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O primeiro passo para a maturidade intelectual é habituar-se a buscar as realidades e os conceitos por

trás das palavras, em vez de deixar-se impressionar pelas associações emocionais que a linguagem
corrente foi depositando nelas.

Guardadas no fundo da memória afetiva, essas associações podem ser evocadas por simples reflexo
condicionado. Daí o poder hipnótico das palavras e frases feitas cuja menção desperta reações imediatas
de agrado ou desagrado, aprovação ou desaprovação, independentemente da referência a fatos ou
coisas identificáveis.

Fatos e coisas, ao contrário, nem sempre podem ser evocados por mera estimulação reflexa, exigindo
antes um esforço de reconstituição consciente e crítico. E conceitos são construções ideais com
conteúdo fixo repetível, que permitem à mente retornar aos “mesmos” pontos da experiência para
compará-los, associá-los, distingui-los, inseri-los em estruturas lógicas maiores.

Entre o homem que pensa por esforço consciente e aquele que se deixa arrastar pelo automatismo da
memória afetiva, a diferença é quase tão grande quanto a que existe entre um adulto e um bebê de colo.
O segundo, quando opina, literalmente não sabe do que fala: expressa apenas seu estado de alma,
passando a léguas do objeto do qual imagina estar discorrendo. Excetuada uma estreita faixa de
conversação pragmática, é assim que pensa a maior parte das pessoas. Suas opiniões traduzem anseios,
cismas, temores: quase nada da realidade em que vivem.

O problema que daí resulta para as democracias é temível. De um lado, as noções de direito, liberdade,
debate aberto, etc., pressupõem no cidadão a força de superar intelectualmente seu círculo de
impressões subjetivas e de comunicação pragmática. De outro lado, a propaganda ideológica aposta
tudo nas reações automatizadas, programáveis através de símbolos, chavões e slogans. O cidadão é
convidado a exercer capacidades intelectuais superiores que, ao mesmo tempo, são reprimidas e
massacradas em favor de uma lógica pediátrica na qual o rótulo vale pela substância e a proximidade de
duas palavras é identidade de coisas.

Para desfazer o feitiço das palavras, é preciso descompactá-las, separando os vários significados e
intenções que subentendem, e depois montá-los de novo segundo um conhecimento de experiência
traduzido em conceitos claros.

Mas o que a razão se esforça em distinguir e ordenar é justamente aquilo que a propaganda busca
mesclar indissoluvelmente numa grudenta pasta semântica de enorme força sugestiva e significado
objetivo nenhum.

Desvencilhar-se dessa pasta exige uma concentração de espírito, uma amplitude de informação e um
repertório verbal que estão infinitamente acima do que se pode esperar, no Brasil de hoje, não só da
população humilde mas também de gente universitária.

Daí que essas pessoas tomem como realidade qualquer associação de palavras que se torne
suficientemente usual para não suscitar estranheza.

A expressão “sociedade injusta”, por exemplo, é de uso tão freqüente que não parece conter nenhuma
intenção maligna, apenas a descrição de um estado de coisas que todos admitem como real. Mas o que
a experiência mostra é apenas uma sociedade pobre, mal organizada, encrencada, sofredora. Nessa
sociedade há seguramente injustiças, mas chamar “injusta” à sociedade enquanto tal subentende que
haja um tribunal superior a ela, capaz de julgá-la como um todo. E nenhum tribunal como esse pode
existir, exceto no Dia do Juízo, fora do tempo histórico. Os homens de religião, quando muito santos, são
às vezes admitidos como porta-vozes virtuais dessa justiça supratemporal, com a condição de que
exerçam esse papel com modéstia e prudência, limitando-se a dar conselhos sem querer impor suas
decisões à comunidade. Mas, a partir do momento em que o símbolo “sociedade injusta” adquire foros
de realidade na imaginação das multidões, qualquer partido ou grupo que lance constantes acusações à
“sociedade” acaba sendo aceito como porta-voz daquela instância judiciária absoluta, superior a todas
as jurisdições humanas. Se a sociedade é injusta, ela não pode fazer justiça. Aquele que prometa fazê-la
em seu lugar torna-se pois juiz da sociedade inteira: torna-se autoridade moral ou religiosa, mas sem o
freio da abstinência política que limitava a esfera de ação dos religiosos tradicionais. Tem as chaves dos
dois reinos: poder terrestre e autoridade celeste, César e o Papa fundidos na onipotência de uma elite
militante. Antonio Gramsci recomendava explicitamente que a autoridade do Partido se elevasse ao
estatuto de um “imperativo categórico”, de um “mandamento divino” (sic) que moldasse e dirigisse
todas as discussões desde alturas invisíveis à massa dos cidadãos, que seriam então facilmente
conduzidos como bois de carro pela elite partidária no instante mesmo em que acreditassem desfrutar
de plena liberdade.

Somente uma força poderia opor-se a essa estratégia: a educação, a preparação dos cidadãos para o uso
maduro e refletido da linguagem. Mas, se as instituições educacionais se tornaram caixas de ressonância
do discurso ideológico, está tudo perdido: a análise dos símbolos é condenada como propaganda,
enquanto a propaganda é aceita como traslado literal de realidades inegáveis.

Quando se chega a esse estado de coisas, a derrocada total da inteligência se segue inexoravelmente,
reduzindo a cultura à propaganda. Então só resta decidir se a propaganda seguirá à risca as normas da
burocracia ou, mais gramscianamente, se deixará enfeitar pelas fantasias vaidosas de artistas
colaboracionistas — um debate que, por essas mesmas razões, só interessa a colaboracionistas e
burocratas, ou Cacás e Gushikens.

O Globo, 17 de maio de 2003

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