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Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação – RESAFE

EDUCAÇÃO QUILOMBISTA: UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO AFROCENTRADA NO


BRASIL
Ricardo Matheus Benedicto*

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo sustentar que somente uma educação centrada na
experiência africana e dos afro-brasileiros – definimos este sistema educacional como Quilombista
– é capaz de oferecer a formação que os africanos da diáspora no Brasil necessitam, viabilizando de
modo adequado as leis 10.639/03 e 11.645/08 bem como as Diretrizes Curriculares de 2004 para o
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O desenvolvimento da Educação Quilombi-
sta se impõe, pois vivemos em uma sociedade orientada pelos princípios do eurocentrismo e da
supremacia branca. Desse modo, as escolas geradas por esta sociedade são incapazes de atender
adequadamente tanto as exigências educacionais dos afro-brasileiros quanto às exigências de uma
educação intercultural.
Palavras chave: Afrocentricidade; Educação Quilombista; Interculturalidade; Poder, Racismo.

Resumen: El presente trabajo pretende sostener que sólo una educación centrada en la experiencia
africana y el afro-brasileños – definimos este sistema educativo como Quilombista – es capaz de
ofrecer la formación que los africanos de la Diáspora en Brasil necesitan, habilitando así las leyes
10.639/03 y 11.645/08 así como las pautas curriculares de 2004 para la enseñanza de la historia y la
cultura afro-brasileñas y africanas. El desarrollo de la educación Quilombista se impone porque
vivimos en una sociedad guiada por los principios del eurocentrismo y la supremacía blanca. Así,
las escuelas generadas por esta sociedad son incapaces de satisfacer adecuadamente tanto las exi-
gencias educativas de los afro-brasileños como las exigencias de una educación intercultural.
Palabras clave: Afrocentricidad; Educación Quilombista; Interculturalidad; Poder, Racismo.

*
Outro requisito imprescindível é a constru-
ção de instituições independentes da comunidade
negra para levar a frente o programa nacionalista.
As reflexões contidas na epígrafe
Esta é uma necessidade não-teórica, mas enraizada acima foram publicadas em 1981. A despeito
na realidade concreta: a história nos ensina que as disso, e do fato de a própria Elisa Nascimen-
sociedades dominantes não entregarão a sua hege-
monia, mas tentarão fazer gesticulações enganadoras to reconhecer que Abdias do Nascimento,
para criar a ilusão de que o fazem. Não adianta mais desde 1968, já tinha a compreensão de que o
o negro continuar a pedir um lugar ou um pedaço das
avanço da comunidade afro-brasileira so-
instituições pertencentes à sociedade branca ou aria-
noide (convencional ou não convencional) e por ela mente se daria quando criássemos nossas
controladas. O branco lhe dará um “lugar”, talvez, próprias instituições, parece que nossa co-
mas nunca entregará o poder por força da persuasão
moral.
munidade, de um modo geral, não concorda
com este diagnóstico e por consequência
Elisa Larkin Nascimento com a solução que ela e Abdias apresentam.
Em nosso entendimento, este desacordo
Introdução
quanto a forma de conceitualizarmos a rea-
lidade racializada em que vivemos pode ser
*
Professor do Instituto de Humanidades e Letras – lido como uma divergência quanto à com-
Malês da Unilab, Coordenador do Curso de Pedago-
preensão do que é o racismo, suas origens e
gia e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Educa-
ção Afrocentrada. E-mail: ricardomb@unilab.edu.br. o que de fato caracteriza uma sociedade

BENEDICTO, Ricardo Matheus. Educação quilombista: uma proposta de educação afrocentrada no


Brasil. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 31: mai.-out./2019, p. 18-33. DOI:
https://doi.org/10.26512/resafe.vi30.28254
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racista; por consequência, a divergência se zar esta empreitada apresentaremos a seguir
estende aos meios pelos quais o racismo a concepção de racismo que orientará este
deve ser enfrentado e superado. artigo. Ela está baseada, principalmente, na
Diante deste contexto, na primeira obra de Carlos Moore Racismo e Sociedade:
seção deste trabalho apresentaremos nossa novas bases epistemológicas para entender o
compreensão sobre o fenômeno do racismo. racismo e de Vulindlela Wobogo Cold Wind
Na segunda seção, sustentaremos que a From the North: The Prehistoric European
adoção da filosofia educacional integracio- Origin of Racism Explained by Diop’s Two
nista ou assimilacionista – definida como Cradle’s Theory.
aquela que defende a integração dos afro- De acordo com Moore, o “racismo é
brasileiros no sistema educacional hegemo- um fenômeno eminentemente histórico
nizado pelos brancos – para enfrentar o ra- ligado a conflitos reais ocorridos na história
cismo presente na educação brasileira está dos povos” (MOORE, 2007, p. 38). Estes
fadada ao fracasso. Sendo assim, defende- conflitos, para Moore, estavam ligados à
remos que somente uma filosofia educacio- posse dos recursos necessários para manu-
nal independentista ou nacionalista, que tenção da vida. Os povos leucodérmicos ao
sustenta que nós, afro-brasileiros, devemos vencerem as várias disputas por territórios
criar nossas próprias instituições educacio- com os povos melanodérmicos instituíram
nais, definidas por este autor como Educa- sistemas racializados para organizar a posse
ção Quilombista, pode atender satisfatori- e a distribuição destes recursos. Para Moo-
amente a demanda por uma educação que re, no entanto, este fenômeno histórico não
valorize a história e cultura afro-brasileira e surgiu na modernidade. O etnólogo susten-
africana. ta que “desde seu início, na antiguidade, o
racismo sempre foi uma realidade social e
O que significa dizer que existe racismo cultural pautada única e exclusivamente no
no Brasil? fenótipo, antes de ser um fenômeno político
e econômico pautado na biologia” (MOO-
Apesar da influência que o mito da RE, 2007, p. 22). E enfatiza a importância do
democracia racial ainda exerce na sociedade fenótipo na compreensão do racismo: “o
brasileira, parece haver um certo consenso – fenótipo é um elemento objetivo, real, que
por mais paradoxal que possa parecer – não se presta à negação ou confusão. É ele,
quanto à existência do racismo no Brasil. O não os genes, que configura os fantasmas
que parece não ser consensual são as explica- que nutrem o imaginário social [..]” (MOO-
ções sobre a origem e o significado deste RE, 2007, p. 22). Moore sustenta que o ra-
complexo fenômeno. Dado este desacordo, é cismo surgiu na antiguidade porque em
fundamental compreender adequadamente suas pesquisas encontrou por exemplo, al-
as origens, o desenvolvimento e o que carac- gumas sentenças do Rig-Veda – escritas há
teriza esta chaga que assola o país, pois sem pelo menos um milênio antes de Cristo –
este entendimento não é possível enfrentá-la como as que seguem: “o Indra protegeu
e superá-la de modo satisfatório. Para reali- seus súditos arianos durante as batalhas,
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subjugou a gente sem leis para o bem de ca, mediante a subordinação políti-
Manu e conquistou a pele negra”; “você In- ca e socioeconômica permanente do
mundo populacional conquistado
dra, matador de Vrittra, destruidor das ci- (MOORE, 2007, p. 247).
dades, tem dispersado os dasyu gestados
por um ventre negro”; “a cor negra é ímpia” Moore chama esta ordem social raci-
(MOORE, 2007, p. 52). ológica de pigmentocracia. Para o autor,
Outro ponto importante a ser desta- este sistema é desenvolvido quando o grupo
cado é que para o pensador cubano o racis- invasor é minoritário e, desse modo, orga-
mo não é uma ideologia, ou seja, não é pro- niza sua dominação sobre uma realidade
duto da mente de um ou mais pensadores. demográfica que ameaça absorvê-lo (MO-
Ele surge historicamente muito provavel- ORE, 2007, p. 261). Com medo da sua extin-
mente durante o período Neolítico. Neste ção o grupo minoritário, por meio de rela-
período houve sucessivas migrações devido ções sexuais violentas e organizadas, produz
á última glaciação Würm. Para Moore este o que o pensador cubano chama de “popu-
contexto propiciou o encontro e o conflito lações brancas de fusão”. Para Moore, estes
violento de populações que até então se brancos mulatos também pretendem man-
desconheciam. Moore afirma, dados estes ter a distância somática do grupo domina-
elementos: “que o racismo não poderia ter do. Em suas palavras:
surgido num só lugar geográfico e cultural,
a partir do qual teria se irradiado para ou- A política de miscigenação, por via
da cooptação1 racial, faz emergir,
tras sociedades, senão que seria um fenô-
permanentemente, setores fenotipi-
meno ‘plurigêntico’.” (MOORE, 2007, p. camente diferenciados na popula-
246). ção. Por força da disseminação de
A análise que apresentamos até aqui ideologias de superioridade racial,
esses “mestiços” serão conduzidos a
pode ser resumida da seguinte forma:
gravitar em torno do polo social e
racialmente dominante. [...]
Em todas as circunstâncias nas O racismo destes “brancos mula-
quais podemos identificar o surgi- tos” não é menos violento, e talvez
mento do racismo, encontramos seja até mais agressivo porquanto a
três dinâmicas convergentes de um diferença fenotípica observável,
mesmo processo: a) a fenotipização comparada com o padrão fenotípico
de diferenças civilizatórias e cultu- que caracteriza o segmento subal-
rais; b) a simbologização da ordem ternizado se encontra minorado por
fenotipizada por meio da transfe- consequência da miscigenação
rência do conflito concreto para a (MOORE, 2007, p. 260-261).
esfera do fantasmático (isso implica
fenômenos como a demonização Moore afirma que neste sistema são
das características fenotípicas do as diferenciações da cor da pele, da textura
vencido em detrimento da exaltação
das características do segmento po- do cabelo, da forma dos lábios e da configu-
pulacional vencedor); c) o estabele- ração do nariz que determinam o status
cimento de uma ordem social base-
ada numa hierarquização raciológi- 1
Os itálicos são do original.

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coletivo e individual das pessoas na socie- Após esta breve análise do trabalho
dade (MOORE, 2007, p. 260). Assim, o de- de Carlos Moore, passemos à interpretação
sejo da brancura se origina nestas socieda- de Vulindlela Wobogo. Para o pensador o
des porque a camada dominante não é único racismo que existe é o praticado pelos
“branca pura”. Como aspiram a este ideal, brancos. Em suas palavras: “Temos definido
criam a ilusão de que a mestiçagem produ- o racismo, que neste estudo é sinônimo de
zirá um novo tipo de branco que tomará o racismo branco [...] como o abuso racial-
seu lugar no concerto da civilização ociden- mente motivado baseado no reconhecimen-
tal. Com esta análise, Moore nos mostra que to do fenótipo ou ancestralidade praticado
carece de fundamento a ideia de que na an- por brancos/europeus, suas instituições e
tiguidade não havia reprodução biológica seus aliados.” (WOBOGO, 2011, p. 23). Dife-
racialmente seletiva (MOORE, 2007, p. rentemente do etnólogo cubano, Wobogo
264). Assim, utilizar políticas eugênicas explicitamente define o racismo como um
como estratégia de dominação não é um abuso praticado por brancos. Embora Moo-
fenômeno recente na história da humani- re, ao longo de sua obra, apresente apenas
dade. Esta estratégia pode ser observada, exemplos de racismo praticado por povos
por exemplo, no modelo ibero-americano leucodérmicos, ele evita a conclusão – e a
de relações raciais2: definição – de Wobogo sustentando que o
racismo é um fenômeno universal. Isto é
Na sua obra O Genocídio do Negro curioso, pois Wobogo sustenta que foi a
Brasileiro, Abdias do Nascimento
partir de outro trabalho de Carlos Moore4
(1978) talvez tenha sido o primeiro
pensador sul americano a ter en- que passou a considerar o racismo como
quadrado claramente os preceitos uma característica da cultura europeia.
da doutrina da miscigenação na Wobogo prefere definir racismo co-
América Latina em uma perspectiva
mo “abuso” ao invés de “opressão” porque
de genocídio [...] tomadas em seu
conjunto, essas quatro obras apon- este conceito é utilizado em outra filosofia
tam para o fato de que a miscigena- que o pensador não está disposto a endossar
ção – longe de ser mera inter- (WOBOGO, 2011, p. 23). Este abuso, de
relação individual e respeitosa, di-
tada pela afeição, como é conveni-
acordo com o pensador, é direcionado pre-
ente afirmar – é uma política cons- ferencialmente contra o fenótipo negro.
ciente de eugenia racial.3 (MOORE, Como nem todas as pessoas com ascendên-
2007, p. 273) cia africana podem ser reconhecidas por seu
fenótipo, a definição do autor inclui a ex-
2
A análise de Carlos Moore ficou restrita aos mode-
pressão “reconhecimento da ancestralida-
los raciais pré-modernos –, ou seja, pré-capitalistas e de”, visto que estas pessoas – quando são
pré-industriais – visto que estes, no entender do reconhecidas – também são vítimas do abu-
etnólogo, explicam de modo mais adequado a reali-
dade das relações raciais na América “Latina. Ele
4
definiu e estudou quatro modelos a saber: Modelo O trabalho a que Wobogo faz referência é Cuba:
Indo Ariano, Modelo Árabe-Semita, Modelo Ibero- The Untold Story. Présence Africaine: Cultural
Árabe e Modelo Ibero-Americano. Review of the Negro World 24 (English Edition),
3
Os itálicos são do original. n0 52, 1964, p. 177-230.

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so racista. Wobogo entende as instituições completou por volta de 20000 a. C.
que praticam o racismo como “qualquer Xenofobia, o precursor do racismo,
pode ter sido embutida na filosofia
entidade [...] fora das prerrogativas dos in- social das populações que sobrevi-
divíduos. Isto inclui costumes e ideias” veram a idade do gelo [...]. A cultura
(WOBOGO, 2011, p. 23). Quanto ao termo resultante reteve a xenofobia como
“aliados”, presente na definição, este pre- um elemento estrutural/filosófico
fundamental. O segundo compo-
tende dar conta do racismo praticado pelo nente é o efeito da vida caçado-
grupo de ascendência cultural mista. ra/nomádica em um clima multi-
Wobogo também rejeita a tese de sazonal impróprio para estabelecer
que o racismo é um produto da modernida- o modo agrário de existência. Estes
efeitos ocorreram entre migração
de ou do capitalismo. Em seu trabalho ele inicial para o norte da recentemente
apresenta exemplos de práticas racistas diferenciada raça branca e o fim da
ocorridas na Grécia e Roma antiga, na Índia, sua permanência nas estepes eura-
entre os hebreus e entre os árabes. Para ex- sianas por volta de 6000 a. C. Os
efeitos destas experiências são ex-
plicar a origem deste complexo fenômeno plicados por argumentos baseados
ele recorre à da Teoria das duas Origens5 de na teoria das duas origens de Diop
Cheikh Anta Diop (1923-1986). Com ela Di- [...] WOBOGO, 2011, p. 406).
op, em sua obra A Unidade Cultural da Áfri-
ca Negra: Esferas do Matriarcado e do Patri-
Quanto ao desenvolvimento do ra-
arcado na Antiguidade Clássica, mostra que
cismo o autor escreve:
a xenofobia é um dos traços culturais dos
europeus que foi formado durante o Paleolí- O desenvolvimento do racismo co-
tico Superior devido ao ambiente inóspito mo um sistema europeu de domina-
em que viviam. Para Wobogo, concordando ção é possivelmente relacionado
com Diop, a vida nômade dos proto- causalmente a três fatores. O pri-
meiro foi a reação dos europeus às
europeus engendrou a xenofobia e esta – culturas africanas do berço meridi-
após os conflitos ocorridos entre o Berço onal que eram baseadas na agricul-
Meridional ou do Sul e o Berço do Norte – tura, como explicado por Josef Bem
evoluiu para o racismo. Wobogo explica a Jochanan, e em menor grau aquelas
da Ásia. O segundo fator foi a redu-
origem do racismo como se segue: ção dos africanos e asiáticos con-
quistados à condição de escravo nas
A origem do racismo branco pode áreas controlados por europeus de
ser relacionada a três fatores. [...] O acordo com as teses de Chancellor
primeiro fator é a condição ambien- Williams e Frantz Fanon. O terceiro
tal responsável pela diferenciação fator é a reação psicogenética ao
racial do homo sapiens africano pa- percebido status minoritário em re-
ra o homo sapiens europeu; isto se lação aos africanos em dado local de
acordo com a tese psicogenética de
5
Frances Cress-Welsing. Este caráter
O nome Two Cradle’s Theory foi dado por Vulindle-
minoritário, baseada na tese de
la Wobogo em seu texto de 1976 Diop’s Two Cradle’s
Theory and Origin of White Racism, Black Books
Cress, parece soar como motivação
Bulletin vol. 4 e desde então se tornou clássico. para erigir características estrutu-

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rais para facilitar o abuso racial e a da população brasileira rejeitaria esta carac-
dominação. O período para estas in- terização. Isto porque, quando elas dizem
terações é de 6000 a. C. até o pre-
sente.
que existe racismo no Brasil elas, provavel-
Como a história avança da antigui- mente, se referem às manifestações discri-
dade à contemporaneidade, a im- minatórias que ocorrem nas relações inter-
portância da reação psicogenética pessoais. Segundo este entendimento, que
de Cress, aumenta relativamente a
outros fatores devido ao gradual de- confunde racismo e discriminação racial, a
saparecimento da escravidão aberta existência de pessoas racistas não implica
e o aumento da consciência dos necessariamente a existência de uma ordem
brancos de seu status minoritário social racista. O raciocínio é formalmente
no mundo, particularmente durante
nos últimos 500 anos. Esta reação é correto, entretanto, como vimos pela análi-
temperada pela identificação oficial se acima, é fundado no senso comum. Co-
de muitas populações de ascendên- mo dissemos, os brasileiros parecem rejeitar
cia mista como brancos (semitas e a ideia de que vivemos em um sistema de
outros) e as preferências dadas a
eles no contexto de maioria africana dominação que – é similar em muitos as-
ou de paridade demográfica (Brasil pectos – produz efeitos semelhantes ao do
e outros) (WOBOGO, 2011, p. 407- apartheid da África do Sul. Se a compreen-
408). são dos brasileiros sobre o racismo fosse a
apresentada neste texto, certamente os
Dada a exposição das teses de Moore e
afro-brasileiros, que são a maioria da popu-
Wobogo, podemos perceber que os autores
lação, e os brancos antirracistas se rebelari-
concordam, a despeito das diferenças exis-
am constantemente contra este sistema
tentes em suas definições, que o racismo
que, com base no fenótipo, veda ou limita o
surgiu na antiguidade, que os conflitos en-
acesso à educação, aos serviços públicos, às
tre povos fenotipicamente diferentes foram
oportunidade de emprego, aos serviços so-
importantes na maturação da xenofobia do
ciais, ao poder político e ao tratamento
proto-europeus para o racismo e que este
igualitário nos tribunais de justiça e das for-
pode ser compreendido como um sistema
ças incumbidas pela manutenção da paz
social estruturado para distribuir privi-
(MOORE, 2007, p. 284). Não é raro ouvir-
légios políticos, econômicos e culturais
mos que vivemos em um Estado Democráti-
ao grupo racialmente hegemônico. Vale
co de Direito. Por este motivo, no começo
destacar também que os autores concordam
da seção, afirmei que o mito da democracia
que este sistema produz ideologias que, pa-
racial ainda é muito influente no país.
ra justificar esta modalidade de dominação,
Este entendimento do racismo como
desumanizam o grupo considerado racial-
ato discriminatório praticado apenas por
mente inferior.
indivíduos estimula a crença ingênua – ou
Podemos, agora, voltar à questão que
nem tanto – de que o racismo ainda existe
intitula esta seção. Este autor considera que
por causa de pessoas ignorantes, sem ins-
existe racismo no Brasil nos termos aqui
trução e que, desse modo, tende a desapa-
definidos. No entanto, penso que a maioria
recer com o avanço educacional e científico
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no país. Sobre este ponto Carlos Moore sus-
tenta que: Para corroborar a explicação de Moore
quanto a ausência de fundamento desta
A despeito de uma série de evidên- crença e que a solução oriunda dela é equi-
cias, permanece uma interpretação vocada, basta lembrar que Rui Barbosa7
otimista, amplamente arraigada e (1849-1923) e José Veríssimo8 (1857-1916)
estimulada na consciência popular,
segundo a qual o racismo seria um defenderam a política nacional de branque-
fenômeno estático, que recuaria amento, que Fernando de Azevedo9 (1894-
constantemente diante da educa- 1974) defendeu e implementou no país um
ção, do crescimento econômico – o sistema educacional fundamentado na eu-
chamado desenvolvimento –, da ex-
pansão dos conhecimentos científi- genia, que Anísio Teixeira10 (1900-1971) con-
cos e mudanças tecnológicas. [...] siderava as culturas africanas primitivas e
Ao contrário de retroceder, como que Darcy Ribeiro11 (1922-1997) considerava
era de esperar, tendo em conta o que no Brasil nunca houve barreiras de or-
enorme salto da Humanidade em
matéria de educação e de conheci- dem cultural e linguística reforçando, assim,
mentos em geral, o racismo se inse- o mito da democracia racial. Estes pensado-
re na dinâmica socioeconômica do res, que ao longo da história do país deram
século XXI com um novo e brutal
sustentação ao sistema de dominação racial
vigor excludente. [...]
Longe de recuar diante da edu- – ainda hoje vigente no país – estão longe
cação e da ciência, e em vez de ser de serem pessoas ignorantes e sem instru-
contido pelo acúmulo crescente de ção. Por fim, parece muita ingenuidade
conhecimentos, o racismo aden-
acreditar que um fenômeno que surgiu há
tra-se na ciência e converte-se
em modo de educação.6 Ele res-
surge como um racismo mais “cien- 7
Ver seu artigo A Convenção Fatal: Dois Pontos de
tífico”, mais “refinado” e, crescen- Vista. In: A Imprensa. Rio de Janeiro: Ministério da
temente, mais “cordial” e “educado”. Educação e Saúde, Vol. XXVI Tomo VII, 1899, p. 94.
A realidade é que, como assinalou E seu Discurso pronunciado na sessão cívica de
pertinentemente o pensador Aimé 28 de maio de 1917, no Teatro Municipal. Rio de
Césaire, em Discurso sobre o Colo- Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 35-
nialismo, o racismo evolui constan- 36.
8
temente. Ademais, evolui sempre Ver, por exemplo, a obra a Educação Nacional Rio
em uma única direção: o nazismo. de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte: PUC Minas,
2013 e o artigo O País Extraordinário In: Jornal do
Cada vez que o racismo recua, ele o
Comércio, 04 de dezembro de 1899.
faz somente diante de uma ferrenha 9
Ver, por exemplo, sua obra Da educação física: o
oposição. E cada vez que essa oposi- que ela é, o que tem sido e o que deveria ser. São
ção enfraquece, ele começa nova- Paulo: Melhoramentos, 1960.e a obra de Jerry Dávila
mente a ganhar novos espaços, con- Diploma de Brancura Política Social e Racial no
tinuando a evoluir – da mesma for- Brasil 1917-1945. São Paulo: UNESP, 2006.
10
ma que evolui o tempo – conforme Ver seu artigo Educação e unidade nacional. In:
seu sentido inicial. O racismo nunca Educação no Brasil. São Paulo: Companhia Editora
recua de forma permanente (MOO- Nacional, 1976, p. 326.
11
RE, 2007, p. 286-289). Ver a obra Nossa Escola é uma Calamidade, Rio de
Janeiro: Salamandra, 1984, p. 22 e seu artigo A Amé-
rica Latina existe? In: Ensaios Insólitos. Rio de
6
As ênfases são nossas. Janeiro: Ludens, 2011.

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mais de três milênios tendo, portanto, que para a Educação das Relações Étnicorraciais
se ajustar a diversas mudanças sociais, polí- e para o Ensino de História e Cultura Afro-
ticas e econômicas ao longo da história vá Brasileira e Africana de 2004 e as políticas
simplesmente desaparecer devido ao avanço de ação afirmativa na universidade são
da educação como se os sistemas educacio- exemplos de políticas educacionais funda-
nais oriundos de sociedades racistas não das nesta concepção filosófica. Tomemos
estivessem comprometidos com este siste- como exemplo as Diretrizes Curriculares
ma social. Nacionais. Nela podemos ler:
Entre aqueles que partilham o nosso
entendimento do racismo a divergência A demanda por reparações visa a
ocorre quanto aos meios adequados para que o Estado e a sociedade tomem
medidas para ressarcir os descen-
enfrentá-lo. Especificamente falando do dentes de africanos negros, dos da-
racismo, que historicamente perpassa o sis- nos psicológicos, materiais, sociais,
tema educacional brasileiro, penso que este políticos e educacionais sofridos sob
debate deve levar em consideração o prin- o regime escravista, bem como em
virtude das políticas explícitas ou
cípio de Molefi Kete Asante: “escolas são tácitas de branqueamento da popu-
reflexos da sociedade que as desenvolve lação, de manutenção de privilégios
(isto é, uma sociedade dominada pelo su- exclusivos para grupos com poder
premacismo branco desenvolverá um sis- de governar e de influir na formula-
ção de políticas, no pós-abolição.
tema educacional baseado na supremacia Visa também a que tais medidas se
branca)” (ASANTE, 1991, p. 170). Se a socie- concretizem em iniciativas de com-
dade brasileira é orientada pelos princípios bate ao racismo e a toda sorte de
do eurocentrismo e da supremacia branca discriminações (DIRETRIZES CUR-
RICULARES NACIONAIS, 2004, p.
segue-se que as escolas geradas por esta 11).
sociedade também são. Diante deste fato
temos duas alternativas. Tentar reformar o O excerto acima indica que a orien-
sistema educacional racista ou criar nossos tação teórica deste documento é integraci-
próprios modelos educacionais. Esta será a onista. Como asseveramos na introdução
discussão da próxima seção. deste trabalho, a adoção desta filosofia edu-
cacional para a superação do racismo na
Educação Quilombista ou Integracionis- educação está fadada ao fracasso. Apresen-
ta? taremos a seguir nossa argumentação.
Para que o Estado combata o racismo
Os defensores da filosofia educacio- presente em seu sistema educacional é pre-
nal integracionista sustentam que é tarefa ciso que as duas condições a seguir sejam
do Estado promover políticas de combate cumpridas: 1) O Estado deve reconhecer que
ao racismo no sistema educacional. Fruto suas instituições de ensino são racistas. 2)
das lutas dos movimentos sociais afro- Reconhecido o racismo, afro-brasileiros,
brasileiros as leis 10.639/03 e 11.645/08 bem indígenas e descendentes de europeus de-
como as Diretrizes Curriculares Nacionais vem, em pé de igualdade, decidir qual a me-
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lhor forma de desmantelar as estruturas hoje são reverenciados13 fica extremamente
educacionais monocultutrais em prol de um fragilizada a defesa da tese de que o Estado
sistema de educação intercultural. Vejamos reconhece que suas instituições educacio-
se estas condições são cumpridas. nais são racistas.
O sistema público de ensino foi im- Quanto à segunda condição também
plantado no Brasil a partir da década de 30 podemos afirmar que não é cumprida. Não
do século passado. Os pioneiros da educa- é possível indicar um momento preciso na
ção nova foram responsáveis pelos funda- história em que a sociedade brasileira tenha
mentos do modelo educacional do país. En- decidido romper com o sistema racista. Esta
tretanto, este modelo foi fundado em bases chance foi perdida no final do século XIX,
eugênicas e eurocêntricas. Jerry Dávila na visto que o projeto “republicano” foi orien-
introdução de sua obra Diploma de Brancu- tado pela política nacional de branquea-
ra escreve: “os chamados pioneiros educaci- mento. Como vimos, a sociedade brasileira
onais do Brasil transformaram as escolas – a despeito da política de embranqueci-
públicas emergentes em espaços em que mento ter como objetivo o extermínio dos
séculos de suprematismo branco-europeu afro-brasileiros – nunca se reconheceu ra-
foram reescritos na linguagem da ciência de cista nos termos definidos neste texto. Du-
mérito e da modernidade” (DÁVILA, 2006, rante a maior parte do período republicano
p. 24). E no epílogo de seu trabalho, ao ana- sequer admitia sua existência. Desde então,
lisar o persistente fascínio brasileiro pela não houve um momento em que os repre-
raça sustenta que: “a eugenia perdeu a legi- sentantes dos afro-brasileiros, indígenas e
timidade científica após a Segunda Guerra descendentes de europeus em igualdade de
Mundial, mas as instituições, práticas e condições se reuniram para apresentar à
pressuposições a que ela deu origem – na nação uma proposta para desmantelar as
verdade, seu espírito – sobrevivem” (DÁVI- instituições educacionais racistas e constru-
LA, 2006, p. 355). Fernando de Azevedo, ir instituições que respeitem e valorizem as
que foi o primeiro secretário da Sociedade tradições africanas, afro-brasileiras, indíge-
Eugênica de São Paulo fundada por Renato nas e europeias.
Kehl (1889-1974), nunca reconsiderou suas Diante do exposto, podemos perce-
posições eugênicas.12 Críticos deste sistema ber que a posição integracionista, para fazer
educacional, como Darcy Ribeiro e Paulo sentido, precisa pressupor que o Estado
Freire (1921-1997) nunca evidenciaram ou brasileiro não é racista. Pois se fosse, teria
criticaram o caráter eugênico da educação
praticada no país. Se o caráter eugênico do 13
Em sua obra História das Ideias Pedagógicas no
sistema nunca foi questionado e os pensa- Brasil, cuja última edição é de 2014, Dermerval Savi-
dores que sustentaram este modelo ainda ani ao analisar a Escola Nova e o pensamento da
denominada por ele chama “trindade cardinalícia”
não faz qualquer menção ao fato de que tanto a Es-
cola Nova quanto os trabalhos de Fernando de Aze-
vedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho (1897-1970)
12
Ver o terceiro capítulo de minha tese de doutora- estão comprometidos com a eugenia e o eurocen-
do. trismo.

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que reconhecer que nestas condições os tas à hegemonia (HILLIARD, 2009,
afro-brasileiros não têm poder. Isto significa p. 323).
que não temos controle sobre as institui-
O alerta de Hilliard é importante,
ções do Estado. Se não controlamos as insti-
pois ao ignorar o tema do poder e hegemo-
tuições educacionais não temos como exe-
nia a agenda multicultural integracionista
cutar as políticas reparatórias mencionadas
tende a centrar esforços no estudo de pro-
no documento. A alternativa que resta aos
blemas – que, apesar de importantes, ten-
integracionistas é supor a inexistência do
dem a trivializar o debate e a compreensão
racismo e defender que o que deve ser
sobre a hegemonia – como relações raciais,
combatido – com as políticas que defendem
preconceitos, estereótipos, inclusão, valori-
– são os efeitos de um sistema que já não
zação da diversidade. Para o educador “pre-
existe. Isto pode ser percebido no excerto
cisamos avançar além do trivial e dar o má-
que utilizamos das Diretrizes Curriculares
ximo de prioridade e atenção ao problema
Nacionais. Se, ao contrário do que disse-
mais importante: a contenção global das
mos, os integracionistas admitem a existên-
famílias étnicas e a destruição de suas pró-
cia do racismo devem, então, assumir a po-
prias estruturas e processos educacionais
sição estranha e contraditória de que o gru-
altamente eficientes” (HILLIARD, 2009, p.
po branco hegemônico que controla o Esta-
318).
do não sabe que a educação que defende e
Por fim, vale destacar que a crítica às
promove é racista e eurocêntrica. Pois, se
deficiências do integracionismo como ori-
não fosse assim, que sentido poderia haver
entação teórica dos afro-brasileiros não é
em tentar convencer um Estado racista a
nova. Elisa L. Nascimento em sua obra Pan-
adotar políticas de combate ao racismo?
Africanismo na América do Sul Emergência
O educador Asa Hilliard trata deste
de uma Rebelião Negra nos mostrou os limi-
tópico da seguinte maneira:
tes desta posição. Sua crítica também nos
Algumas formas de educação multi-
ensinou que as legislações antirracistas bra-
cultural procedem como se a opres- sileiras – ela tratou especificamente da Lei
são calculada só existisse no passa- Afonso Arinos – se constituem em verdadei-
do. Seu preceito parece ser “Agora ros passes de magia branca para iludir os
temos de esquecer e seguir em fren-
te”14. Respondendo de forma tópica
afro-brasileiros de que avanços têm sido
a ações negativas visíveis como este- feitos no combate ao racismo.15 Sua análise
reótipos e preconceitos, elas per- da decisão da Suprema Corte dos Estados
dem de vista as estruturas de domi- Unidos sobre a constitucionalidade do pro-
nação em grande parte invisíveis,
sobretudo as estruturas educacio- grama de ação afirmativa do Estado da Cali-
nais. Não conseguimos perceber o fórnia nos serve de alerta para lembrar-nos
vínculo entre as estruturas educaci-
onais e o plano estratégico com vis-
15
A lei 10.639/03 está próxima de completar duas
décadas. Apesar de ser uma lei federal a União, os
Estados e os Municípios a desrespeitam sem maiores
14
As aspas são do original. consequências.

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que como não temos poder político proces- rida para ninguém. Muito menos a um Es-
so similar pode ocorrer no Brasil: tado comprometido historicamente com
práticas genocidas contra a nosso povo.
Foi exatamente esse o significado da Como afirmou Jacob Carruthers (1930-
decisão da Suprema Corte federal 2004):
no caso Bakke. Bakke, um estudante
de medicina anglo-ariano, questio-
nou a constitucionalidade do pro- Devido ao sinistro projeto eurocên-
grama do Estado da Califórnia em trico de educação para nossa juven-
função da “ação afirmativa”16, que tude negra, devemos considerar
ordenava a entrada na faculdade de como questão de senso comum a
certa quantidade de estudantes ne- educação afrocentrada. (Rejeitarei
gros, porto-riquenhos e chicanos sem comentar a absurda noção que
(mexicano-norte americanos), para um currículo universal é a solução.)
compensar o legado de séculos de Vamos agora deixar o caso um pou-
discriminação racial contra eles e co mais claro.
para dar-lhes uma chance de pene- A crise endêmica na educação
trar na profissão. O programa tinha negra é a base do que Bobby Wright
por modelo outros projetos seme- chama de “Menticídio”.17 Menticídio
lhantes do governo federal em vá- é a fase mais sofisticada da estraté-
rios campos. A Suprema Corte de- gia de guerra dos supremacistas
cretou a caducidade da lei que criou brancos contra a raça negra. Se per-
o programa, sob a alegação de que dermos esta guerra não haverá mais
discriminava o branco. Tudo voltou problemas na educação negra, nem
à estaca zero. O mesmo fenômeno educação negra e nem negros. [...]
ocorre em todos os setores da soci- Se quisermos vencer a guerra contra
edade, acompanhando a autocon- o supremacismo branco, se quiser-
gratulação satisfeita do “establish- mos viver, então devemos tirar a
ment” branco liberal, que se orgulha educação das mãos de nossos inimi-
em haver vencido o racismo norte- gos. Nós devemos construir a ver-
americano. A democracia racial” dadeira educação africana sobre
chegou também aos Estados Unidos uma base revigorada. Somente uma
(NASCIMENTO, 1981, p. 49). educação afrocentrada oferece esta
base. (CARRUTHERS, 1999, p. 260).
Agora que descartamos o integracio-
Estamos de pleno acordo com Car-
nismo como alternativa para a superação do
ruthers. Parafraseando sua reflexão: somen-
racismo na educação brasileira apresenta-
te uma educação afrocentrada é capaz de
remos a opção que julgamos adequada. An-
solucionar o problema educacional dos
tes, porém, vamos assumir um princípio
afro-brasileiros. Dado este pressuposto, ex-
que deveria ser básico: a obrigação de edu-
plicitemos o que é a afrocentricidade. Con-
car as crianças e jovens afro-brasileiros, a
forme Molefi Kete Asante, formulador do
geração mais jovem, é nossa, da geração
paradigma afrocêntrico, “a afrocentricidade
mais velha. Devemos ter consciência de que
é um tipo de pensamento, prática e perspec-
esta responsabilidade não deve ser transfe-
17
As aspas são do original.
16
As aspas do excerto são do original.

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tiva que percebe os africanos como sujeitos e como “outros”, percebemos que os vê dife-
agentes de fenômenos atuando sobre a sua rente de si mesma (ASANTE, 2009, p. 96).
própria imagem cultural e de acordo com Por meio do aparato teórico concei-
seus próprios interesses humanos”18 tual afrocêntrico os africanos têm condições
(ASANTE, 2009, pag. 93). Asante sustenta a de desenvolver uma identidade positiva e
importância deste paradigma porque “tendo assumir o controle – agência – de suas vi-
sido os africanos deslocados em termos cul- das. Como historicamente os africanos in-
turais, psicológicos, econômicos e históri- dependentistas são rotulados maliciosa-
cos, é importante que qualquer avaliação de mente de racistas às avessas, Asante faz a
suas condições em qualquer país seja feita seguinte advertência: “deve-se enfatizar que
com base em uma localização centrada na a Afrocentricidade não20 é a versão negra do
África e sua diáspora” (ASANTE, 2009, pag. eurocentrismo. O eurocentrismo é baseado
93). em noções de supremacia branca [...]”
Asante argumenta que a hegemonia (ASANTE, 1991, p. 170). E aponta para a in-
do paradigma eurocêntrico faz com que os terculturalidade: “diferentemente do euro-
africanos do continente e da diáspora se centrismo, a afrocentricidade condena a
vejam por meio dos olhos do dominador. valorização etnocêntrica às custas da degra-
Por isso os conceitos de agência e localiza- dação das perspectivas dos outros grupos”
ção psicológica, cunhados pelo autor, são (ASANTE, 1991, p. 171).
fundamentais no paradigma afrocêntrico. E o que seria uma educação afrocen-
De acordo com Asante: “um agente, em trada no Brasil? Como já antecipamos de-
nossos termos, é um ser humano capaz de fendo o modelo de Educação Quilombista
agir de forma independente em função de que foi definido em minha tese de doutora-
seus interesses. Já a agência19 é a capacidade do como se segue:
de dispor dos recursos psicológicos e cultu- [...] um processo de transmissão dos
rais necessários para o avanço da liberdade valores, crenças, costumes e conhe-
cimentos para que os afro-
humana” (ASANTE, 2009, p. 94). Como brasileiros possam viver de maneira
afirmamos, o interesse pela localização psi- adequada nesta sociedade garantin-
cológica também é imprescindível para do, assim, a continuidade do seu
Asante, pois por meio dela é possível verifi- povo e de sua cultura. Esta educa-
ção deve ser inspirada na experiên-
car a perspectiva que orienta o trabalho de cia dos quilombos, visto que estas
qualquer pesquisador. Podemos avaliar se sociedades permitiram aos africanos
uma pessoa está localizada em uma posição existirem nesta terra sem renuncia-
central em relação ao mundo africano pelo rem a sua africanidade, além de se-
rem abertas aos indígenas e brancos
modo como ela se relaciona com a informa- excluídos do sistema colonial. As-
ção africana. Se ela se refere aos africanos sim como os quilombos se constitu-
íram como espaços de construção

20
Os itálicos são do original.
18
Os itálicos são do original.
19
Os itálicos são do original.

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da identidade afro-brasileira e de tam estas relações. Shujaa afirma que maio-
resistência à aculturação europeia a ria dos afro-estadunidenses recebem mais
educação quilombista, hoje, deve
ser concebida como um processo de
escolaridade do que educação. Podemos
formação do amefricano do Brasil e dizer que fenômeno similar ocorre com os
de resistência ao historicamente afro-brasileiros. O educador também deixa
constituído modelo eugênico e eu- claro que todo grupo cultural deve provi-
rocêntrico de educação com vistas à
construção da sociedade democráti- denciar este processo de transmissão ou
ca intercultural quilombista (BE- deixará de existir (SHUJAA, 1998, p. 15).
NEDICTO, 2016, p. 245). Como o modelo de educação que
defendemos é afrocentrado, ou seja, centra-
Este conceito foi derivado principal-
do na experiência africana e afro-brasileira,
mente do trabalho de Abdias do Nascimen-
ele se inspira na experiência dos quilombos,
to (1914-2011) O Quilombismo. Nascimento é
que é um dos nossos principais modelos de
principal pensador afrocentrado no Brasil.
organização social e resistência. Nos qui-
Embora não tenha utilizado explicitamente
lombos as tradições africanas foram preser-
o conceito de afrocentricidade em sua obra
vadas e recriadas. Nesta sociedade os indí-
podemos perceber que suas reflexões sobre
genas e os brancos excluídos do sistema
o quilombismo são orientadas pelo para-
colonial eram bem-vindos. Também é im-
digma formulado por Molefi Kete Asante.
portante ressaltar que a experiência africana
Não é à toa que este último considera Nas-
nas Américas não se restringe à maafa.22 Por
cimento como um dos seus principais men-
causa de trabalhos de intelectuais como o
tores intelectuais21. Vejamos de forma deta-
professor Ivan Van Sertima (1935-2009) sa-
lhada o que caracteriza este modelo educa-
bemos que os africanos estiveram nas Amé-
cional.
ricas antes de Colombo.23 Em sua obra clás-
Nosso conceito de educação é inspi-
sica They Came Before Columbus: The Afri-
rado na definição de Mwalimu Shujaa. Em
can Presence in Ancient America o autor
seu artigo Education and Schooling: You Can
mostrou que os africanos viajaram para a
Have One Without The Other o educador
hoje chamada América bem antes que o
distingue educação – definida como um
primeiro europeu chegasse a este continen-
processo de transmissão de uma geração
te. Por este motivo utilizamos em nossa
para a geração seguinte o conhecimento dos
definição o conceito de amefricano cunhado
valores, estética, crenças espirituais, e todas
pela intelectual amefricana Lélia Gonzales
as coisas que dão singularidade a uma parti-
(1935- 1994), pois este nos auxilia a compre-
cular orientação cultural – e escolaridade,
definida como processo que tende a perpe- 22
Palavra de origem kiswahili que significa holocaus-
tuar e manter as existentes relações de po- to africano, desastre, grande tragédia. Ver Marimba
der na sociedade e as estruturas que supor- Ani Yurugu: An African-Centered Critique of
European Cultural Thought and Behavior. Tren-
ton: Africa World Press, 1994.
21 23
Esta informação me foi fornecida em meu exame Ver também a obra de David Imhotep: The First
de qualificação pelo professor Renato Noguera da Americans Were Africans: Documented Evi-
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. dence, Bloomington, Author House, 2011.

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ender a realidade dos africanos nas Améri- acordo com o intelectual: “o Estado Nacio-
cas.24 O sistema educacional quilombista, nal Quilombista tem sua base numa socie-
então, deve contribuir para a formação da dade livre, justa, igualitária e soberana”
identidade dos afro-brasileiros, além de ser- (NASCIMENTO, 1980, p. 275). Para Nasci-
vir como espaço de resistência ao modelo mento, a educação deve desempenhar um
eugênico e eurocêntrico de educação vigen- papel crucial neste projeto. Em suas pala-
te no país. vras:
Como é possível perceber em nossa A educação e o ensino em todos os
definição, o Sistema Quilombista é a aberto graus – elementar, médio e superior
– serão completamente gratuitos e
a interculturalidade. Aliás, concordando e abertos sem distinção a todos os
parafraseando Molefi Asante, uma das con- membros da sociedade quilombista.
dições fundamentais para uma autêntica A história da África, das culturas,
educação multicultural no Brasil é o desen- das civilizações e artes africanas te-
rão um lugar eminente nos currícu-
volvimento da educação afrocêntrica. A su- los escolares. Criar uma Universida-
peração do modelo monocultural brasileiro de Afro-Brasileira é uma necessida-
somente ocorrerá quando forem devida- de dentro do programa quilombista
mente estabelecidas no país sistemas edu- (NASCIMENTO, 1980, p. 276).
cacionais orientados pela perspectiva cultu-
O sistema educacional que deriva-
ral afro-brasileira e indígena. O descaso de
mos desta proposta política, visa contribuir
mais de uma década para com as leis fede-
para a construção do Estado Quilombista
rais 10.639/03 e 11.645/08 corrobora nossa
que, uma vez consolidado, suplanta o sis-
tese.
tema racista vigente. Concordamos com a
Por fim, vale destacar que a proposta
tese de Abdias do Nascimento de que o Es-
educacional Quilombista, diferente das po-
tado brasileiro – já que os amefricanos são a
líticas educacionais integracionistas, está
maioria da população – deve ser orientado
atrelada a um projeto de sociedade inspira-
pela cultura majoritária. Para a viabilização
do nas tradições africanas e afro-brasileiras.
desta nova sociedade, é imperiosa criação
Ela é derivada – como dissemos – da filoso-
de instituições independentes da comuni-
fia política quilombista de Abdias do Nas-
dade afro-brasileira. Entendemos que este é
cimento. Para o pensador “o Quilombismo é
o melhor caminho para desmantelar a pig-
um movimento político dos negros brasilei-
mentocracia brasileira.
ros, objetivando a implantação de um Esta-
do Nacional Quilombista, inspirado na Re-
3. Considerações Finais
pública dos Palmares [...] e em outros qui-
lombos que existiram e existem no país”
Neste artigo argumentamos favora-
(NASCIMENTO, 1980, p. 275). E ainda, de
velmente à tese de que somente uma Edu-
cação Quilombista (Afrocentrada) é capaz
24
Ver o artigo A categoria político-cultural da
amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janei-
atender de modo satisfatório às necessida-
ro, n0 92/93 (jan./jun.), 1988, p. 69-82. des educacionais dos afro-brasileiros viabi-

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lizando assim o cumprimento das leis Quilombistas (Afrocentrados). Assim, não
10.639/03 e 11.645/08. No entanto, sabemos podemos escapar da seguinte questão: que
que esta posição não é majoritária na co- caminhos devemos percorrer para que este
munidade afro-brasileira. modelo educacional se torne realidade?
Diante deste cenário, no último capítulo de Desse modo, nestas considerações finais,
minha tese de doutorado fiz um convite aos renovo o convite para aprofundarmos o de-
pensadores afro-brasileiros da educação bate sobre estes temas que considero estra-
para aprofundarmos o debate sobre algu- tégicos para nosso futuro como família étni-
mas das questões que retomamos neste tex- ca.
to. Se nossa análise é válida segue-se que é
urgente a criação de Modelos Educacionais

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Recebido em: 05/06/2019


Aprovado em: 31/10/2019

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