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Sensibilidade ao sofrimento

"Você precisa mudar de atitude e confiar em Deus". Quem de nós nunca ouviu esta
frase, ao desabafar uma dor física ou psicológica com outra pessoa, ou talvez não a tenha
falado a algum amigo que expusesse a nós seu sofrimento? A reação é comum,
especialmente se a exposição dos infortúnios alheios é reiterada. Quando acontece nos
meios cristãos, parece ser ainda mais comum. O cristão praticante pode, corretamente,
colocar a confiança em Deus sobre tudo, inclusive sobre os mais terríveis sofrimentos.
Especialmente com a promessa de Deus de que as tentações nunca são maiores do que as
forças que Ele nos concede para enfrentá-las(1 Co 10.13). Felizes e abençoados os que
realmente praticam isto em suas vidas e testemunham tamanha confiança no amoroso Pai
celeste diante dos demais.
Porém, isso não significa que, como cristãos, tenhamos o papel de meros "agentes
repetidores" de uma frase. A dura realidade da vida terrena, do cristão ou não, é de que o
sofrimento que cada pessoa carrega sempre parece maior do que aquele que ela vê o outro
carregar. O cego normalmente terá a tendência de achar que sofre mais do que o surdo, que
achará que sofre mais que o amputado, que achará que sofre mais que o tetraplégico, que
achará que sofre mais do que o deprimido, que achará que sofre mais que o canceroso, que
achará que sofre mais que o cego... e por aí se vai criando círculos viciosos. Há exceções,
sem dúvida. E bom seria que pessoas que não tivessem esse sentimento negativo fossem a
regra. Mas o pecado que habita nossos corações tem muita força, e isso também pode se
refletir na falta de sensibilidade e solidariedade em relação ao sofrimento alheio.
No ano de 2005, foram destacados pela academia de Hollywood dois filmes que
venceram o Oscar: Menina de Ouro, como melhor filme em língua inglesa, e Mar Adentro,
melhor filme estrangeiro(Espanha). Ambos tratam do mesmo tema: duas pessoas
portadoras de tetraplegia por lesão medular que não queriam mais viver. Mar Adentro,
inclusive, traz uma história real, ao contrário de Menina de Ouro, que é fictícia. Confesso
que foram estes filmes que me fizeram escrever este artigo. Apesar de não terem a intenção
de defender uma causa, ambos podem realmente tocar fundo no coração das pessoas, e abrir
seus olhos para a questão da sensibilidade à dor, física ou psicológica, que muitos
carregam.
Em Menina de Ouro, a atriz Hilary Swank vive o papel de Maggie Fitzgerald, uma
boxeadora que, ao lutar pelo título mundial, sofre um golpe traiçoeiro de sua adversária,
que a faz cair com o pescoço sobre o banco em seu córner, fraturando sua coluna e
deixando-a paralisada. Movia apenas os músculos do rosto, sendo incapaz até de respirar
sozinha. Precisava ter o respirador conectado a seu corpo 24 horas por dia. Acabou por
convencer seu treinador a ajudá-la a morrer. Em Mar Adentro, o ator espanhol Javier
Bardem interpreta o marinheiro Ramón Sampedro Cameán. Quando jovem, Ramón
mergulhou no mar, sem perceber que a água estava muito rasa para isso, e chocou-se
violentamente contra a areia, o que provocou a fratura de sua sétima vértebra, deixando-o
tetraplégico. Ele permaneceu assim por nada menos do que 29 anos, até afinal encontrar
pessoas que o ajudaram em seu intrincado esquema para tirar sua vida, a qual não desejava
mais viver. Seus amigos realizaram pequenos atos de forma isolada, que não constituíam
crimes por si mesmos, mas levaram Ramón à morte.
Como cristãos que somos, não temos como aceitar que uma pessoa, esteja ela na
condição em que estiver, queira dispor de sua vida. Na Bíblia, todos os suicidas eram
pessoas que não tinham confiança alguma em Deus. O exemplo mais conhecido é o de
Judas, que "foi para seu próprio lugar(o inferno)" após enforcar-se(At 1.25). Deus é o
Criador e Mantenedor da vida, e somente ele pode dispor de nossa existência. Isso é
verdade Bíblica, imutável e inquestionável.
Porém, igualmente como cristãos, temos um papel importantíssimo: o de ajudar
pessoas que sofrem, dentro do que nos for possível. Essa tarefa somente perde em
importância para o ato de testemunhar a fé cristã. Porém, para que isso possa ser feito, é
necessário que estejamos dispostos a abrir nossas mentes e corações. Que saibamos ter
empatia, ou seja, colocar-nos no lugar daqueles que sofrem, perceber como se sentem.
Analisando a questão mostrada nos filmes que foram citados acima, uma pessoa que
detém o controle sobre os movimentos do seu corpo, caso não esteja disposta a ter essa
empatia, colocar-se no lugar do tetraplégico, pode achar que a situação deste não lhe diz
respeito. Nem mesmo se ele manifestar abertamente o quanto sofre por sua condição. No
caso de um cristão, pode-se chegar ao absurdo de dizer-lhe apenas a frese citada no início
deste escrito de achar que estará tudo bem(ou, no caso de uma esposa agredida pelo marido,
que vem buscar ajuda, simplesmente fazer uma oração junto com ela e enviá-la de volta
para sua casa, provavelmente para encontrar a morte).
Mas o fato é que nem todos conseguem adotar uma postura positiva e otimista diante
do sofrimento da tetraplegia, que cito por ser o caso motivador deste escrito. O fato de não
poder mover braços ou pernas é apenas a ponta do iceberg. Uma vez que os impulsos do
cérebro não chegam mais ao restante do corpo da pessoa, isso implicará em mais uma
enorme lista de inconvenientes e riscos, dos quais podemos citar alguns:
a) A pessoa não controlará mais seus esfíncteres, e necessitará do uso constante de
fraldas, dependendo de outros para fazer sua higiene pessoal.
b) Não poderá mais fazer suas refeições sozinha, terá de receber a comida e a bebida
na boca, como uma criança.
c) Não lhe será possível realizar atividades triviais como escrever uma carta. A
menos, é claro, que aprenda a fazê-lo segurando uma caneta em sua boca. Mas até para
poder colocar a caneta na boca será necessária a ajuda de alguém.
d) Para subir ou descer escadas, precisará ser carregada(e é realmente impressionante
a quantidade de degraus que se encontram nas entradas da maioria de nossas Igrejas. Será
que isso é realmente necessário? E isso sem falar que em raras delas se vêem rampas de
acesso para cadeiras de rodas).
e) Viverá sob o risco constante de escaras, um perigoso tipo de ulcerações de pele,
pois não tem como mudar de posição sozinha. Para evitar esse risco, outra pessoa precisará
mudar sua posição na cama ou cadeira de rodas periodicamente. Caso contrário, a formação
das escaras é questão de dias. Elas podem acabar provocando gangrenas e necroses,
forçando a amputação dos membros.
f) Muitas atividades sociais se tornarão impossíveis. Como uma pessoa nesta
condição poderá jogar uma "pelada" com os amigos, ou participar de um trivial jogo de
cartas ou videogame?
g) As alternativas de emprego serão limitadíssimas. No mundo atual, quantos
empregos podem ser citados que não precisam pelo menos do uso das mãos?
h) Dependendo do nível de afetação da medula, ou da altura da lesão, o tetraplégico
não poderá mais respirar sozinho. Necessitará do uso do incômodo respirador. É um
aparelho que passa por sua garganta e vai direto para o pulmão. Qualquer falha no
funcionamento do aparelho significa morte por insuficiência respiratória, risco que deixa
muitos em um estado constante de alerta. Além disso, falar com um tubo invadindo a
garganta não é tarefa fácil. Nem todos conseguem.
Diante de tudo isso, não é de se esperar que o cristão tenha a sensibilidade de
compreender o quanto uma existência pode ser sofrida, e não se colocar na posição de
"impor" otimismo? Ou que não condene sistematicamente aqueles que choram por não
conseguirem se conformar a essa condição?
Citamos aqui apenas o caso da tetraplegia. Mas quantas outras fontes de sofrimento e
dor existem no mundo, amaldiçoado pelo pecado? Quantas vezes cada um de nós não
necessita do carinho, do afeto, da palavra amiga, do ombro da pessoa que se ama? Indo
mais longe: também nós, cristãos, não sentimos muitas vezes o peso da dor em nossa
existência terrena, e choramos, parecendo que nossas forças vão se acabando? Sabemos que
sim. Por que, então, achar que aqueles que carregam fardos que não carregamos não
precisam disso?
A frase do início do artigo não está errada, mas precisa ser mais bem compreendida e
aplicada. Deus sempre está disposto a ajudar a todos a carregar seus fardos. É necessário
que isso seja compreendido pelos que sofrem, mas para que isso aconteça, o cristão tem de
cumprir seu papel. E este é o de ser o mensageiro da esperança, mostrando que Deus
compreende e ama a pessoa, que Ele enviou seu Filho Jesus Cristo para salvá-lo de um
destino muito pior do que o sofrimento terreno.
Jesus Cristo, aliás, é um maravilhoso exemplo dessa empatia, dessa sensibilidade.
Tendo o poder de reverter a morte com apenas um desejo, chorou diante do túmulo do
amigo Lázaro(Jo 11.35). O Senhor dos céus e da terra se sensibiliza diante do sofrimento.
Por que nós tantas vezes escondemos nossos rostos disso? Ou consideramos a tristeza
advinda do sofrimento como prova de falta de fé? A Bíblia jamais disse que o cristão não
pode expressar ou sentir emoções negativas. Muito pelo contrário, pode-se ver claramente
no Livro de Jó, que, vítima de inúmeros infortúnios, chegou a desejar nunca ter
nascido(confira em Jó 3).
Esta é a intenção deste artigo: sensibilizar. Seja você, amigo cristão, irmão na fé, não um
frio "analista" do sofrimento, como um general em seu gabinete, mas alguém que segue o
exemplo de Cristo, sendo sensível a ele, como o soldado que se mobiliza a cada dia. É
como diz Paulo, em Gl 6.2: "Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de
Cristo."

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