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Bem, Pedro, seu doutorado foi sobre a sexuação em Lacan e acho que
ninguém melhor que você para falar um pouco disso. Sexual, sexuação,
sexo, existência, não existência, todo, não todo/toda… Como estamos
no assunto relação/ralação, pergunto: É possível ficar numa relação
não-toda? Ou melhor, antes, fala um pouco sobre “a relação sexual
não existe”.
Podemos dizer que — face a esse encontro com o real — aqueles que
imaginam que deveriam ter feito mais aulas de danças, que tentam
compreender o que rolou naquele encontro e voltar a si para continuar
sua busca pelo objeto e por esse outro ideal estão do lado todo da
sexuação. Já aqueles que, por um instante, suspendem a lei da busca
pelo objeto, transcendem o princípio de identidade, esquecendo de si
mesmos e cogitam que seu parceiro, talvez, não seja nenhum daqueles
mascarados mas a dança em si, estariam do lado não-todo. Uns são
fiéis a lei e ao desejo, já outros permitem se entregar ao gozo e a
possibilidade de não submissão completa ao seu objeto mais caro. A
relação sexual não existe porque, nesse baile, nunca dançamos com
quem dança conosco e a desproporcionalidade dos mascarados é a
própria música que anima essa festa do impossível, que é o amor. E,
repare, isso não tem nada a ver com “gênero”, com “homem” e
“mulher” ou com “quem conduz” e quem “é conduzido” na dança. A
diferença entre todo e não-todo não é uma diferença sexual, é uma
diferença do sexual. É a diferença produzida pelo encontro com essa
coisa chamada sexual, e a desproporção dele decorrente.
Agora, é claro que algumas danças duram anos, outras, dias. Mas não
acho que essa deva ser a medida de uma boa lida com a (não) relação.
Você me pergunta se é possível ficar numa relação não-toda. Eu diria
que a questão é pode a nossa relação em relação às nossas relações ser
não-toda? Ou seja, estamos prontos para que nossos ideais sobre
relações sejam postos em xeque dada a primazia de um encontro, ou
de um desencontro? E, mais ainda, se o não-todo passa a ser um
objetivo, um destino, uma direção, ele não perde justamente seu
âmago de verdade? Não seria tentar encaixar uma abertura do gozo na
régua de um desejo fálico de completude?
Isso não significa, porém, que não possamos pensar em outras formas
políticas de emergência do não-todo. Agora, para isso é necessário que
a psicanálise, como em seus tempos áureos, se deixe afetar pelo
mundo e pelo real que, como dizia Lacan, emerge em um dado
momento no tempo, ou seja, é historicamente determinado. Me
pergunto até quando deixaremos nossa interpretação do não-todo ser
colonizada por figuras imaginárias sugeridas por Lacan, como os
místicos ou mesmo a Mulher inexistente. Será que não conviria pensar
o não-todo, por exemplo, nas epistemologias feministas
interseccionais? Não são elas que puxam, em nosso tempo, o coro
contra o universalismo que não é apenas fálico, mas branco e
heterossexual? Nessa toada, confesso que vejo muito mais não-todo
em Angela Davis do que na estátua do Êxtase de Santa Teresa! Não é
Achille Mbembe um interlocutor das questões de universalidade e
particularidade muito mais rico e menos fetichizado do que os
matemáticos de que Lacan dispunha à época de seu ensino? Pensar,
num contexto pós-colonial, a raça como alteridade radical como fez
Frantz Fanon não levaria a epistemologia psicanalítica muito mais
longe? Acho que é hora de deixarmos a suposição metafísica de que a
lógica matemática sustenta a verdade da psicanálise e irmos de
encontro a uma lógica Outra, de uma alteridade verdadeiramente
radical. Ao invés de levantarmos nossas tábuas da sexuação contra as
políticas contemporâneas e as acusarmos de quererem fazer a relação
sexual existir, talvez possamos escutá-las como a vanguarda de um
não-todo muito mais radical do que nos foi possível pensar até agora.
Talvez isso não seja nada mais nada menos do que ocupar uma posição
psicanalítica: ao invés de impor nossos sentidos dados de antemão,
convém escutar as emergências de verdade e deixar com que sejam
elas as protagonistas e não nosso suposto saber.
Renata Rampim: Gosto da ideia do não todo como uma aposta política.
Acredito na força do coletivo e dos movimentos sociais como potência
transformadora que efetivamente provocam efeitos no mundo.
Certa vez, Charcot disse aos seus alunos: “teoria é bom, mas não
impede que as coisas existam”. Nesse sentido, também concordo com
você na urgência de pensar em novas epistemologias que incluam e
acompanhem as mudanças subjetivas de nossa época. Entretanto, acho
que não dá para “descartar” o trabalho de Lacan por outros e novos
modos de fazer, quero dizer, um não exclui o outro, mesmo porque, se
hoje conseguimos conversar sobre a possibilidade de um não-todo
Outro é porque ele nos deixou as bases… Que acha?
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