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A autópsia de Terri

Ali Kamel
O Globo, 12/07/05

Em todo o mundo, as notícias sobre a autópsia de Terri Schiavo dizem que o exame prova que ela
de fato estava em estado vegetativo permanente, sem nenhum grau de consciência. A autópsia teria
provado mais: ela também estaria cega. Com esses resultados, sentem-se mais confortáveis os que
defenderam a decisão da justiça americana de permitir que Terri deixasse de ser alimentada e, com
isso, morresse de fome e sede. As notícias, porém, estão completamente erradas.
Uma autópsia é unicamente capaz de analisar a anatomia dos órgãos do morto e, com isso,
descrever em que grau eles apresentam defeitos. No que diz respeito ao cérebro, porém, o exame é
incapaz de descrever o estado mental do morto quando vivo. Li as 39 páginas da autópsia de Terri,
como devem fazer todos os que escrevem sobre o assunto. E, nisso, fui auxiliado pela neurocientista
Lúcia Braga, diretora-executiva da Rede Sarah de Hospitais e presidente da Federação Mundial de
Neuroreabilitação. Ela não é responsável por minhas opiniões, mas me ajudou a evitar erros
técnicos.
Recordemos. Os pais de Terri, apoiados no exame clínico de dois médicos, diziam que ela estava
minimamente consciente e que seu nível de entendimento poderia vir a melhorar. Três outros
médicos, um apontado pela Justiça e dois, pelo marido de Terri, diziam que ela estava em estado
vegetativo permanente, sem esperança de melhora. Apesar da divergência, a justiça ficou com a
maioria e aprovou que ela deixasse de ser alimentada.
Pois, então, o que diz a autópsia? “O estado vegetativo permanente e o estado de consciência
mínima são diagnósticos clínicos e não diagnósticos patológicos”. Ou seja, trata-se de um
diagnóstico somente possível de ser feito em seres vivos e nunca a partir do exame de um cadáver.
O relatório é bastante cuidadoso. Diz que, embora haja publicadas numerosas autópsias de cérebros
de pacientes que vegetavam, a anatomia desses cérebros varia caso a caso, dependendo do que
provocou a inconsciência. E diz mais: não há estudos semelhantes em pacientes que morreram em
estado de consciência mínima. De um lado, portanto, as anatomias de cérebros de pessoas que
vegetavam variam muito e, por isso, adiantam pouco na comparação com o cérebro de Terri. E, de
outro, não existem autópsias de cérebros de pessoas com consciência mínima, o que torna
impossível dizer se o cérebro de Terri era compatível com outro em tal estado.
Apesar da variabilidade, o relatório diz, porém, que há dois padrões principais na anatomia de
cérebros de pessoas em estado vegetativo: necrose difusa do córtex laminar, mais presente em
pacientes cuja inconsciência decorreu da falta de oxigênio, e lesão axonal difusa, mais presente em
pacientes que sofreram ferimentos traumáticos. O cérebro de Terri apresentava a primeira anomalia,
mas não a segunda. Mesmo assim, não se pode dizer a partir disso que ela vegetava. E por uma
razão simples: se todas as autópsias de pessoas em estado vegetativo permanente mostram que elas
têm necrose difusa do córtex laminar, nem todas as pessoas com necrose difusa do córtex laminar
apresentam estado vegetativo permanente.
O relatório, portanto, atesta com todas as letras os limites da autópsia: “Por si só, exames
neuropatológicos do cérebro de Terri — ou de qualquer cérebro, com o mesmo propósito — não
podem comprovar ou refutar um diagnóstico de estado vegetativo permanente ou de estado de
consciência mínima”. Na conclusão, o patologista-chefe, Jon Thogmartin, redige oito perguntas. A
pergunta número cinco é a seguinte: “A senhora Schiavo estava em estado vegetativo
permanente?”. A íntegra da resposta: “O estado vegetativo permanente é um diagnóstico clínico ao
qual se chega por meio de exames físicos em pacientes vivos. Correlações post mortem entre o
estado vegetativo permanente e achados patológicos têm sido feitas na literatura, mas os achados
variam com a etiologia do evento neurológico adverso”. Em outras palavras, a autópsia nada pode
dizer sobre isso.
Os jornalistas enlouqueceram, então? Convencidos de que Terri era uma morta e viva, talvez
tenham lido a autópsia com um olhar enviesado. Suas conclusões equivocadas talvez tenham sido
também provocadas por um erro de ênfase do relatório. Os patologistas deram grande destaque ao
peso do cérebro de Terri: 615 gramas, menos da metade do peso considerado normal para o cérebro
de uma mulher saudável de mesma idade. O cérebro de Terri seria ainda menor do que o de Karen
Ann Quinlan, que pesava 815 gramas quando ela morreu em 1985.
Karen teve também uma vida trágica: num estado semelhante ao de Terri, ela vivia ligada a um
respirador artificial. Os pais dela então empreenderam uma longa luta judicial para que tivessem o
direito de desligar os aparelhos. Venceram, mas, mesmo sem o respirador, Karen continuou viva
durante mais dez anos, até morrer das complicações decorrentes de uma pneumonia. Naquele
tempo, ninguém ousaria pedir que ela fosse deixada à míngua, sem alimentação, e com isso, Karen
morreu alimentada e hidratada.
Ocorre que 70% do cérebro de qualquer pessoa são feitos de água. Ao morrer, Terri estava havia 13
dias sem beber água, absolutamente desidratada, seca. O patologista chefe chegou a dizer que nunca
tinha visto um cadável com tal nível de desidratação. O peso do cérebro de Terri foi obviamente
afetado pela desidratação e, por isso, vale pouco a comparação com uma mulher saudável ou
mesmo com Karen. Mas, mesmo que não tivesse sido, o peso tem importância relativa. Pesquisas já
demonstraram que o cérebro de idosos encolhe até 30% em relação ao de jovens mas, em testes,
mostram-se em igualdade de condições mentais. Há casos de crianças que nasceram com apenas
metade do cérebro e ingressaram na universidade. Partes remanescentes podem absorver funções
das partes mortas.
Esse mesmo princípio explica por que não se pode dizer que Terri estava cega, mesmo a autópsia
tendo revelado que a parte do cérebro de Terri responsável pela visão estava toda deteriorada. Mais
uma vez, porém, a autópsia não pode assegurar que ela estivesse cega, porque o que restou do
cérebro pode ter absorvido tal função. Os jornais se apressaram a concluir que as cenas em que
Terri acompanhava com o olhar a trajetória de uma bola de encher mostravam apenas atos
autômatos. Isso poderia ser verdade se ela acompanhasse a trajetória de um ponto luminoso, porque
a pupila se abre ou fecha respondendo, reflexamente, à luz, mas o mesmo não aconteceria com um
objeto sem luz. Somente uma ressonância magnética funcional poderia verificar com certeza se
aquela região do cérebro entraria em atividade diante de estímulos visuais. E isso nunca foi feito.
Aliás, a parte mais chocante do relatório é justamente a que tenta explicar por que os médicos de
Terri não a submeteram a um dos dois tipos de ressonância: o anatômico e o funcional,
indispensáveis para descobrir o estado de consciência de Terri. A funcional, como disse, mostra a
atividade no cérebro quando se submete o paciente a um estímulo externo (visual, por exemplo). O
relatório diz que a FDA, a agência americana que controla o uso de remédios e exames, lançou um
alerta advertindo que ressonâncias em pacientes com um estimulador neurológico implantado no
cérebro podem causar danos permanentes, coma e até a morte. Terri usava um implante de nove
centímetros. Ocorre que o alerta da FDA foi dado no mês passado, dois meses depois da morte dela.
Não se sabe por que o exame não foi feito antes do implante. Uma coisa é certa: médicos deixaram
de submeter Terri ao exame que poderia mostrar se ela tinha algum grau de consciência, por temer
que ele provocasse mais dano neurológico ou a sua morte; e, depois, os mesmos médicos, atestando
que Terri era inconsciente, levaram a justiça a decidir deixá-la morrer de fome e sede. É uma lógica
que não compreendo.
A autópsia de Terri mostra que o seu cérebro estava danificado de uma maneira trágica, mas é
incapaz de afirmar que ela vegetava. Terri era uma mulher extremamente incapacitada e, por isso,
indefesa, incapaz inclusive de se alimentar por si só. Ela, mais do que ninguém, merecia continuar a
ser alimentada e hidratada. É um direito fundamental. Que a justiça americana tenha concordado em
negá-lo é uma mancha que não se apagará.

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