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Da ignorância à loucura

Olavo de Carvalho

Já assinalei mil vezes, em cursos e artigos, mas igualmente em vão em ambos os casos, esse
traço inconfundível do leitor brasileiro atual, sobretudo universitário, que é a incapacidade de
discernir entre a expressão de um estado emocional e a referência a um fato percebido. O que quer
que um autor diga é interpretado sempre como manifestação de seus desejos, gostos, preferências,
ódios e temores, e nunca como descrição adequada ou inadequada de um dado do mundo objetivo.
Nos termos da teoria clássica de Karl Bühler, a linguagem é reduzida à sua função expressiva, com
exclusão da denominativa. Isso configura nitidamente um quadro de analfabetismo funcional.
O que hoje se chama “ensino universitário” neste país consiste essencialmente na transmissão
sistemática dessa incompetência às novas gerações. Se é verdade que a incapacidade de
compreender o que se lê é um sinal de educação deficiente, então a quase totalidade da educação
superior tal como praticada no Brasil deve ser condenada, simplesmente, como propaganda
enganosa.
Esse estado de coisas não resulta apenas da “má qualidade”, genérica e abstratamente. Ele vem
de um aglomerado de influências culturais bem ativas, constituído de marxismo gramsciano,
psicanálise, relativismo antropológico, nietzscheanismo, desconstrucionismo, mais teoria dos
paradigmas científicos de Thomas S. Kuhn. O sincretismo dessas influências, que hoje constitui a
típica atmosfera ideológica do nosso ambiente universitário, tem sobre as inteligências juvenis um
efeito embrutecedor e paralisante, agravado pelos cacoetes do vocabulário “politicamente correto”
que se impõe como idioma obrigatório das discussões pretensamente letradas.
Cada uma dessas correntes, considerada individualmente, se caracteriza por ser uma hipótese
limitada e provisória, elaborada dentro de categorias que só se aplicam a classes de objetos muito
determinados e fundada numa base empírica muito estreita. Mas o efeito conjugado delas, na
exclusão de quaisquer outras influências culturais de maior envergadura que pudessem relativizá-las
e reduzir cada uma ao tamanho que lhe é próprio, é produzir no estudante uma falsa impressão de
universalidade que lhe dá a ilusão de estar muito bem orientado no horizonte maior da cultura,
justamente no instante em que suas perspectivas se comprimem até à medida do provinciano e do
gremial.
Nenhuma dessas correntes, e muito menos a soma delas, tem a universalidade necessária para
poder constituir a base de uma educação superior. Para quem já viesse do curso secundário com
essa base, o estudo delas poderia ser útil, à guisa de tempero crítico e contrapeso relativizador. O
que não se pode é admitir uma bagagem cultural constituída apenas de contrapesos ou uma
alimentação constituída somente de temperos. É precisamente essa falsa bagagem e esse falso
alimento que hoje formam a substância mesma da educação superior no país.
Quando me refiro a base, o que quero dizer é o conhecimento dos dados fundamentais da
civilização e a aquisição de um quadro de referências histórico-cultural suficientemente amplo. Isto
só se adquire pela absorção do legado grego, cristão-medieval, renascentista e moderno, de
preferência encaixado no panorama maior das culturas antigas e orientais.
Na mente que possua essa base, aquelas modas culturais ingressam como acréscimos de detalhe
que podem exercer um efeito vivificante sobre a visão do conjunto. Sem base, os detalhes, boiando
soltos no vazio, acabam por constituir um “Ersatz” de totalidade, preenchendo com opiniões
genéricas e frases de efeito o espaço que deveria estar repleto de conhecimentos positivos. A
deformidade intelectual daí resultante faz da mente do estudante brasileiro uma caricatura grotesca
da inteligência humana.
Caracterizam-na a completa falta do senso das proporções, a quase impossibilidade de
distinguir entre forma e matéria, a ênfase obsessiva em detalhes de ocasião, a completa cegueira
para as contradições mais patentes.
Um exemplo é a transformação que o relativismo sofreu ao tornar-se moda nos nossos círculos
acadêmicos. Ele já não é mais aquela precaução elegante que buscava compensar a unilateralidade
das afirmações mediante o reconhecimento da verdade ao menos parcial das suas contrárias. É um
ceticismo ou negativismo militante, fanático, agressivo, irracional, que afirma peremptoriamente a
inexistência de quaisquer verdades objetivas e tem um acesso de cólera sagrada à menor cogitação
de que alguma talvez exista. Não há nada mais ridículo do que um relativista que se apega ao
relativismo com fé dogmática e rejeita como tentação demoníaca a possibilidade de que alguma
afirmação talvez seja menos relativa que as outras.
O efeito desse hábito sobre a inteligência é devastador. Não existindo verdades objetivas, a
linguagem só pode ser compreendida como expressão de estados subjetivos -- mas não ocorre
jamais aos viciados nesse enfoque a idéia de que também sua apreensão dos estados subjetivos
alheios não poderia, nesse caso, ser uma percepção objetiva mas somente a projeção dos seus
próprios estados subjetivos. O alardeado “pensamento crítico”, em tais circunstâncias, torna-se
apenas um tiroteio cego de imputações projetivas que se ignoram, até o ponto de que o “objeto” em
discussão, reduzido a mero pretexto de afirmações da vontade, desaparece completamente de vista.
A possibilidade de uma “argumentação” é aí evidentemente nula, e o único fator decisivo que
condiciona a vitória ou derrota nas discussões é a maior ou menor capacidade de impressionar
mediante uma “performance” psicológica mais exibicionista e mais insana, e por isto mesmo mais
de acordo com as expectativas doentias da platéia.
O ambiente dessas discussões é evidentemente psicótico, e a aquisição desta psicose é hoje
considerada não apenas um sinal de cultura, mas um requisito indispensável para o cidadão ser
aceito como pessoa normal no ambiente universitário. A formação superior, nessas condições,
consiste em passar da ignorância natural à inconsciência militante e desta à onipotência cega que
culmina na loucura.

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