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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

o Romantismo / J. Guinsburg , organização. -


São Paulo: Perspectiva, 2008. -
(Stylus ; 3/ dirigida por J. Guinsburg)

2" rcimpr, da 4. ed. de 2002.


Bibliografia.
ISBN 978-85-273-0287-6

I. Romantismo - História e crítica I. Guinsburg, J.


11.Série.

05-4336 CDD-700.4145

Índices para catálogo sistemático:


I. Romantismo: Artes 700.4145

4' edição - 2' reimpressão

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2008
3. A VISAO ROMÂNTICA
Beneditb Nunes

I. As Categorias do Romantismo

o dualismo, a antítese é o princípio motor, o


princípio passional, dialético e espirituoso.
t Nupht a a Settcmbrinir - THOMAS MANN, A
Montanha Mágica.
011 n'a jamais bien jugé le romantisme, Qui
l'aurait jugé? Les Critiquesl! Les Romantiques?
qui prov ent si bien que Ia chanson est si peu
SOIH'ent l'oeuvre, c'est-à-dire Ia pesée chantée
et comprise du chanteur. - RIMBAUD.

Por uma questão de método, convém que se


reforrnule, como requisito prévio à abordagem da
visão romântica, a distinção das duas categorias.
implícitas no conceito de Romantismo: a psicolo:
gica, que diz respeito a um modo de sensibili-
dade, e a histórica, referente a um movimento
literário e artístico datado.
A categoria psic9lógica do Romantismo! é o

1. Tomamos por base a distinção de Ladislao . MnTNEI<,


Storia della Litteratu.,a Tedesca (Dai Pietismo: ai romanticismo·-
1700·1820), Torino, Einaudi, 1964, pp. 698·703.

A VISÃO ROMÂNTICA 51
sentimento como objeto da ação interior do que selaria a fortuna teórica desse termo, o qual
sujeito, que excede a condição de simples estado passou desde então a significar um estado da
afetivo: a intimidade, a espiritualidade e a aspi- poesia e uma atitude em relação à literatura,
ração do infinito, na interpretação tardia de resultou de uma ascendência intelectual; pois que
Baudelaire 2. Sentimento do sentimento ou dese- ligada ao classicismo de WeiI!!.ªr.JGoethe e Schil-
jo do desejo, a sensibilidade romântica, dirigida ler), eparticulai-mente sensibilizada pela pro-
pelo "amor da irresolução e da ambivalência" G, blemática schilleriana da poesia ingênua dos an-
que separa e une estados opostos - do entusias- tigos e da poesia sentimental dos modernos 4, a
mo à melancolia, da nostalgia ao fervor, da exal- escola germânica nasceu no clima universitário
tação confiante ao desespero -, contém o ele- estimulante de lena, de uma geração posterior ao
mento reflexivo de ilimitação, de inquietude e Sturm und Drang, ao mesmo tempo que o idea-
de insatisfação permanentes de toda experiên- lismo t>.§.s-kaºtiano. .
cia conflitiva aguda, que tende a reproduzir-se As matrizes filosóficas da visão romântica
indefinidamente . à custa dos antagonismos in- do mundo podem ser localizadas nas espécies
solúveis que a produziram. Pelo seu carâter con- complementares desse idealismo - a metáiisica do \
flituoso interiorizado, trata-se, portanto, consi- Espírito de Fichte e a metaiisica da Natureza de !
derada assim, de uma categoria universal. Mas Schelling -, que derivaram do criticismo de f
somente na época do Romantismo, esse modo de Kant. Não se deverá, contudo, identificar a visão i,
i
sentir concretizou-se no plano literário e artístico, romântica do mundo com a filosofia do Roman-
adquirindo a feição de um comportamento es- tismo, que designa o. conjunto dos sistemas idea- !
piritual definido, que implica' uma forma de listas e das doutrinas posteriores a Kant, inclu-
visão ou de concepção do mundo. sive l,l teologia sentimental de Schleiermacher, o
No movimento romântico, que se desenvol- reaH§~~n1Ígico de Novalis, menos o idealismo
veu entre as duas últimas décadas do século de Regel s.
XVIII e os fins da primeira metade do século Articulando-se em fins :do século XVIII,
XIX, quando, num período de cronologia osci- em oposição ao pensamento ilumínista, e per-
lante, verifificou-se a grande ruptura com os pa- durando até meados do século XIX, a visão'
drões do gosto clássico, prolongados através do romântica do mundo, que se desenvolveu nos
neoclassiscismo iluminista, fundiram-se várias px;,ódroroº§.das mudanças .estruturais da socieda-
fontes filosóficas, estéticas e religiosas próximas, ~éia, concomitantes ao surgimento do
e reabriram-se veios mágicos, míticos e religiosos capitalismo, é por certo uma visão de época,
remotos. Pela variedade de seus aspectos, exten- condicionada que foi a um contexto sócio-histó-
sivos, para além da literatura e da arte, a todas rico e cultural determinado, que possibilitou a
\ as dimensões da cultura, pela diversidade das ascendência da forma conflitiva de sensibilida-
posições contrastantes que abrangeu, o Roman- de enquanto comportamento espiritual definido.
i tismo foi, na verdade, uma confluência de ver- São largamente sintomáticas as idéias diretrizes,
tentes até certo ponto autônomas, vinculadas a a escala de valores e as tendências preponderan-
. diferentes tradições nacionais. tes, que assinalam o teor idealista da visão ro-
A primazia da vertente alemã (de 1796 em mântica, e que a distinguem da configuração
diante), a primeira a empregar, numa conota- 4. ARTUR O. LOVEJOY, "Ronunitic' Út carly gl!rman Roman-
ção crítica e histórica, 'a palavra romântico, e tící sm, Essays in ttic History of l dcas: Nova Ycrk, pp. 215-222,
Capricorn Books. .
S. W. WINDELBAND, Historia de Ia filosofia, 2 vol. p. 204
2. Baudelaire - Salon de 1846 - II - Qtt'es-ce qtle e SR., Buenos Aires, Editora Nova; HAROLO HOFFDING, A Bricf His-
le romantismef Curiosités esthétiques. OetlfJreJ CompleteJ. Biblio- tory 01 Modcr» Philosophy, Macmillan, p. 169 j NrcoLAI HARTMANN,
thêque de Ia Pléiade, La Filosofia deI Idealismo Aleman, Editora Sudamericana, 1 vol.
3. MITT'O:R, Larlislao. O». çit. p . 699. p, 252,

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particular de cada uma das especies metafísicas transformando-as na instância privilegiada de
do idealismo pós-kantiano de que suas matri- uma só atividade' poética, -supra-ordenadora das
zes repontam. Outro tanto se pode dizer do ~1!!!~õ~~YLca!iy.~L dá ,cul!!i~ concomi-
comportamento espiritual, que produziu, tipifica- tantemente ligada à afirmação do indivíduo e ao
do na literatura e na arte, um conjunto de ati- conhecimento da Natureza; a essa concepção do
tudes intelectuais, inseparáveis de uma gestua- mundo corresponde o - Romantismo estritamente
lística dos sentimentos e de padrões retóricos considerado, que -conjuga e solidariza as duas
determinados; categorias, a psicoiôgica e a histórica, antes referi-
A grande ruptura dos padrões clássicos, que das, do conceitqrespectivo.;Masassim deli-
projetou o Romantismo como fenômeno da his- mitada, a visão romântica; que se interrompe com
tória literária e da evolução das artes,foi o efei- o advento da "modernidade, não esgota o alcan-
to mais exterior e concentrado de um rompi- ce do Romantismo.
mento, interior e difuso, no âmago das correla-
Na acepção lata" que pertence à história da
ções significativas_9,<:I_"~!lItlJ..ra,
rompimento que'
cultura, esse fenômeno determinou o nível da
se aprofundou, ainda na primeira metade do experiência! incorporada à literatura, _e trouxe
século XIX, com o desenvolvimento da socieda-
à luz, no conjunto da vida social,' o estado da
e
--de industrial, do qual a reação contra o siste-
arte e a situação do poeta (e do artista), que
ma das idéias do Iluminismo, desde as nasceu- nos são familiares até os dias de hoje. Para além
tes do movimento rõiüâIifico, já era a manifesta- da conquista de uma forma mais livre e de um
ção preliminar. Se a visão romântica pode ser
conteúdo mais variado, que seria, no juizo do
considerada como visão de época, não .'é no sen-
Goethe amadurecido da fase de elaboração de
tido de uma Wettanschauung, configurada atra-
Segundo Fausto, a inevitável resultante dos ex-
vés de uma forma artística, de um estilo 'histó-
tremos e exageros da época literária, por ele
rico determinado, e sim no de uma concepção comparada a um acesso de febre intensa 6, o
do mundo relativa a um período de transição, urgent [eeling 7 da visão romântica fixou o limiar
que se situa entre o A ncien Régime e o liberalis- de acesso estético à literatura de valores lúdicos c
mo, entre o modo de vida da sociedade pré- -_i festivos da cultura cômica popular do Medievo e
industrial e o ethos nascente da civilização ur- do Renascirnento 8, valores não-canônicos, neutra-
bana sob a economia de mercado, entre o mo-
lizados pelo decoro clássico, como também a
mento das - aspirações libertárias renovadoras
transfusão, sobretudo na lírica, de elementos
das minorias intelectuais, às vésperas do grand mágicos encantatórios e divinatórios, canaliza-
ébrantement de 1789, e o momento da con- dos, quando não do ocultismo e da tradição he-
versão ideológica do ideal de liberdade que essas terodoxa do misticismo cristão, de veios religio-
minorias defenderam, no princípio de domínio sos arcaicos. ~ também por intermédio dela que
real das novas maiorias dirigentes, firmadas com surgem, no momento em que -a atuação política
o Império Napoleônico e após a Restauração. da intelligentzia fora neutralizada, essa autono-
A essa concepção do mundo, preponderan-
temente idealista e metafísica, percorrida por 6. Cowoersotiows de Goethe avee &:kermann, GaUimard, p.
um afã de totalidade e de unidade, próprio da- 507.
sensibilidade conflitiva que a impulsionou, e po- 7, "", urgent íeeling rather than a stvle". SYPHER, Wy\ie,
Roc oro to c in u nd urc r Transfcrmat ions in
larizada por sentimentos extremos e atitudes an- nbisen

style, in art and literature


art lit crat

_írom the 18th, to the 20th, cen-


tagônicas, comportando uma vivência da Natu- tury), Vintage Book, p. 63,
8. Como o grotesco, que Victor Hugo associou ao' disforme e '\
reza física, um senso do tempo e um poder mí- ao horrvel. Vide a respeito do "grotesco de câmara' do Roman-
togênico; a essa concepção do mundo, que se- tisruo, o jil clássico trabalho de 1\1IKHAIL B.·\KHITI?"I·:. L'oCII'i.'I"C de
François Rabelais et Ia cu/l"r~ populoire ou Mo)', •• Apr fI so".
parou do universo cultural a literatura e a arte, h~ Rrnaissoncc, (;;tlJimarcl.

A VISÃO ROMÂNTICA 53
mia intelectual dilemáticada consciência artísti- da maioria dominante em- relação às letras, e às
ca, ora· cultivada em altivo isolamento, ora tra- artes,.,- desdeentão.confinadas. ao plano daneu-
zida a público, - em .cumprimento de um dever tralizante respeitabilidade, que constitui-a ..cultura
apostólico, de uma missão espontânea para com estética -:-. e, por fim.. a mecanização e. a racio-·
a arte; e é nela, finalmente, que-se condensam nalização da vida 12, posteriormente- as., relações
os -.nexos' sociais e. políticos, ideologicamente po- comunitárias dentro, de uma civilização, cada vez
larizados, daí por diante jamais desfeitos, que en- menos rural e cada vez mais.iurbana. ,',
tramam a obra de arte e o estado do mundo, A estrutura. social '.emergente dessas . mudan-
colocando aquela num permanente confronto ças . não oferecerá ao processo de individualiza-
com o real. ção condutos abertos para a vida coletiva. Tor-
Na época transicional de efetiva vigência da . nada menos· móvel, .e -;mais, estranha, como' um i
visão romântica do mundo,.quando começa a mecanism.o .. alheio ,:à consciência., atrofiando a !
!

interferir, por força das classes sociais existen- individualização à falta de reajustamentos inter-
tes, o efeito ideológico, distorsivo e encobridor nos, a vida coletiva contribuirá para "a aliena-
das .posições e dos interesses, a literatura, ao ção, a introjeção, a subjetividade e a introver-
mesmo tempo que denuncia a insatisfação com o são dás energias sublimadoras" 13.
real, passa' a oferecer, contra ele, o abrigo do Contudo, as. diretrizes da visão romântica,
ideal decepcionado, que se constitui em. refúgio, que imediatamente assimilam, pela dinâmica dos
e que transformá o refúgio em sucedâneo de aspi- eventos políticos, o entrechoque dos modos tra-
rações insatisfeitas 9. dicionaís de vida com os novos padrões sociais,
O caráter sinto~al dos aspectos constitutivos não podem ser reduzidas a uma função ideológica
da visão romântica recobre o largo espectro dos reflexa. Elas traduziriam posições eminentemen-
fenômenos que indicam a mudança das estrutu- te reativas, nem sempre opostas, mas sempre
rJ'l" da sociedade pré-industrial: a separação da transversais à sociedade e à cultura, da intelli-
arte quer do artesanato quer do modo de produ- gentzia situada num período de transição.
ção industrial que se iniciava, o começo da _de- A rebeldia contra a disciplina do' gosto clás-
pendência dos produtos literários e artísticos às sico, que concentrou essas posições reativas, rea-
leis concorrenciais do mercado 10, a justificativa briu, de fato, na transição do século XVIII para
ideológica da religião como instrumento legitima- O século ,XIX,. como .pensa Max Scheler, a
dor do poder e da ordem - que denuncia. o disputa 'entre os antigos eos modernos, que se
arrefecimento do sagrado -, o nivelamento dos declarara muito .antes no âmbito dohumanismo
valores morais à regra benthamiana do major in_1 renascentísta, Mas se, em virtude disso, pode o
teresse e da melliõruiiíiaild-e:"'ã marginalização Romantismo ser incluído, do ponto de vista so-
social de toda atividade .improdutiva, oprin- ciológico, na categoria dos movimentos juve-
cípio fid~ctá.!1-<lda moralidade bur~esa 1,1, as Te- nis 14. o certo é que o seu ímpeto rebelde, esten-
laçõesr-~sse'SSivas da moral doméstica e, do casa- dido à sociedade -e à cultura, ao sabor de uma
mento.;\' separação entre_ as _e.sf..eras sex..u.aI e se.n- sensibilidade conflitiva, nasceu enfermiço e en-
-,
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timental do amor, o iilisteismo como atitude
i " " ...
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.
velheceu depressa.
As idéias da visão romântica do mundo nas-
'. '
9. Desse ntó de vista, o romântico é aquele cuja insatisfa- cem em oposição às do Iluminismo, e agru-
ção com o real 1Ie transmuda em Iiteratura ou em teoria estética.
Vide RALPH TYMMS, Gcrmati Romantic Literaturc, Methuen, p. 25. pam-se, como estas, de maneira ordenada, num.
10. WILLIAMS, R Culturc and Socicty 1780-1950. Penguin,
P. 52.
11. Ethos captado por Marx como a universalização do valor 12. MUMFORD. A Condição de Homem. Editora Globo, p. 317.
íiduciário: "O dinheiro avilta todos os deuses do homem... e os 13. MANNHEIM, Karl. Sociologia Svstemâtica. Livraria Pio-
transforma: em mercadoria. O dinheiro é o valor universal de neira Editora, p. 126.
todas as coisas". 14. SCHELER, Max. Sociologia dei Saber. Editora Lesada,

A VISÃO ROMÃNTICA 55
esquema de caráter sistemático. As matrizes fi- espécie. Também decorreram dela o consensus
gentium 16, como instância coletiva da razãouni- l
losóficas que permitem encadeá-Ias, e que impri- I

mem ao esquema que elas compõem a unidade forme, o cosmopolitismo abstrato, nivelador de
de uma constelação de princípios Interdependen- todas as diferenças nacionais e de todas as parti-
tes, procedem de uma combinação das linhas mes- cularidades locais, e o igualitarismo intelectual,
tras das doutrinas idealistas pós-kantianas de que se' completou por uma curiosa tendência an-
Fichte e de Schelling.' tiintelectualista, que defendia a posse pacífica,
--O-OCoteJõ dos pressupostos do Iluminismo e do pela simples aplicação do bom senso, de verdades
Romantismo, dar-nos-á, pelo conhecimento dife- essenciais, acessíveis, em igual medida; aos ci-
rencial, a possibilidade de abrangermos, a partir vilizados europeus e aos selvagens de Bougaín-
de suas matrizes, as tendências dispersas e hetero- ville, verdades essenciais que tanto mais garan-
gêneas que se constelam na visão romântica. tidas seriam quanto menos metafísicas fossem e
quanto mais próximo de suas origens ·os homens
11. O lIuminismo e a Constelação Romântica estivessem. A concepção mecanicista do univer-
so, que permitiu integrar chomern e a Nature-
za física exterior sob a regência de leis unifor-
Como últimos elos que se confundem, da
mes, coroou a unidade desses princípios, que se
cadeia hermenêutica que sustentou as tendên-
.harmonizaram dentro do esquema racionalista
'ê1ãrgerãiSãü"pensamento do Iluminismo, as
do pensamento da Ilustração, .e à luz dos quais
idéias de Razão e deNatureza, idéias regulado-
recaem a idéia de causa suprema ordenadora
,,~ras desde o século XVII,' desempenharam, no
das coisas, como substrato das crenças religio-
I ,\\Y século XVIII, a função de conceitos limitantes
sas da humanidade (a religião natural "nos li-
! l( í acerca do homem e do mundo. Figuras com-
1 mitesda simples razão") admitida pelo deísmo,
:.1 ~~.' plementares dentro dessa cadeia., o classicismo e a normatividade do bom gosto - esse cor-
:~~~e a religião natural - o '!!~o - do perío-
relativo estético do bom senso; substrato comum
.~ do 15, fizeram parte de uma constelação de
i 1(} princípios. O primeiro deles é a uniiotmidade da fantasia artística (a arte nos limites da bela
natureza), adotado pelo classicismo. . ,
i da razão, que ligou entre si, numa só matriz
,1 filosófica, essa mesma idéia de Razão - o bom - O deismo e o classicismo ratificam pois, em
ii senso .cartesiano, igualmente compartilhado por dois diferentes planos, a regência, de leis unífor-
todos os homens - e a idéia de Natureza - o mes e necessárias, que tiveram o. seu modelo na
conjunto daquelas disposíções que, acessíveis ao lei geral da gravitação, a grande mola da atra-
livre exame analítico, seriam sempre iguais em ção 'que tudo "move, segundo Voltaire 17. Da
toda, parte, escapando à força .do hábito, ao mesmo forma que as leis físicas,as leis civis, as
prestígio da autoridade, às tradições e aos capri- leis' políticas e as normas do bom gosto, parti-
chos das círcunstânéías 'históricas, bem como à cularizam, de acordo com a perspectiva de um
influência, considerada perturbadora, das pai- causalismo mecanicista, nos domínios contíguos
xões e dos hábitos.' Foi a tal matriz que se vin- das coisas naturais, da sociedade e da cultura,
culou o individualismo racionalista da Ilustra- "as relações necessárias que derivam da na-
ção, que reconheceu o homem como sujeito uni- tureza das coisas" 18 - natureza imutável e eter-
versal de direitos naturais em nome da huma- na a que. se referiu d'Alembert: na Enciclopé-
nidade, e como sujeito universal de conheci- i
mento em nome do progresso da inteligência da 16. Acompanhamos os princípios admitidos por Lovejoy no
ensaio supra citado. .
17. VOLTAIRE. Sobre o sistema da atração. Cartas Filosó-
11 15. LOVEJOY. "The parallel of deism and classicism" Essays ficas (XV).
I in the history of I deas, pp, 78.98.. . 18. MONTESQUIEU. L'esprit des lois,
li
lii
1'1 56
1;1
Il.!
dia 19, sujeita às mesmas regras, independente- . Linha mestra do .idealismo ~~e Fichte, o qual

I
f
; ,mente das entidades metafísicas, e a que se
,~.. ajustam, pela trama contínua da' linguagem, li-
gando os conceitos às coisas, .as palavras aos
objetos, o sistema. de representações do espírito
~: humano e o. sistema do universo.
interpretou num sentido metafísico a. função ca-
tegorial que .Kant' emprestou ao Cogito carte-
_s~~no.21 .- à consciência ~e si; enquanto cons-'
ciencia pura que se .conjugando em todas as
categorias, torna-se a -instância formal, não-em-
~. Haveria, portanto, entre o interior e o exte- pírica de nossa .experiência - o Eu é a ação
l rior, entre ohomem e o mundo, um préviot'cír- originária (Tathandlung), que precede o sistema
~ . cuito de comunicação" 20 da natureza das coisas das representações do espírito, e de que o mun-
e da natureza humana: circuito que caracterizou a do, com a" sua aparência de realidade indepen-
direção ~pistemológica do pensamento da, época dente, constituio pólo opositivo (não-Eu). Co-
meço incóndicionado,. a autoconsciência, trama
J
clássica, fundada num achatamento do sujeito,
encaixado como sujeito universal do conheci- formada na intuição intelectual de mim mesmo que
mento, a uma Natureza cuja ordem e cuja re- possibilita o princípio gerador do saber - intuição
~'.. gularidade se' prolongaram na ordem e na regu- indistinta do ato que, instaurando o meu ser, ins-
~ laridade dos' discursos científico, religioso, es- taura; ao pensá-lo, o próprio mundo 22 - tam-
~ tético, jurídico e político do século XVIII. bém serve de fundamento à realidade. Mas desse
modo, a ordem objetiva e necessária do sistema
~ Nivelando-o à Natureza física exterior, a
do universo, que' corresponde ao sistema das
~." que já se encontra ligado por um acordo táeito,
representações, ordem consubstanciada no prin-
~ esse achatamento do sujeito, que abstrai a singu-
cípio \ de, legalidade universal, já assente, para
laridade do indivíduo, refletiu-se na disciplina
canônica do gosto clássico e na disciplina intelec- Kant.: na estrutura categorial do entendimento, é
produzida pelo espírito; ela não mais Circunda e
t tual da doutrina deísta, ambas refratárias à domi-
bloqueia o sujeito humano na continuidade natu-
nância da experiência singular 'hi'dividüal subje-
ral com as coisas, em que a universalidade do
tiva, transgressora da uniformidade da razão, e
conhecimento humano se estribava para, a ilus-
ambas portanto avessas, em seus respectivos do- tração. ' .~
mínios - o artístico e o religioso - à afirma-
ção da originalidade pessoal e ao entusiasmo, es- O circuito de comunicação entre o interior
tados espiritualmente afins. e o exterior depende agora do sujeito, que trans-
As matrizes filosóficas da visão romântica, cende, assim avultado, a Natureza física, eis que
que legitimam, dentro de uma nova constelação somente exprimindo, nas palavras de Fichte,
de princípios, a originalidade e o entusiasmo, "em toda parte relações de mim mesmo para
são o caráter transcendente do sujeito humano mim mesmo" 23, essa mesma Natureza, vista por
e o caráter. espiritual da realidade, que quebram Schelling como um todo vivo, como indívídua-
a uniformidade da razão e a conseqüente forma de
individualismo raciona lista, ao mesmo tempo 2\. "O Eu (>" ••• '0 deve poder acompanhar todas as ml-
nhas representações." (§16 - Da unidade orlginarlamente sintéti-
que a concepção mecanicista da Natureza. A ca da :tpt"rcc.'pcáo.) "Tenho poi~ consciência de um
eu idêntico
[drs idcntische« sclbst } rclativanu-nte 411.1 diverso das representa-
primeira matriz moldou-se pelo princípio da çi)('~ que- me são dadas numa intuição, porque eu chamo de mi .•.
transcendência do Eu na filosofia de Fic.ht~ e a nhn s todas as rcprcscntncõcs que não formam senão uma só"

segunda pela idéia de Natureza como liiãfvidua-


1'.:.\:"'1'. l'ri/il'lI da Na::;,;o l+uru, 2 erl. * 1() I)" unidade oriJ.{in;-
rin.!1wlI.tC' Si!ltética da aperccpçâo, Dedução dos conceitos puros do
ent('nl!fmC,t~t;·I. Segundn Seccâo, Cal', ,lI (Analítica uos, Conceitos},
lidade orgânica na filosofia de ~~heqit1>g. 2....Ó, Lu sou somente pa ra 1111111; mas para Im1U eu sou
n('cc~~ano. (na medida em que di~() pa rn mim. jt\ ponho o meu
:-;(.'1"). "H:lI'n: ('/"1I1Id/rlfl(, der .I/I'."Wl1/tl'/1 I-f'issl'/Isdlllftslcllr,t..'.
19. O'l\LF.M nF..R1', F.llriclofihli/', A rt • "Encvclopédie". (1794), Fdi" Mcincr, 1<)11.
20. FO{·C:\t'J.T, :'\lichl'1. l.I'S .1101.\' 1'1 11·s (Ólms cs, t iallimard , 23, l'I(,;11TI':, HI'.~ti1llmtttl!' d es ."rl/sc!II'1I (/,\'00). Fe li x Mei-
p. .121. ncr , 1'. 94,

A VISÃO ROMÂNTICA 57
lidade orgânica, devolutiya da ação originária da verdadeira vida, o recesso .do ideal, de onde
do Eu, é justamente aquilo-que parece ser, e que o sentimento religioso brota, onde a perfeição
a intuição intelectual apreende: a cobertura visí- moral se abriga e a arte começa.1 A dimensão
vel, objetiva e inconsciente, de um entendimento .ética e religiosa, a par do alcance cognoscitivo
invisível, análogo à imaginação poética, e que conquistado pela atividade artística ou poética,.
produziria as coisas, de acordo com a decisiva que sintetiza a operação mais completa do es-
metáfora schellinguiana, por um processo ape- pírito, estaria subordinada a esse primado.
nas' mais rudimentar-dO' que aquele mediante o !f- Chegando-se a este ponto, é preciso não es-
qual o artista produz as obras de arte 24. Paralela- quecer que as duas matrizes codeterminantes
mente, a intuição intelectual, identificada à cons- da visão romântica se relacionam entre si. A
ciência de si, tem como fundo a singularidade do vida interior, espiritual, livre e profunda, a que
indivíduo, e desfaz a uniformidade da razão levam a capacidade expansiva e o poder irra-
teórica, trasladando-a, em decorrência da ili- diante do Eu, concretiza-se em tudo aquilo que
mitação e da infinitude da atividade do Eu, à exi- o indivíduo tem de singular e característico, e
s.êl!cia de aperfeiçoamento ético progressiyo im- por tudo quanto nele, dos sentimentos aos pen-
plícita à razão prática déKanl>Foi essa exigên- samentos, é capaz de, sob a tônica do entusias-
cia que Fichte explicitou na oposição polar entre mo, manifestar espontaneamente, aflorando ao
o Eu e o Não-Eu, que o marginal da Ilustra- exterior, pela riqueza superabudante de con-
ção, Jean-Jacques Rousseau unira, em se.u_Emi:-. teúdosque possuem força própria, a súmula dos
. !io,·~ idéia de Natureza 25. elementos pessoais e intransferíveis que cons-
Precursor da hegemonia da subjetividade no tituem o índice de sua originalidade. Semelhante
Romantismo - da dominância da experiência in- espontaneísmo, que passará ao plano da arte, e
dividual subjetiva-, esse avultamento do su- que a estética do Romantismo refletiu na sua ter-
jeito, em que a direção epistemológica do pen- minologia, principalmente no metaforismo do
samento da época clássica se inverte, P~~itJ.9 conceito de "expressão" significando, como "tra-
o individualismo racionalista da Ilustração, subs- dução" da personalidade, uma' floração das vi-
tltúiridõ~o por um individualismo egocêntrico, que vências reais, refletiu-se também no plano da in-
vinculou o lastro idealista e metafísico da visão dividualidade orgânica da natureza, com a qual
romântica à capacidade expansiva eàforça irra- a individualidade singular do homem se entrosa-
diante do Eu. Ponto cêntrico da realidade e pas- ria.
sagem para o universo ("das Ich aIs zugang o Eu transcende a Natureza física - o ex-
zum dem Universum", disse-o Novalis), o Eu, terior mecânico disperso dos fenômenos - mas
assim configurado, assegurou um primado 9!J!(): para encontrar-se, dada a essência absoluta que
lógico à interioridade, à vida interior, que foi o Romantismo germânico da primeira fase lhe
sinônimo de profuiídeZa, espiritualidade, elevação atribuiu, ao nível orgânico das coisas, com o
e liberdade, no vocabulário do Romantismo, entendimento interno da Natureza viva e ani-
quando não significou também o "solo sagrado" 26 mada. "O que está fora de mim está justamen-
te em mim, é meu - e inversamente" 'no O uni-
24. SCHELLING. "Svst êrne- de l'Idealisme transcendental" Verso a-que se chega através do Eu, ainda é, con-
(1800). Essais de Schelling. forme a doutrina de Novalis, em Os Discípulos
25. " .. , I'Idée de bonheur ou .. de perfection que Ia raison
nous donne" está ligada às disposições primitivas (natureza), que de Sais, o próprio Eu7'~(t"iíe se espelha nesse
se alteram pela força do hábito e se desenvolvem pela educação. entendimento interno da Natureza ("einen innem
26. "Solo sagrado da liberdade", a vida interior, eterna,
não afetada pelo tempo, encerra em sua profundeza, a ativída-
de criadora do espírito, de que o mundo e o homem são as obras, 27. NOVALIS. Enc yclopé dic . F'rag , 1753, Les úditions de Mi-
cf , SCHELEIERMACHER} Monólogos. nuit.

58
Vcrstand der Natur"), que o homem pode alcan- da perfeição humana é nacional, secular, e estrita-
çar sob o efeito da poesia. mente considerada:, individual" 29,
Produzindo-se nas mais variadas formas, que Ao cosmopolítísmo abstrato do século XVIII,
diferem entre si pela maior ou menor espirítua- supressor das diferenças nacionais; o..Romantis-
lidade, formas que compõémos múltiplos de- mo opôs um "nacionalismo concreto, que foi pre-
graus de um entendimento invisível - ora máis parado pela concepção herderiana da "unidade
distante, . ora mais próximo do consciente e do orgânica de 'cada personalidade com a; forma de
subjetivo ~,' e que já são indivíduos integrando vida que lhecorresponde" 30: unidade expressi-
um grande organismo em 'crescimento evolutivo, va quando florescente, dando-se a' manifestar. em
a Natureza revela o mesmo espontaneísmo flores- tudo o que o homem faz. Mas é sobretudo nas
cente, a mesma expressividade das obras nas 'obras de arte quea ação comunicativa dos indi-
quais o homem verte os conteúdos originais e víduos se incorpora, ganhando o relevo simbó-
característicos de sua experiência subjetiva. Uma 'lico de uma nova .escala da linguagem e daex-
vez que o seu aspecto material significa o espíri- periência humana. Nessas condições, o espiritual
tual que ..as anima, as formas naturais, por um comporta diferenciações locais externas e mu-
lado produtivas e portanto criadoras, por outro tações temporais internas, que diversificam e
expressivas e portanto simbólicas, oscilam entre pluralizam a cultura em' cada época e em cada
o estado de coisa e o estado de linguagem, achan- momento dentro de uma época. O consensus gen-
do-se comprometidas pela dualidade da expres- Êl.f!1l. do racionalismo será, portanto, apenas o
são e da criação - conceitos românticos man- cànsenso de uma época, aplicado como medida
tidos com valência quase igual para a literatu- niveladora de todos os valores distintivos das per-
ra. O universo inteiro fala 28 e os corpos são QS sonalidades históricas. Para apreender essas per-
signos de sua linguagem. . sonalidades, para conhecer os valores distintivos
; O entrosamento da individualidade orgânica que as singularizam, é necessário repetir pela
da Natureza com a individualidade singular do empatia (a simpatia da imaginação), que nos
homem far-se-á através de formas de vida mais leva a sentir exteriorizando-nos nas coisas, a
complexas: as civilizações eos povos, que Her- ação comunicativa dos indivíduos. '
der ensinou, ainda no período do Sturm und Defendendo, ,quanto mais próximo da' con-
Drang, a valorizar em seus elementos caracte- cepção de Herder, a equivalência no tempo desses
rísticos e originais, provenientes das condições valores dfsi'íntivos, o nacionalismo romântico
de 'existência sempre particulares no espaço e (que também derivou para um nacionalismo po-
sempre variáveis no tempo .. Elementos físicos, lítico de fundo místico como o de Joseph Gõr-
vitais e espirituais, conforme o clima, o tempo e res, da segunda geração - a de Heidelberg -
o momento, articulam-se na síntese coletiva e a:õ·' Romantismo germânico), esteve circunscrito
histórica que define. uma nação. Unindo o ge- pela imagem do crescimento orgânico e da flo-
ral e o particular, a personalidade cultural e na- ração espontânea: o que existe é "um produto
cional de cada povo (Nationalcharakter, Geist do clima, das circunstâncias temporais e, 'por-
des Volkes, Geist der Nation} se distingue por tanto, com virtudes próprias nacionais e seculares,
valores próprios e intransferíveis; é uma for- flores' que crescem sob determinado céu onde
ma de vida completa, auto-suficiente; da qual a prosperam à custa de quase nada, mas que mor-
singularidade do indivíduo humano se toma inse- rem e murcham miseravelmente em outro lu-
parável. "Num certo sentido", diz Herder, "to-
29. HERUER. Filosofío de Ia historio para.la l'ducación· de Ia
'28. I "O homem não e o único a falar --:- o universo também h umani dad, (Tr ad. EIsa Tahernig),· Edit , Nova, p. -55.
fala - tudo fala __ línguas
o infinitas", NOVALlS .• Op. cit .. Frag , 30. BERLIN. Isaiah. H erdcr, Eco. .Jluchholz, Bogotá, dez.
479, 1965, '

A VISÃO ROMÃNTICA 59
gar ... " 31. Essa imagem carreou para a visao do belo como objeto dos juízes de gosto - dos
romântica o sentido dramático do tempo histó- juízos de caráter contemplativo e desinteressa-
rico - tempo espesso,caudaloso, oceânico, que do, que permitem qualificar de estética a expe-
somente abrange as transformações. ,incessantes riência relativa às coisas naturais 'e às obras de
dos sujeitos humanos de porte coletivo -os arte - foi Kant quem preparou a excepcional
povos e as nações -' sobre que se espraia, sem autonomia dã" noção de gênio. Graças" à satisfa-
que se possa divisar um desenho único ou uma ção desinteressada que provocam, as coisas na-
direção determinada no fluxo transindividual - turais que são belas, parecem livres produtos da
a história - a que dão origem e de, que parti- Natureza; as obras artísticas são tanto mais
cipam. Em vez da razão, é um grande e cego belas quanto mais aparentam essa livre finalida-
destino que conduz a evolução dos povos G2. de atribuível à Natureza, quanto mais assumem
Na concepção historicista da realidade como o aspecto de uma formação espontânea, que
"processo histórico (Geschichte], que se perfaz se sobrepõe aos artifícios da arte 34. As artes do
por meio de mudanças, de manifestações indi- belo participam, como qualquer técnica ou es-
viduais múltiplas, igualmente valiosas 33, perdu- pécie de artifício, de uma recta ratio jormandi.
rou a sombra desse destino grande e cego, em Todavia, o aspecto espontâneísta que as apro-
lugar do progressivo aperfeiçoamento da inteli- xima do plano da natureza, mostra-nos que,
gência da espécie que o Iluminismo postulou. modelos singulares, as obras artísticas não se
A medida do individualismo egocêntrico e.st:. produzem mediante a aplicação de regras gerais
ganicista da visão romântica pode ser aquilatada (do mesmo modo que o belo agrada sem concei-
p'êla'idéia de gênio, que ocupou' o centro da to). Daí a, proposição kantiana de que as artes
constelação das idéias na época do Romantismo. do belo ou as belas-artes são as artes do gênio,
e que o gênio é o talento dando regras à arte 35
A estética clássica não desterrou completa-
- talento capaz de infundir a um artifício a
mente a imaginação; valorizou, na arte, a re-
aparência espontânea da Natureza. Não somen-
presentação de idéias Ou de correlações que,
te a genialidade exerce uma função reguladora;
acessíveis ao gênio, enquanto capacidade de en-
como talento, ela é um dom natural, e, como
genho artístico, escapariam à pura aplicação dos
dom natural, é uma capacidade específica que
conceitos e ao raciocínio analítico. Mas essas
pertence à Natureza. '
idéias ou correlações traduziriam apenas um de-
rivativo do, conhecimento racional; ainda que Ultrapassando, por conseguinte, na estética
considerado um dom inato, o gênio não excede de Kant, a significação de um .simples engenho,
o alcance da fantasia subordinado à razão, nem a noção de gênio começou a mudar de sentido,
autoriza o desvio das normas que fazem da desde a segunda metade do século XVIII, quan-
beleza, dentro do círculo da legalidade univer- do nela se introduziu um elemento de transgres-
sal, o eventual acompanhamento da verdade são permanente, indo da infringência dos pa-
soberana. drões clássicos entre os pré-românticos ingleses
Reinterpretando amimese aristotélica, ou à infringência dos padrões sociais de compor-
seja o nexo entre arte e' natúreza, na perspectiva tamento entre os Stürmer. Mas além da rebel-
dia estética e' do sentimento de revolta contra
31. HEROER, Op, cito p. 113. a sociedade que' tal dupla infringência compor-
32. "Antes de tudo, tenho que -afírmar, com respeito ao elo-
gio excessivo da razão humana, que é muito menos essa razão, se
34. Cf. § 45 (Schõrie Kunst ist eine Kunst, sofern sie Zugleich
posso assim dizê-Io, do que um cego destino, aquilo que conduziu
as coisas e que agiu nesta. evolução geral do mundo", HERDER!
Natur zu sein scheint ) , KANT, Kritik der Urteilskrait, Reclam.
op. cit., p. 83. 35. u... Genie .ist die angeborne Ge'müstsanlage (ingenium)
, 33, MEVERHOFF, Hans. The Philosophy oi History in 01/1' durch welche die Natur der Kunst die Regel gibt." §46, Kritik
time, lntrorlucion. Doubleday, p. 10. dc. Urteilskraft, ed. cito

60
tava, a reavaliação l.antiana ainda apontou para lismo de Schelling, de sua filosofia da Natureza,
uma outra espécie de desvio, transgressíva da continuada pelã,'ôoutrina enciclopédica de No-
ordem racional, e que, pondo em xeque a autori- valis (indiferentemente· denominada de idealis-
dade da razão teórica sobre a fantasia, autori- mo ou de realismo mágico), uma posição teórica
zava a fazer-se do gênio, sem medida comum e prática superior, de· porte ético, estético e
com o talento para a investigação científica, um metafísico, supra-sumo da originalidade do in-
tipo de organização mental e espiritual à parte. divíduo singular e 'do estado de entusiasmo.
Como ele produz sem imitar, aprendendo a fa- . Na imaginação poética a que Schelling trans-
zer tão-somente o que as determinações interio- ferira a intuição intelectual de Fichte, é que se
res lhe ensinam, o gênio artístico conhece ape- completaria a atividade produtiva do espírito, já
nas quando produz, e assim conhece, apenas . operante, nas formas da Natureza. Assim, é na
pela intuição, o que o conhecimento racional obra de arte que oEu alcança a intuição de si
jamais alcança. Para o pré-romântico inglês, mesmo como Absoluto (a intuição artística se-
Edward Young, o poeta genial estará, pela ma- ria a verdadeira espécie de intuição intelectual,
neira de proceder, que o afásta do espírito ju- porque cria o seu próprio objeto), e que a in-
dicioso, mais próximo de um mágico que de dividualidade orgânica da. Natureza, regressiva-
um arquiteto 36. Shaftesbury, que influiu na es- mente esclarecida, se revela como operação ar-
tética de Kant, via no talento artístico a capaci- tística, produto. do entendimento,do naus poie-
dade de criação, equivalente à intuição das for- tikos que a penetra e anima. Órgão do conheci-
ças que mantêm a unidade do universo 37.> mento .realizado, a arte solveria as contradições
Talento originário para a arte, faculdade e entre o subjetivo e o objetivo, o consciente e o
dom inato, intuição e predestinação, o gênio inconsciente, o real e o ideal, a liberdade e a
tomou-se no Romantismo, o mediador entre o necessidade 39, que o artista genial supera e
Eu e a Natureza exterior. A faculdade de repre- reabre a cada passo. Representando o finito no
sentar artisticamente, isto é, de apresentar idéias infinito, a arte, que tem a força de uma revela-
estéticas, que Kant lhe atribuíra 38; converte-se, ção eterna, também realiza a unidade entre a
para a visão romântica, no poder intuitivo cog- beleza e a verdade, e descerra a unidade congê-
nascente (a Magie der Einbildungskrait de Jean- nita da filosofia com a poesia, reconhecida por
-Paul), ao mesmo tempo criador e express!- Schelling -c· proclamada por Friedrich Schlegel ",
vo, da imaginação poética, acima do conhec~- Enquanto o gênio passa a ser a capacidade
mento empírico - poder correlativo à capact- .sintética que universaliza e transubstancia 41, a
dade expansiva e à força irra diante do Eu, à
originalidade e ao entusiasmo, e no qual se re- 3'). A intuição artística, que preside as operações da filoso-
fletiriam a profundeza, a elevação, a espirituali- fia é ao mesmo tempo, intuição da liberdade e da Natureza. O
impulso artístico soluciona a 'contradição interna de que nasce.
dade e a liberdade da vida interior. porque o gênio está para a estética assim como o Eu está par~
a filosofia: O caráter absoluto e a superioridade da arte acham- se
O Romantismo alemão, particularmente, con- fundados no gênio, que é estranho e incompatí vel com a ciência.
feriu ao gênio.. que foi uma das bases do idea- Ver SCHELLING, Oro cít ., li». 162-170 .
. 40. A unidade ou a equivalência da verdade com a beleza,
antes proclamada por Shaftesbury. adquire então um sentido de
36. o arquiteto "constrói lentamento o 'seu edifício;" o outro reprovação à ciência e ao conhecimento racional. Trata-se da
soergue-o num instante por meios invisíveis". V AN TIEHGEN, ~aul. verdade intuitiva. à altura da beleza dos versos de Keats: ~
Le Mouuement Romansique (Angleferre - Allemaowe - Itotie - "Beauty is truth, truth beauty, - that is all/ Ye know on earth,
Franc e) , Tcxt cs ch oisis, com.mcntés et al1J1otc?s. Libraire Vuibert, anel ali ye neecl to know". .
F. Schlegel: "Toda arte deve tornar-se ciência; 'poesia e filo-
p. 1;7. \'ide ERNST CASSIRER. Filosofia de Ia Il nstrocion, Fendo sofia devem unir-se". "O espírito de toda CIência é poesia."
de Cultura, pp. 343-350. . Essa compenetração recaia já no esforço comum dos .românticos
38. ••. .. representação da imaginação (~orst~lltfng der Ein- de Iena - a symph ilosophie. Ver: RUCM, Racarda, Les Roman-
bUdungskraft) que dá muito a pensar, sem. que no entanto algum tiques Allemands. Ed. Granet; F.ARlvELLI, EI Romanticismo .n
pensamento determinado, isto é, alg-um conc aito, lhe seja adequa- Allemonia, Ed. Argos,
do .c." KAN·T, Kritik der Urteilkraft, 149. 41. NOVALlS. EI/c)'clopédic, P. 322.

A VISÃO ROMÂNTICA 61
arte se volve no modelo da atividade espiritual, como o viu Lamartine, um lugar fi~me e elevado
compartindo, em sua essência, do caráter supe- em relação à humanidade: .,
rior, profundo e íntimo da realidade eterna ,e
absoluta, de que é a única via de acesso. Assis sur le base irnmuable/ de l'éternelle verité /
Tu vois d'un oeil inalterablel Les phases de l'huma-
Mas em todo Romantismo europeu, a excep- nité. t Meditations, XXII. "Lc iGenie".)
cional autonomia do gênio, resumindo a figura
da verdadeira humanidade - do homem tal Nessa tarefa ele não somente se define como
como é e tal como deverá ser - do homem ca- porta-voz e guia espiritual de seu povo (Shelley),
paz de ligar o ideal e o real - correu parala- sábio, humanista, guia para todos os homens
mente à excepcional relevância religiosa e ética, (Keats), mestre verdadeiro (Wordsworth), mas
senão metafísica, da poesia (quer no amplo sen- também como um mago, um mágico, um pro-
tido abrangente da literatura e da arte, quer no feta visionário.
sentido estrito da lírica), como um novo reino Inseparáveis do tom confessional e, sob o
dos fins espirituais. pressuposto da inspiração, da tendência ao es-
Guardando as significações de espontaneida- pontaneísmo, que sobredeterminaram a lírica na
de criadora, de poder intuitivo, de manifestação fase romântica, tais funções pedagógica, tera-
original de força da Natureza, que confluem pa- pêutica, mágica, divinatória, encantatória, que
ra o entusiasmo, como exaltação platônica do in- o poeta, misto de cantor e de vate, assume, na
divíduo possuído ou inspirado, a idéia de gênio se medida em que exprime a originalidade de sua
pluralizou à época do Romantismo. O caráter de vida interior, acompanham o fenômeno de uni-
um povo é considerado a floração do seu gênio versalização e de autonomização da poesia que
naciorial; o legislador que prevê, o filósofo que o Romantismo desencadeou. : '.
intui;: o homem de Estado que modifica o des- Ora linguagem original e primitiva, ora lín-
tino coletivo, o homem de ação que arrosta a guagem intercomunicante dos domínios religio-
fortuna com a presciência do futuro, e o homem so, ético e filosófico, a poesia, superior à
religioso de dons proféticos, são outras tantas ciência, análoga à filosofia, capaz de exercer
encarnações do gênio individual. Mas o poeta uma ação moral e de purificar a religião, sus-
é o gênio por' excelência; mediador entre o Eu tentada por um processo apologético de digni-
e a Natureza exterior, o gênio nacional floresce ficação, alça-se a um plano de universalidade
através e por força desuas obras, li cuja lingua- cultural e histórica, penetrando horizontalmen-
gem se vai conferir um alcance original forma- te em todos os domínios da cultura, e enlaçan-
tivo, à altura do trabalho do legislador e próxi- do-se verticalmente, desde os primórdios, ao
mo do visionarismo místico e profético, quando desenvolvimento sócio-histórico.
não de uma importância' transcendente à espe- Na sua primeira conceituação, devida a
culação do filósofo, à atividade política e à Schlegel,
ciência, que ela possibilita, elucida e perpe-
a poesia romântica é a poesia universal progressiva.
tua 42. É que, altivo, incompreendido e distan- Seu destino não é simplesmente unir de novo todos
te, o poeta romântico impõe-se" intimado pela os setores separados da poesia e apresentar o entro-
inspiração que o visita, a tarefa universal de samento .da poesia com a filosofia e, com a retórica.
legislador do reino dos fins espirituais intangí- Ela quer e deve misturar, fundir completamente a
veis, onde, imune à lei da causalidadee às mu- poesia e a prosa, a genialidade e a crítica, a poesia
da arte e a poesia da natureza, tornaf a poesia viva
táveis circunstâncias do mundo exterior, ocupa, e sociável, e poéticas a vida e a sociedade, poetizar o
espírito e preencher as formas de arte com atraente
42. Um dos principais temas de A delcllce 01 PQetry, de matéria e animar cada espécie com .a's oscilações do
Shelley, humor (Frag, 116.) .

62
Umas, Ciprestes e Vasos Cinerários, Roma, Villa Corsini,
por Giovanni Battista Piranesi.

"<, ,,-
Âmbito da comunidade dos gênios com Dan- vê-Ia, tornando-a dependente ou poética. (Blake
te, Shakespeare, Cervantes, Calderón, Lope da leria o Velho e o Novo Testamento como códigos
Vega e Goethe por centro, no eixo sincrônico artísticos. )
de sua penetração horizontal, a poesia emol- A poetização da religião é, no entanto, parte
dura, no eixo diacrônico de seu desenvolvimento de üm processo geral de poetização da vida,
vertical, o quadro sintético da evolução da hu- que o movimento romântico impulsionou. Metá-
manidade, seguindo as etapas exemplarmente fora integrante da visão romântica, o floresci-
configuradas por Victor Hugo no "Prefácio" * de mento do Espírito e da Natureza - do Eu trans-
Cromwell sê, Essa universalização cultural e his- cendente e da Natureza orgânica - produz-se
tórica penetrante, que se deve à perfectibilidade na arte, sobre os ramos da metafórica árvore da
progresssiva da poesia, e logo ao seu senso do vida, a imagem de uma plenitude originária
infinito, estabeleceu entre a poesia e as aspira- perdida e de uma perfeição futura a conquistar -
ções religiosas um nexo congenial atado pela árvore que nasce interiormente, e cujas raízes
consciência concentrada em si mesma, aspiran- espirituais se fixam no subsolo da imaginação:
te da infinitude, e que teve como fulcro, de acor-
Art is the Tree of Life ...
do com o consenso unânime dos românticos, o Science is the Tree of Death (W .Ó: Blake )
espírito de cristianismo.
Projetando a poesia como realidade históri-
ca, e assim interrompendo a disciplina canônica m. A vivência da Natureza e a realidade
do gosto clássico, uma tal universalização é o evanescente
aspecto extensivo da concornitante autonomi-
zação do imaginário, que se destaca da vida es- Nos limites do individualismo egocêntrico
piritual enquanto princípio de desenvolvimento e organicista da visão romântica, a vivência da
independente, ao mesmo tempo que a arte se Natureza física e exterior, incorporou não ape-
destaca do universo cultural, mantendo com a nas o poder intuitivo da imaginação, mas tam-
moralidade, especialmente com o cristianismo, bém a disposição religiosa da "interioridade. abso-
religião revelada do Ocidente, uma relação de luta" [Innigheit) pela qual Hegel caractenzou. o
dependência mútua e reversiva, mortal para o estado de espírito correspondente ao Romantis-
deísmo. mo 44.
Por esse mesmo princípio de autônomo de- É uma vivência que se enquadra num con-
senvolvimento da Vida espiritual - o princípio fronto dramático do indivíduo com o mundo,
poético, ao qual se referiu Shelley - é que a possibilitada pelo avultamento do sujeito huma-
poesia, magic power (Coleridge), "o fundo d'al- no, eixo da nova direção epistemológica a que
ma revelado - a individualidade ativa" (Nova- nos referimos, fora do relacionamento aderente
lis), ou "l'incarnatíon de ce que l'homme a de e passivo do prévio "circuito de comunicação"
plus intime dans le coeur et de plus divin dans com as coisas naturais da época clássica. Seguin-
Ia pensée" (Lamartine ) , se ligará tão profun- do esse confronto, dialogicamente conduzido, a
damente à religião, que tanto dependerá dela, vivência da Natureza, espetáculoenvolvente,
tornando-se religiosa, quanto tenderá a absor- objeto de contemplação ou lugar de refú~o pa-
ra o indivíduo solitário, provocando tonalidades
• Vide ed. bras. \'JCTOR Hvco, Do Grotesco r do S ••/JI.mc. afetivas díspares, que vão do recolhimento re-
T'rarl. Cél ia Herrettiui. Ed, Perspectiva 1977. Elos 5.
43. Etapas que correspondem a três idades: a dos tempos ligioso à volúpia da auto-afirmação, da melancó-
primitivos, da juventude lírica (o livro da Gênese como ode) i a
da vida civil e da cidade antiga (epopéia e tragédia); a do espir-i-
rua lisrno cristão. "Le Christianisme am êne Ia poésia à Ia véríré."

64
lica sensação' de desamparo ao entusiasmo, não é do homem, representou um ideal de simplicidade
uniforme. Dó mesmo modo que se efetivou em dos sentimentos associadó à vida rural.
~;, termos de busca, de procura,. para além da recep- Platônico em seu Intimations of lmmortality,
~.'..tividade passiva aos encantos das cenas e paisa- irom recollections of 'early childhood, à expensas
~,', gens naturais, ela oscilou, pendularmente, entre da tradição a que se vinculou ~haftesb,!!..TY..z
~. um sentimento de proximidade, de união dese- Wordsworth está próximo da expressão natu-
~ jável e prometida, de compenetração a realizar- níiisfã ~do panteísmo (Deus sive Natura),' quan-
~ -se, e um sentimento de distância, de afastamen- do, em Tintern A bbey, vê em tudo
to irrecuperável ou de separação fatalmente con-
A motion and a spirit, thàt irnpels / ali things, ali
..
sumada. ', ('. objects of ali thought,l And rolls throught ali things/.
Para o poeta romântico; as formas naturais Movimento universal penetrante, esse impulso ga-
com' que ele dialoga, e que falam à sua alma, nhou.vna vivência da Ode to lhe West Wind de
falam-lhe de alguma outra coisa; falam-lhe do Shc;:,lJ~ a dimensão de Urna força cósmica, ener-
elemento espiritual que se traduz nas, coisas, ao' giãTivremente desencadeada, que preserva tanto
mesmo tempo signos visíveis e obras sensíveis, quanto destrói (Wild Spirit,. which art-moving
atestando, de maneira eloqüente, a existência everywherec/ Destroyer end Preserver, hear; oh
onipresente do invisível e do supra-sensível. A hear/].
Natureza transforma-se numa teofani~. Os bos- Se consideramos, além do idealismo subjeti-
ques, as' florestas, o vento, os rios, o amanhecer vo de Fichte e do idealismo objetivo de Schelling
e o anoitecer, os ruídos, os murmúrios, as som- - os quais, de certo modo, panteisaram o cris-
bras, as luzes - de tudo o que não é humano tianismo - os precedentes medievais e renas-
e se constitui em espetáculo para o homem, Cha- centistas dessas filosofias (Eckardt, Cusa, Bruno.i
teaubriand extrai, em Le Génie du Christianisme, . . \
J. Boehme) retomados por Novalis, em cujos
o testemunho da imensidade de Deus 45, penhor hinos (Hymnen an die Nacht) a indiferencíação
das harmonias terrestres, que atestavam,' para noturna é celebrada como unidade primordial,
Lamartine, a existência de um ser supremo, juntamente com a mediação redentora de Cristo,
cuja glória compete ao poeta Jouvar: veremos que Reine foi tão sarcástico quanto
Mon âme n'est point lasse encere/ D'adrnirer I'oeuvre du verdadeiro ao 'ã'firínar que o panteísmo era a
Seigneur 46. religião oculta da Alemanha 47.
Foi numa combinação daqueles "sentimen-
Mas o próprio senso do infinito, o afã de
tos religiosos cristãos" a, que de certa fei~a Goethe
integridade e de totalidade, que alentou a dis- se referiu, como o espírito do romantismo ger-
posição religiosa dos românticos, levou-os, por mânico 48 com certos veios mágicos, esotéricos
vezes, a uma intuição da imanência,intuição do e místicos, que se esquematizou o realismo (ou
ser espiritual dinâmico, difuso, agindo nas coi-
idealismo) mágico de Novalis, segundo o qual a
sas e a elas incorporado, intuição panteísta que Natureza é o "plano enciclopédico, sistemático
se pode colher, entre os ingleses, antes de Shelley, do nosso espírito", istoê","o entendimento in-
no "lakista". Wordsworth, para quem a Nature- terno", oc~lto na aparênciâ'<mecâníca das, fo!-
za, na qual buscou a confirmação da origem mas naturais, e que se revelaria "como o propno
divina. da inocência primeira e da imo,~~alidade
47. REINE. A Alemanha. Garnier, p. 85.' .
45,. Enquanto os antigos "ne voyaient partout qu'une maehine 48. "Entre nós; alemães, o romantismo foi Introduzido por uma
d'operer" t para o poeta cristão "Ies bois se sont remplis d'une formação de sentimentos religiosos cristãos, •.. " Goethe, 1820.
divinité immensé", Le Génie du Christianisme, Livre Quatrieme. Citado .por ERNST ROBERT CURTIUS, emLitet'atu~a Européi,a e
45. "M~n Dieul dans ces deserts mon oeuil retrouve et suitl Idade Média Latina, Rio. de. Janeiro, Instituto Nacional do ,LIVro,
les miracles de ta présence". "L'Hymne de Ia Nuit" (Harmonies), p. 275.

A VISÃO ROMÂNTICA 65
Eu, ao peregrino de ~rk~is, sob mitado à busca do limite e da forma - ao abis-
o véu encobri dor dos segredos e mistérios do mo sem fundo ressaltado por Victor Hugo -
universo, quando ele o descerrasse. Essa onipre- onde "le sans fin roule dans le sans Iond" ("Mag-
sença invisível do Eu, que o realismo mágico nitudo Parvi") - e ao qual o romantismo tar-
procurou tornar perceptível 49, e que seria, afinal, dio emprestou um cunho de estranheza e de
a presença do humano no não-humano, introdu- cega necessidade - que se refletiria no sar-
ziu, na religiosidade cristã novaliana, o acento casmo lírico de Reine -, esse aspecto corres-
moral de um "panteísmo evolucionista", por- pondeu à face hostil e noturna da vivência da Na-
quanto caberia ao homem genial, pela força da tureza, através do sentimento de distância e de
imaginação poética, que espiritualiza o mundo separação. Enquanto, vivida num sentimento de
exterior, converter a unidade divina, estendida proximidade e de união, a Natureza benéfica e
ao universo, de princípio originário em finali- luminosa, consolando o homem das penas e fa-
dade intrínseca da Natureza. digas da existência, propicia a quietude e o silên-
cio que permitem a alma voar "através de cam-
Deus não tem nada a ver com a Natureza - Ele é pos quietos/ como se voasse para casa" (Ei-
o fim da Natureza - aquilo com o que ela deve um
dia harmonizar-se. A Natureza deve tornar-se mo- chendorf, Mondnacht ), a hostil, movimento em
ral ... so. torvelinho e em espiral, impetuosa e oceânica,
que aniquila o indivíduo e a todas as coisas ar-
A teofania começa então pelo homem, a rebata, imprimiu à visão romântica um lastro
primeira floração autêntica do Espírito, posto imagético de fluência, de vertiginosidade que,
que, para Novalis, a Natureza é a árvore da qual ultrapassando os limites da literatura, alcançou
somos as flores em botão. Reaparece, novamen- o dinamismo colorístico das marinhas de um
te aqui, a metáfora essencial da árvore da vida; William Turner e da "pintura negra" de Goya.
plantada no solo, teosófico da Aurora de .~ Qualquer que seja a face a que Se incline ....:-.
Boehme, de onde o autor de H einrich Oiterdin- noturna ou luminosa, maléfica ou benéfica -
gen a colheu, ela se esgalha ao mundo inferior e qualquer que seja o sentimento que a sustente
e ao mundo superior, do céu das estrelas ao céu da - de abandono, de desamparo, de melancolia,
consciência SI. por um lado, levando ao pessimismo, e de exal-
Mas independentemente da diferença desses tação, de entusiasmo, por outro, levando ao oti-
acentos teísta ou panteísta, o aspecto dinâmico mismo - a vivência romântica da Natureza, sob
e impulsor da Natureza, como realidade cósmica, o pressuposto da animação e da organicidade,
que se depara à intuição imaginativa do poeta integra-se a um sistema de representação, con-
romântico, não é separável de seu investimento dicionado pelo relacionamento ativo do sujeito
expressivo e teofânico. Identificado à "inefável, com o objeto (a coaktivitat de Novalis, a coales- í
santa e misteriosa Noite" (Novalis, Hymnen I), cence, de Coleridge), em que se fúndaram de-
mediadora do sonho e da morte, comparado a terminadas virtual idades distintivas da linguagem
uma "espiral sorvendo os Mundos e os Dias" literária.
(Gérard de Nerval, Le Christ aux Oliviers), ou Os objetos, que já condensam a percepção
à potencialidade originária do caótico e do ili- sentimental e emotiva do sujeito neles projetado,
são, como abreviaturas dos estados de ânimo e
49. A magia se define como arte vara usar à vontade do das coisas, do interior e do exterior., do subjeti-
mundo sens ive l. Enrvclopé dic, 16(1í ..
50. l\O\'f\LIS. Enryclopé dír, 17.Hl. vo e do objetivo, núcleos de correlações cam-
51. "Der Garten dieses Baurnes hedeutet die Welt, der
Achr die Natur, der Stamm des Baumes die Sterne, die Aste
biantes, ordenadas pelas afinidades e pelos con-
die Elemente, die Fürchte 50 auf diesern Baurn wachsen, bedeuten trastes da imaginação. E sendo dialogante a
die Menechen, der saft in den Baurn bedeuter die klar Gottheit."
jakoh Boeluu e . atitude do poeta, para quem os objetos passam

66
à categoria de segunda pessoa ---'- o tu diante do os conceitos e as coisas, as palavras e os objetos;
Eu 52 - é o nexo de simpatia que o ligará às preponderante na época clássica. Mas pondo-se
coisas, num mundo em que tudo pode ser analogí- à, parte esse aspecto geral, que mostra.a' fun-
I. camente compreendido. Feito de correspondên- ção liminar, para a nossa experiência da litera-
cias afetivas entte elementos heterogêneos, de tura, do sistema de representação do Roman-
harmonias realizadas entre termos antitéticos, es- tismo, certos lineamentos de escrita, sobretudo
se mundo mágico, não apenas analógico, é um na lírica, ainda relacionados com o caráter ex-
mundo regido pelo princípio da analogia, sujeito pressivo das formas naturais, enquanto objetos
às leis naturais que Mr= de Staêl registrou: que já são signos, aderem medularmente à visão
romântica do mundo, no estrito sentido em que
La paix et Ia discorde, l'harmoníe et Ia dissonance
qu'un lien sécret réunit, sont les premiers lois de Ia a tomamos neste ensaio.
nature; et soit qu'elle se montre redoutable ou char-
mante, l'unité sublime qui Ia caracterise se fait tou-
O primeiro lineamento é o expressivismo do
jours reconnaitre 53. texto, dirigido por uma intencionalidade de ex-
pressão direta, imediata e espontânea, na qual
Desse ponto de vista, a Natureza, que não 'as imagens, funcionando como uma segunda
foi para o Romantismo apenas a mais abrarigente pauta da linguagem, tentam reduplicar, de ma-
de suas tematizações, mas o foco precípuo sob neira sempre insuficiente, uma primeira pauta
o qual a imaginação intuitiva se afirmou e se original, dada pelos próprios objetos naturais: a
: f exerceu 54, voltou a ser contemplada pelos ro- linguagem dos sentimentos e das próprias coi-
"mânticos através da perspectiva de coesão má- sas, que excede a das palavras. O segundo li-
'gica, de envolvimento analógico entre palavras neamento é o transcendentalismo da expressão
e coisas, da compreensão pré-clássica do mundo, verbal, criação do espírito, existindo como obra
dominante do Medievo à fase renascentista.Ex- sua,e em que as imagens dos objetos naturais
iremamente esclarecedor, como fato da história e terrestres, intencionando uma realidade outra,
'interna da cultura, um tal parentesco tipológi- não-natural, não-terrestre, são como que os signos
r' , • co da visão romântica com uma compreensão do de um mundo superior ideal, longínquo, miste-
mundo que se arcaizara nos fins do século XVII, rioso, estranho e invisível 56. Ambos esses sulcos
fase inicial do pensamento racionalista moderno, românticos da escrita pressupõem o rapto da
permite concluir que as virtualidades da lingua- inspiração, e ambos se conjugam a uma atitude
gem literária, fundadas no sistema analógico da. de reconhecimento do caráter contingente e se-
representação, decorreram, em princípio, da li:: cundário da linguagem verbal, que predispôs à
;","beração metafórica da, linguagem. valorização estética da música, limite ideal de
Rede, tecida de imagem a imagem, de pala- todas as artes.
,\ vra a palavra, um outro continuum . de lingua- A vivência do poeta, em diálogo com as
gem - o próprio fenômeno literário, na acepção formas naturais, é, pois, a vivência de 'uma teoía-
plena do termo, e em sua recente' autonomia 55 nia. No entanto, por força do primado -?nt91§-
- se destacou da trama classificatória, ligando &~Q...,da vida interior, a sua escrita se investirá
de Um preliminar e inevitável caráter psicofâni-,
52. "No instante. em que o poeta lhe fala, o. rochedo não
se torna um 'tu', dotado de personalidade?" - - N OVALIS} Die ~ recondicionador de todos os conteúdos, D1a-
Lehrling von Sais, Rowohl..
53. De l'Allemagne, Quatr-iême Parti e, Capo IX. (De Ia
logando com as coisas, que lhe falam à alma, é
contemplation de Ia nature), Garnier, p. 600. de si mesmo que o poeta romântico sempre fala.
54. Cí. PAUL DE MANN, Structure intentionelle de I'Image
romantique, Reuue Lnternationale de Philosopkie, 1960, Fase, I,
n.o 51. 56."La nostalgie de I'objet s'est transformé- en nostalgie
55. Na acepção do aparecimento da "literatura" para du ciel ... " afirma Paul de Mann' no artigo supracitado, que
FOUCAULT, em Les Mots etles Choses, interpretamos neste passo.

A VISÃO ROMÂNTICA 67
Nas condições de sua sensibilidade conflitiva, o Estaria aí o extremo limite do individualismo
dinamismo da interiorização permanentemente egocêntrico, que Hegel assinalou na sua crítica
reconduz à direção centrípeta - para dentro à ironia de F. Schlegel, Novalis e Tieck.
e para o Eu - a direção centrífuga da consciên- Uma lrôil.ia mais profunda, uma ironia trá-
cia - para fora e para as coisas. gica, haveria de marcar o Romantismo, na acep-
O que, enfim, prepondera, como determinan- ção estrita do termo, e o sentido dos valores
te do comportamento espiritual do poeta român- da visão romântica. Por um lado, o inatingível e o
tico, dando o acento impulsivo de sua sensibili- invisível, transformados na instância poética da
dade conflitiva, é a aspiração do infinito, como realidade superior e verdadeira, encerrou as re-
anseio vago e indefinido que a palavra giões privadas do artista, abrigado no ideal. São
Sehnsuclu exprime - como indeterminação do as regiões do sonho adorável abertas pela músi-
desejo, amor da infinitude pela infinitude, e da ca 60, regiões onde, habitante do mundo feérico,
procura pela procura, que transbordou na ironia do mundo. das fadas 61, como o Anselmo do conto
da forma e da vida. '~_~.g...!!Io.::,-_(te..Ho!fmann,.p poeta se abri-
ga do real, nos jardins de-Serpentina. Evasiva e
"Est-ce ma faute, si se trouve partout des
evanescente, a aspiração ao infinito se 'identificou
bornes, si ce qui est fini n'a pour moi aucune
com a infinitude do desejo insatisfeito. Sequioso,
valeur?", exclama René. Obrigado a perseguir
aspirante de uma plenitude impossível com que a
o objeto diferido de seu desejo, "qui n'était nulle
part et qui était partout" 57, assombrado pelo satisfação estética lhe acena, o artista românti-
co, erótico e sonhador, é, na acepção kierkega~
fantasma de um ideal a realizar, fata Morgana .
diªna do termo, o homem do desejo. Súmula de
que diante dele se distancia e se esvanece 58, o
um-comportamento espiritual e de um modo de
romântico se fixa à inquietude que o dilacera,
sensibilidade, o próprio elemento "romântico"
e amando o contraste pelo contraste, vive, em
meio de antíteses, uma existência dúplice e' des-
seria, na definição de Kierkegaard - primeiro °
crítico do Romantismo depois de Hegel, - "o
dobrada.
perpétuo esforço para apreender aquilo que se
A ironia, de que os românticos alemães de desvanece" 62. . t
Iena fizeram um valor positivo da vida e da arte, Vista sob esse ângulo, a crítica de Hegel. à
é a ilimitação da inquietude espiritual no que tem ironia revela a natureza sintomal da visão român-
de alentadora e deceptiva. Como "consciência tica que, presa da "má infinitude", concretizava,
clara da eterna agilidade, do caos infinitamente
pleno", da definição de ironia. por F. Schlegel,
em conflito com a realidade cultural da época, °
momento da "consciência infeliz", de que tra-
esse jogo ilimitado do espírito infinito, que ten- tou a Fenomenologia do Espírito.
de a ultrapassar tudo,. inclusive qualquer espécie
de forma artística, inferior e efêmera em relação IV. O processo do Romantismo
aos sentimentos efusivos - cuja linguagem ori-
"

Por trás da atração dos cenários naturais, da


ginal, a juízo de Wackenroder, é a música -,
fruição voluptuosa da paisagem - "a varieda-
submete a vida ao capricho da subjetividade
evanescente, efeito da 60. u. •• pois eu sei Que tu também penetraste nestas regiões
românticas que a magia celeste dos sons provoca". HOFF:MANN,
concentração do eu no eu, pela qual todos os laços Don Luaw. HE contudo, caro leitor, existe um reino feérico, cheio
de espantosas maravilhas, cuja potência sobre-humana produz
são rompidos, e que não pode viver senão na felici- succsaivar-rente o êxtase supremo e o espanto inJsondável." Hosr-
dade que proporciona o gozo de si mesmo 59. MANN CIO Vaso de Ouro"
6Í. "Somente a franqu~za dos nossos órgãos e do nosso con-
-tacto conosco mesmo impede-nos de perceber que vivemos num
57. CHATEAUBRIAND. Renê, mundo de fadas ." · NOVALIS, Encyclop die, '1678.
é

58. Cf. RALPH TVMMS, op. cit., p. 6. 62. Cf.· JEAN WART, Études krierkgaardiennes, Anneses,
59. Esthétiçue, Aubier, vol, 1.0,. p. 92. Extraits dw Lowrnol (1834·1839), Aubier, p. 581.

68
I,'
(l
:de, a grandeza e a beleza de mil espetáculos sur- de Fichte, das Cartas 'sobre a Educação Estética
••
: preendentes", que Sainbl!reux já descrevia a Jú- e de A, Poesia Ingênua e a Poesia Sentimental.
~'.
", lie 63; por trás do '--nomadismo espiritual desses Incorporados a uma parte 'considerável, da
'..•,'".: aprendizes, o Heinrich Ofterdingen, de Novalis, gestuaIística dos sentimentos que os interiori-
:~ e o Sternbald, de Tieck, êmulos de W. Meister, zaram na literatura, o desencanto, a reprovação,
" em diálogo com os quatro elementos; por trás e até, como em Byron, o repúdio altivo -e deses-
I..~. do nomadismo geográfico, que vai de Chateau- perado da cultura e da sociedade 65, quenãofo-
I'" briand a Gérard de Nerval, a busca do sublime ram só a' revoltados dandys 66, já são, passada
." Ou"do" exótico, dos recantos' solitários que tran- a rápida fase inicial da juvenilidade entusiástica
~- qüilizam, das paisagens remotas que acendem do movimento romântico, o fadário daquela
t o desejo da terra paradisíaca, ou de lugares em jeunesse soucieuse sentada num mundo em ruí-
i: ruínas, abandonados pelo homem, que desper- nas, da qual Musset foi 'um dos intérpretess": a
tam a nostalgia da terra perdida - por trás des- juventude desarvoraaa, perplexa, que regrediu ao
ses aspectos do culto da Natureza, enquadrados Weltschmerz dos Stürmer, mitificando, sob a fi-
~; num confronto dramático com o mundo, está si- gura do mal du siêcle, transformado numa fa-
~., lhuetada a tácita insatisfação com o todo da, talidade inexorâvel, a realidade social e histórica
fi;" cultura, misto de afastamento desencantado e de que se problematizava, e que iria adquirir, até o
r', reprovação à sociedade, depois do assomo Iiber- final da primeira década do século XIX, enquan-
J~ tário do idealismo político de 1789. to os modos tradicionais de vida principiavam a
ser corroídos e esvaziados pelas novas estrutu-
[; O culto da Natureza, convémIembrá-lo, co- ras nascentes, um caráter fugidio, exterior e me-
r
f'"
meçou sem esse afastamento desencantado; li- cânico, cada vez mais alheia à vontade dos in-
" gou-se ao Contrato Social de Rou!~~ e. in- divíduos e cada vez mais fechada e enrijecida.
cluía um princípio de esperança pohtica. Ainda
O dilaceramento da consciência individual, so-
k quando se refugiava às margens do lago de cialmente bloqueada, que se introverte e se
Bienne, nos "charmes de Ia nature" que o com- afirma como a potência interior infrangível do Eu,
i' pensaram das incompreensões e injustiças sofri- negando o mundo que a nega, enxertou-se, com
' das, a decepção misantrópica de Rousseau pelos o afã de totalidade e de integridade em que o
',' homens manifestou-se como afronta à sociedade. individualismo egocêntrico se externou, no culto
r -.,' Que maior afronta do que o exibicionismo do da Natureza.
ócio, do estado de [amiente, no Reveries d'un
r Promeneur Solitaire, especialmente no relato da Na conformação da conduta espiritual dos
românticos, que fez ascender a itimitação, a ín-
Cinquiême Promenade? A aspiração arcádica de
quietude e a' insatisfação permanentes ao primei-
Rousseau, implícita nos dois Discursos, em A No-
ro plano da sensibilidade literária e artística, o
va Heloisa e no Contrato Social, consumou, de empenho de totalidade e de integridade, e o dita-
fato, a politização do conceito idílico da Natu- ceramento da consciência individual que o acom-
reza 64, que Schiller assimilou e transmitiu à ,/

'" primeira geração dos românticos alemães, leito- 6S. ••••• Porém dos bomens .breve ser eonhecej' '. O menos
res, sem excetuar,.!!Q,.~rlin...Jia Teoria da Ciência próprio p'ra tratar com homens,l Com quem bem pouco de comum
tem ele' ... Soberbo em seu enfado acba em si vida,l p'ra res-
pirar da espécie humana à parte." BVRON, CAild Harold, Canto
63 "; •. le plaisir de ne voir autour de soi que des objets Terceiro, XII. . ., I
tout nouveaurx, des oiseaux êtranges, des plantes bizarres et Incon- 66 Para CUIUS em L'H"",me RetJo/té, a fIgura maIS ong·
nues, d'observer en. quelque sorte une autre nature .et dê nal da' revolta romântica é o dandy. e não o revolucionário.
se trouver dans un nouveau monde". La N ouuelle H êtotse, Lettre 67. "Toute Ia maladie du siêele vient , de deux causes: le
XXIII. peuple qui a passé Pl'r 93 et par 1814 port~ au coe~r deux blessure~;
64. Cf. AUERBARCH. Mimesiss Ia realidad en la literature, Tout ee qui était n"est plus; tout ce qUI sera ',n eet pas encore.
Fondo de Cultura, P. 439, MUSSET. La confession d'un enfant du siecle,

A VISÃO ROMÂNTICA 69
panha, condicionaram, através da posiçao emi- -Mãe, que constitui o precedente mítico do Volks-
nentemente' reativa da intelligentzia situada, e do tum - do gênio de um povo, de seu caráter nacio-
processo de poetização da vida em torno do' qual nal e de suas virtudes morais e intelectuais -
se convergiram, não só o poder mitogênico 68, mas além do ser feminino, celeste e transparente, ou
também, a.par das projeções utópicas, o fenômeno carnal e subterrâneo, mas sempre superior ao seu
das duplicações, das misturas culturais e da su- oposto masculino, a quem pode salvar e redimir,
plência de funções pela cumulação de papéis, com o sonho, estado primitivo da alma humana e
que se tentou contrabalançar o rompimento das "segunda vida do espírito" (Gérard de Nerval),
correlações significativas da cultura tradicional foi, outro dos 'grandes mitos do Romantismo '12.
em mudança 69. Proveniente do mesmo empenho de totalida-
Desenvolvida pari passu com uma teoria poéti- de, o amor ao passado, que se distendeu às fontes
ca da origem do mito e da linguagem na alma remotas e às origens da unidade da espécie, mitifi-
f
de cada povo, a atividade mitogênica do Roman- cou a Idade Média e o poder espiritual da Igre-
tismo ligou o sentido dramático do tempo his- ja nessa fase. Assim é que o compromisso, que f
marcou a visão romântica, entre a simples espe- r
tórico, caudal propulsivo transformando as na- í'
ções, ao crescimento orgânico, e à floraçãoes- rança utópica e a confiante adesão ao papel so-
pontânea da natureza, que circunscreveria, como cial e político regenerador do cristianismo, re- ':
I
;

í
último limite de uma consciência retrospectiva fletiu-se no escrito de Novalis, Europa ou a Cris-
dirigida a etapas remotas do passado, o, estado tandade (1799), que prenunciava o restabeleci-
primigênio do homem, onde o natural e o'cuftu::" mento da unidade das nações e dos Estados,
tal' se transpassam e se confundem. graças ao domínio espiritual da Igreja Católica,
finalmente levando de vencida; pela virtude dos
Nesse estado, o homem é um sonâmbulo in-
tempos novos, sequiosos de uma verdadeira reli-
consciente; abrigado no ventre maternal da Na-
giosidade, o' cisma protestante. Que sustentará,
tureza, que se revelaria depois nas imagens oní-
pergunta Novalis, o esforço que revolucionou os
ricas e míticas, ele é, para Joseph Gõrres, como
Estados, se não for uma potência espiritual, su-
o verbo e a palavra da terra 70. A mulher que
perior às potências terrestres? Chegando a bem
Gérard de Nerval lhe dará por companheira, mis-
alto, a Revolução está condenada a trabalhos
to de mãe e de divindade, assimila as figuras das
de Sísifo, "a menos que uma atração do céu man-
deusas ctônicas primordiais 71. Além da Terra-
tenha-a suspensa nos curries a que se ergueu" 73.
A religião, que tem o poder de despertar e de
68. Sobre o estimulo que esse poder mitológico recebeu da
filosofia de Schelling entre os romanticos alemães. ver o notável unificar a Europa, e, reunindo os Estados numa
trabalho "Aspectos do Romantismo Alemão", de ANATOL ROSEN· sociedade supranacional, conferir-lhes um Eu po-
PELD, in Texto/Contexto, Editora Perspectiva, PP. 145·168.
69. JOSÉ GUILHERME MERQUIOR fala-nos, de acordo com lítico superior" é o cristianismo da antiga fé ca-
Mannheim, no Romantismo como "uma estratégia de resgate da!
atitudes e modos de vida de' origem, em última análise, religiosa,
tólica, antes de Lutero: ' i
reprimidos pela marcha do racionalismo capitalista --, mas uma Rebate-se sobre essa coristrução novaliana, ;..
rememoração do "ir racional' levada a efeito no plano .da refle-
rõo." Saudade do Carnaval, Forense. pp. 146-147. Nesse sentido
foi o Romantismo um cultivo de tradição: um tradicionalismo -
que ainda conserva o vigor do idealismo político r
"contra o mundo desenfeitiçado, dessacralizado dos tempos mo-
dernos, abertamente exaltado pela Ilustração - o tradicional ape- gendo os elementos vegetais e luminosos da Natureza. A mulher é,
lidado de irracional". Idem, P'. 147. para Gérard de Nerval, um ser primordial, figura mítica feita.
A esse respeito, atente-se para a observação de Hume; "The de opostos. HA l'image d'une femme aêrienne et celeste s'oppose
Romanticism. .. and this is the best definition I can give of it, 15 Ia figure, identique et ennemie, d'une femmc charnelle ou sou-
spilt religiorr". "Rornantícísm and classicism", in: Speculations, ter raine". RICHARD, Jean-Pierre. HGéographie Magique de Gérard
Routledge & Kegan Paul, p. 118. de Nerval", Poêsie et Profondeur, Seuil, p. 61.
70. Ver, a respeito, ALFRED BAEUMLER, Der Mythi.., von 72. Cf. ALBERT BEGUIN, L'âme romantique et de rêue
Orient und Occident (Eine M etaphysik der alten WeJt, aus de•• (Essa. sur le romantisme allemand et Ia poesie trançaise), José
Werker von 'J. J. Bachofen ), Munique, Einleitung, CI/CII, Corti. '
71. Assim. em A wrelia, a amante do poeta confunde-se, nu- 73, NOVAL!S, "Europe ou Ia chrétienté, Le Romantisme Alle-
ma de suas aparições, com o espírito de terra e dos ares, abran- mand." Cahicrs tiu Swd, 1'1'. 413-434.'J

70
motivado pela Revolução Francesa, de que o úni- anis, ao deslocamento dos valores que se produ-
co legítimo herdeiro foi Hoelderlin, e em que zia socialmente.
perpassa, com a ondulação do tempo hist6rico
progressivo e transformador, o sopro da confian- O sentido .histórico universalista da evolução
ça no porvir, que faltou a Le Genie du Christia- da poesia e das artes em geral, coincidiu, para os
nisme, de Chateaubriand, - inteiramente nos- românticos, que interiorizaram o sagrado e sacra-
tálgico e saudosista - a romântica adesão ao Iizararn a arte - num contexto em que se con-
mundo intangível do ideal, que serviu de escudo fiava à religião a guarda dos valores tradicionais,
ao evasionismo, e de fixador da racionalização senão a própria defesa da ordem instituída _,
ideológica, mundo intangível a que se atribui, com o sentido do desenvolvimento espiritual da
quanto mais alto se acha colocado, uma eficá- humanidade. Sob esse aspecto, na medida em
cia espontânea. irresistível, imune às interferên- que se manteve imune a essa interiorização do
cias do real empírico. sagrado, .fazendo da poesia um meio de' revelar-
-lhe a presença ausente no corpo de uma nature-
Entrançado a linhas ideol6gicas bastante ní- za plana, sem desdobramentos supra-sensíveis, e
tidas, o utopismo romântico seguiu o sulco do sem sacralizar a poesia, a obra de Hoelderlin
processo de poetização da vida em sua totalida- continuará sendo uma pedra de escândalo den-
de, à custa do qual se delinearam, como pers- tro do romantismo histórico.
pectiva promissora oculta da realidade, somente
descobertas pelo gênio, as duplicações e' as mis- Firmava-se, enfim, alçada a um plano ideal,
turas de domínios culturais distintos, das quais a superioridade da arte ou da poesia, como um
a Enciclopédia de Novalis (verdadeiro modelo domínio privilegiado e transcendente, veículo de
antiiluminista de enciclopedismo fragmentário) todos os valores e princípios da formação espiri-
tual do homem. Paralelamente ao alargamento
pode ser considerada o principal repositõrio.
da forma romanesca - do romance, elaborado e
As duplicações começam ao nível da Na- interpretado como forma literária épico-lírico-
tureza física, que se desdobra num sistema espi- dramátiéa, sintética e inclusiva, capaz de conter
ritual; passam à individualidade humana, que se a variedade dos aspectos da existência individual
desdobra num organismo físico e metafísico; con- e a diversidade dos interesses humanos 75 - a li-
tinuam na arte, duplicada por uma "arte eterna" teratura, a que se delega uma função, de síntese,
que o transcendentalista Emerson viu manifes- de unificação e de totalização, preserva a única
tar-se nas coisas; encontram-se na religião, possibilidade de ação pedagógica, de formação
abrangente de todo o domínio do supra-sensível (Bildung] humanística, possibilidade que Wag-
e do supra terrestre 74 - cindida porém nu- ner reivindicou para a arte, como instrumento
ma forma natural e histórica e numa forma ar- revolucionário 76.
tística ou poética - e aparecem, ainda, na ética,
A pedagogia, a Bildung romântica, foi, con-
polarizada entre o senso moral' interno e a lei
tudo, o confinamento subjetivo da antiga paideia
moral externa. As misturas se revelam nos com'; humanística;sem aquela irradiação ética do ideal
postos híbridos - a ética poética, a poesia cien-
tífica, a física teológia, a filosofia poética -,
15. "Arte do romance. A absolutização - a universalização _
que o gênio elabora, e dos quais extrai um co-. a classificação do elemento individual, da situação individual, ete.
é a essência própria da romant iaação". NOVALIS. Op. cito 1440.
nhecimento de ordem superior. Mas tanto as mis- 7S. Como se vê do escrito de julho de 1849, A Arte e "
turas quanto as duplicações significavam o resul- Revolução) de Richard Wagner, humanitas é já a livre h,nnan'.
dade artistica que a arte do futuro deverá compreender e formar.

I
sultadojde uma reação transversal, sub specie A educação Htornar-se-á sempre mais orüstica, fIm d~'a seremos
todos artistas ... n W AGNER, Richard. L'crt» ct Ia Rirohrcione
(e altri scritti politici), 1848-1851, a cura di Mareio Mangini,
74, I\OVALlS. Enc yclopédie. 1766. Guaraldi.

f! A VISÃO ROMÃNTICA 71
I.
schilleriano da educação estética conjunta do in- o meio do século, só à custa da vida boêmia
divíduo e da sociedade, esgotou-se no culto da poderá preservar o ócio, o [arniente rousseaüísta.
arte, de que o ritualismo da música wagneriana
foi a consumação, e preparou o caminho para o
Acionado por um processo de sublimação, J
o comportamento espiritual, que dele se tipifica
esteticismo, que se firmou na segunda metade do
século XIX, já no âmbito do realismo. Muito
na literatura, cristalizou-se no diálogo com a Na-
tureza, e teve como focos principais o amor e o f
próximo da egolatria, esse culto, que adotou o
ethos da rejeição religiosa do mundo do asce-
poder, tematicamente coridensados no erotismo t
r
e no satanismo. r
tismo cristão, sacralizou a arte, que se torna, para
adotarmos as expressões de )\'!a.~_W~p~r, "um De uma voluptuosidade narcisística, que se ~
cosmo de valores independentes percebidos de. alimenta dos "langores da alma enternecida",
forma cada vez mais consciente, que existem por que Julie conheceu diante de Saint-Preux 80, ex-
si mesmos" 77. Na visão romântica, o cosmo ar- teriorizado por aqueles amaneiramentos da fina
tístico é um meio soteriológico: a arte sagrada observaçãode.M.me d~ St~~L81,o erotismo ro-
exerce "a função de uma salvação neste mun- mânticoesteve tão distante do amor-paixão quan-
do" 78. . to o amor de Werther de Goethe por CadQ~ª,
Dentro desse quadro da condição .soterío- esteve distante do amor do Octave de Musset
I lógiq>~e transcendente da arte - transcendente por Brigitte.
I pela sua própria essência, e porque, órgão do O amor romântico não conhece mais a en-
Absoluto, dá acesso às regiões supra-sensíveis do trega absoluta do amor-paixão, que sacrifica to-
espírito - é que o poeta genial, recebendo as or- dos os valores à mulher divinizada. Tanto mais
r
dens sagradas qua'ndo a ele se transfere o caris- i_sensual ele é quanto menos sexual quer ser, e
ma religioso, assumirá papéis' cumulativos, que o ·1 tanto mais sexual se torna, quanto mais, afetando
colocam numa posição eminente. "Le monde en- ! pureza e elevação do sentimentos, elevado à ca- r
tier passe à son crible", dizia Victor Hugo. Mas" ltegoria de "lei celeste tão potente e tão incom-
na proporção em que fazia do poeta o suplente . preensível quanto aquela: que ergue o sol no fir-
inerme de funções sociais neutralizadas; esse mamento" 82, ele envolve os amantes, parceiros
acúmulo de papéis marginalizou-o. desiguais, ou angélicos ou perversos, entre mo-
Excepcional e solitário, .guia obscuro da hu- mentos de êxtase, num. antagonismo sadomaso-
manidade, tardio descendente da raça dos magos, quista. Angelical como Brigitte ou maligna, como
dos profetas e dos videntes, e sobretudo decifra- membro da estirpe de [emmes fatales - a que
dor da Natureza, que por ele se deixa ler como pertencem a Cecily de Eugêne Sue ou a Carmen
um livro aberto 79, detentor de verdades inaces- Mérimée -, a mulher, sempre mitificada, con-
,,' síveis à maioria de que se dessolidaríza, sentin- serva uma auréola de pureza, de mistério e de
do-se mais próximo, pela atividade não-utilitária, plenitude inacessível ao homem.
não-produtiva, e pela. sua dependência à imagi- O amor romântico oscila entre extremos de
nação, das crianças e dos loucos, o poeta. român- .abnegação e sacrifício, quando exaltado, e de Ii-
tico, já habitante das metrópoles ao aproximar-se ber.inagem e deboche suicida (Rol/a, de Musset) ,

. 77. WE8F:R, Max, Ensaios de Sociologia (Organização e In- 80. "Que de delices inconnues tu fi.s êprouver à mon coeurl
trodução de H. H, Gerth e C. Wright Mills) , Zahar Editores, 2.' O t ristesse enchanteresse! O Iangueur d'une âme attendrie l ... .,
ed., p. 391. ' Lu Nou1'('II" Heloisa, Lettre, XXXVIII de Saint-Preux à Iulie.
?8. "Proporciona uma salvação das rotinas da vida cotidia- 81 . ., . .. ces sons de voi'x manierés, ces regards qui veulent
na, e especialmente das crescentes pressões do racionalismo teóri- être vus, tout cet appareil enfin de Ia sensibilité..... De I'AI/e'
C? e prático". WEBER, Max. Op . cit: 1'. 391. maxuc, Quatri ê me Pn rtie, Capo X \'1 I I (De Ia .lisposition ro-
79.' "li est sain de toujours feuilleter Ia nature/ Car c'est rnantique dans les affections du coeur) , p, 521, ed. cit.
Ia g ranrle Iett re-et Ia grande éccr iture". Hvco, Victor. "Autrefois". 82. Mvssxr. La Couf cssion d'v» cnf ant du si cele, Troisiêrne
VIII. (Les Contemplations ), Part ic, Cal'. YL

72
quando decepcionado. Mas sempre em íntima captou e sintetizou como trágico embate do des-
relação com o estado de fruição estética, incor- tino humano.
porando a antecipada melancolia que o envene- A ascensão e a descensão, a subida e a queda
na diante da transitoriedade da beleza "Beau- vertiginosas, verdadeiros padrões retóricos, que
ty that must die" - que Keats exprimiu na ,tipificam, na lírica e no romance 84, a conduta
sua Ode on M elancholy, o amor é, como dirá espiritual dos românticos, acompanharam a "tur-
Max Scheler, mais a consciência reflexiva do bulência fáustica" em que se forjou "o escudo de
amor do que o próprio amor 83. Fantasma do sublimação ou do ideal do eu" 85.
desejo insatisfeito e indefinido, o amor será, as-
A sublimação da conduta espiritual, voltada
sim compreendido, um autêntico paradigma da
para as altas esferas, foi um processo inerente à
sensibilidade romântica, de que foi a motivação
visão romântica, como visão de época. Limiar da
psicológica fundamental e o tema prioritário.
, \: nossa experiência literária e artística, essa visão
O pathos da 'rebeldia, implícito ao individua:~, se interrompeu sem perder a sua influênciain-
lismo egocêntrico, desse desejo insatisfeito e in- cessante (haverá sempre românticos entre nós),
definido, sublinhou-se no satanismo, transfor- por um processo inverso de dessublimação, cujos
mando a sede de conhecimento e de poder na sinais precursores efetivos, mais do que no ro-
causa de um conflito dramático de proporções mance realista, foram as rupturas dos lineamen-
teológicas, pelo' qual o homem não é o único tos expressivista e transcendentalista da escrita
agente responsável, Como potência espiritual ex- na lírica - patentes num Baudelaire e num
terna de atuação', ambígua,maléfica e benéfica, Rimbaud, em que pesem as afinidades da poe-
de que o homem se aproxima, com quem pactua sia do primeiro com a idéia das correspondên-
por vontade própria, e contra quem se debate, cias mágicas, e do segundo com o visionaris-
Lúcifer, anjo caído e acólito de Deus, instiga a mo poético 88.
sede do poder e do conhecimento, a fim de tomar A des-romantização Entromantsierung
a consciência, tal como no M anjredo de Byronr, (Hugo Friedrich) - como tendência geral, que
presa da morte e da consciência de culpa. Adver- se implanta na lírica após Mallarmé, atingindo
sário e aliado, antagonista necessário que trans- no seu centro egolôgico e na sua abóbada supra-
figura a árvore do Bem. e do Mal na árvore da -sensível e metafísica - nas suas matrizes ori-
vida, ao encorajar o homem a, infringindo. as ginárias - a visão romântica, mostra-nos que a
interdições de Deus-Pai, defrontar-se com o seu arte e a literatura da modernidade se configura-
destino e com a morte, Satã, fonte do vigor do ram polarizadas pelo Romantismo. Tal fato, in-
espírito e da imaginação para WilIiam Blake, dicativo de uma irradiação extensiva e penetran-
"aquele que fala aos homens nos desejos do co- te, leva-nos a considerar a resistência da visão
ração e nos sonhos da alma" (Vigny), é o sím-
bolo maior da sequiosidade ambivalente da al- 84, Salientes na lírica de Victor Hugo, os movimento. de
ascensão às alturas <de Rousseau a Child Harold) , de onde se
ma romântica, de sua introversão, de seu desdo- pode contemplar o mundo livre e superiormente, emolduram o
perfil do herói romântico e de seu "titanismo"; Para o romance Ana
bramento interno, do conflito entre as suas as- tonio Candido destacou a retórica da ascensão em O Cond~ •..de
pirações ideais ea sua impotência real: símbolo Mont c Cristo, de Alexandre Dumas. Ver "Da Vingança", Tese e
Amírcsc, Companhia Editora Nacional.
de tudo isso que o Primeiro Fausto de Goethe, já :-\5. RÚlI El M., Gézn. P sycholoni» ct Histoirc Oll· "La tragédie
de l"hIl11111ll''', l+sychu nnlísc ct onthrotroloqic. Gallirnard, p. 538 .
num plano que ladeia e supera o Romantismo, . 86. Sobre as diferenças essenciais que separam as correspon-
dências baudelairianas do sistema de representação no Romantis-
mo, veja-se de ANA BALAKIAN, EJ moi-imie nto simbolista, Caps, II
e rII (UEl swedenborguismo y Ios rornanticos" lt
83. "Essa idéia faz do amor, e inclusive da mera consciência e uBaudeIaire )

do amor, ,qu~r dizer da reflexão sobre o amor, compreendida Guadur rnmn c de ]osf: Gl'ILHERME MERQUIOR. "Formalismo e neo .•
como o proprro amor, uma espécie de l'ort pour l'ort." Esscncia y romantismo". In : Formolismo c tradição moderna - O Problema
forma dt Ia limpa/ia,' Losada, p, 162. da Ar/e na Crise da Cultura, Editora Forense.

A VISÃO ROMÂNTICA 73
romântica, em função do avultarnento do sujeito "sica do pensamento ocidental, que desembocou no
humano a que ela se entroncou, na transição da niilismo, isto é, no processo da desvalorização,
época clássica, e assim a, reinterpretar-lhe o cará-: ! dos valores, enquanto processo de crise das bases
ter .sintornal, em função do primado da realida- , da nossa experiência histórica-cultural.
de humana, determinante da episteme moderna A crítica desse processo - e da metafísica
desde Kant. - passa, inevitavelmente, pela crítica da visão
Condicionando a repartição de duas esferas romântica e de sua 'equivocidade fundamental,
cognoscitivas distintas -+ a das ciências humanas que Nietzsche caracterizou: como tardia justifica-
e a das ciências da natureza - numa bifurcação tiva da fé, como hipérbole de uma grande pai-
do racional entre a com~reensão intuitiva do En- xão consumida, ela afirmou a carência sob uma
tendimento e a explicação analítica da razão teóri- retórica da abundância. Perpetuando a fome de
ca, a realidade humana fpi o fulcro da reação mo- que saiu, e de que nos fala o autor de A Genea-
derna, consumada sobretudo através das filoso- r logia da Moral, ela foi assim, para acompanhar-
fias intuicionistas e historicistas, contra a ascen- mos de perto o famoso aforismo de Goethe,
dência do pensamento, científico positivo, con- muito mais o sintoma de 'uma doença do que
tinuador do racionalismo iluminista. O avulta- um estado eufórico de saúde.
mento do sujeito instilou-se na tradiçãoimetafi-
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