Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
olavodecarvalho.org /vocabulario-da-insensatez-2/
Olavo de Carvalho
Duas habilidades que a educação deve desenvolver no estudante são o senso das relações e proporções no
mundo real e o senso das nuances e ambigüidades na linguagem.
Daí a importância da matemática e das línguas em todo ensino. As duas estão estreitamente ligadas: sua
articulação permite perceber as coisas com nitidez e verbalizá-las com exatidão. Não é preciso dizer que isso
não serve só para os estudos e o trabalho, mas entra na constituição da personalidade, da consciência e dos
valores pessoais.
Nem é preciso informar que esse efeito não se produz espontaneamente: sua conquista depende de uma luta
interior. Conduzir a alma nessa luta é a mais alta finalidade da educação, que por isso mesmo recebe seu nome
da raiz “ex ducere” = “conduzir para fora”: letras e números transportam a alma para além do seu horizonte
imediato de sensações e reações, abrindo-lhe o acesso à dimensão da cultura, da História, do espírito.
Sem ter chegado até aí, ninguém está apto a participar utilmente de um debate público. Tão logo sai do círculo
da sua prática corriqueira para opinar sobre questões maiores, a alma impropriamente educada está tão
desguarnecida, tão fora do seu elemento, que em sua performance as funções da percepção e da linguagem se
invertem.
Em contrapartida, a estranheza, o medo, a aversão são tomados como provas de que a idéia é falsa e
inaceitável em si. O julgamento já não se baseia no exame do objeto, do assunto, mas na simples constatação
passiva do estado interior do próprio sujeito. Quando essa reação subjetiva é confirmada por análogas reações
de outras pessoas do seu grupo de referência, aí então a falsa sensação de realidade é reforçada ao ponto de
tornar-se uma certeza inabalável, um dado do senso comum.
Infelizmente, boa parte da educação brasileira hoje em dia — do primário ao doutorado — visa a aprisionar as
pessoas definitivamente nesse estado de auto-referência grupal.
Para averiguar quanto essa deficiência intelectual está hoje disseminada nas classes letradas, basta analisar
um pouco a linguagem da mídia e dos debates políticos. Os termos mais carregados de valorações, os mais
decisivos e de efeito mais garantido são justamente aqueles que não designam nada, absolutamente nada de
real, mas apenas um complexo de emoções produzidas pela pura imaginação.
O termo conservador, por exemplo, tem no linguajar midiático brasileiro um conjunto de conotações negativas
que, bem examinadas, revelam não corresponder a nenhuma corrente política existente ou concebível, mas
expressar apenas a ojeriza mental suscitada, na mente coletiva, por uma imagem de fantasia.
O conservador, nessa acepção, é um catolicão moralista e retrógrado, saudoso de uma civilização agrária
tradicional, mas ao mesmo tempo é um industrialista voraz sem o mínimo respeito pela ecologia; é um adepto
da Nova Ordem Mundial e um nacionalista xenófobo; é um neoliberal que anseia por desmontar o Estado e um
fascista que sonha em instaurar o Estado autoritário onipotente; é um fundamentalista que tem horror à teoria
1/2
da evolução e um darwinista social entusiasta do domínio tecnocrático dos fracos pelos fortes, sendo ademais
um fanático e um corrupto aproveitador sem convicções. Eventualmente é também malufista.
É evidente que o tipo assim delineado não existe e não pode sequer ser concebido como possível. Não
obstante, o epíteto conservador é usado correntemente para lançar sobre sua vítima todas essas suspeitas ao
mesmo tempo e torná-la tanto mais asquerosa quanto mais indefinível e envolta em mistério. O conservador é
aí propriamente um Frankenstein, composto heteróclito de peças inconexas e sem a mínima possibilidade de
encaixe. Não podendo existir no mundo real, ele é apenas a projeção das imagens disformes que se agitam na
mente que o criou para temê-lo e odiá-lo. E é tanto mais fácil odiá-lo quanto menos ele pode existir no mundo
real.
Uma discussão empreendida com esse tipo de vocabulário jamais será outra coisa senão um intercâmbio de
alucinações. Alucinações, é claro, podem ser disciplinadas e uniformizadas, de modo que, todos delirando ao
mesmo tempo segundo a mesma pauta, o geral sentimento de concordância forneça à coletividade de
alucinados uma forte impressão de realidade e todos saiam persuadidos de que sabiam do que estavam
falando.
Confúcio dizia que, para moralizar um país, é preciso começar pela restauração do sentido das palavras. Mas
no Brasil essa restauração não vai acontecer, porque teria de começar por enviar para o hospício os
moralizadores.
Curtiu?
Share to Facebook Share to Twitter Share to Imprimir Share to Google+ Share to Mais...
Comments
0 comments
Previous Post
Vocabulário da insensatez
Next Post
Tudo o que você queria saber sobre a direita – e vai continuar não sabendo
2/2