Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ressaltemos o notável sucesso desse Fórum (1) que nos permitiu ouvir as dificuldades
encontradas por cada um dos atores diante da dura realidade de ser estrangeiro em nosso
mundo. E isso, mais próximo das iniciativas mais diversas e das consequências,
divergentes na ocasião, que cada um dos atores pôde extrair.
Nesse momento de recapitulação, devemos lembrar o quanto esse confronto com os
atores da razão prática é decisivo para nossa abordagem psicanalítica.
Certamente, no nível da razão pura, há espaço para que o psicanalista se sinta autorizado
a tratar o estranho como uma dimensão da existência humana que lhe é familiar.
Contrariamente a outras disciplinas psicológicas, a psicanálise não considera o sujeito
como um aparato unificado no qual a função da unificação estaria no primeiro plano.
Pelo contrário, ela insiste na aporia. Se, desde Freud, nossa disciplina enfatiza a
complexidade dos mecanismos de identificação, é porque a identidade é uma quimera,
uma paixão ou uma loucura. Em nossa prática, nós demos um nome: a loucura
narcisista, e descrevemos o campo de expansão bem como os efeitos de verdade que
marcaram época. Os caracteres narcisistas, as personalidades narcisistas e os perversos
narcisistas foram acrescentados aos personagens mais antigos descritos pela psicologia.
Não se poderia agora passar sem isso, nós o constatamos recentemente a propósito do
presidente Trump. Mas o sucesso caracterológico fez esquecer que todos nós somos
personalidades narcísicas, porque a própria ideia de personalidade, na sua visão
unificadora, é narcisista e com horizonte paranoico, marcado pela tensão agressiva do
estádio do espelho. Sempre o outro é intrusivo e me despoja.
Seja a unidade sempre faltante, revelando-se sempre precária, o status do sujeito
é o de ser dividido, oscilando entre identificações múltiplas e contraditórias. Ele só se
libera pelo que Freud chamou de “deformação do eu” e por uma divisão permanente. O
status comum do sujeito é sentir-se estranho a si mesmo. Sobretudo porque, nele, no
coração de seu ser, ele encontra um estranho que, entretanto, lhe é familiar, seu sintoma,
aquilo que se apresenta sob a modalidade lógica do não cessa de se escrever. Seja o que
for que o sujeito deseje, ele não pode deixar de passar pelos caminhos que o seu sintoma
lhe traça, dos quais ele tem tanta dificuldade em se desfazer.
Esse sintoma é muito mais do que a soma de maus hábitos aos quais a psicologia
da aprendizagem gostaria de reduzir. Ele concentra, em um misto de sintoma e
fantasma, todos os caminhos para um gozo que o sujeito encontrou, na sua
contingência.
Heidegger queria que a filosofia seguisse o Holzwege, esses caminhos florestais que
«não levam a parte alguma» que funcionam com o propósito de transportar madeira
coletada pelos madeireiros. Nós, psicanalistas, nos ocupamos dos caminhos que
circundam uma clareira do corpo, ardente pelo encontro com o gozo. Esse sintoma é o
que o sujeito tem, ao mesmo tempo, de mais próprio e mais apartado. Para cada um o
sintoma é a sua coisa, ela lhe fala, mas de um outro lugar.
É por isso que, em uma segunda analogia de estrutura, no nível da razão pura, o
psicanalista se sente em terreno familiar quando evoca o estranho. É em uma dimensão
sempre estranha que se situa a relação com o gozo. O fantasma do sujeito é o que lhe é
mais familiar no seu imaginário, mas o encontro real com o gozo é sempre marcado por
um mau encontro, seja por excesso, seja por falta. Ele escapa à homeostase do princípio
do prazer, que gostaria precisamente de mantê-lo em uma zona de familiaridade.
Sempre o além do princípio do prazer virá fazer ouvir um as dissonante e retomar seus
direitos formulando seu não é isso. Assim, o estranho é, nesses dois níveis de razão pura
psicanalítica, uma abordagem familiar do Unheimlichkeit.
Essa familiaridade com o tema do exílio e do estrangeiro também foi incorporada
na história do movimento psicanalítico pelos múltiplos exílios que o acentuaram. Exílio
dos psicanalistas judeus europeus da Áustria, da Alemanha para os Estados Unidos.
Exílio dos espanhóis para a América Latina. Exílio dos argentinos sob a ditadura para a
Europa.
Hoje, exílio dos psicanalistas venezuelanos para os Estados Unidos e América
Latina, e retorno dos argentinos. Um movimento permanente atravessou essa
comunidade cujas organizações foram imediatamente globalizadas por esses
movimentos.
E, no entanto, quaisquer que sejam essas experiências, quaisquer que sejam as suas
dimensões, há um ponto de encontro com o estranho que, desde os últimos
ensinamentos de Freud, no final dos anos 1920, continua a atormentar a comunidade
psicanalítica. Freud, de fato, nos advertiu contra o que lhe parecia extravagante no
mandamento cristão «ame seu próximo como a si mesmo».
Em um documento preparatório para o Fórum, Paola Francesconi destacou esta
passagem de Mal-estar na civilização em que Freud toma à parte aqueles «que
preferem os contos de fadas [e] se fazem de surdos quando lhes falam da tendência
nativa do homem à maldade, à agressão, à destruição e, portanto, também à crueldade.
[Ora, o] homem tenta satisfazer sua necessidade de agressão às custas do seu próximo,
de explorar seu trabalho sem compensação, de usá-lo sexualmente sem o seu
consentimento, de se apropriar dos seus bens, de humilhá-lo, de lhe infligir sofrimento,
de martirizá-lo e de matá-lo».(2)
Freud inscreve aqui a tradição judaica na confluência da Torá que enuncia: «Não
maltratarás um estrangeiro, não o oprimirás, pois foste estrangeiro no Egito" (Êxodo
22:21). ; Deuteronômio 10, 19 - citado pelo Monsenhor Guerino di Tora, presidente da
Fundação Migrantes e da Comissão Episcopal das Migrações. O livro do Êxodo enfatiza
que o estrangeiro é meu semelhante e, assim sendo, eu não devo oprimi-lo: «Vós não
oprimirás um estrangeiro, pois vós conheceis o coração de um estrangeiro, já que vós
fostes estrangeiros na terra do Egito» (Êxodo 23, 9).
A prescrição é reforçada no Levítico: «Mas o estrangeiro que habita convosco será
para vós como alguém que nasceu entre vós e o amarás como a ti mesmo, pois fostes
estrangeiros na terra de Egito: eu sou o Senhor vosso Deus». (Levítico 19, 34) (3)
O estranho é uma coisa, mas o limite com o próximo é outra coisa. Rémi Brague
continua: «Ora, isso não é evidente. Temos um exemplo muito claro em Maimônides:
Os idólatras [litt. os adoradores dos astros (sic)] com os quais não estamos em
guerra, [...] não causamos suas mortes. Em revide, é proibido (as r) salvá-los se forem
ameaçados de morte. Por exemplo, se vemos que um deles caiu no mar, nós não o
retiramos, porque está escrito: "Tu não ficarás de braços cruzados diante do sangue do
seu próximo (rea)". (Lévitico, 19, 16). Ora, este não é "seu próximo"».
Lembramos da questão do escriba a Jesus: "Quem é o meu próximo?" (Lucas 12:29), à
qual a parábola do "bom samaritano" trouxe uma resposta inesperada».(4)
Lacan comenta muito bem sobre as distâncias que Freud toma em relação ao
próximo por razões certamente diferentes daquelas de Maimônides, mas que, no
entanto, têm todo o seu alcance. Ele fez do recuo de Freud outra coisa que um desejo de
não sobrecarregar os ombros da humanidade com um fardo pesado demais; segundo ele,
Freud marca um duplo recuo: um primeiro, diante da maldade que aparece no próximo,
e um segundo, diante daquilo que está latente em cada um de nós.
«Encontramos aqui as observações de Freud que são muito justas, e que têm uma
ênfase comovente concernente ao que pode ser amado. Ele revela como se deve amar o
filho de um amigo, porque se o amigo for privado dele, seu sofrimento será intolerável.
Toda a concepção aristotélica dos bens está aí viva nesse homem de verdade, e que nos
diz as coisas mais sensíveis e as mais sensatas sobre o que vale a pena que
compartilhemos com ele este bem que é o nosso amor. [...] toda vez que Freud se detém
horrorizado diante da consequência do mandamento do amor ao próximo, o que surge é
a presença dessa maldade natural que vive no próximo. Mas daí ela também vive em
mim mesmo. E o que está mais perto de mim do que este cerne em mim mesmo, que é o
do meu gozo, do qual não me atrevo a acercar? Pois, assim que me aproximo – está aí o
sentido do Mal-estar na civilização – surge essa insondável agressividade diante da qual
eu recuo». (5)
A economia pode apelar para o egoísmo banal do útil para evitar esta zona do
além: «Meu egoísmo se satisfaz muito bem com um certo altruísmo, aquele que se
coloca no nível do útil, e este é precisamente o pretexto pelo qual evito abordar o
problema do mal que eu desejo, e que o deseja o meu próximo. É assim que me
desincumbo da minha vida, transacionando meu tempo numa zona dólar, rublo ou outro,
[...] onde eu os mantenho todos igualmente, esses próximos, no nível do pouco de
realidade da minha existência. [...] O que eu quero é o bem dos outros, desde que ele
fique à minha imagem».(6) E Lacan acrescenta: «o gozo do meu próximo, o seu gozo
nocivo, o seu gozo maligno, é ele que se coloca como o verdadeiro problema para o
meu amor».
Jacques-Alain Miller assinala: «No ódio ao Outro é certo que existe algo mais que
agressividade. Há uma constante dessa agressividade que merece o nome de ódio e que
visa o real no Outro [...]. Aí mesmo está a forma mais geral que podemos dar a esse
racismo moderno tal como o verificamos: é o ódio na forma particular pela qual o Outro
goza».(7)
Saber isso, conhecer as aporias do amor e do gozo na vizinhança do próximo, não
nos condena nem ao cinismo, nem à imobilidade, nem à constatação da presença
irredutível do ódio ou do mal. Esses impasses nos levam a nos dar conta de algo de
análogo ao que o Papa, em seu apelo ao necessário acolhimento do próximo, prolongou
para o igualmente necessário apelo à prudência:
«Eu sinto um dever de gratidão para com a Itália e a Grécia, porque eles abriram
seus corações aos migrantes» e «acolher é um mandamento de Deus». «Mas um
governo, prossegue ele, deve gerenciar esse problema com a mesma virtude do
governador: a prudência. O que isso significa? Primo: Quantos lugares existem
aqui? Secundo, não devemos somente recebê-los, devemos também integrá-los. Tertio,
é um problema humanitário. A humanidade está ciente desses campos, nos quais eles
vivem no deserto».(8)
Detenhamo-nos sobre os agradecimentos do Papa à Grécia. Eles são merecidos.
Um colega grego os motiva assim: «Somente durante o ano de 2015 cerca de 850.000
refugiados, segundo o Alto Comissariado [para os Refugiados (HCR)] das Nações
Unidas, entraram na Grécia, um país com apenas dez milhões de habitantes. [Os]
voluntários das ilhas que acolheram os refugiados na emergência [são] na sua maioria
descendentes de refugiados, eles mesmos chegaram nos anos 20 da Ásia Menor, após
uma guerra trágica entre a Grécia e a Turquia, e a perseguição da população cristã de
língua grega, que muitas vezes era mal recebida na época. [Eles] não acolhem o
estrangeiro tanto quanto o semelhante que se encontra em uma situação mais dramática
que eles».(9)
O Papa retomou este duplo propósito da necessidade de acolher o próximo e da
prudência: «Não se pode fechar o coração a um refugiado [...], mas a prudência dos
governantes não é menos necessária: devemos ser muito abertos e recebê-los, mas
devemos também planejar a maneira de instalá-los, porque um refugiado, devemos não
apenas acolhê-lo, devemos também integrá-lo». (10) Ele acrescenta aqui uma nota sobre
o objeto de gozo, que tem todo o seu interesse: «Existe, em nosso inconsciente coletivo,
um princípio: a África será explorada (abusada)».(11)
A prudência à qual o Papa apela, que fala do inconsciente coletivo no nível das
formas de gozo, é também acompanhada de uma chamada ao dever dos governantes.
De modo análogo, embora diferente, nós, psicanalistas, temos a aprender as
maneiras pelas quais as contradições entre os princípios da razão pura se resolvem em
ato; temos também de compreender o que, emanando da razão prática, pode temperar o
imperativo do acolhimento absoluto, no caso a caso e de acordo com as dificuldades
encontradas, antes, durante e depois dos tempos da migração, pelos sujeitos tomados
pelas temporalidades distintas das rotas do exílio.
____________________________________
A ironia de Putin
por Luc Garcia
Está claro, Vladimir Putin foi reeleito. A gente se lembra de Stalin, justamente no fim
de 1945, ao descobrir com surpresa que Churchill tinha perdido as eleições legislativas
britânicas, quando tinha conseguido manter todos os poderes ao longo de uma guerra:
ele dizia que não entendia como um tal homem e um tal país não manipulavam as
eleições.
Na Rússia, atualmente, Vladimir Putin não teve talvez a necessidade de alterar as
urnas para ganhar as eleições. Os opositores, globalmente, não existem – ou estão
amordaçados. Disso fabricamos fantoches, e os kremlinólogos de ontem, que
admiravam as ascensões vertiginosas e as descidas ao purgatório, contemplam as
pequenas variações de alguns coligados que foram apresentados, tentando deduzir daí a
nova sociologia política de um país que se atravessa de um extremo ao outro em sete
horas de avião. Mas a questão não seria, antes de tudo, discursiva?
Sobre o veneno
A solução de Theresa May se revelou uma manobra hábil, pela qual essa que abre a
boca em primeiro lugar nos faz crer que foi a primeira a realizar um ato. De fato, ela
oferece a Putin um prato que ele não irá rejeitar por nada neste mundo. Mesmo que seja
possível que a receita tenha sido arquitetada no rush precedente da eleição, algumas
dispensas inspiraram de várias maneiras. O primeiro ato, evidentemente, é o do
envenenamento.
Para ser exato, a questão dos agentes secretos que correm e se fazem correr para
correr daqueles que os correm de ter sido corridos, e para correr por sua vez, não
apresentam muito interesse. A gente evoca a guerra fria. Paralelo fácil pode ser. O único
elemento possível de dar apoio a essa hipótese é o reenvio dos diplomatas. Londres
extraditou 23, Moscou extraditou 23. Essas extradições de diplomatas são muito antigas
e, desde sempre, perfeitamente codificadas. Elas surgem do interesse muito óbvio de
cada um de mostrar os seus músculos. Olho por olho, etc. Se formos rigorosos,
poderíamos destacar que a guerra fria procedia de uma forma muito mais cruamente que
hoje em dia, pois os reenvios em questão poderiam ser realizados em pequenos pedaços
de corpos espalhados em diversos pacotes que ilustravam as célebres delícias dos
romances de espionagem.
Ao contrário, a novidade está nisso: Putin começa as frases, mas ele não as
termina. Ele encarrega assim cada um de se reencontrar com o suspenso. Poderíamos
gritar que é má fé, mas alguma coisa nos faz dizer que isso é ainda mais radical: é sem
fé completamente.