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A L M A S C O N D E N A D A S , PA C T O S M A L D I T O S :

A S I N V O C A Ç Õ E S D E S AT Ã
N A L I T E R AT U R A FA N T Á S T I C A

Prof. Matheus Pereira de Freitas (UFPB/PPGL)


O PARADOXO
DEMONÍACO
Como quer que seja, a existência continuada do mal no mundo
requereu uma explicação. Assim, mesmo estando
‘historicamente’ aprisionado no inferno, Satanás ainda estava
‘alegoricamente’ ativo no mundo. A atividade do Diabo no
mundo, após a ‘derrota’ de Cristo para ele, levou Gregório a
formular o que podemos chamar de o ‘paradoxo demoníaco’:
Satanás esteve implacavelmente em conflito com Deus na
história, tanto no mundo quanto no coração humano e, no
entanto, ele continuou sendo, em última análise, aquele que
impõe e executa a vontade de Deus (PHILIP, 2021, p.85)

Não obstante, quando um ser humano comete pecado, seja por


instigação do Diabo ou não, ele ‘se torna um filho do Diabo, na
medida em que ele imita aquele que foi o primeiro a pecar’.
Portanto, do mesmo modo que Cristo é a cabeça da Igreja, ‘o
Diabo é a cabeça de todos os perversos, na medida em que eles o
imitam’ (Ibidem, p.98-99)
O DIABO E SUAS TRANSGRESSÕES
Portanto, por ter sido criado com livre-arbítrio, a escolha de ser corrupto foi do Diabo.
Teologicamente, a chave para o fato de o Diabo ter sido criado com livre-arbítrio e de o mal ser
consequência do mau uso dele é que isso afasta de qualquer suposição de que o mal foi implantado
‘por natureza’ na criação do mundo e, portanto, pode ser atribuído à intenção divina. Ao contrário,
como consequência do mau comportamento de um ser criado bom, mas com a capacidade de fazer o
mal, a existência do mal foi acidental e não necessária (Ibidem, p.63)

Não obstante, os demônios podiam operar milagres aparentes: eventos que iam além do poder e da
compreensão humana. Podia parecer que eles tinham operado o impossível por meio de aparições
imaginárias [...] podemos dizer que o Diabo era especialista em causas ‘ocultas’ e efeitos
‘maravilhosos’ (mas não miraculosos). Assim, o Diabo era o mestre das ilusões (Ibidem, p.113)

A literatura fantástica é o único gênero literário que não pode funcionar sem a presença do
sobrenatural. E o sobrenatural é aquilo que transgride as leis que organizam o mundo real, aquilo que
não é explicável, que não existe, de acordo com essas mesmas leis” (ROAS, 2013, p.31)
O ESTIGMA DIABÓLICO NO
FANTÁSTICO
Deve, porém, notar-se que numerosos velhos temas: os gigantes, por
exemplo, ou os anões parecem ter perdido a sua virtude angustiante, ao
passo que a literatura de imaginação científica criou outros, como o do
sábio louco. Por outro lado um mesmo motivo, o diabo por exemplo,
pode ser fantástico, cômico, trágico, até elegíaco. O motivo importa
menos que a maneira como é utilizado. Quanto à arte fantástica, não está
ligada aos motivos tradicionais (VAX, [1974], p.33)

O importante, entretanto, é que esses elementos estruturais se combinem


em estado de permanente tensão, perturbando as convicções do leitor
quanto à sua viabilidade ou motivação [...] Para a literatura gótica, basta
que o efeito de horror seja acionado pela trama dos acontecimentos,
apoiada nas qualificações dos atores e do cenário, mesmo que o
desfecho o destrua. Cumpre tentar sondar o indizível, mesmo falhando
em mantê-lo inaudito (BORDINI, 1987, p.16)
O ESTIGMA DIABÓLICO NO FANTÁSTICO

A consequência teórica é a de que não pode existir o efeito de horror enquanto há crença mítica ou religiosa,
pagã ou cristã, na existência efetiva do sobrenatural. Para delimitar o efeito de horror derivado das narrativas
góticas, será necessário levar em conta que o gênero só ocorre quando o ateísmo liberal e o materialismo
capitalista transtornam as formas de percepção e de relação no Ocidente, entre os séculos XVIII e XIX
(BORDINI, 1987,p.12)

“Cheguei a pensá-lo”: Eis aqui a fórmula que resume o espírito do fantástico. Tanto a incredulidade total como
a fé absoluta nos levariam fora do fantástico: o que lhe dá vida é a vacilação (TODOROV, 1980, p.18)

Para tanto, essa percepção depende, exclusivamente, da impossibilidade de explicação e, assim, caso
identifiquemos o evento compactuando com a realidade ou com a fantasia, “deixa-se o terreno do fantástico
para entrar em um gênero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por
um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural”
(Ibidem, p.23).
O ESTIGMA DIABÓLICO
NO FANTÁSTICO
Ao finalizar a história, o leitor, se o personagem não o tiver feito,
toma entretanto uma decisão: opta por uma ou outra solução,
saindo assim do fantástico. Se decidir que as leis da realidade ficam
intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a
obra pertence a outro gênero: o estranho. Se, pelo contrário, decide
que é necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o
fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso
(Ibidem, p.24)

O desejo, como tentação sensual, encarna-se em algumas das figura


mais frequentes do mundo sobrenatural, e em especial na do diabo.
Pode dizer-se, para simplificar, que o diabo não é mais que outra
palavra para designar a libido. A sedutora Matilde do monge é,
como nos informará mais adiante, “um espírito secundário mas
maligno”, servidor fiel de Lúcifer. E já no diabo apaixonado existe
um exemplo não ambíguo da identidade do diabo e a mulher ou,
dito com maior exatidão, do desejo sexual (Ibidem, p.68).
Os corpos sacrílegos de Satã

Ademais, os demônios eram capazes de persuadir os humanos que eram avarentos e pervertidos “de
mofos mirabolantes e jamais vistos”, entrando nos seus corpos por meio da sutileza dos seus corpos e
influenciando seus pensamentos. O Diabo se esgueirava pelas aberturas dos sentidos, camuflando-se
com cores, associando-se a sons, ocultando-se em raiva e mentiras, unindo-se a aromas, misturando-se
a sabores e obscurecendo o entendimento (PHILIP, 2021, p.164)

O juiz Dicasto respondeu que as bruxas alegavam que não havia prazer como esse sobre a terra e ele
pensava que era por três razões: em primeiro lugar, porque os demônios assumiam um aspecto
agradável; em segundo lugar, porque seus ‘membros viris’ eram de um tamanho fora do comum. Ele
declarou: ‘Com seu aspecto eles deliciavam os olhos e com seus membros eles preenchiam as partes
mais secretas das bruxas’. Complementando, ele disse que os demônios fingem estar apaixonados por
elas. Ele conclui que provavelmente ‘eles conseguem estimular alguma coisa muito profunda dentro
das bruxas, que proporciona essas mulheres um prazer maior do que o dos homens (Ibidem, p.151)
Sabbat, de eugéne lepoittevin (1806-1870) Capela sistina, de Michelangelo (1508-
1512)
A tentação de Santo Antão (1946)
Ante os pactos malditos, de
Teófilo a Fausto

Na Europa Ocidental, origem do pacto satânico remonta à tradução


do grego para o latim, no século IX, por Paulo, um diácono de
Nápoles, de um texto intitulado ‘Um milagre da Virgem Maria
concernente a Teófilo o Penitente’. Por volta do ano de 1500, ele
tinha sido traduzido para todas as línguas europeias (PHILIP, 2021,
p.188)

• História do Doutor Fausto, Christopher Marlowe (1587);

• Fausto, Goethe (1790)

• O pacto infernal – pequeno romance, Charles Nodier (1822),


Ante os pactos malditos, de Teófilo a Fausto
Sou parte da Energia/Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.//O gênio sou que sempre nega!/E com
razão; Tudo o que vem a ser/ É digno só de perecer;” (Ibidem, p.139)
Não penso em alegrias, já to disse./Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo,/Ao fértil dissabor como ao ódio
amoroso./Meu peito, da ânsia do saber curado,/A dor nenhuma fugirá do mundo,/E o que a toda a humanidade é
doado,/Quero gozar no próprio Eu, a fundo,/Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,/Juntar-lhe a dor e o
bem-estar no peito,/E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser,/E, com ela, afinal, também eu perecer
(GOETHE, [1829] 2016, p.175)

Enfim, o que posso dizer é que tudo ocorreu segundo meus desejos; ganhei reputação como homem de Estado,
como guerreiro, poeta. Poder-se-ia dizer que wu era universal. Mas como a natureza humana é inconsequente, eu
não conseguia desfrutar uma honra tão aprazível; a ambição me dominava a tal ponto que os lauréis e os mirtos me
entediavam, eram um fardo para mim; disse ao Diabo, que, não sabendo mais o que fazer, se aborreceu e afirmou
que nenhum mortal havia se beneficiado tantos favores quanto eu (NODIER, 2019, p.194)
Ante os pactos malditos, de Teófilo a Fausto
O diabo apaixonado, Jacques Cazotte (1772)
O diabo apaixonado
Mal havia eu terminado, uma janela se escancara à minha frente, ao alto da abóbada: uma torrente de luz
mais brilhante que a do sol sai por essa abertura; uma cabeça de camelo horrorosa, tanto pelo tamanho
quanto pela forma, com orelhas enormes, aparece à janela. O hediondo fantasma abre a goela e, com voz
que combina com o resto da aparição, responde: Che voui? (CAZOTTE, [1772] 2013, p.23)

Então agora lhe convém ser mulher para exigir atenções? Pois bem, se quer salvaguardar o escândalo de sua
retirada, tenha, em seu próprio interesse o cuidado de sair pelo buraco da fechadura.
- Como! A sério, sem saber quem eu sou...
- Posso não saber?

- Sim, o senhor ignora, só ouve seus preconceitos, mas, seja eu quem for, estou a seus pés, os olhos cheios
de lágrimas: é como cliente que imploro (Ibidem, p.32)
O diabo apaixonado
“Ah Biondetta”, pensava eu, ‘e se você não fosse um ser fantástico, se você não fosse aquele horrível
dromedário!”
Mas por qual movimento me deixei levar? Venci o medo, vamos extirpar um sentimento mais perigoso. Que
doçura posso esperar dele? Não será sempre igual à sua origem?
O ardor de seus olhares tão tocantes, tão suaves, é um cruel veneno. Aquela boca tão bem desenhada, tão
colorida, tão fresca e, na aparência, tão ingênua, só se abre para imposturas. Aquele coração, se de fato
existia, só se aqueceria para uma traição (Ibidem, p.34)

Oh, minha cara Biondetta – respondi, embora fazendo grande esforço para me conter -, tu me bastas:
preenches todos os desejos do meu coração...
- Não, de modo algum – replicou ela rapidamente -, Biondetta não deve te bastar: não é esse o meu nome; tu
é que me havias dado; ele me agradava, eu o trazia com prazer; mas é preciso que saibas quem sou... Eu sou
o diabo, meu caro Alvare, sou o diabo... (Ibidem, p.91)
Referências
BORDINI, Maria da Glória. O temor do além e a subversão do real, 1987;

CAZOTTE, Jacques. O diabo apaixonado. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013;

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – Primeira parte. São Paulo: Editora 34, 2016;

NODIER, Charles. O pacto infernal – pequeno romance. São Paulo: Carambaia, 2019

PHILIP, Almod. O Diabo: uma biografia. Rio de Janeiro: Vozes, 2021;

ROAS, David. Ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Editora UNESP, 2014;

TODOROV, Tzevan. Introdução a literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, [1970] 1975
VAX, Louis. Arte e literatura fantásticas. Lisboa: Editora Arcádia [1974].
EM
NOVEMBRO...
SITE:
https://i-congresso-nacional-de-narrativas-saramaguianas.webnode.com/

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