A P E R S E G U I Ç Ã O D O S E S P E C T R O S I N FA N T I S
N A N A R R A T I VA A C A S A D E A Ç Ú C A R , D E
S I LV I N A O ’ C A M P O
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O FA N T Á S T I C O E O I N S Ó L I T O
FICCIONAL
Baseada, portanto, na confrontação do sobrenatural e do real dentro de um mundo ordenado e
estável como pretende ser o nosso, a narrativa fantástica provoca – e, portanto, reflete – a
incerteza na percepção da realidade e do próprio eu [...] Assim, a literatura fantástica nos revela a
falta de validade absoluta do racional e a possibilidade da existência, debaixo dessa realidade
estável e delimitada pela razão na qual vivemos, de uma realidade diferente e incompreensível,
alheia, portanto, a essa lógica racional que garante nossa segurança e nossa tranquilidade. Em
última instância, a literatura manifesta a validade relativa do conhecimento racional, iluminando
uma zona do humano onde a razão está condenada a fracassar (ROAS, 2013, p.32).
No que diz respeito ao ego, a excessiva excisão e a excessiva expulsão de partes suas paia o mundo externo
debilitam consideravelmente o ego. Isso porque o componente agressivo dos sentimentos e da personalidade
está intimamente ligado na mente com poder, potência, força, conhecimento e muitas outras qualidades
desejadas [...] A projeção de sentimentos bons e de partes boas do self para dentro da mãe é essencial para
habilitar o bebê a desenvolver boas relações de objeto e para integrar o seu ego. Contudo, se esse processo
projetivo é empregado de modo excessivo, partes boas da personalidade são sentidas como perdidas, e dessa
maneira a mãe se toma o ideal do ego e o processo resulta, também em enfraquecimento e empobrecimento
do ego. Esses processos são em seguida estendidos a outras pessoas, e o resultado pode ser uma dependência
exagerada desses representantes externos das partes boas de si próprio (KLEIN, 1981, p.27)
A I D E N T I F I C A Ç Ã O P R O J E T I VA E A S
QUERELAS DO MUNDO INTERNO
A identificação projetiva se liga aos processos de desenvolvimento que surgem durante os três ou
quatro primeiros meses de vida (a posição esquizoparanóide) quando a divisão está no seu
máximo e predomina a ansiedade persecutória. O ego está ainda em grande parte não integrado e,
por conseguinte, passível de dividir a si suas emoções e a seus objetos internos e externos,
embora a divisão seja também uma das defesas fundamentais contra a ansiedade persecutória.
Outras defesas oriundas nesse estágio são a idealização, a negação e o controle onipotente dos
objetos internos e externos. A identificação pela projeção implica uma combinação de expelir
partes do eu e de projetá-las sobre outra pessoa (ou melhor) dentro dela. Tais processos
apresentam muitas ramificações e influenciam fundamentalmente as relações de objeto. (KLEIN,
1971, p.78)
Quando ficamos noivos, tivemos que procurar um apartamento novo, pois, segundo suas crenças, o
destino dos moradores anteriores influiria sobre sua vida (em nenhum momento mencionava a minha,
como se o perigo ameaçasse só a ela e como se nossas vidas não estivessem unidas pelo amor) [...] Por
fim, encontrei uma casinha na Calle Montes de Oca, que parecia de açúcar. Sua brancura brilhava com
extraordinária luminosidade. Tinha telefone e, em frente, um pequeno jardim. Pensei que a casa era
recém construída, mas fiquei sabendo que em 1930 uma família morara ali e que depois, para alugá-la,
o proprietário havia feito nela alguns reparos. Tive que fazer Cristina acreditar que ninguém havia
vivido na casa e que era o lugar ideal: a casa de nossos sonhos (Ibidem, p.32)
Vou me contentar em ver os olhos do Bruto. Me fará o favor de ficar com ele?
— Tudo bem. Fico com ele.
— Obrigada, Violeta.
— Não me chamo Violeta.
— Mudou de nome? Para nós, a senhora é a Violeta. Sempre a mesma misteriosa Violeta (Ibidem,
p.36)
— Canto com uma voz que não é minha — me disse Cristina, renovando seu ar misterioso. — Se
fosse antes, teria
ficado angustiada, mas agora adoro. Sou outra pessoa, talvez mais feliz que eu.
Outra vez fingi que não a tinha ouvido. Eu estava lendo o jornal.
De tanto investigar detalhes da vida de Violeta, confesso que deixava de dar atenção a Cristina
(Ibidem, p.41)
Nos últimos dias em que a vi, lamentou-se amargamente de sua sorte. Morreu de inveja. Repetia
sem parar: “Alguém roubou minha vida, mas vai pagar muito caro por isso. Não vou mais ter
meu vestido de veludo, será dela; Bruto será dela; os homens não se disfarçarão de mulher para
entrar na minha casa, e sim na casa dela; perderei a voz que vou transmitir a esta outra garganta
indigna; eu e Daniel não nos abraçaremos mais na ponte de Constitución, iludidos por um amor
impossível, inclinados como antigamente sobre o parapeito de ferro, vendo os trens partirem”
(Ibidem, p.42)
Desde esse dia Cristina se transformou, ao menos para mim, em Violeta. Passei a segui-la o
tempo todo, para flagrá-la nos braços de seus amantes. Distanciei-me tanto dela que a via como
uma estranha. Numa noite de inverno, ela fugiu. Procurei por ela até o amanhecer. Já não sei
quem foi vítima de quem, nesta casa de açúcar que agora está desabitada (Ibidem, p.43)
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Obras incompletas de Sigmund Freud: O infamiliar [Das Unheimliche]:
seguido de O homem da Areia, de E. T. A. Hoffmann. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
KLEIN, Melanie. O sentimento de solidão, Nosso mundo adulto e Outros trabalhos. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1971.
O’CAMPO, Silvina. A fúria e outros contos. Companhia das Letras: São Paulo, 2019.
ROAS, David. Ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Editora UNESP, 2014.