aos astros? Meu primeiro suspiro elas me deram;
Aqui tenho somente uma janela Meu último suspiro eu lhes darei.
E uma jeira de céu, que uma só nuvem
A seu grado me tira; e o sol me passa
Ave rápida, ou como o cavaleiro:
E lá! a terra toda, este sol todo –
E num céu anilado eu m’envolvia,
Como a água se perde dentro dele. (SOUSÂNDRADE, 2002, p. 181-182)
Lá na úmida senzala, O sol faz lá tudo em fogo, O escravo então foi deitar-se,
Sentado na estreita sala, Faz em brasa toda a areia; Pois tinha de levantar-se
Junto ao braseiro, no chão, Ninguém sabe como é belo Bem antes do sol nascer,
Entoa o escravo o seu canto, Ver de tarde a papa-ceia! E se tardasse, coitado,
E ao cantar correm-lhe em pranto Teria de ser surrado,
Saudades do seu torrão... Aquelas terras tão grandes, Pois bastava escravo ser.
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras E a cativa desgraçada
De um lado, uma negra escrava Dão vontade de pensar... Deita seu filho, calada,
Os olhos no filho crava, E põe-se triste a beijá-lo,
Que tem no colo a embalar... “Lá todos vivem felizes, Talvez temendo que o dono
E à meia voz lá responde Todos dançam no terreiro; Não viesse, em meio do sono,
Ao canto, e o filhinho esconde, A gente lá não se vende De seus braços arrancá-lo!
Talvez pra não o escutar! Como aqui, só por dinheiro.” .
Antes de iniciar-se francamente a reação romântica que, em geral com pouca justiça, se faz datar de
1836 com a publicação dos Suspiros Poéticos, já havia muitos sinais de que a revolução entre nós
começada pelos mineiros, que podemos chamar os proto-românticos, já se tinha consumado numa
série de poetas que precederam a Gonçalves de Magalhães, ainda que muitas das produções daqueles
só viessem à luz em livros muito mais tarde. A estes poetas é que devemos assinalar um modesto lugar
na fase de transição para o romantismo (ROMERO, 2001, p. 192 – grifos do autor).
Já vê o meu ilustrado colega, que aleijaríamos nossa língua tão rica, se lhe tolhêssemos esse genuíno teor de
locução que traz de origem. É o que pretendem nossos irmãos; e tacham-nos de não sabermos português [...]
Agora que já satisfiz o desejo de dar a lume, sob seu patrocínio, essa rapsódia cearense, podia aproveitar o
ensejo para deduzir dela considerações mui cabidas na questão da nacionalidade da nossa literatura, que em
meu conceito envolve necessariamente a da modificação da língua [...] Depois da independência, senão antes,
começamos a balbuciar a nossa literatura, pagamos, como era natural, o tributo à imitação, depois entramos a
sentir em nós a alma brasileira, e a vazá-la nos escritos, com a linguagem que aprendemos de nossos pais.
Prosseguíamos na modesta senda, quando em Portugal principiou a cruzada contra a nossa embrionária e frágil
literatura, a ponto de negar-se-lhe até uma individualidade própria. Não era generoso, e não era justo [...] Não
nos ressentimos, ainda assim, com esse espírito de colonização literária [...] Se nós, os brasileiros
escrevêssemos livros no mesmo estilo e com o mesmo sabor dos melhores que nos envia Portugal, não
passaríamos de uns autores emprestados; renegaríamos nossa pátria, e não só ela, como a nossa natureza, que
é o berço dessa pátria (ALENCAR, 1993, p. 31; 54-61).
Dinhêru (2001)
cheguei de foguete
subi num bonde
desci de um elétrico
pedi cafezinho
só vendiam peúgas
gritei “ó cara!”
responderam-me “ó pá!”
positivamente
Não posso admitir, como já o disse uma vez, essa desculpa de que a religião indígena não tinha
tradições nem culto externo; além de não ser isto exato [...] A teogonia indígena, mesmo
imperfeita como era, ou como chegou ao nosso conhecimento, dava matéria para lindos
episódios; esse Deus do trovão, que manifestava a sua cólera lançando o raio; esse grande
dilúvio, que cobriu os píncaros elevados dos Andes; essas lutas de raças conquistadoras, que se
haviam substituído umas às outras; tudo isso posto na boca de um pajé, e nessa linguagem
primitiva da natureza, havia de ter algum encanto (ALENCAR, 1994, p. 209 – grifo do autor).
66
A escravidão dos índios foi um grande erro, e a sua destruição foi e será uma grande calamidade.
Convinha que alguém nos revelasse até que ponto este erro foi injusto e monstruoso, até onde chegaram
essas calamidades no passado, até onde chegarão no futuro: eis a história. Convinha também que nos
descrevesse os seus costumes, que nos instruísse nos seus usos e na sua religião, que nos reconstruísse
todo esse mundo perdido, que nos iniciasse nos mistérios do passado como caminho do futuro, para que
enfim saibamos donde viemos e para onde vamos; convinha enfim que o poeta se lembrasse de tudo
isto, porque tudo isto é poesia; e a poesia é a vida do povo, como a política é o seu organismo. Que
imenso trabalho não seria este! Mas também quantas lições para a política, quantas verdades para a
história; quanta beleza para a poesia (DIAS apud MATOS, 1988, p. 79-80).
A reabilitação do primitivo é uma tarefa que compete aos americanos. Todo mundo sabe o
conceito deprimente de que se utilizaram os europeus para fins colonizadores [...] Ora, ao
nosso indígena não falta sequer uma alta concepção da vida para se opor às filosofias
vigentes que o encontraram e o procuraram submeter [...] A Antropofagia fazia lembrar que
a vida é devoração opondo-se a todas as ilusões salvacionistas [...] Devido ao meu estado
de saúde, não posso tornar mais longa esta comunicação que julgo essencial a uma revisão
de conceitos sobre o homem da América. Faço pois um apelo a todos os estudiosos desse
grande assunto para que tomem em consideração a grandeza do primitivo, o seu sólido
conceito de vida como devoração e levem avante toda uma filosofia que está para ser feita
(ANDRADE, 1992, p. 231- 232).
67
Isso vale em particular para a filosofia política [...] Em outras palavras, continuamos achando que
o universal pertence ao Primeiro Mundo, e que estamos confinados no particular. Pouco importam
os inúmeros trabalhos que, nestas décadas, a começar pelo Manifesto Antropofágico, de Oswald
de Andrade, mostraram como nossa condição de esguelha, de viés, de través pode permitir uma
leitura pelo menos original: em filosofia, continuamos reféns de alguma dependência. (RIBEIRO,
2000, p.10-12).
Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as ideias, embora rudes e grosseiras, dos
índios; mas nessa tradução está a grande dificuldade; é preciso que a língua civilizada se molde quanto possa
à singeleza primitiva da língua bárbara; e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos
e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem. O conhecimento da língua indígena é o melhor
critério para a nacionalidade da literatura (ALENCAR, 1994, p. 98).
Em 1858, um grande erudito, Odorico Mendes (1799-1864), em nota da sua tradução das Bucólicas,
de Virgílio, identificava quatro áreas temáticas na literatura brasileira, correspondendo aos diferentes
tipos humanos: a referente aos “mais civilizados”, que pouco se distinguiam dos europeus; a referente
aos selvagens; e a que deveria tomar como objeto os sertanejos, deixados de lado até então, e que ele
considerava mais ou menos equivalentes aos pastores da bucólica, e típicos do interior, merecendo
maior atenção dos escritores. A seguir acrescenta a possibilidade de um grupo inspirador, os negros,
e conclui dizendo que ao abordar esses elementos característicos, os autores assegurariam uma
literatura propriamente nacional. Estas observações interessam porque são uma espécie de
premonição do que começaria a ocorrer: a introdução do romance regionalista e o interesse crescente
pelo negro, em verso e prosa, nos anos de 1860 e 1870 (CANDIDO, 2002, p. 50 – grifos nossos).
68
PAPAI NOEL entrou pelas portas dos fundos Aquele quarto é o das crianças.
(no Brasil as chaminés não são praticáveis), Papai entrou compenetrado.
entrou cauteloso que nem marido depois da farra. Os meninos dormiam sonhando outros natais
Tateando na escuridão torceu o comutador muito mais lindos
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas, mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal. soldados mulheres elefantes navios
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos, e um presidente de república de celuloide.
achou um queijo e comeu. Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender. no interminável lenço vermelho alcobaça.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças Fez a trouxa e deu o nó
(no Brasil os papai-noéis são todos de cara raspada) .......................................................................
.................................................................................. Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
(ANDRADE, 1988, p. 23-24) apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.
69
Sobre essa reflexão, se debruça Antonio Candido, em seu estudo sobre a relação entre
as nossas manifestações românticas e as matrizes europeias. Examinando, com atenção, as
estratégias de adaptação e de acomodação das letras europeias, ou os seus modos de tradução,
como quer José de Alencar, Candido identifica três mecanismos de fatura textual aos quais
denominará de transposição, de substituição e de invenção. Os processos de transposição e de
substituição definem, conforme ressalta o crítico, a nossa relativa diferença, nos
proporcionando, assim, a consciência própria ante as elaborações europeias, neles residindo,
porquanto, a originalidade de nossos escritos:
Processo de transposição
Processo de substituição
Processo de invenção
Podemos falar em invenção quando o escritor parte do patrimônio europeu para criar variantes
originais, como ocorre num poema de Álvares de Azevedo, “Meu sonho”, no qual ele fecunda o
modelo da balada macabra de tipo alemão (como a “Lenora”, de Bürger), deformando-o a fim de
obter algo diferente. A balada se caracteriza, pelas suas próprias origens populares, por ser uma
narrativa sobre personagens exteriores ao poeta; mas a de Álvares de Azevedo descreve o drama
interior, elaborando imagens que projetam as tensões do ser, de modo a resultar um tipo novo de
composição poética. Essa transformação de um gênero narrativo em gênero intimista pode ser
considerado invenção, que todavia não apaga o laço orgânico em relação às literaturas da Europa,
das quais (nunca é demais repetir quando se fala do Romantismo com a sua forte componente
nativista) a brasileira é um ramo [...] Foi, portanto, por meio de empréstimos ininterruptos que nos
formamos, definimos a nossa diferença relativa e conquistamos consciência própria. Os mecanismos
de adaptação, as maneiras pelas quais as influências foram definidas e incorporadas é que constituem
a “originalidade”, que no caso é a maneira de incluir em contexto novo os elementos que vêm de
outro (CANDIDO, 2002, p. 99-101 – grifos do autor)
A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos
conceitos de unidade e de pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado,
perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação
dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. A América Latina institui seu lugar no
mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que
transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo [...] A
passividade reduziria seu papel efetivo ao desaparecimento por analogia. Guardando seu lugar na
segunda fila, é no entanto preciso que assinale sua diferença, marque sua presença, uma presença muitas
vezes de vanguarda. O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro
que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador. Falar, escrever, significa: falar contra,
escrever contra (SANTIAGO, 2000, p. 16-17 – grifos do autor).
passaria, necessariamente, pelo árduo trabalho de tradução ou rearranjo dos textos europeus,
como sinaliza Alencar, ao descrever o trajeto que precedeu à feitura de As asas de um anjo
(1858), sua primeira obra sobre o mundo da cortesã.
Num exercício de releitura dos textos europeus, orientado pela comparação e pela
remodelação do tema teatral francês, Alencar reescreve o destino da mulher decaída, afastando-
se, assim, da mera transposição, desbotada e macilenta do assunto europeu, como acentua o
autor, no “Prólogo” da primeira edição de As asas de um anjo (1859). De esse torcer o molde
europeu, para dar-lhe uma configuração abrasileirada, deriva a diferença entre Carolina,
personagem-cortesã de Alencar, e as suas predecessoras europeias, como abaliza o próprio
autor, ora no Prólogo, ora no artigo jornalístico, publicado, anteriormente, em 22 de junho de
1858, quando da encenação de seu drama, interditada pela polícia graças às “cenas de forte
impacto emocional para a época” (AGUIAR, 1984, p. 114) que o tema da prostituição
provocava:
Assistindo à A Dama das Camélias, ou As Mulheres de Mármore, cada um se figura que Margarida
Gautier e Marco são apenas duas moças um tanto loureiras, e acha espírito em tudo quanto elas
fazem ou dizem; assistindo a As asas de um anjo, o espectador encontra a realidade diante de seus
olhos, e espanta-se sem razão de ver no teatro, sobre a cena, o que vê todos os dias à luz do sol, no
meio da rua, nos passeios e espetáculos (ALENCAR, 1977, p. 254, v. 1).
Victor Hugo poetizou a perdição na sua Marion Delorme; A. Dumas Filho enobreceu-a n’A Dama das
Camélias; eu moralizei-a n’As Asas de um Anjo; o amor, que é poesia de Marion, e a regeneração de
Margarida, é o martírio de Carolina; eis a única diferença, não falando do que diz respeito à arte, que
existe entre aqueles três tipos (ALENCAR, 1977, p. 257, v. 1).
É mais do que evidente que a sociologia e a literatura nascem e desenvolvem-se desafiadas, influenciadas
ou fascinadas pela questão nacional. Colaboraram decisivamente na elaboração do mapa da nação,
ajudando a estabelecer o território e a fronteira, a história e a tradição, a língua e os dialetos, a religião e as
seitas, os símbolos e as façanhas, os santos e os heróis, os monumentos e as ruínas [...] a sociedade nacional
é o emblema por excelência de grande parte da produção sociológica [...] São também muitas e notáveis as
narrativas literárias nas quais manifesta-se a preocupação aberta ou implícita, consciente ou inconsciente,
pela questão nacional [...] É provável que a literatura disponha de muitos recursos para lidar com a nação,
com um todo ou em alguns dos seus aspectos (IANNI, 1999, p. 14-16).
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AUTORES E OBRAS
Flávio Aguiar
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AUTORES E OBRAS
Gonçalves de Magalhães
Antonio Candido
Comentário crítico
Gonçalves de Magalhães (1811-82) publicou, retomando Denis, o “Ensaio sobre a história da literatura brasileira”, no qual
traçava o programa renovador, completado pelo do prefácio do livro que publicou no mesmo ano, Suspiros poéticos e
saudades, considerado pelos contemporâneos o ponto de partida da transformação literária e iniciador da literatura
propriamente brasileira. Magalhães foi um caso interessante de renovador sem força renovadora. O seu medíocre livro de
estreia, Poesias (1832), é rotineiramente neoclássico, mas tem o toque nacionalista do tempo: patriotismo aceso e
celebração da liberdade política, banhados na embriaguês da cidadania recente (CANDIDO, 2002, p. 26).
Saudação à pátria à vista do Rio de Janeiro no meu regresso da Europa – em14 de maio de 1837
Continuação...
Comentário crítico
Gonçalves Dias se destaca no medíocre panorama da primeira fase romântica pelas qualidades superiores de inspiração e
consciência artística. Contribui ao lado de José de Alencar para dar à literatura, no Brasil, uma categoria perdida desde os
árcades maiores e, ao modo de Cláudio Manuel, fornece aos sucessores o molde, o padrão a que se referem como inspiração
e exemplo [...] A “Canção do Exílio” (banalizada a ponto de perder a magia que no entanto a percorre de ponta a ponta)
representa bem o seu ideal literário; beleza na simplicidade, fuga ao adjetivo, procura da expressão de tal maneira justa
que outra seria difícil [...] A maioria dos poetas e mesmos jornalistas considerava Gonçalves Dias, desde meados do
século, como o verdadeiro criador da literatura nacional. Em 1849, Álvares de Azevedo via nele a fonte de inspiração para
os novos e, por meio do “livro renovador, Os Primeiros Cantos”, regenerador da “rica poesia nacional de Basílio da Gama
e Durão” (CANDIDO, 1993, p. 71, v. 2 – grifo do autor).
Por que tardas, Jatir, que tanto a custo A flor que desabrocha ao romper d'alva
À voz do meu amor moves teus passos? Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Da noite a viração, movendo as folhas, Eu sou aquela flor que espero ainda
Já nos cimos do bosque rumoreja. Doce raio do sol que me dê vida.
Com mimoso tapiz de folhas brandas, Vai seguindo após ti meu pensamento;
Onde o frouxo luar brinca entre flores. Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!
Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, Meus olhos outros olhos nunca viram,
Já solta o bogari mais doce aroma! Não sentiram meus lábios outros lábios,
Como prece de amor, como estas preces, Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
No silêncio da noite o bosque exala. A arazóia na cinta me apertaram.
Comentário crítico
Álvares de Azevedo foi um dos poetas mais lidos e queridos do Brasil, enquanto estiveram em voga as cadências
melodiosas, o tom sentimental ou satânico e o entrechoque abrupto das paixões, peculiares ao Romantismo [...] Boa parte
de suas poesias se refere à noite, onde decorrem todas as suas narrativas e ações dramáticas, – seja ao relento, seja nos
interiores que vão da sordidez dos d’A noite na taverna e da pobre estalagem do Macário, aos salões luxuosos d’O livro
de Fra Gondicário e os ambientes de opulenta orgia d’O Conde Lopo [...] É também a hora do sonho e do pesadelo, como
em Macário, “Meu sonho” e na visão macabra do Conde Lopo galopando entre esqueletos, a caminho de um ritual
pavoroso (CANDIDO, 2002, p. 9-13).
EU
Sem ele não há cova – quem enterra Fora a canalha de vazios bolsos!
Assim grátis, a Deo? O batizado O mundo é para todos... Certamente
Também custa dinheiro. Quem namora Assim o disse Deus – mas esse texto
Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio? Explica-se melhor e doutro modo.
Demais, as Danaes também o adoram, Houve um erro de imprensa no Evangelho:
Quem imprime seus versos, quem passeia, O mundo é um festim, concordo nisso,
Quem sobe a Deputado, até Ministro, Mas não entra ninguém sem ter as louras.
Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,
Embora gênio, talentosa fronte,
Alma Romana, se não tem dinheiro? (AZEVEDO, 2002, p. 82)
78
Comentário crítico
Em Junqueira Freire é precisamente esse convívio tenso entre eros e thanatos que sela a personalidade do religioso e do
artista malogrado. “Contrário a si mesmo, cantando por aspirações opostas, aparece-nos o homem atrás do poeta”, dele
disse Machado de Assis; e nessas palavras ia um elogio, mas também uma restrição. Louvor à sinceridade com que se
projetou no verso o drama do individuo atado a uma falsa vocação; crítica ao modo de ser dessa poesia, que, toda centrada
no eu do emissor, não encontrou o correlato da invenção formal [...] Inspirações do Claustro podemos ler como um
documento pungente de um moço enfermiço dividido entre a sensualidade, os terrores da culpa e os ideais religiosos, mas
não como uma obra de poesia (BOSI, 1980, p. 124-125 – grifos do autor):
Martírio (1855)
Comentário crítico
Ainda na linha de compreensão do público médio é que se deve apreciar a popularidade de Casimiro de Abreu, que operou
uma descida de tom em relação à poesia de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Junqueira Freire. Na verdade pouco
deferiria destes se o critério de comparação se esgotasse na escolha dos temas, valorizados em si mesmos: a saudade da
infância, o amor à natureza, os fogachos de adolescente, a religião sentimental, o patriotismo difuso. Mas o que singulariza
o poeta é o modo de compor, que remonta, em última análise, ao seu modo de conhecer a realidade na linguagem e pela
linguagem. Casimiro reduzia a natureza e o próximo a um ângulo visual menor: o do seu temperamento sensual e
menineiro que o aproxima bastante dos literatos fluminenses coevos, do tipo de Laurindo Rabêlo e Joaquim Manuel de
Macedo. Ele adelgaça a expressão dos afetos, tão ardentes em Gonçalves Dias, tão apaixonados em Álvares de Azevedo
(BOSI, 1980, p.127 – grifos do autor).
Continuação...
Nas horas caladas das noites de estio Feliz o bom filho que pode contente
Sentado sozinho co’a face na mão, Na casa paterna de noite e de dia
Eu choro e soluço por quem me chamava Sentir as carícias do anjo de amores,
– “Ó filho querido do meu coração!” – Da estrela brilhante que a vida nos guia!
– Minha Mãe! – – Minha Mãe! –
No berço, pendente dos ramos floridos, Por isso eu agora na terra do exílio,
Em que eu pequenino feliz dormitava: Sentado sozinho co’a face na mão,
Quem é que esse berço com todo cuidado Suspiro e soluço por quem me chamava:
Cantando cantigas alegres embalava? – “Ó filho querido do meu coração!” –
– Minha Mãe! – – Minha Mãe! –
Tenho medo de mim, de ti, de tudo, Diz: – que seria da pureza de anjo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes, Das vestes alvas, do candor das asas?
Das folhas secas, do chorar das fontes, – Tu te queimaras, a pisar descalça,
Das horas longas a correr velozes. – Criança louca – sobre um chão de
[brasas!
É que esse vento que na várzea – ao longe, Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Do colmo o fumo caprichoso ondeia, Toda a inocência que teu lábio encerra,
Soprando um dia tornaria incêndio E tu serias no lascivo abraço,
A chama viva que teu riso ateia! Anjo enlodado nos pauis da terra.
Comentário crítico
A poesia brasileira, em pelo menos três momentos, representa os centros financeiros como o local infernal e a fonte de
seus males, inclusive os da poesia. A mais contundente e direta é o canto X, “Inferno de Wall Estreet”, de 1877/1888, do
grande poema “O Guesa”, de Sousândrade, poeta maranhense [...] O que torna o canto mais surpreendente é a intenção
crítico-satírica, ou seja, o modo pelo qual julga a cidade de Nova York, um centro próspero equivalente às mais modernas
capitais europeias. O poeta, em vez de se embasbacar com as maravilhas da técnica e da vida moderna, o que seria o mais
provável – como acontece com D. Pedro II e sua comitiva, que, na época, visita a Exposição do Centenário da
Independência dos Estados Unidos –, ele faz uma crítica aguda da vida americana e que vai bem além da moralista.
Sousândrade aprecia os movimentos de subida e decida das Bolsas e como, com eles, as riquezas se formam e se desfazem.
Ao mesmo tempo, observa como os valores morais e espirituais acompanham esses movimentos, mas somente em trajeto
de descendimento e corrosão, sem que conheçam uma contrapartida ascendente, como os duplos e compensatórios da
circulação da riqueza material. A imagem que o poeta cria da cidade é a do lugar onde os negócios (e como resultados de
seus próprios movimentos) se misturam com a prostituição, a fraude, os vícios, a idolatria, a hipocrisia. Aí tudo se mescla,
o alto e o baixo, o sublime e o grotesco, o belo e o horrível, o espírito e o corpo, mas sempre em detrimento dos primeiros,
pois, nesses contatos e aproximações promíscuas, tudo se vilipendia e nada se regenera [...] Os valores da racionalidade
econômica, obter o máximo de ganho com o mínimo de recursos, regem seu estilo telegráfico, desarticulado, truncado e
rápido, como o do jornal, das revistas e dos meios de publicidade. (RONCARI, 2007, p. 271-272)
No dia de bons anos a lady nobre, Gelada a terra, o ar vivo, o sol brilhante,
Recamados drawingrooms deslumbrantes Aos lagos, que ondas foram sonorosas
Às recepções, radiosa de brilhantes, De margens d’ecos, o rapaz e as rosas,
Deusa o colo alvo e cândido descobre Vêm ao baile do gelo: delirante,
A que adornos desmaiam. Suntuosos, Envolta em vestes de veludos quentes,
Bufetes e o bouquet. Sorrindo a miss A menina, nos pés, viveza e graça,
No adorável serviço de meiguice, O aro prendendo dos patins luzentes,
Que não dos escanções silenciosos, Letras sobre o cristal girando traça.
Linda oferece a mãozinha branca, A Bíblia da família à noite é lida;
Dizem que beberagem para amor – Aos sons do piano os hinos entoados,
Porém sorrindo of’rece, ingênua e franca, E a paz e o chefe da nação querida
O ponche de champanha abrasador. São na prosperidade abençoados.
Entanto às hops não sendo, das montanhas, – Mas no outro dia cedo a praça, o stock,
Sem dúvida que é este o mais propício Sempre acesas crateras do negócio,
Risonho dia ao doce compromisso O assassínio, o audaz roubo, o divórcio,
Do coração, que o filtro tal se assanha: Ao smart Yankee astuto, abre New York.
São callers os papás; nem os consente ...................................................................
Boa etiqueta em casa; e o soberano
Cetro tem-no a mulher – Quão docemente
Alvora o dia que é primeiro do ano!
Comentário crítico
Mas o epígono por excelência, o maior dentre os menores poetas saídos das Arcadas paulistas, foi, sem dúvida, Fagundes
Varela, o único nome de relevo na poesia da década de 60 [...] Seria fácil rastrear em sua produção descurada e prolixa
sugestões e mesmo decalques de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu. Explorou todos os temas
românticos, não excetuado o do índio que, na altura do Evangelho nas Selvas, redigido entre 1870 e 1875, já não figurava
com fonte de inspiração em nossas letras. Por outro lado, Varela foi, mais que os seus modelos, sensível à lira patriótica
de filiação liberal [...] Um lugar à parte na sua produção, pela constância do fôlego, ocupa o “Cântico do Calvário”, escrito
em memória do filho. Nessa bela elegia em versos brancos Varela redime-se da sensação de já lido com que o marcara a
secura do crítico (BOSI, 1980, p. 129-131 – grifos do autor).
Comentário crítico
Ao antecipar o Castro Alves poeta dos escravos (cuja produção vai de 1876 a 1883), o Joaquim Manoel de Macedo de
Vítimas-algozes (1869) e o Bernardo Guimarães da virtuosa Escrava Isaura (1875), para ficarmos na literatura
antiescravista mais conhecida, Maria Firmina dos Reis desconstrói não apenas a primazia do abolicionismo branco,
masculino e senhorial [...] Ao estabelecer uma diferença discursiva que contrasta em profundidade com o abolicionismo
hegemônico na literatura brasileira de seu tempo, a autora constrói para si mesma um outro lugar: o da literatura afro-
brasileira [...] Texto fundador, Úrsula polemiza com a tese segundo a qual nos falta um “romance negro”, pois apesar de
centrado nas vicissitudes da heroína branca, pela primeira vez em nossa literatura, tem-se uma narrativa da escravidão
conduzida por um ponto de vista interno e por uma perspectiva afrodescendente. Assim, o romance da escritora
maranhense vem fazer companhia às Trovas burlescas de Luiz Gama, também de 1859, no momento inaugural em que os
remanescentes de escravos querem tomar com as mãos o sonho de, através da literatura, construir um país sem opressão
(DUARTE, 2009, p. 277-278 – grifos do autor).
Liberdade! liberdade... ah! eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura –
Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu.
Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer
a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias, e aí
com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração,
divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias d’aquelas vastas praias.
Ah! meu filho! [...] Vou te contar o meu cativeiro. Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e
o inhame e o mendubim eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza
parece entregar-se toda a brandos folgares [...] entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim,
eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão
incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência
semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher
milho. Ah! nunca mais devia eu vê-la... Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando
um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente, que aí me
aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era
uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade:
os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer,
julguei morrer, mas não me foi possível... A sorte me reservava ainda longos combates. Quando me
arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! meu
Deus! o que passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!... Meteram-me a mim e a
mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio.
Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos
nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão
fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais
ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água
imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso
lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas
humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência (REIS, p. 115-117 –
grifos da autora).
86
Comentário crítico
A mãe de Gama foi a legendária nagô Luíza Mahin, e seu pai um fidalgo de origem portuguesa cujo nome não se conhece.
Segundo consta, Luiz Gama, em criança, foi vendido pelo próprio pai. Anos mais tarde, conseguiu provar a ilegalidade de
sua situação de escravo, uma vez que filho de mãe livre, e obteve a liberdade. Tanto Gama quanto Patrocínio foram
essencialmente autodidatas e militaram brilhantemente em favor da abolição [...] Mas o texto realmente famoso de Luiz
Gama chama-se “Quem sou eu?”, sendo mais conhecido como “A bodarrada”. Neste poema satírico de 138 versos, Gama
brinca com as diversas acepções populares da palavra “bode”. Na gíria brasileira, “bode” é mestiço, mulato. É também
indivíduo libidinoso, sátiro. Além disso, o bode “berra”, perturba o sossego – exatamente o que o autor pretende fazer com
seu poema. Sem alusões a fatos de sua vida pessoal, Gama define-se como homem e como poeta e, a par disso, denuncia
ferinamente a hipocrisia e os vícios reinantes [...] A galhofa torna-se verrina e o poema ganha em seriedade: Gama põe o
dedo em fundas chagas sociais, associando o poderio econômico ao comércio e à exploração escravista [...]
Simultaneamente jocoso e cáustico, trazendo à lembrança Gregório de Matos, o final do poema assume um tom lúdico
numa atitude que hoje chamaríamos de “carnavalizadora” (GOMES, 1988, p. 85-91 – grifos da autora).
Continuação…
Comentário crítico
Castro Alves (1847-71), em cuja obra a poesia do Romantismo encontrou o fecho brilhante, pois em seguida só se produziu
coisa de segunda e terceira ordem [...] era dotado do que se chamava naquele tempo de “inspiração generosa”, isto é,
facilidade torrencial de composição, associada à prodigiosa concatenação verbal dos improvisadores [...] Com ele rompe-
se o masoquismo lamuriento que estava na moda até então, e nos seus poemas os sentimentos parecem um ato de afirmação
vital. Tanto mais quanto tinha a capacidade de inventar metáforas expressivas e dinamizar o verso por meio do contraste
e da antítese, empregados ao gosto de Victor Hugo [...] A sua fama foi devida sobretudo à poesia humanitária e social.
Deixando de lado o índio, voltou-se para o negro e tornou- se o poeta dos escravos, com uma generosidade e um ânimo
libertário que fizeram da sua obra uma força nos movimentos abolicionistas. Com ele o escravo se tornou assunto nobre
da literatura e o seu generoso ânimo poético soube criar para cantá-lo situações e versos de grande eficácia, como se vê
em “O navio negreiro”, no qual usa diversos metros e organiza a narrativa com expressivo senso de movimento
(CANDIDO, 2002, p. 73-75 – grifos do autor).
88
’Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Brinca o luar – dourada borboleta; Que música suave ao longe soa!
E as vagas após ele correm... cansam Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Como turba de infantes inquieta. Pelas vagas sem fim boiando à toa!
’Stamos em pleno mar... Dois infinitos Esperai!... esperai!... deixai que eu beba
Ali se estreitam, n’um abraço insano Esta selvagem, livre poesia...
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Orquestra – é o mar, que ruge pela proa,
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... E o vento, que nas cordas assobia...
...................................................................
’Stamos em pleno mar... abrindo as velas Por que foges assim, barco ligeiro?
Ao quente arfar das virações marinhas, Por que foges do pávido poeta?
Veleiro brigue corre à flor dos mares, Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Como roçam na vaga as andorinhas... Que semelha no mar – doudo cometa!
Comentário crítico
Diferentemente de Luiz Gama, Patrocínio deu preferência à ficção sobre a poesia. Seu romance de maior renome,
Mota Coqueiro, não tem a escravidão mas sim a pena de morte como tema principal. Apesar disso, a obra fornece
uma interessante contribuição – e rara, em nossa literatura – em termos da representação da vida escrava. A
comunidade escravizada é descrita por alguém que conhece e se interessa verdadeiramente pelas coisas negras, e
surge dotada de vida própria, não como mero apêndice da vida dos brancos [...] Não é como “romancista de tese”
que Patrocínio manifesta originalidade, mas sim no momento em que se depara com suas conflitadas raízes
africanas e decide utilizá-las como matéria literária [...] Além das intenções explícitas do autor – a tese contra a
pena de morte – é a escravidão que toma vida, no romance de Patrocínio (GOMES, 1988, p. 91-93).
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– Balbina sabe de tudo, exclamou a feiticeira; casa não tem parede, gente não tem segredo, bicho
não tem maldade para Balbina. Filho de você é de Manuel João; mas o pai não se importa mais
com a mãe de seu filho. O espanto avassalou a crioula, que se debulhou em lágrimas. – Não chora,
não, criança; mundo é assim mesmo. Balbina criou o filho dos brancos, Balbina foi boa para o
menino. Quando o filho dos brancos estava doente, Balbina sentia como se fosse filho dela.
Menino já está grande; os brancos jogam fora Balbina; põem a escrava de outro dono no meio dos
escravos dos brancos. Língua má corta em Balbina, brancos dão ouvido; Balbina é surrada, como
negro ladrão. Balbina sofre calada, porque maior é Deus. Tem amizade ao filho dos brancos, que
não é filho de Balbina. Podia soprar a casa-grande; mandar a cobra-coral tirar nos brancos o
sangue que correu das costas de Balbina, mas não quer; sofre calada [...] O chocalho está dizendo
que o filho de Carolina tem de sofrer cativeiro do mau senhor. Brancos podem surrar, podem
vender o filho da sua escrava, e a escrava há de chorar e tomar ojeriza dos brancos. Antes o filho
não nasça, se há de passar tantos trabalhos; antes vá para os anjos no tabuleiro com rosas e
girassóis. A cobra zangada ou morde a quem a zanga, ou morde o seu corpo dela. A mãe que tem
de ficar sem o filho, que é seu sangue, é como a cobra zangada. [...] O candeeiro continuou aceso
na senzala de Balbina, e quem espiasse pela fresta da janela, e aplicasse atentamente o ouvido,
vê-la-ia sentada, com o cachimbo negro à boca. De vez em quando, porém, ela tirava o cachimbo
e pronunciava estas palavras agoureiras. – Hum, hum, os brancos? A negra criou o menino; era a
mãe preta, e eles não deram nem um canto da casa grande para ela morar. Tomaram o menino das
mãos da negra e meteram nelas a enxada. Depois o chicote fez feridas nas costas da feiticeira, e o
menino nem olha mais para ela. A ririô machucada morde, a escrava desprezada mata [...] Teve
toda a razão a dissimulada Balbina quando considerou gravíssima a enfermidade de Carolina.
Atentando contra a vida do filho, conforme o expediente aconselhado pela feiticeira, pôs em risco
a própria vida [...] Ninguém que a visse aí poderia suspeitar que a feiticeira contemplava a sua
obra sombria de vingança; estava serena, nada denunciava sequer um traço de remorso [...]
Balbina jurou que sabia que o seu senhor tinha mandado matar a família de Francisco Benedito
[...] a população pedia sangue para desafrontar-se [...] O verdadeiro criminoso devia alegrar-se na
sua barbaridade ao ver como a sociedade demonstrava compreender a justiça [...] A notícia da
condenação do fazendeiro voou ruidosamente, levando consigo a satisfação e a confiança dos
crédulos adoradores da justiça humana [...] Balbina e Carolina, cujos depoimentos serviram de
base à condenação do fazendeiro, foram libertas pela generosidade popular [...] Balbina podia
sorrir tranquilamente; queria apenas vingar-se e conseguiu também a liberdade (PATROCÍNIO,
1977, p. 68-70; 230-257 – grifos do autor).
Comentário crítico
Tobias Barreto de Meneses (1838-89) foi um talento de fortes qualidades sugestivas; era um revolucionário, um
abridor de novos horizontes. Daí a influência que exerceu nas três esferas principais de atividade a que se dedicou
e que correspondem a três épocas perfeitamente distintas de sua vida: a poesia na primeira fase do Recife, de 1862
a 1870; a crítica de filosofia e de literatura, no período da Escada, de 1871 a 1881; o direito, no último estádio
recifense, de 1882 a 1889 [...]. O sincretismo dos fatos mostra-nos que Machado de Assis, Fagundes Varela e
Tobias Barreto começaram pelo mesmo tempo [...] Foi o iniciador e o mais conspícuo representante do hugoanismo
condoreiro na poesia, do alemanismo na crítica, do transformismo darwiniano no direito no Brasil (ROMERO,
2001, p. 219-223 – grifos do autor).
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Epicurismo (1881)
Comentário crítico
Considera-se oficialmente como sendo o primeiro romancista propriamente dito Antônio Gonçalves Teixeira e
Sousa (1812-61), autor também do primeiro poema longo de tema indianista, por sinal muito ruim: “Três dias de
um noivado” (1844). Um ano antes tinha publicado O filho do pescador, e em seguida publicou mais cinco
romances até 1856. Escritor de terceira ordem, apostou na peripécia e na mais desabalada complicação, ao modo
dos livros de aventura e mistério que eram então devorados pelo público, tanto aqui (onde ele era bem pequeno)
quanto na Europa. No entanto, não chegou à popularidade, e dos seus livros só dois tiveram segunda edição até
hoje (CANDIDO, 2002, p. 40-41).
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Comentário crítico
Foi professor do Colégio Pedro II, deputado, jornalista [...] Autor teatral e romancista muito produtivo, exerceu
um papel importante, como exemplo para os moços, pois com ele o romance ganhou categoria em nossa literatura.
A publicação d’A moreninha [...] marca uma data, sob este aspecto. Além disso, foi também poeta e autor didático,
fez compilações biográficas e sátiras de costumes, num atividade variada e intensa. O seu teatro é por vezes
meritório; o seu romance envelheceu muito, dada a puerilidade dos entrechos, o tom rasteiro do estilo e a
mediocridade das ideias. Mas em alguns de seus livros estes defeitos são compensados por certo interesse peculiar,
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que decorre do realismo familiar e despretensioso, baseado na observação dos costumes e na bonomia do tom. Daí
o valor documentário que muitos têm, e o encanto, para grande número de leitores, da sua habilidade em variar
sobre o tema do namoro, como honrado preâmbulo da sua vida de família (CANDIDO; CASTELLO, 1988, p.
171-172).
Bravo! exclamou Filipe, entrando e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho. Bravo!...
interessante cena! Mas certo que desonrosa fora para casa de um estudante de Medicina e já no sexto ano,
a não valer-lhe o adágio antigo: – o hábito não faz o monge. – Temos discurso!... atenção!... ordem!...
gritaram a um tempo três vozes. – Coisa célebre! acrescentou Leopoldo. Filipe sempre se torna orador
depois do jantar... – E dá-lhe para fazer epigramas, disse Fabrício. – Naturalmente, acudiu Leopoldo, que,
por dono da casa, maior quinhão houvera no cumprimento do recém-chegado; naturalmente Bocage,
quando tomava carraspanas, descompunha os médicos. – C’est trop fort! bocejou Augusto, espreguiçando-
se no canapé em que se achava deitado. – Como quiserem, continuou Filipe, pondo-se em hábitos menores;
mas por minha vida que a carraspana de hoje ainda me concede apreciar devidamente aqui o meu amigo
Fabrício, que talvez acaba de chegar de alguma visita diplomática, vestido com esmero e alinho, porém
tendo a cabeça encapuzada com a vermelha e velha carapuça do Leopoldo; este, ali escondido dentro do
seu robe de chambre cor de burro quando foge, e sentado em uma cadeira tão desconjuntada que, para não
cair com ela, põe em ação todas as leis de equilíbrio, que estudou em Pouillet; acolá, enfim, o meu
romântico Augusto, em ceroulas, com as fraldas à mostra, estirado em um canapé em tão bom uso, que
ainda agora mesmo fez com que Leopoldo se lembrasse de Bocage. Oh! VV. SS. tomam café!... Ali o
senhor descansa a xícara azul em um pires de porcelana... aquele tem uma chávena com belos lavores
dourados, mas o pires é cor-de-rosa... aquele outro nem porcelana, nem lavores, nem cor azul ou de rosa,
nem xícara... nem pires... aquilo é uma tigela num prato... – Carraspana!... carraspana!... gritaram os três.
– O’ moleque! prosseguiu Filipe, voltando-se para o corredor, traze-me café, ainda que seja no púcaro em
que o coas; pois creio que, a não ser a falta de louças, já teu senhor mo teria oferecido. – Carraspana!...
carraspana!... – Sim, continuou ele, eu vejo que vocês... – Carraspana!... carraspana!... – Não sei de nós
quem mostra... – Carraspana!... carraspana!... Seguiram-se alguns momentos de silêncio, ficaram os quatro
estudantes assim a modo de moças quando jogam o siso. Filipe não falava, por conhecer o propósito em
que estavam os três de lhe não deixar concluir uma só proposição; e estes, porque esperavam vê-lo abrir a
boca para gritar-lhe: carraspana!... Enfim, foi ainda Filipe o primeiro que falou, exclamando de repente: –
Paz! paz!... – Ah! já?... disse Leopoldo, que era o mais influído. – Filipe é como o galego, disse um outro;
perderia tudo para não guardar silêncio durante uma hora (MACEDO, 1990, p. 11-12).
Comentário crítico
Não há nenhuma personagem íntegra no sentido positivo, nas Memórias de um Sargento de Milícias. Todos têm
seus pontos fracos. Alguns mesmo só têm pontos fracos, não apresentam aspectos bons, como é o caso de José
Manuel, de Maria Saloia, que só no sentido negativo é que são íntegros. Mesmo o compadre, que é quem mais se
aproxima de um padrão ideal, tem o arranjei-me no seu passado, e sua bondade é mais próxima da tolice. E o
Vidigal, então? O terror do Rio de Janeiro, o mantenedor da ordem e da moral, quem diria que abriria mão de seus
caros princípios ante um mero cochicho de Maria Regalada? [...] É desse modo que Manuel Antonio de Almeida
caracteriza a personagem Leonardo, que resulta num herói sem nenhum caráter, ou melhor, que apresenta os traços
fundamentais do estereótipo do brasileiro. Manuel Antonio de Almeida é o primeiro a fixar em literatura o caráter
nacional brasileiro, tal como terá longa vida em nossas letras. Na ficção e na ensaística, particularmente do século
XX, será constante a atribuição dessas características ao brasileiro: vagabundagem, preguiça, sensualidade,
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indisciplina, vivacidade de espírito – nossa modalidade de “inteligência” – e sobretudo simpatia. Creio que se pode
saudar em Leonardo o ancestral de Macunaíma (GALVÃO, 1976, p. 29-32 – grifos da autora).
Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão
decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance,
tomava-o imediatamente, espanava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que encontrava, esfregava-o
em uma parede, e acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia custar
aos ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de traquinas, guloso; quando
não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava; trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não
se emendava, que era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas. Assim
chegou aos sete anos. Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se
seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais
cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses
atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos através
das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais
novidade. Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em casa, para tratar de negócios do
oficio, sempre em horas desencontradas: porém isto também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três
ou quatro vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto causou-lhe
sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu
precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu. À vista disto nada havia a duvidar: o pobre
homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco
uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os punhos cerrados. – Grandessíssima!... E
a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer com todo o corpo. A Maria recuou dous
passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava com qualquer cousa. – Tira-te lá, ó Leonardo!
– Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te essa boca a socos... – Safe-se daí! Quem lhe
mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo? Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a
dor da traição, e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos sobre a Maria, que depois
de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr, a chorar e a gritar: – Ai... ai... acuda, senhor compadre...
senhor compadre!... Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês, e não podia largá -lo.
Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas. Encolheu-se a choramingar em um canto. O menino
assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio: enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava,
este ocupava-se tranquilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar, e em fazer delas
uma grande coleção de cartuchos. Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver alguma cousa mais do que
seu ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno. Enfurece-se de novo: suspendeu o
menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma meia-volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos
atirando-o sentado a quatro braças de distância. – És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um
pontapé te acabe a casta. O menino suportou tudo com coragem de mártir, apenas abriu ligeiramente a boca quando
foi levantado pelas orelhas: mal caiu, ergueu-se, embarafustou pela porta fora, e em três pulos estava dentro da
loja do padrinho, e atracando-se-lhe às pernas (ALMEIDA, 1991, p. 11-13).
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Obras: Cinco minutos (1856); O Guarani (1857); A viuvinha (1857); Lucíola (1862); Diva
(1864); Iracema (1865); As minas de prata (1864-1865); O gaúcho (1870); A pata da gazela
(1870); O tronco do ipê (1871); Guerra dos mascates (1873-1974); Til (1872); Sonhos d'ouro
(1872); Alfarrábios (1873); Ubirajara (1874); O sertanejo (1875); Senhora (1875); Encarnação
(1893); O crédito (1857); Verso e reverso (1857); Demônio familiar (1857); As asas de um anjo
(1858); Mãe (1860); A expiação (1867); O jesuíta (1875); Ao correr da pena (1874); Como e
por que sou romancista (1893); Cartas sobre a confederação dos tamoios (1856); Ao imperador:
cartas políticas de Erasmo e Novas cartas políticas de Erasmo (1865); Ao povo: cartas políticas
de Erasmo (1866); O sistema representativo (1866).
Comentário crítico
Bem diferente foi a obra romanesca de José Martiniano de Alencar (1829-77), ao todo vinte romances publicados
entre 1856 a 1877, dando exemplo da importância que o gênero havia adquirido na literatura brasileira,
ultrapassando o nível modesto dos predecessores e demonstrando capacidade narrativa bem mais definida. É uma
obra bastante ambiciosa. A partir de certa altura, Alencar pretendeu abranger com ela, sistematicamente, os
diversos aspectos do país no tempo e no espaço, por meios de narrativas sobre os costumes urbanos, sobre as
regiões, sobre o índio. Para pôr em prática esse projeto, quis forjar um estilo novo, adequado aos temas e baseado
numa linguagem que, sem perder a correção gramatical, se aproximasse da maneira brasileira de falar. Ao fazer
isso, estava tocando o nó do problema (caro aos românticos) da independência estética em relação a Portugal. Com
efeito, caberia aos escritores não apenas focalizar a realidade brasileira, privilegiando as diferenças patentes na
natureza e na população, mas elaborar a expressão que correspondesse à diferenciação linguística que nos ia
distinguindo cada vez mais dos portugueses, numa grande aventura dentro da mesma língua. Como mais t arde
Mário de Andrade no Modernismo, José de Alencar atacou a questão da identidade pelo aspecto fundamental da
linguagem [...] A sua obra atraiu a maioria dos leitores pelo que tinha de romanesco no sentido estrito, tanto sob o
aspecto de sentimentalismo quanto de heroísmo rutilante. O guarani (1857), cuja ação decorre no século XVI e é
o mais popular dos seus livros, tem essas duas coisas, além de facilitar pelo próprio enredo a escrita poética e
empolada que marcou o Romantismo. Amor, bravura, perfídia se combinam nele para dar ao leitor o espetáculo de
um Brasil plasticamente belo, enobrecido pelas qualidades ideais do epônimo indígena (CANDIDO, 2002, p. 62-
66).
Lealdade
A habitação que descrevemos pertencia a D. Antônio de Mariz, fidalgo português de cota d’armas e
um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Era dos cavalheiros que mais se haviam distinguido
nas guerras da conquista contra a invasão dos franceses e os ataques dos selvagens. Em 1567
acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro e, depois da vitória alcançada pelos portugueses, auxiliou
o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa
capitania. Fez parte em 1578 da célebre expedição do Dr. Antônio de Salema contra os franceses,
que haviam estabelecido uma feitoria em Cabo Frio para fazerem o contrabando de pau-brasil.
Serviu por este mesmo tempo de provedor da real fazenda, e depois da alfândega do Rio de Janeiro;
mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela república e a sua dedicação ao rei. Homem de
valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas
descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu
merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre
o sertão, a qual depois de haver explorado deixou por muito tempo devoluta. A derrota de
Alcacerquibir e o domínio espanhol que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de
Mariz. Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo
juramento da nobreza, e que só a ele devia preito e menagem. Quando pois, em 1582, foi aclamado
no Brasil D. Filipe II como o sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada
e retirou-se do serviço. Por algum tempo esperou a projetada expedição de D. Pedro da Cunha, que
pretendeu transportar ao Brasil a coroa portuguesa, colocada então sobre a cabeça do seu legitimo
herdeiro, D. Antônio, prior do Crato. Depois, vendo que esta expedição não se realizava, e que seu
braço e sua coragem de nada valiam ao rei de Portugal, jurou que ao menos lhe guardaria fidelidade
até a morte. Tomou os seus penates, o seu brasão, as suas armas, a sua
95
Continuação...
família, e foi estabelecer-se naquela sesmaria que lhe concedera Mem de Sá. Aí, de pé sobre a eminência
em que ia assentar o seu novo solar, D. Antônio de Mariz, erguendo o vulto direito, e lançando um olhar
sobranceiro pelos vastos horizontes que abriam em torno, exclamou: – Aqui sou português! Aqui pode
respirar à vontade um coração leal que nunca desmentiu a fé do juramento. Nesta terra que me foi dada
pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma
de teus filhos. Eu o juro! Descobrindo-se, curvou o joelho em terra e estendeu a mão direita sobre o abismo,
cujos ecos adormecidos repetiram ao longe a última frase do juramento prestado sobre o altar da natureza,
em face do sol que transmontava. Isto se passara em abril de 1593; no dia seguinte, começaram os trabalhos
da edificação de uma pequena habitação que serviu de residência provisória, até que os artesãos vindos do
reino construíram e decoraram a casa que já conhecemos. D. Antônio tinha ajuntado fortuna durante os
primeiros anos de sua vida aventureira; e não só por capricho de fidalguia, mas em atenção a sua família,
procurava dar a essa habitação construída no meio de um sertão todo o luxo e comodidade possíveis. Além
das expedições que fazia periodicamente à cidade do Rio de Janeiro, para comprar fazendas e gêneros de
Portugal, que trocava pelos produtos da terra, mandara vir do reino alguns oficiais mecânicos e hortelãos,
que aproveitavam os recursos dessa natureza tão rica, para proverem os seus habitantes de todo o
necessário. Assim, a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português, menos as ameias e a barbacã, as
quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis, que ofereciam uma defesa
natural e uma resistência inexpugnável. Na posição em que se achava, isto era necessário por causa das
tribos selvagens, que, embora se retirassem sempre das vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos e
se entranhassem pelas florestas, costumavam contudo fazer correrias e atacar os brancos à traição. Em um
círculo de uma légua da casa, não havia senão algumas cabanas em que moravam aventureiros pobres,
desejosos de fazer fortuna rápida, e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de
dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro e pedras preciosas, que iam vender na
costa. Estes, apesar das precauções que tomavam contra os ataques dos índios, fazendo paliçadas e
reunindo-se uns aos outros para defesa comum, em ocasião de perigo vinham sempre abrigar-se na casa de
D. Antônio de Mariz, a qual fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Média. O fidalgo os recebia como
rico-homem que devia proteção e asilo aos vassalos; socorria-os em todas as suas necessidades, e era
estimado e respeitado por todos que vinham, confiados na vizinhança, estabelecer-se por esses lugares.
Deste modo, em caso de ataque de índios, os moradores da casa do Paquequer não podiam contar senão
com os seus próprios recursos; e por isso D. Antônio, como homem prático e avisado que era, havia-se
premunido para qualquer ocorrência. Ele mantinha, como todos os capitães de descobertas daqueles tempos
coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam nas suas explorações e correrias pelo interior; eram
homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e
agilidade do índio de quem haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, soldados e selvagens ao
mesmo tempo. D. Antônio de Mariz, que os conhecia, havia estabelecido entre eles uma disciplina militar
rigorosa, mas justa; a sua lei era a vontade do chefe; o seu dever a obediência passiva, o seu direito uma
parte igual na metade dos lucros. Nos casos extremos, a decisão era proferida por um conselho de quatro,
presidido pelo chefe; e cumpria-se sem apelo, como sem demora e hesitação. Pela força da necessidade,
pois, o fidalgo se havia constituído senhor de baraço e cutelo, de alta e baixa justiça dentro de seus
domínios; devemos porém declarar que rara vez se tornara precisa a aplicação dessa lei rigorosa; a
severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia [...] Assim vivia,
quase no meio do sertão, desconhecida e ignorada essa pequena comunhão de homens, governando-se com
as suas leis, os seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza, e ligados a seu chefe pelo
respeito, pelo hábito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem
sobre as massas (ALENCAR, 1951, p. 86-90).
96
Comentário crítico
O regionalismo de Bernardo Guimarães mistura elementos tomados à narrativa oral, os “causos” e as “estórias”
de Minas e Goiás, com uma boa dose de idealização. Esta, embora não tão maciça como em Alencar, é responsável
por uma linguagem adjetivosa e convencional na maioria dos quadros agrestes [...] As obras mais lidas de
Bernardo Guimarães, O Seminarista e A Escrava Isaura, devem a sua popularidade menos a um progresso na
fabulação ou no traçado das personagens do que à garra dos problemas explícitos: o celibato clerical no primeiro,
a escravidão no segundo [...] A Escrava Isaura já foi chamado A cabana do Pai Tomás nacional. Há evidente
exagero na asserção. O nosso romancista estava mais ocupado em contar as perseguições que a cobiça de um
senhor vilão movia à bela Isaura que em reconstruir as misérias do regime servil. E, apesar de algumas palavras
sinceras conta as distinções de cor (cap. XV), toda a beleza da escrava é posta no seu não parecer negra, mas nívea
donzela, como vem descrita desde o primeiro capítulo (BOSI, 1980, p. 157-159).
Subamos os degraus, que conduzem ao alpendre, todo engrinaldado de viçosos festões e lindas flores,
que serve de vestíbulo ao edifício. Entremos sem cerimônia. Logo à direita do corredor encontramos
aberta uma larga porta, que dá entrada à sala de recepção, vasta e luxuosamente mobiliada. Acha-se ali
sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça. As linhas do perfil desenham -se
distintamente entre o ébano da caixa do piano, e as bastas madeixas ainda mais negras do que ele. São
tão puras e suaves essas linhas, que fascinam os olhos, enlevam a mente, e paralisam toda análise. A
tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não
sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo donoso e do mais puro lavor sustenta
com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se despenham
caracolando pelos ombros em espessos e luzidios rolos, e como franjas negras escondiam quase
completamente o dorso da cadeira, a que se achava recostada. Na fronte calma e lisa como mármore
polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro
guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração. Tinha a face voltada para as janelas, e o olhar
vago pairava-lhe pelo espaço. Os encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza, e
diremos quase pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinária azul-clara desenhava-lhe
perfeitamente com encantadora simplicidade o porte esbelto e a cintura delicada, e desdobrando-se-lhe
em roda em amplas ondulações parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como Vênus
nascendo da espuma do mar, ou como um anjo surgindo dentre brumas vaporosas. Uma pequena cruz
de azeviche presa ao pescoço por uma fita preta constituía o seu único ornamento. Apenas terminado
o canto, a moça ficou um momento a cismar com os dedos sobre o teclado como escutando os
derradeiros ecos da sua canção. Entretanto abre-se sutilmente a cortina de cassa de uma das portas
interiores, e uma nova personagem penetra no salão. Era também uma formosa dama ainda no viço da
mocidade, bonita, bem feita e elegante. A riqueza e o primoroso esmero do trajar, o porte altivo e
senhoril, certo balanceio afetado e langoroso dos movimentos davam-lhe esse ar pretensioso, que
acompanha toda moça bonita e rica, ainda mesmo quando está sozinha. Mas com todo esse luxo e
donaire de grande senhora nem por isso sua grande beleza deixava de ficar algum tempo eclipsada em
presença das formas puras e corretas, da nobre singeleza, e dos tão naturais e modestos ademanes da
cantora. Todavia Malvina era linda, encantadora mesmo, e posto que vaidosa de sua formosura e alta
posição, transluzia-lhe nos grandes e meigos olhos azuis toda a nativa bondade de seu coração
(GUIMARÃES, 1990, p. 11-12).
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Comentário crítico
Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-99) representa o caso bem brasileiro do filho de estrangeiros de tal maneira
identificado à nova pátria que se torna intérprete privilegiado da sua realidade. Militar de carreira, tinha boa formação
intelectual e artística, sendo bom desenhista e compositor, qualidades que soube transpor para a sua prosa, capaz de
descrever a natureza com força pictórica [...] O seu romance mais famoso é Inocência (1872), que alguns consideram
o melhor produto do Regionalismo e é de fato bem realizado, graças à habilidade com que descreve a paisagem e os
costumes do sertão remoto, quadro no qual soube contar com singeleza a tocante paixão que envolve a protagonista
(CANDIDO, 2002, p. 78-79).
Corta extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima província de Mato Grosso a estrada
que da vila de Sant’Ana do Paranaíba vai ter ao sítio abandonado de Camapuã. Desde aquela povoação, assente
próximo ao vértice do ângulo em que confinam os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso
até ao Rio Sucuriú, afluente do majestoso Paraná, isto é, no desenvolvimento de muitas dezenas de léguas,
anda-se comodamente, de habitação em habitação, mais ou menos chegadas umas às outras; rareiam, porém,
depois as casas, mais e mais, e caminham-se largas horas, dias inteiros sem se ver morada nem gente até ao
retiro de João Pereira, guarda avançada daquelas solidões, homem chão e hospitaleiro, que acolhe com carinho
o viajante desses alongados páramos, oferece-lhe momentâneo agasalho e o provê da matalotagem precisa
para alcançar os campos de Miranda e Pequiri, ou da Vacaria e Nioac, no Baixo Paraguai. Ali começa o sertão
chamado bruto [...]. Ao homem do sertão afiguram-se tais momentos incomparáveis, acima de tudo quanto
possa idear a imaginação no mais vasto círculo de ambições. Satisfeita a sede que lhe secara as fauces, e
comidas umas colheres de farinha de mandioca ou de milho, adoçada com rapadura, estira-se a fio comprido
sobre os arreios desdobrados e contempla descuidoso o firmamento azul, as nuvens que se espacejam nos ares,
a folhagem lustrosa e os troncos brancos das pindaíbas, a copa dos ipês e as palmas dos buritis a ciciar a modo
de harpas eólias, músicas sem conta com o perpassar da brisa. Como são belas aquelas palmeiras! O estípite
liso, pardacento, sem manchas mais que pontuadas estrias, sustenta denso feixe de pecíolos longos e canulados,
em que assentam flabelas abertas como um leque, cujas pontas se acurvam flexíveis e tremulantes. Na base e
em torno da coma, pendem, amparados por largas espatas, densos cachos de cocos tão duros, que a casca
luzidia, revestida de escamas romboidais e de um amarelo alaranjado, desafia por algum tempo o férreo bico
das araras. Também, com que vigor trabalham as barulhentas aves antes de conseguir a apetecida e saborosa
amêndoa! Em grupos juntam-se elas, umas vermelhas como chispas soltas de intensa labareda, outras
versicolores, outras, pelo contrário, de todo azuis, de maior viso e que, por parecerem negras em distância,
têm o nome de araraúnas. Ali ficam alcandoradas, balouçando-se gravemente e atirando, de espaço a espaço,
às imensidades das dilatadas campinas notas estridentes, quando não seja um clamor sem fim, ao quererem
muitas disputar o mesmo cacho. Quase sempre, porém, estão a namorar-se aos pares, pousadas uma bem
encostadinha à outra. Vê tudo aquilo o sertanejo com olhar carregado de sono. Caem-lhe pesadas as pálpebras;
bem se lembra de que por ali podem rastejar venenosas alimárias, mas é fatalista; confia no destino e, sem
mais preocupação adormece com serenidade. Correm as horas: vem o Sol descambando; refresca a brisa, e
sopra rijo o vento. Não ciciam mais os buritis; gemem, e convulsamente agitam as flabeladas palmas. É a tarde
que chega (TAUNAY, 1998, p. 11-15 – grifos do autor).
98
Comentário crítico
A unidade política, preservada às vezes por circunstâncias quase miraculosas, pode fazer esquecer a diversidade
que presidiu à formação e desenvolvimento da nossa cultura. A colonização se processou em núcleos separados,
praticamente isolados entre si: o desenvolvimento econômico e a evolução social foram, assim, bastante
heterogêneos, consideradas as diferentes regiões. Um historiador contemporâneo, Alfredo Ellis Jr., se recusa a
falar em Colônia, ou Brasil Colônia, acentuando o fato, assinalado desde Handelmann e fecundado por João
Ribeiro, de que houve na América não uma, senão várias Colônias portuguesas. Trazendo a ideia para o terreno
literário, Viana Moog procurou interpretar a nossa literatura em função das que chamou “ilhas de culturas mais
ou menos autônomas e diferenciadas”, caracterizada cada uma pelo seu genius loci particular. Comprovante desta
ideia engenhosa, e em parte verdadeira, é sem dúvida o caso do Nordeste, que se destaca na geografia, na história
e na cultura brasileira com impressionante autonomia e nitidez [...] Franklin Távora sentiu tudo isto
profundamente, ao ponto de tentar uma espécie de félibrige; só que félibrige pela metade, dentro não apenas do
mesmo país, mas da mesma língua. “Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua,
porque o gênio de um não se confunde com o de outro. Cada um tem as suas aspirações, seus interesses, e há de
ter, se já não tem, sua política”. Desvio evidente que, levando-o a dissociar o que era uno e fazer de características
regionais princípio de independência, traía de certo modo a grande tarefa romântica de definir uma literatura
nacional. O seu regionalismo parece fundar-se em três elementos, que ainda hoje constituem, em proporções
variáveis, a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste. Primeiro o senso da terra, da paisagem que
condiciona tão estreitamente a vida de toda a região, marcando o ritmo da sua história pela famosa “intercadência”
de Euclides da Cunha. Em seguida, o que se poderia chamar patriotismo regional, orgulhoso das guerras
holandesas, do velho patriarcado açucareiro, das rebeliões nativistas. Finalmente, a disposição polêmica de
reivindicar a preeminência do Norte, reputado mais brasileiro, “onde abundam os elementos para a formação de
uma literatura propriamente brasileira, filha da terra. A razão é obvia: o Norte ainda não foi invadido como está
sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro”. Távora foi o primeiro “romancista do Nordeste”, no sentido em que
ainda hoje entendemos a expressão; e deste modo abriu caminho a uma linhagem ilustre, culminada pela geração
de 1930, mais de meio século depois das suas tentativas, reforçadas a meio caminho pelo baiano fluminense d’Os
Sertões (CANDIDO, 1993, p. 267-26, v. 2 – grifo do autor).
Meu amigo [...] No Cabeleira ofereço-te um tímido ensaio do romance histórico, segundo eu entendo este gênero
da literatura. À crítica pernambucana, mais do que a outra qualquer, cabe dizer se o meu desejo não foi iludido; e
a ela, seja qual for a sua sentença, curvarei a cabeça sem replicar. As letras têm, como a política, um certo caráter
geográfico; mais do Norte, porém, do que do Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura
propriamente brasileira, filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de
dia em dia pelo estrangeiro. A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as índoles, e os
costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua
genuína expressão. Por infelicidade do Norte, porém, dentre os muitos filhos seus que figuram com grande brilho
nas letras pátrias, poucos têm seriamente cuidado de construir o edifício literário dessa parte do império que, por
sua natureza magnificente e primorosa, por sua história tão rica de feitos heroicos, por seus usos, tradições e poesia
popular há de ter cedo ou tarde uma biblioteca especialmente sua. Esta pouquidade de arquitetos faz-se notar com
especialidade no romance, gênero em que o Norte, a meu ver, pode entretanto figurar com brilho e bizarria
inexcedível. Esta verdade dispensa demonstração. Quem não sabe que na história conta ele J. F. Lisboa, Baena,
Abreu e Lima, Vieira da Silva, Henriques Leal, Muniz Tavares, A J. de Melo, Fernandes Gama, e muitos outros
que podem bem competir com Varnhagen, Pereira da Silva e Fernandes Pinheiros; que o primeiro filólogo
brasileiro, Sotero dos Reis, é nortista; que é nortista Gonçalves Dias, a mais poderosa e inspirada musa de nossa
terra; e que igualmente o são Tenreiro Aranha, Odorico Mendes, Franco de Sá, Almeida Braga, José Coriolano,
Cruz Cordeiro, Ferreira Barreto, Maciel Monteiro, Bandeira de Melo, Torres Bandeira, que valem bem Magalhães,
A. de Azevedo, Varela, Porto Alegre, Casimiro de Abreu, Cardoso de Meneses. Teixeira de Melo? No romance,
porém, já não é assim. O Sul campeia sem êmulo nesta arena, onde têm colhido notáveis louros: Macedo, o
observador gracioso dos costumes da cidade; Bernardo Guimarães, o desenhista fiel dos usos rústicos;
Machado de Assis, cultor estudioso do gênero que foi vasto campo de glórias para Balzac; Taunay que se
particulariza pela fluência, e pelo faceto da narrativa; Almeidinha, que a todos estes se avantajou na correção dos
99
Continuação...
desenhos, posto houvesse deixado um só quadro, um só painel, quadro brilhante, painel imenso, em que há vida,
graça e colorido nativo. Estes talentos, além de outros que me não lembram de momento, não têm, ao menos por
agora, competidores no Norte, onde aliás não há falta de talentos de igual esfera. Não me é lícito esquecer aqui,
ainda que se trata do romance do Sul, um engenho de primeira grandeza, que, com ser do Norte, tem concorrido
com suas mais importantes primícias para a formação da literatura austral. Quero referir-me ao Exmo. Sr.
Conselheiro José Martiniano de Alencar, a quem já tive ocasião de fazer justiça nas minhas conhecidas Cartas a
Cincinato. Quando, pois, está o Sul em tão favoráveis condições, que até conta entre os primeiros luminares das
suas letras este distinto cearense, têm os escritores do Norte que verdadeiramente estimam seu torrão, o dever de
levantar ainda com luta e esforços os nobres foros dessa grande região, exumar seus tipos legendários, fazer
conhecidos seus costumes, suas lendas, sua poesia, máscula, nova, vívida e louçã tão ignorada no próprio temp lo
onde se sagram as reputações, assim literárias, como políticas, que se enviam às províncias. Não vai nisto, meu
amigo, um baixo sentimento de rivalidade que não aninho em meu coração brasileiro. Proclamo uma verdade
irrecusável. Norte e Sul são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua, porque o gênio de um não
se confunde com o do outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses, e há de ter, se já não tem, sua política.
Enfim não posso dizer tudo, e reservarei o desenvolvimento, que tais ideias exigem, para a ocasião em que te enviar
o segundo livro desta série, o qual talvez venha ainda este ano, à luz da publicidade. Depois de haveres lido O
Cabeleira, melhor me poderás entender a respeito da criação da literatura setentrional, cujos moldes não podem
ser, segundo me parece, os mesmos em que vai sendo vazada a literatura austral que possuímos (TÁVORA, 1973,
p. 15-16).
Autor dos fins do romantismo, Franklin Távora publica O Cabeleira apenas cinco anos
antes das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, quando a nossa
literatura já se encaminha pela perspectiva realista e naturalista. Mesmo assim, a prosa de
Távora ilustra, explicitamente, o diálogo plural, profundo e contínuo entre os nossos autores e
os românticos europeus, como se afere de sua apropriação inventiva da tese das duas literaturas,
elaborada pela corrente romântica francesa, mais especificamente, pela romancista e crítica da
literatura europeia, Mme de Staël:
Há, parece-me, duas literaturas completamente distintas, a que vem do Sul e a que desce do Norte,
aquela de que Homero é a fonte primeira, aquela de que Ossian é a sua origem. Sem dúvida que
os ingleses e alemães imitaram frequentemente os antigos. Desse fecundo estudo retiraram úteis
lições; mas suas belezas originais trazem a marca da mitologia do Norte, têm uma espécie de
semelhança, uma certa grandeza poética de que Ossian é o primeiro tipo (STAËL apud ELIA,
2005, p. 116).
Tom Jobim
Chico Buarque
102
William Blake
José de Alencar
Raimundo Correia
Banzo (1898)
Visões que n’alma o céu do exílio incuba, Como o guaraz nas rubras penas dorme,
Mortais visões! Fuzila o azul infando... Dorme em nimbos de sangue o sol culto...
Coleia, basilisco de ouro, ondeando Fuma o saibro africano incandescente...
O Níger... Bramem leões de fulva juba...
Uivam chacais... Ressoa a fera tuba Vai co’a sombra crescendo o vulto enorme
Dos cafres, pelas grotas retumbando, do baobá... E cresce n’alma o vulto
E a estralada das árvores, que um bando De uma tristeza, imensa, imensamente...
De paquidermes colossais derruba..
(CORREIA, 1948, p.181, v. 1)
Olavo Bilac
Cruz e Sousa
Escravocratas (18??)
Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio O basta gigantesco, imenso, extraordinário –
Manhosos, agachados – bem como um crocodilo, Da branca consciência – o rútilo sacrário
Viveis sensualmente à luz dum privilégio No tímpano do ouvido – audaz não me soar.
Na pose bestial dum cágado tranquilo.
Jorge de Lima
Rei é Oxalá que nasceu sem se criar. que nos escravizam, que nos exploram,
Rainha é Iemanjá que pariu Oxalá sem se manchar. a nós operários africanos,
Grande santo é Ogum em seu cavalo encantado. servos do mundo,
Eu cumba vos dou curau. Dai-me licença angana. servos dos outros servos.
Porque a vós respeito, Oxalá! Iemanjá! Ogum!
e a vós peço vingança Há mais de dois mil anos o meu grito nasceu!
contra os demais aleguás e capiangos brancos,
Agô!
(LIMA, 1974, p. 174, v. 1)
Machado de Assis
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos [...] Há meio século, os escravos fugiam com frequência.
Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem
todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que
servia de padrinho, e mesmo o dono não era mau; além disso, o sentimento de propriedade moderava a
ação, porque dinheiro também dói (ASSIS, 1994, p. 659, v. 1).
Aluísio Azevedo
E Raimundo revoltava-se. “Pois, melhores que fossem as suas intenções, todos ali o evitavam, porque
a sua pobre mãe era preta e fora escrava? Mas, que culpa tinha ele em não ser branco e não ter nascido
livre?... Não lhe permitiam casar com uma branca? De acordo! Vá que tivessem razão! mas por que
insultá-lo e persegui-lo? Ah! Amaldiçoada fosse aquela maldita raça de contrabandistas que introduziu
o africano no Brasil! Maldita mil vezes maldita! Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo
desespero e a mesma humilhação sem remédio? E quantos outros não gemiam no tronco, debaixo do
relho? E lembrar-se que ainda havia surras e assassinos irresponsáveis, tanto nas fazendas como nas
capitais!... Lembrar-se de que ainda nasciam cativos, porque muitos fazendeiros, apalavrados com o
vigário da freguesia, batizavam ingênuos como nascidos antes da Lei do Ventre Livre!... Lembrar-se
que a consequência de tanta perversidade seria uma geração de infelizes, que teriam de passar por aquele
inferno em que agora se debatia vencido! E ainda o governo tinha escrúpulos de acabar por uma vez
com a escravatura; ainda dizia descaradamente que o negro era uma propriedade, como se o roubo, por
ser comprado e revendido, em primeira mão ou em segunda, ou em milésima, deixasse por isso de ser
um roubo para ser uma propriedade!” (AZEVEDO, 2001, p.162-163).
Euclides da Cunha
O sertanejo
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do
litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica
impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso,
desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza,
sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados [...] É o homem
permanentemente fatigado. Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra
remorada, no gosto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na
tendência constante à imobilidade e quietude. Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é
mais surpreendente do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se,
em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o
desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos,
novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada
pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos
os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta,
inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento
surpreendente de força e agilidade extraordinárias. Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-
se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja (CUNHA, 1992, p. 95-96).
106
Lima Barreto
Gonzaga de Sá, dizia-me: – A mais estúpida mania dos brasileiros, a mais estulta e lorpa, é a da aristocracia.
Abre aí um jornaleco, desses de bonecos, e logo dás com uns clichês muito negros... Olha que ninguém
quer ser negro no Brasil!... Dás com uns clichês muito negros encimados pelos títulos: Enlace Souza e
Fernandes, ou Enlace Costa e Alves. Julgas que se trata de grandes famílias nobres? Nada disso. São
doutores arrivistas, que se casam muito naturalmente com filhas de portugueses enriquecidos. Eles
descendem de fazendeiros arrebentados, sem nenhuma nobreza e os avós da noiva estão ainda à rabiça do
arado na velha gleba de Minho e doidos pelo caldo de unto à tarde. Sabes bem que não tenho superstição
de raça, de cor, de sangue, de casta, de coisa alguma. Para mim, só há indivíduos e eu, mais do que ninguém,
pois descendo dos Sás que fundaram esta minha cidade, podia tê-las. Mas sei o que era necessário para tê-
las. Precisava, para me considerar nobre, que meus avós tivessem obedecido, a todas as regras da nobreza.
Eles se casaram em toda parte, eles nunca se importaram com os seus forais, agora vou eu tolamente gritar
por aí, pela rua do Ouvidor: eu sou Sá, nobre, fidalgo, escudeiro etc., etc., pois descendo de Salvador de Sá
etc.; etc. Isto digo eu que sou Sá!... Agora imagina tu um Fernandes aí qualquer com tais prosápias! Uma
instituição só é válida quando é mantida com as suas leis – os nobres aqui degradaram-se porque não
respeitaram as regras da Linhagem... Sabes bem o que quer dizer degradar nos códigos de nobreza? – Sei!
E’ voltar, por inobservância de disposições deles, ao terceiro estado, onde, para a verdadeira nobreza, está
incluída a burguesia. Os Colberts, os antepassados dos grandes ministros... Degradaram-se,
voluntariamente, para ser tapeceiros em Lyon, creio eu – concluiu o meu amigo [...] Um pouco longe do
botequim, ele me fez parar e falou-me assim: – Fugi dessa gente de Petrópolis, porque, para mim, eles são
estrangeiros, invasores, as mais das vezes sem nenhuma cultura e sempre rapinantes, sejam nacionais ou
estrangeiro. Eu sou Sá, sou do Rio de Janeiro, com seus tamoyos, seus negros, seus mulatos, seus cafuzos
e seus “galegos” também... (BARRETO, 1956, p. 57-59 – grifos do autor)
Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao calor, à meiguice, ao entono amoroso daquela voz. Era
mesmo um bom, um sincero, um namorado, mais que isto, um noivo – esse Cassi. – Por que você não me
“pede” a papai? – perguntou-lhe um dia. Cassi, sem hesitação, com o mais convincente tom de franqueza,
respondeu: – Não posso ainda, meu bem [...] Os sintomas de gravidez, por ora, não se faziam sentir. É
verdade que tinha náuseas, enjoos, sem nem motivo; mas ela dissimulava-os tão bem, que sua mãe nada
percebia. Dona Engrácia mesmo era de seu natural pouco sagaz e tinha grande confiança na vigilância que
exercia sobre a filha [...] Na rua, Clara pensou em tudo aquilo [...] Agora é que tinha a noção exata da sua
situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ou vir
os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era
muito menos no conceito de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!... A educação que
recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a
honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente...
O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela
gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um
carteiro! O que era preciso, tanto a ela quanto às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade,
como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra
todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a
fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam... Chegaram em casa;
Joaquim ainda não tinha vindo. Dona Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha
e da mãe. Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente
sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero: – Mamãe! Mamãe! – Que é minha filha? – Nós não
somos nada nesta vida (BARRETO, 1988, p. 112-124).
107
Mário de Andrade
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura dessa missiva [...] De outras e muitas
grandezas vos poderíamos ilustrar, senhoras Amazonas, não fora perlongar demasiado esta epístola;
todavia, com afirmar-vos que esta é, por sem dúvida, a mais bela cidade terráquea, muito hemos feito em
favor destes homens de prol. Mas cair-nos-iam as faces, si ocultáramos no silêncio, uma curiosidade
original deste povo. Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam
numa língua e escrevem noutra. Assim chegado a estas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem
nos inteirarmos da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou por certo não
foi das menores tal originalidade linguística. Nas conversas, utilizam-se os paulistanos dum linguajar
bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e
força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. Destas e daquelas nos inteiramos, solícito; e nos será
grata empresa vô-las ensinarmos aí chegado. Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os
naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino,
de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum penegirista,
meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões! De tal originalidade e riqueza
vos há de ser grato ter sciéncia, e mais ainda vos espantareis com saberdes, que à grande e quasi total
maioria, nem essas duas línguas bastam, senão que se enriquecem do mais lídimo italiano, por mais musical
e gracioso, e que por todos os recantos da urbs é versado. De tudo nos inteiramos satisfactoriamente, graças
aos deuses; e muitas horas hemos ganho, discreteando sobre o z do termo Brazil e a questão do pronome
"se". Outrossim, hemos adquirido muitos livros bilíngues, chamados "burros", e o dicionário Pequeno
Larousse; e já estamos em condições de citarmos no original latino muitas frases célebres dos filósofos e
os testículos da Bíblia. Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida
civilização, hão elevado esta grande cidade os seus maiores, também chamados de políticos. Com este
apelativo se designa uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de vós, que os diríeis monstros.
Monstros são na verdade mas na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiéncia, da honestidade e da
moral; e embora algo com os homens se pareçam, originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco têm
de humanos. Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande na gíria familiar, e que demora na
oceánica cidade do Rio de Janeiro – a mais bela do mundo, na opinião de todos os estrangeiros, e que por
meus olhos verifiquei. Finalmente, senhoras Amazonas e muito amadas súbditas, assaz hemos sofrido e
curtido árduos e constantes pesares, depois que os deveres da nossa posição, nos apartaram do Império do
Mato Virgem. Por cá tudo são delícias e venturas, porém nenhum gozo teremos e nenhum descanso,
enquanto não rehouvermos o perdido talismã. Hemos por bem repetir entretanto que as nossas relações com
o doutor Venceslau são as milhores possíveis; que as negociações estão entaboladas e perfeitamente
encaminhadas; e bem poderíeis enviar de antemão as alvíçaras que enunciamos atrás. Com pouco o vosso
abstémio Imperador se contenta; si não puderdes enviar duzentas igaras cheias de bagos de cacau, mandai,
cem, ou menos cinquenta! Recebei a bênção do vosso Imperador e mais saúde e fraternidade. Acatai com
respeito e obediéncia estas mal traçadas linhas; e, principalmente, não vos esqueçais das alvíçaras e das
polonesas, de que muito hemos mister.
Ci guarde a Vossas Excias.
Macunaíma,
Imperator.
O trovador (1922)
Continuação...
Manuel Bandeira
..............................................................................
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
..............................................................................
Oswald de Andrade
Minha terra tem mais rosas Não permita Deus que eu morra
E quase que mais amores Sem que volte pra São Paulo
Minha terra tem mais ouro Sem que veja a Rua 15
Minha terra tem mais terra E o progresso de São Paulo
Murilo Mendes
O homem
É o único animal que joga no bicho.
Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a “Canção do exílio”.
Como era mesmo a “Canção do exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!
(ANDRADE, 1988, p. 8)
114
Único (1973)
Ribeiro Couto
Fátima (1946)
A que falou com meiguice Mas não foi durante o dia, Que nestas serras e campos
A três crianças do povo Com muita gente a esperá-la Nossa Senhora, escondia,
Por aqui andou de novo, E a igreja de grande gala: Só sai à noite, vestida
Pena é que ninguém a visse. Foi tarde e tudo dormia. De estrelas e pirilampos.
e levaram-no maniatado
Mário Chamie
Graciliano Ramos
Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara
colônia alemã. Pior: numa colônia italiana. Mussolini era um grande homem, e escritores nacionais celebravam
nas folhas as virtudes do óleo de rícino [...] Achava-me ali diante de criaturas supliciadas e, consequentemente,
envilecidas. A minha educação estúpida não admitia que um ser humano fosse batido e pudesse conservar qualquer
vestígio de dignidade [...] Mas surra – santo Deus! – era a degradação irremediável. Lembrava o eito, a senzala, o
tronco, o feitor, o capitão-de-mato. O relho, a palmatória, sibilando, estalando no silêncio da meia-noite, chumaço
de pano sujo na boca de um infeliz, cortando-lhe a respiração. E nenhuma defesa [...] Exposição humilhante era a
sórdida latrina, completamente visível. Sobre o vaso imundo havia uma torneira; recorríamos a ela para lavar as
mãos e o rosto, escovar os dentes. As dejeções seriam feitas em público. A ausência de porta, de simples cortina,
só se explicava por um intuito claro da ordem: vilipendiar os hóspedes [...] Várias pessoas estavam ali sem
processo, algumas deviam quebrar a cabeça a indagar porque as tratavam daquele jeito; não havia julgamento e
expunham claro o desejo de assassiná-las. Não nos faziam ameaça vã, como notei depois [...] Isso me trouxe ao
pensamento a brandura dos nossos costumes, a índole pacífica nacional apregoada por sujeitos de má fé ou
idiotas. Em vez de meter-nos em forno crematório, iam destruir-nos pouco a pouco. Certamente era absurdo
responsabilizar o Brasil, quarenta milhões de habitantes [...] Uma noite chegaram-nos gritos medonhos [...] Vão
levar Olga Benário [...] Em duro silêncio, fumando sem descontinuar, sentia na alma um frio desalento. Mas por
que, na horrível ignomínia, haviam dado preferência a duas criaturas débeis? Elisa Berger, presa, era tão inofensiva
quanto o marido, preso também. Contudo iam oferecê-la aos carrascos alemães, e Harry Berger permanecia aqui,
ensandecido na tortura [...] À noite, na sala 4, Elisa despertava banhada num suor de agonia, os olhos espavoridos.
A lembrança dos tormentos não a deixava; um relógio interior indicava o instante exato em que, meses atrás, a
seviciavam na presença de Harry, imóvel, impotente. Olga Prestes, casada com brasileiro, estava grávida. Teria
filho entre inimigos, numa cadeia. Ou talvez morresse antes do parto. A subserviência das autoridades reles a um
despotismo longínquo enchia-me de tristeza e vergonha. Almas de escravos, infames; adulação torpe à ditadura
ignóbil. Nasceria longe uma criança, envolta nas brumas do Norte; ventos gelados lhe magoariam a carne trêmula
e roxa. Miséria – e nessa miséria abatimento profundo [...] Tarde, a matilha sugeriu um acordo: Olga e Elisa seriam
acompanhadas por amigos, nenhum mal lhes fariam. Aceita a proposta, arrumaram a bagagem, partiram juntas a
Campos da Paz Filho e Maria Werneck. Ardil grosseiro. Apartaram-nos lá fora. Campos da Paz e Maria Werneck
regressaram logo ao Pavilhão dos Primários. Olga Prestes e Elisa Berger nunca mais foram vistas. Soubemos
depois que tinham sido assassinadas num campo de concentração na Alemanha (RAMOS, 1976, p. 50; 138; 194
[v.1]; 65; 263- 267 [v.2] – grifos nossos).
118
Racionais MC’s
Capítulo 4, versículo 3 (1998 – fragmentos)
Letra e música: Mano Brown
"60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo"
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente
......................................................................................
Vinte e sete anos contrariando a estatística
Seu comercial de TV não me engana
Eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
..............................................................
Eu sou apenas um rapaz latino-americano
Apoiado por mais de 50 mil manos
Efeito colateral que o seu sistema fez
Racionais capítulo 4 versículo 3. (RACIONAIS MC’S, 1998)
Vanderley Caixe
geração 60 (1983)
a carta branca do montilla
não era de alforria.
e em barris de carvalho
o tempo envilecia.
Rinaldo de Fernandes
O mendigo atravessava a avenida, passa pela Kombi estacionada do restaurante, vem vindo na minha
direção. Chega até a minha mesa, pede-me um trocado, a barba, com os golpes do vento, tremendo. Puxo a
carteira, passo-lhe uma moeda [...] O mendigo vê os tênis amarelos perto da planta, apanha-os, enfia nos
pés, arrodeia pelo outro lado (o garçom, dependurado na cadeira, de novo cochilando). Atravessa
novamente a avenida, segue na direção de um prédio inacabado de alguns andares, as paredes pretas,
deterioradas [...] Após o casal voltar para a mesa, o homem segue até o garçom, faz gestos duros, querendo
saber dos tênis. O garçom, batendo muito as pestanas, passa a mão no rosto, diz que não sabe de nada. O
homem dá um grito, diz que não pode, os tênis estavam ali [...] – Quem foi? Eu tento me erguer, ele planta
a mão no meu ombro: – Fala! Aponto para o outro lado da avenida: – Suba ali no edifício, no último andar
[...] Dá para perceber pelos buracos o homem subindo escadas, detendo-se em portas, dobrando corredores.
Um homem caçando um mendigo dentro de um velho prédio [...] Vejo quando o homem, no alto, arrasta o
mendigo pelos cabelos, bate-lhe com a cabeça no cimento aos berros: – Filho da puta! Segura mais firme e
volta a bater com o outro no cimento. Algo agora brilha (sangue? suor?) [...] Sinto que a vontade do homem
é mesmo jogar o mendigo lá de cima, do quarto andar, de atirá-lo em cima dos restos de tábuas
(FERNANDES, 2005, p. 17-19).
Leila Miccolis
Pena de morte (1976 – fragmentos)
Max Gonzaga
Chico Buarque
I II
Minha terra tem palmeiras Minha terra tem Palmares
onde canta o tico-tico. memória cala-te já.
Enquanto isso o sabiá Peço licença poética
vive comendo o meu fubá. Belém capital Pará.
Bráulio Tavares
Solano Trindade
CONVERSA (1961)
Continuação...
Conceição Evaristo
VOZES-MULHERES (2008)
Eu vi brilhar, eu vi
No meio da mata, eu vi
A pena de prata
Do Caboclo Guaracy
Brasil, um sonho intenso, um raio vívido Brasil, de amor eterno seja símbolo
De amor e de esperança à terra desce, O lábaro que ostentas estrelado,
Se em teu formoso céu, risonho e límpido, E diga o verde-louro dessa flâmula
A imagem do Cruzeiro resplandece. – Paz no futuro e glória no passado.
Dos filhos deste solo és mãe gentil, Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada, Brasil! Pátria amada, Brasil!
126
Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!
Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós!
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz!
.....................................................
127
Por mais terras que eu percorra, Por mais terras que eu percorra, etc., etc.
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá; Venho do além desse monte
Sem que leve por divisa Que ainda azula o horizonte,
Esse "V" que simboliza Onde o nosso amor nasceu;
A vitória que virá: Do rancho que tinha ao lado
Nossa vitória final, Um coqueiro que, coitado,
Que é a mira do meu fuzil, De saudade já morreu.
A ração do meu bornal, Venho do verde mais belo,
A água do meu cantil, Do mais dourado amarelo,
As asas do meu ideal, Do azul mais cheio de luz,
A glória do meu Brasil. Cheio de estrelas prateadas
Que se ajoelham deslumbradas,
Eu venho da minha terra, Fazendo o sinal da Cruz!
Da casa branca da serra
E do luar do meu sertão; Por mais terras que eu percorra,
Venho da minha Maria Não permita Deus que eu morra
Cujo nome principia Sem que volte para lá;
Na palma da minha mão, Sem que leve por divisa
Braços mornos de Moema, Esse "V" que simboliza
Lábios de mel de Iracema A vitória que virá:
Estendidos para mim. Nossa vitória final,
Ó minha terra querida Que é a mira do meu fuzil,
Da Senhora Aparecida A ração do meu bornal,
E do Senhor do Bonfim! A água do meu cantil,
As asas do meu ideal, A glória do meu Brasil.
Por mais terras que eu percorra etc., etc.
128
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