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A dor que nos alimenta

Alexandre Ramos da Silva

No longínquo ano de 1983, quando me tornei aluno do saudoso professor Angelo Longo,
encontrei logo na introdução d’As regras do método sociológico, de Émile Durkheim, esta frase que
foi uma verdadeira iluminação: “Quem nunca sofreu é um monstro”. Desse livro trago duas
lembranças: essa frase e o fato de que, até hoje não sei por que, nunca passei da bendita introdução.
A assim chamada sabedoria popular tem os seus muitos momentos infelizes, e um deles é
quando afirma que aquilo que aqui se faz, aqui se paga. Ora, não é bem assim. Pois justamente uma
das questões que preocupa as religiões e filosofias é justamente a da justiça retributiva última, isto
é, aquilo que vamos receber pelo bem e mal que fizemos ao longo de toda a vida. O budismo, por
exemplo, não explica a origem dos valores, nem diz quem emite o juízo e faz cumprir a sentença,
mas garante que o mal que cometemos será punido em encarnações futuras. Nos salmos
encontramos, ao lado da constatação da transitoriedade desta vida e da certeza de uma retribuição
divina, a afirmação desconcertante: “Cheguei a ter inveja dos malvados, ao ver o bem-estar dos
pecadores. Para eles não existe sofrimento, seus corpos são robustos e sadios, nem conhecem a
aflição dos outros homens”. O cristianismo, enfim, embora não dispense nossa colaboração, ensina
que somos salvos somente pela misericórdia de Deus.
E o que tem a ver tudo isso com Durkheim? Tem que, ao sairmos dessa diversão de escravos
que é o carnaval, esse delírio injetado na veia de um povo carente de casa, comida e escola, mas
principalmente carente de cultura, dignidade e espírito, vejo aqui uma boa ocasião para refletir
sobre a dor, exatamente o oposto desse prazer tão intensamente desejado quanto frustrante.
Das nebulosas pesquisas genéticas que se fazem hoje — e creio não ser paranóico se acredito
que aquilo que vem ao nosso conhecimento é uma ínfima parte do que anda rolando pelos
laboratórios —, um dos mais ambicionados objetivos é o prolongamento da vida. Nada,
absolutamente nada vai deter quem puder pagar por uns anos extras, e muito menos os que tiverem
os meios técnicos de atender a esse mercado. Os corpos, inclusive de crianças, que volta e meia são
encontrados no lixo sem determinados órgãos já são o anúncio dos tempos terríveis que virão.
Quem nunca sofreu é um monstro: não conhece a aflição dos outros homens. Movidas a
prozac, muitas pessoas fogem da dor e da morte a qualquer preço, mesmo que seja a dor e a morte
dos outros. Creio até que a busca do prazer em todas as modalidades que apareçam é mais uma
expressão do horror ao sofrimento e à morte do que algo consistente em si mesma.
E, no entanto, é justamente no sofrimento que nos humanizamos. Porque é a partir das nossas
próprias dores que podemos imaginar a dos outros e, no mínimo, ter a decência de procurar evitar
que os outros sofram por nossa causa. O cardeal Joseph Ratzinger afirma com propriedade que
“aqueles que da dor só sabem dizer que é preciso combatê-la, nos enganam. Certamente é
necessário fazer o possível para aliviar a dor de tantos inocentes e para limitar o sofrimento. Mas
uma vida humana sem dor não existe, e quem não é capaz de aceitar a dor rejeita a única purificação
que nos torna adultos”.
É no enfrentamento diário da dor, em suas expressões física, psíquica e moral que robustecemos
nossa musculatura espiritual, que nos tornamos fortes para vencer a vida, que adquirimos
sensibilidade e solidariedade para com os outros. Aquilo que se pode fazer para evitar ou minimizar
o sofrimento deve ser feito, mas nunca ao custo de nossa própria insensibilização, que cedo ou tarde
acarreta sofrimento para alguém.
Buscar a dor pela dor não deixa de ser uma forma doentia de prazer, mas quem foge do
sofrimento se torna um monstro, e provoca a aflição dos outros. Por outro lado, a dor enfrentada de
maneira sadia clarifica a visão e organiza as prioridades, deixando as coisas secundárias ou fúteis no
lugar que lhes é devido.
Já me disseram que a vida é um oceano de dor, e é mesmo. Mas estou convencido também de
que justamente essa dor é que faz com que sejamos homens e mulheres de verdade. Quando
dizemos, diante de certas situações, que precisamos nos beliscar para ver se estamos mesmo
acordados, talvez estejamos expressando uma profunda verdade: a dor nos desperta, nos faz
enxergar direito, nos tira do bem-bom do sonho e nos traz à realidade.
A mesma fibra moral que forma o indivíduo é a que edifica uma nação, e o meio mais rápido
para subjugar um povo é exatamente solapar os valores do espírito, romper o vínculo do homem
com sua própria alma e com Deus através de um porre permanente de pequenos prazeres,
desfrutáveis ou apenas desejados.
Um mosteiro é um observatório privilegiado dos sofrimentos humanos, dos desastres morais, da
destruição de famílias, carreiras e reputações, dos danos causados por doenças e acidentes, e
especialmente pela perversidade, nossa própria ou alheia 1. Mas é também um lugar onde se narram
vitórias, das pequenas do cotidiano às grandes que exigiram o empenho de toda uma vida.
Os irmãos com os quais partilho diariamente a oração e o trabalho, e os inúmeros amigos,
hóspedes e visitantes que recebemos, e que deixam aqui o relato — muitas vezes escrito com
sangue — de seus combates, de suas derrotas e vitórias, de sua teimosia em acreditar em Deus e
neles mesmos —, podem perfeitamente fazer suas as palavras de J. M. Simmel diante dos
escombros materiais e morais de sua amada Alemanha ao fim da guerra, e dizer que, ao longo do
tempo, “criamos uma couraça espiritual, e a vida tem que imaginar grandes planos hoje em dia se
quiser nos derrotar. Será preciso um diabo-chefe para nos fascinar, e terão que nos matar três vezes
para estarmos realmente mortos. Porque não é a nossa pureza que nos conserva, mas o veneno que
carregamos em nós. Cada dor nos torna mais ricos, e viveremos do pão secreto que cresce nos
sulcos da renúncia, e daquela força que nasce incessantemente em nós a cada decepção, a cada nova
tribulação, a cada novo desespero”.

1
O antropólogo catalão Lluís Duch entende até que “uma sociedade como a nossa segrega uma quantidade
fabulosa de despojos humanos, de vítimas, de inadaptados, de modo que acolher, pacificar, curar as feridas físicas
e espirituais; exercer a partir do insecularizável (a compaixão, a misericórdia, a gratuidade) o ofício de bom-
samaritano, a arte de aproximar o distante, o estranho, o diferente pode ser a grande missão do monaquismo nos
próximos tempos”.

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