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DULÇOR, VORACIDADE E ENGASGOS:

A P E R S E G U I Ç Ã O D O S E S P E C T R O S I N FA N T I S
N A N A R R A T I VA A C A S A D E A Ç Ú C A R , D E
S I LV I N A O ’ C A M P O

Matheus Pereira de Freitas (UFPB/PPGL) Nome e SOBRENOME 


Prof. Dr. Hermano de França Rodrigues (UFPB/PPGL)
Vínculo institucional ou titulação

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O FA N T Á S T I C O E O I N S Ó L I T O
FICCIONAL
Baseada, portanto, na confrontação do sobrenatural e do real dentro de um mundo ordenado e
estável como pretende ser o nosso, a narrativa fantástica provoca – e, portanto, reflete – a
incerteza na percepção da realidade e do próprio eu [...] Assim, a literatura fantástica nos revela a
falta de validade absoluta do racional e a possibilidade da existência, debaixo dessa realidade
estável e delimitada pela razão na qual vivemos, de uma realidade diferente e incompreensível,
alheia, portanto, a essa lógica racional que garante nossa segurança e nossa tranquilidade. Em
última instância, a literatura manifesta a validade relativa do conhecimento racional, iluminando
uma zona do humano onde a razão está condenada a fracassar (ROAS, 2013, p.32).

O infamiliar da ficção – da fantasia, da criação literária – merece, de fato, uma consideração à


parte. Ele é, sobretudo, muito mais rico do que o infamiliar das vivências. Ele não só abrange na
sua totalidade, como é também aquele que não aparece sob as condições do vivido. O
antagonismo entre recalcado e superado não pode ser transposto para o infamiliar da criação
literária sem uma profunda modificação, uma vez que o reino da fantasia tem como pressuposto
de sua legitimação o fato de que seu conteúdo foi dispensado da prova de realidade. O resultado
paradoxal que ressoa aqui é que na criação literária não é infamiliar muito daquilo que o seria
O S D I TA M E S D A A N S I E D A D E
PERSECUTÓRIA
Formulei a hipótese de que o recém-nascido experimenta, tanto no processo do nascer como no ajustamento
à situação pós-natal, uma ansiedade de natureza persecutória [...] A sensação que a criancinha experimenta
de estar sendo compreendida fundamenta o primeiro relacionamento básico de sua vida — a relação com a
mãe. Ao mesmo tempo, a frustração, o mal-estar e a dor, percebidos, segundo sugeri, como perseguição,
entram também em seus sentimentos a respeito da mãe, porque nos primeiros meses ela representa para a
criança o todo do mundo externo; desse modo, tanto o que é bom como o que é mau chegam-lhe à mente,
provindo da mãe, e isto leva a uma atitude dúplice em relação a ela mesmo sob as melhores condições
possíveis [...] Os impulsos destrutivos, por conseguinte, em relação a qualquer pessoa estão sempre fadados
a dar origem ao sentimento de que essa pessoa também se tornará hostil e retaliadora (KLEIN, 1971, p.3-4)

No que diz respeito ao ego, a excessiva excisão e a excessiva expulsão de partes suas paia o mundo externo
debilitam consideravelmente o ego. Isso porque o componente agressivo dos sentimentos e da personalidade
está intimamente ligado na mente com poder, potência, força, conhecimento e muitas outras qualidades
desejadas [...] A projeção de sentimentos bons e de partes boas do self para dentro da mãe é essencial para
habilitar o bebê a desenvolver boas relações de objeto e para integrar o seu ego. Contudo, se esse processo
projetivo é empregado de modo excessivo, partes boas da personalidade são sentidas como perdidas, e dessa
maneira a mãe se toma o ideal do ego e o processo resulta, também em enfraquecimento e empobrecimento
do ego. Esses processos são em seguida estendidos a outras pessoas, e o resultado pode ser uma dependência
exagerada desses representantes externos das partes boas de si próprio (KLEIN, 1981, p.27)
A I D E N T I F I C A Ç Ã O P R O J E T I VA E A S
QUERELAS DO MUNDO INTERNO
A identificação projetiva se liga aos processos de desenvolvimento que surgem durante os três ou
quatro primeiros meses de vida (a posição esquizoparanóide) quando a divisão está no seu
máximo e predomina a ansiedade persecutória. O ego está ainda em grande parte não integrado e,
por conseguinte, passível de dividir a si suas emoções e a seus objetos internos e externos,
embora a divisão seja também uma das defesas fundamentais contra a ansiedade persecutória.
Outras defesas oriundas nesse estágio são a idealização, a negação e o controle onipotente dos
objetos internos e externos. A identificação pela projeção implica uma combinação de expelir
partes do eu e de projetá-las sobre outra pessoa (ou melhor) dentro dela. Tais processos
apresentam muitas ramificações e influenciam fundamentalmente as relações de objeto. (KLEIN,
1971, p.78)

Já me referi ao enfraquecimento e ao empobrecimento do ego que resultam da cisão e


identificação projetivas excessivas. Todavia esse ego enfraquecido se toma também incapaz de
assimilar seus objetos internos, e isso conduz ao sentimento de ser governado por eles.
Novamente, esse ego enfraquecido se sente incapaz de tomar de volta para si as partes por ele
projetadas no mundo externo. Essas várias perturbações na interação entre projeção e introjeção,
S I LV I N A O ’ C A M P O ( 1 9 0 3 -
1993)
As superstições não deixavam Cristina viver. Uma moeda com a efígie apagada, uma mancha de tinta,
a lua vista através de dois vidros, as iniciais de seu nome gravadas por acaso no tronco de um cedro a
deixavam louca de medo. Quando nos conhecemos, ela usava um vestido verde, que continuou usando
até rasgar, pois me disse que lhe dava sorte e que, assim que usasse outro, azul, que lhe caía melhor,
não nos veríamos. Tratei de combater essas manias absurdas (O’CAMPO, 2019 p.31)

Quando ficamos noivos, tivemos que procurar um apartamento novo, pois, segundo suas crenças, o
destino dos moradores anteriores influiria sobre sua vida (em nenhum momento mencionava a minha,
como se o perigo ameaçasse só a ela e como se nossas vidas não estivessem unidas pelo amor) [...] Por
fim, encontrei uma casinha na Calle Montes de Oca, que parecia de açúcar. Sua brancura brilhava com
extraordinária luminosidade. Tinha telefone e, em frente, um pequeno jardim. Pensei que a casa era
recém construída, mas fiquei sabendo que em 1930 uma família morara ali e que depois, para alugá-la,
o proprietário havia feito nela alguns reparos. Tive que fazer Cristina acreditar que ninguém havia
vivido na casa e que era o lugar ideal: a casa de nossos sonhos (Ibidem, p.32)

Vou me contentar em ver os olhos do Bruto. Me fará o favor de ficar com ele?
— Tudo bem. Fico com ele.
— Obrigada, Violeta.
— Não me chamo Violeta.
— Mudou de nome? Para nós, a senhora é a Violeta. Sempre a mesma misteriosa Violeta (Ibidem,
p.36)
— Canto com uma voz que não é minha — me disse Cristina, renovando seu ar misterioso. — Se
fosse antes, teria
ficado angustiada, mas agora adoro. Sou outra pessoa, talvez mais feliz que eu.
Outra vez fingi que não a tinha ouvido. Eu estava lendo o jornal.
De tanto investigar detalhes da vida de Violeta, confesso que deixava de dar atenção a Cristina
(Ibidem, p.41)

Nos últimos dias em que a vi, lamentou-se amargamente de sua sorte. Morreu de inveja. Repetia
sem parar: “Alguém roubou minha vida, mas vai pagar muito caro por isso. Não vou mais ter
meu vestido de veludo, será dela; Bruto será dela; os homens não se disfarçarão de mulher para
entrar na minha casa, e sim na casa dela; perderei a voz que vou transmitir a esta outra garganta
indigna; eu e Daniel não nos abraçaremos mais na ponte de Constitución, iludidos por um amor
impossível, inclinados como antigamente sobre o parapeito de ferro, vendo os trens partirem”
(Ibidem, p.42)

Desde esse dia Cristina se transformou, ao menos para mim, em Violeta. Passei a segui-la o
tempo todo, para flagrá-la nos braços de seus amantes. Distanciei-me tanto dela que a via como
uma estranha. Numa noite de inverno, ela fugiu. Procurei por ela até o amanhecer. Já não sei
quem foi vítima de quem, nesta casa de açúcar que agora está desabitada (Ibidem, p.43)
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Obras incompletas de Sigmund Freud: O infamiliar [Das Unheimliche]:
seguido de O homem da Areia, de E. T. A. Hoffmann. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

KLEIN, Melanie. O sentimento de solidão, Nosso mundo adulto e Outros trabalhos. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1971.

_______________. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago,


1991

O’CAMPO, Silvina. A fúria e outros contos. Companhia das Letras: São Paulo, 2019.

ROAS, David. Ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Editora UNESP, 2014.

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