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O poder curativo do perdão

Ana Elisa Faria


05 de Junho de 2022

“É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado? É difícil perdoar? Mas quem disse que
é fácil se arrepender?” No poema “Nem Tudo É Fácil”, a escritora Cecília Meireles mostra um pouco da
complexidade que ronda o perdão, um ato tão poderoso, capaz de criar empatia e bem-estar, quanto
destrutiva, podendo levar uma pessoa rancorosa a uma espiral de mal-estar e doença.

Não é fácil perdoar. As famílias que romperam relações durante as Eleições de 2018 ou os inúmeros
protagonistas dos causos relatados no quadro Picolé de Limão, do podcast Não Inviabilize, são prova
disso, mas perdoar, apesar de custoso, é preciso. Quem afirma são especialistas da saúde física e
mental.

“Quando sentimos raiva, a frequência cardíaca, a vasodilatação e a pressão arterial aumentam, o que é
evolutivo e pode ser bom para protestarmos contra uma injustiça, por exemplo. No entanto, se essa
emoção ocorre de forma descontrolada e com regularidade, a pessoa pode vir a ter uma arritmia, que
pode causar problemas cardíacos no futuro. É como o estresse. Uma coisa é o estresse agudo,
momentâneo; outra é o estresse contínuo, crônico”, diz Angela Wyse, professora de bioquímica da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e neurocientista da Academia Brasileira de
Ciências.

Ela explica que no cérebro tudo está inter-relacionado. “As amígdalas cerebrais são o centro das nossas
emoções. Quando recebemos um estímulo, como raiva ou medo, essas estruturas respondem e enviam
uma mensagem ao hipotálamo, que se comunica com a hipófise, que lança um hormônio, o
adrenocorticotrófico, para o sangue. Esse hormônio pode ir à glândula supra-renal e, lá, liberar
adrenalina e cortisol.”

E o nosso organismo vai responder a todo esse processo de diversas maneiras, como uma taquicardia
ou levar a quadros de depressão e ansiedade.

Assuntos do coração
Perdoar, portanto, faz bem ao coração. O cardiologista Álvaro Avezum é um estudioso dos dois temas: o
perdão e o importante órgão muscular que mantém os seres humanos vivos. Há 11 anos, ele fundou o
Departamento de Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (DEMCA) da Sociedade Brasileira de
Cardiologia (SBC), que estuda o conjunto de valores morais e emocionais que norteiam o que pensamos
e como agimos.

O especialista conta que, de acordo com a literatura médica, existe uma associação entre os indivíduos
sem disposição ao perdão e doenças cardiovasculares, como trombose, arritmia e hipertensão arterial.
“Os marcadores inflamatórios que vão na direção errada e se associam ao adoecimento do coração
estão mais aumentados em quem não se dispõe ao perdão.”

Segundo o médico, sempre que alguém se lembra do fato que considera ser uma ofensa e que ainda
não perdoou, para a pessoa, aquilo é uma lembrança, mas para o corpo o evento todo está sendo
revivido. “Ao se lembrar, a pessoa tem uma descarga de adrenalina e cortisol, que acabam liberando
marcadores nocivos ao equilíbrio interno. Se o indivíduo relembra aquele acontecimento todos os dias,
por dez anos, ele bombardeia o corpo com hormônios e marcadores que são nocivos ao bem-estar. A
ruminação e os desejos de reparação e vingança só produzem hormônios negativos”, afirma.

Por outro lado, Avezum menciona que a gratidão está relacionada com um menor adoecimento
cardiovascular, assim como ter um propósito de vida está ligado a uma maior sobrevida.

Reconstituição dolorosa
Mas por que, então, diante de todos os benefícios para a saúde, perdoar é tão complicado, um assunto
até meio tabu? Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), responde: “É difícil porque perdoar dá trabalho, tanto para quem
perdoa quanto para quem quer ser perdoado. Esse ato implica em voltar a um assunto incômodo, em
não esquecer, em lembrar de forma compartilhada. Você reconstrói a situação e, muitas vezes, reabre
aquele caso. Então, o perdão envolve um certo risco. No discurso corrente, falamos em pedir perdão e
pedir é um gesto que pode ter uma alta carga de trabalho e risco psíquico porque pedir, por definição,
significa que o outro pode não aceitar. E muitas pessoas temem essa situação”.

Outro elemento citado por Dunker que desfavorece o perdão é que muitas vezes, na nossa cultura, o
perdão acaba não sendo plenamente efetivo “no sentido de reparar e permitir que as duas pessoas
envolvidas numa determinada situação ou uma comunidade que seja continue em frente”.

“A cultura brasileira valoriza pouco o perdão, curiosamente. O universo jurídico, por exemplo, aconselha
à negação de um crime cometido até o fim, ou seja, é mais conveniente você negar do que pedir perdão,
do que você reconhecer, do que você voltar atrás. Na cultura do Brasil, o pedir perdão, o reconhecimento
de um erro ou de uma falta estão associados à humilhação, à perda de prestígio, ao enfraquecimento, ao
ser tomado como alguém que pode ser vilipendiado pelos outros”, explana.

Há um risco social bastante elevado dada à nossa cultura punitiva, diz Dunker. “Como a gente lida
genericamente com crimes, com as infrações? A gente quer punição. Atualmente no país, está instalada
uma cultura do sangue e da vingança, o que desfavorece o perdão real e efetivo.”

Um torniquete na dor
De acordo com o psicanalista, todos esses motivos fazem com que o perdão seja um gesto muito nobre
e, por vezes, inesperado. Inesperado é justamente o adjetivo que melhor descreve o motivo pelo qual
Adriana Santiago, psicóloga clínica e diretora do Núcleo de Aplicação e Pesquisa da Psicologia Positiva
(NUAPP), escreveu o livro “O Poder Terapêutico do Perdão”. Para perdoar, mesmo que internamente, o
ex-marido, que incendiou a casa onde viviam.

“A palavra escrita materializa o pensamento e é como se você colocasse um torniquete na dor. Se eu fico
alisando a dor, aquilo cresce e me engole, até eu me tornar uma pessoa amargurada, deprimida,
egocêntrica”, reflete e complementa: “Quando não perdoamos, nos permitimos que o outro perpetue a
tortura, e isso causa dor, câncer, depressão, AVC, problemas cardíacos. As emoções são soberanas aos
instintos vitais”.

Perdoar, já sabemos, é uma tarefa trabalhosa e dolorosa em vários casos, mas o perdão é um ótimo
remédio para uma vida tranquila. A psicóloga comenta que, para perdoar, ninguém precisa apoiar as
atitudes alheias ou ficar cara a cara com quem feriu ou fez mal.

“O grande recurso é usar a empatia, é se colocar no lugar do outro, mesmo sem concordar com o outro.
É entender os motivos que levaram aquela pessoa a fazer determinada coisa. Muita gente não tem
recursos para compreender o porquê de tal ação não ser legal. Além do mais, existem pessoas más,
hipócritas e preconceituosas. Por isso, precisamos da empatia para entendê-las.” Ela também indica a
escrita como ferramenta que leva ao perdão, além de psicoterapia.

Santiago avalia, ainda, que perdoar não significa se reconciliar. “Quando entendemos isso, a gente se
libera e solta o outro também. Perdoar não quer dizer esquecer, aquilo está registrado emocionalmente
de forma indelével, mas é preciso ressignificar essa emoção.”

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