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Autoridade parental, incapacidade e

melhor interesse da criança


Uma reflexão sobre o caso Ashely

Ana Carolina Brochado Teixeira


Luciana Dadalto Penalva

Sumário
1. O caso. 1.1. Encefalopatia estática: sin-
tomas e prognósticos. 1.2. O que foi feito com
Ashley? 1.3. Os pais de Ashley e suas razões. 2.
Abrangência da autoridade parental. 3. Direitos
de personalidade: seriam eles renunciáveis? 3.1.
O direito à procriação. 3.2. O direito ao desen-
volvimento físico. 4. Conclusão.

1. O caso
Ashley é uma garota americana de
nove anos portadora de uma doença rara
chamada “encefalopatia estática”. Em 2004,
foi submetida a um procedimento cirúrgico
para retirar seu útero e suas glândulas ma-
márias e, desde então, está tomando altas
doses de hormônio para interromper seu
crescimento, tudo com o consentimento
de seus pais.
Tal fato só foi divulgado pela mídia no
início do ano de 2007, pois o médico que
realizou as cirurgias apresentou o caso à
comunidade científica norte-americana,
narrando a situação. A repercussão dessas
interferências médicas tomou uma propor-
ção mundial, gerando debates acalorados
sobre a eticidade dessas medidas, que só
Ana Carolina Brochado Teixeira é Douto-
foram feitas porque os pais da criança
randa em Direito Civil pela UERJ. Mestre em
Direito Privado pela PUC/MG. Professora de
entenderam serem esses os meios mais
Direito Civil. Advogada. Diretora do Instituto adequados de garantir a qualidade de vida
Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. de sua filha.
Luciana Dadalto Penalva é Mestranda em Diante disso, este artigo propõe al-
Direito Privado pela PUC/MG. gumas reflexões sobre o que seria, nesse
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caso, o melhor interesse dessa criança, que Sua sintomatologia é a mais variada
está totalmente entregue aos cuidados dos possível, embora seja comum em todos os
pais, por total impossibilidade de fazê-lo tipos de encefalopatias o desenvolvimento
sozinha. A discussão passa, inevitavel- motor retardado. Os portadores de paralisia
mente, pelo estudo sobre titularidade e cerebral leve têm alterações finais de movi-
exercício de direitos de personalidade, mento; os de paralisia cerebral moderada
bem como sobre cessão e renúncia dos sofrem dificuldades variáveis em relação
mesmos. Tais questionamentos teóricos à fala e movimentos e, por sua vez, os de
serão feitos à luz do caso concreto de Ash- paralisia cerebral grave têm incapacidade
ley, de modo a verificar-se se as “verdades para andar, usar as mãos e falar.2
dogmáticas” aplicam-se indistintamente A síndrome da qual Ashley é portado-
a todas as situações, ou se podem sofrer ra é um tipo grave de paralisia cerebral,
variações de acordo com as nuances do denominado encefalopatia estática pelo
caso concreto. seu caráter persistente, ou seja, por sua
irreversibilidade. Enfim, em que pese os
1.1. Encefalopatia estática: avanços da neuropediatria nas pesquisas
sintomas e prognósticos de encefalopatias, não há, no momento,
Primeiramente, é preciso ressaltar que tratamento capaz de reverter o quadro
o objetivo deste estudo não é aprofundar de Ashley, cujo desenvolvimento mental
na análise da síndrome da qual Ashley é cessou aos três meses de vida e, hoje, com
portadora, até pelo cunho jurídico deste. nove anos, não fala, não anda, não senta e
Contudo, para o melhor entendimento do se alimenta exclusivamente por sondas.
caso, é de suma importância uma compre-
1.2. O que foi feito com Ashley?
ensão, ainda que superficial, da doença
encefelopatia estática, que se constitui em Em 2004, Ashley foi submetida, no Hos-
uma síndrome neonatal. pital de Criança de Seattle, com o aval do
Na literatura médica, poucos são os diretor do Centro Treuman Kartz para Bio-
autores que tratam especificamente dessa ética Pediátrica, Dr. Douglas Diekema, e de
síndrome, por ser extremamente rara. A seus pais, a dois procedimentos cirúrgicos:
Encefalopatia, mais conhecida como para- retirada das glândulas mamárias e remoção
lisia cerebral, é gênero do qual fazem parte, do útero. Desde então, está tomando altas
segundo a classificação mais aceita pelos doses de estrogênio a fim de manter-se
neurologistas, 7 (sete) categorias maio- pequena e retardar seu desenvolvimento
res, 34 (trinta e quatro) menores e várias sexual. Tal medida foi tomada porque a
subcategorias.1 A paralisia cerebral pode criança, aos seis anos, já estava apresentan-
ser relacionada com vários fatores, entre do sinais de puberdade precoce.
eles: hereditariedade, infecções congênitas, 2
“... apesar de caracterizada pela disfunção motora,
malformações congênitas, complicações a PC é sempre acompanhada por outras desordens da
obstétricas, uso de drogas e medicamentos função cerebral. Entre elas as anormalidades de cogni-
pela gestante, exposição a radiações, fatores ção, visão, audição, fala, sensações táteis, atenção e com-
portamento. A epilepsia geralmente está presente, bem
perinatais (prematuridade e baixo peso, por
como defeitos na função gastrintestinal e crescimento. As
exemplo) e fatores pós-natais (infecções e desordens de funções corticais mais altas têm impacto
traumas cranianos, entre outros). importante nas atividades da vida diária e afetam tarefas
como vestir-se ou apertar botões em uma criança que
1
Sobre esse assunto, ver: Paralisia Cerebral: aparentemente é levemente afetada.” (CÂNDIDO, Ana
abordagem para o pediatra em geral e manejo mul- Maria Duarte Monteiro. Paralisia Cerebral: abordagem
tidisciplinar. Disponível em: <www.paulomargotto. para a pediatria geral e manejo multidisciplinar. Dispo-
com.br/documentos/paralisiacerebra.doc>. Acesso nível em: <www.paulomargotto.com.br/documentos/
em: 23 mar. 2007.. paralisiacerebra.doc>. Acesso em: 23 mar. 2007).

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O referido médico concedeu uma eram maiores do que os riscos de uma
entrevista à rede de televisão americana cirurgia. Em resumo, utilizam os mesmos
CNN,3 na qual afirma que, antes dar seu argumentos do Dr. Douglas Diekema para
parecer sobre o caso, constatou que Ashley justificar os procedimentos médicos e cirúr-
nunca falaria, andaria e seria eternamente gicos realizados em Ashley.
dependente de seus pais para tudo o que A divulgação do tratamento realizado
precisasse fazer. Além disso, sua função na criança trouxe à baila várias questões
cognitiva equivalia à de uma criança com acerca dos reais motivos que levaram os
seis meses de vida e, por essas razões, foi pais de Ashley a proporem aos médicos
favorável à realização das cirurgias e do medidas capazes de interromper seu
tratamento hormonal. crescimento e sua puberdade, motivando
Quanto aos benefícios que o tratamento a reflexão sobre os limites da autoridade
trouxe à Ashley, afirma que será mais fácil parental em casos como esse. Além disso, é
cuidar dela, pois seu tamanho será sempre preciso delimitar outras questões: a condu-
o de uma criança de nove anos, além de ta dos pais de Ashley é moralmente aceita?
que seus pais poderão facilmente abraçá- É juridicamente viável? Será que esses
la e colocá-la em uma cadeira de rodas pais pretendem facilitar a própria vida, na
para passear. Quanto ao desenvolvimento medida em que terão menos trabalho em
sexual, ela não menstruará; portanto, não cuidar da filha quando esta ficar adulta, ou
sofrerá traumas ao ver sangue saindo de de fato visam exclusivamente o bem-estar
seu corpo sem entender do que se trata. da criança? O direito à reprodução é um
Por fim, a retirada do útero tem a função direito fundamental e, portanto, indisponí-
de evitar uma gravidez, que, em virtude vel? Quais os limites da autoridade parental
de sua incapacidade permanente, será in- nos casos em que os filhos têm pouco ou
desejada. Ashley está tomando altas doses nenhum discernimento? Existe um direito
de hormônio para atender à finalidade fundamental ao desenvolvimento físico?
pretendida pelos pais. Questionado quanto A discussão que ora propomos visa
aos riscos que a alta dosagem de estrogênio refletir sobre tais questionamentos.
pode trazer, Dr. Burkholder limitou-se a
dizer que são os mesmos da ingestão de
2. Abrangência da autoridade parental
anticoncepcionais orais.
Finalmente, sobre os prognósticos Todos sabemos que o poder familiar –
acerca do desenvolvimento de Ashley, in- ou autoridade parental, nomenclatura por
formou que, quando adulta, terá feição de nós preferida, por ser mais adequada ao seu
mulher, corpo de uma menina de nove anos conteúdo constitucional4 – tem a duração
e desenvolvimento mental de um bebê de equivalente à menoridade dos filhos, por
seis meses e concluiu dizendo que todos os força do que dispõe o art. 229 da Consti-
procedimentos se justificam pelos motivos tuição Federal de 1988. E também que a
já descritos. autoridade parental é um múnus de direito
privado, um poder jurídico, isto é, um feixe
1.3. Os pais de Ashley e suas razões
de poderes – deveres atribuído pelo Estado
Os genitores justificam o tratamento aos pais, para serem exercidos no interesse
dizendo que a intenção foi melhorar a dos filhos. A Constituição estabelece que
qualidade de vida de sua filha e destacam cabe aos pais a tarefa de criar, educar e
que a decisão foi fácil porque os benefícios
4
Sobre a diferenciação da nomenclatura, reme-
3
Disponível em: <http://www.cnn.com/2007/ temos a TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família,
HEALTH/01/11/ashley.ethicist/index.html?eref=rss_ guarda e autoridade parental. Rio de Janeiro: Renovar,
latest>. Acesso em: 29 mar. 2007. 2005, p. 3-7.

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assistir os filhos enquanto menores. O exer- de seus pais, devendo realizar-se sempre
cício do poder familiar nos coloca diante de uma análise do caso concreto”. Não existe
duas questões: a abrangência quantitativa e uniformidade ou definição rígida do que
qualitativa da autoridade parental. seja tal princípio, cujo exame deve ser feito
A rigor, até que a prole alcance a maiori- em cada caso. Não obstante seja impossível
dade, ou seja, complete 18 (dezoito) anos, os defini-lo de antemão, temos que buscar seu
pais devem guiar a sua vida, bem como de- núcleo essencial, que se constitui na possi-
cidir por ou com eles, vez que, dependendo bilidade de o menor exercer seus direitos
da idade, irão representá-los (até 16 anos) fundamentais. E é bastante salutar que
ou assisti-los (de 16 a 18 anos). Entretanto, o faça por si próprio, na medida em que
na medida em que a Constituição Federal adquire discernimento.5
determinou que a criança e o adolescente Afirma Maria Clara Sottomayor (2002,
são alvos de proteção especial, por serem p. 197) que, embora o interesse da criança
pessoas em desenvolvimento, valorizando ou do adolescente seja um conceito inde-
a construção da sua personalidade, temos terminável pelo seu caráter vago e elástico,
que analisar de forma criteriosa a forma de facilitando interpretações subjetivas, tem
exercer a autoridade parental. Isso porque a um núcleo conceitual que deve ser preen-
criação e educação dos filhos ocorrem como chido por valorações objetivas. Essas se
um processo: tanto maior é a atuação dos atrelam à estabilidade de condições de vida
pais quanto menor são os filhos, ou melhor, da criança, das suas relações afetivas e do
quanto menos discernimento eles têm. À seu ambiente físico e social.
medida que vão crescendo, faz-se menos Poderíamos dizer que o núcleo con-
necessária a intervenção parental, vez que, ceitual nomeado pela autora portuguesa
através dessa mesma convivência e do encontra-se, exatamente, na possibilidade
processo educacional, vivenciam situações de acesso e exercício dos direitos funda-
que lhes conduzem à paulatina aquisição da mentais pela criança e pelo adolescente.
maturidade. Dessa forma, vão-se tornando Tal princípio, aliado à doutrina da prote-
mais aptos para o exercício dos direitos ção integral, visa à proteção da criança, do
fundamentais e, principalmente, a fazerem adolescente, bem como de seus direitos,
opções, com mais liberdade. Entretanto, dis- além de garantir-lhes as mesmas prerro-
cernimento importa, para nós, o exercício da gativas que cabem aos adultos. O dever
liberdade com a correlata responsabilidade, de proteção não se limita ao Estado, mas
ou seja, ter condições psíquicas de assumir também é atribuído à sociedade e à família,
as conseqüências dos seus atos. conforme determina o art. 227 da Carta
O que propomos é, então, uma forma Constitucional, constituindo-se, destarte,
qualitativamente diferenciada do exercício um dever social (Cf. PEREIRA, 1999, p.14).
do poder familiar, respeitando a formação Sua condição prioritária deve-se ao fato
do menor, bem como as fases galgadas de de serem pessoas em desenvolvimento,
construção da personalidade por ele. Essa cuja personalidade deve ser protegida e
nova perspectiva da autoridade parental promovida, mediante o exercício dos di-
vai integralmente ao encontro do princípio
norteador em matéria infanto-juvenil: o
5
Sobre a possibilidade de se respeitar a vontade
da criança e do adolescente, remetemos a MEIRELES,
Princípio do Melhor Interesse da Criança e Rose Melo Venceu, et al. O cuidado com o menor de
do Adolescente. Segundo Tânia da Silva Pe- idade na observância da sua vontade. In: PEREIRA,
reira (1999, p. 3), “a aplicação do princípio Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme. O cuidado como
valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 335-354;
do best interest permanece como um padrão
TEPEDINO, Gustavo. A tutela constitucional da criança
considerando, sobretudo, as necessidades e do adolescente: projeções civis e estatutárias. No prelo
da criança em detrimento dos interesses (original gentilmente cedido pelo autor).

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reitos fundamentais.6 Despiciendo, neste ções ligadas ao Biodireito, como, por exem-
momento, questionarmos qual a forma de plo, na continuidade ou na interrupção de
acesso e exercício dos direitos fundamen- tratamentos médicos.8 Nesses casos, o que
tais pela população infanto-juvenil. Ao que deve prevalecer: a decisão dos pais ou a
nos parece, a relação parental é o modo autodeterminação dos filhos? Não existem
prioritário, em regra, de assegurar-lhes a respostas prontas e preestabelecidas, mas o
experiência de tais direitos, tendo em vista discernimento é a “peça fundamental” para
que o relacionamento familiar é a primeira resolver os casos concretos.
experiência do menor com o outro, princi- Além do aspecto “quantitativo” da
palmente com os pais. É a experiência pri- autoridade parental, há, também, o qua-
meira da alteridade. Esse “outro”, por sua litativo, que tem maior relevância para o
vez, recebeu do Estado um múnus, um feixe desenvolvimento das idéias propostas no
de poderes e deveres a serem exercidos em presente estudo. Imbuídos do múnus do
benefício dos filhos, o que nos autoriza a poder familiar, o que podem os pais fazer
caracterizar a autoridade parental como “em nome” dos filhos? Sob o ponto-de-vista
poder jurídico, no que tange às inúmeras patrimonial, a resposta é óbvia: representá-
categorias das situações jurídicas.7 los ou assisti-los nas situações jurídicas
Portanto, quantitativamente, pensamos patrimoniais. Para isso, questiona-se a
que é possível uma redução gradativa da validade do regime das incapacidades para
abrangência da autoridade parental, em todos os atos, que se exteriorizam mediante
prol da realização da personalidade da o instituto da representação, tendo em vista
criança e do adolescente, relativizando o que esse modelo foi construído “em e para
regime das incapacidades, previsto nos arti- outra realidade”, o que provoca o questio-
gos 3o e 4o do Código Civil de 2002, quando namento da “validade da continuidade de
estão em jogo interesses existenciais da sua utilização sem nenhuma reformulação”
criança e, principalmente, do adolescente. (Cf. CARBONERA, 2004, p. 162). Nesse
Assim, poderão eles participar das decisões sentido, Silvana Carbonera (2004, p. 162)
que definirão o rumo de suas vidas. Sensí- afirma:
vel a tal necessidade, o Estatuto da Criança “A conseqüência da capacidade ou
e do Adolescente – ECA determinou a oiti- de sua falta é a necessidade de inserir
va do adolescente no processo de adoção, no mundo jurídico pessoas que ainda
devendo a sua opinião ser considerada (art. não tenham condições de atuar indi-
28, § 1o). O mesmo deve ocorrer em casos vidualmente. Neste ponto, o instituto
de guarda e visitas/convivência familiar da representação vem suprir esta fal-
quanto à prática de atos ligados ao Direito ta. Contudo, podem ser observados
de Família. Também devemos pensar na claros contornos patrimonialistas no
valorização da vontade do menor em situa- momento de sua elaboração: se um
6
Tal condição lhes foi garantida pelo art. 6o da Lei
menor não pode comprar ou vender
8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo validamente por ser incapaz, que o
teor é o seguinte: “Art. 6o Na interpretação desta Lei possa fazer se estiver representado
levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, ou assistido! Mas será que a repre-
as exigências do bem comum, os direitos e deveres in-
dividuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e
sentação também é suficiente para
do adolescente como pessoas em desenvolvimento.”
7
Sobre o tema, recomendamos a leitura de 8
Tais idéias foram desenvolvidas em TEIXEIRA,
TEPEDINO, Gustavo. A disciplina da guarda e da Ana Carolina Brochado. A disciplina jurídica da au-
autoridade parental na ordem civil-constitucional. In: toridade parental. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha
CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍ- (Coord.). Família e dignidade humana. In: CONGRESSO
LIA, 4., 2004, Belo Horizonte. Anais...Belo Horizonte: BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. 5., 2006, São
Del Rey; IBDFAM, 2004, p. 305-324. Paulo: IOB THomson, 2006, p. 103-123.

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atos de disposição quando o bem é 3. Direitos de personalidade:
indisponível, como é o caso do corpo seriam eles renunciáveis?
humano?”
A nova questão que surge é se também Os direitos de personalidade se referem
poderão tomar decisões cuja repercussão se intrinsecamente à pessoa humana, respei-
dê na órbita existencial, como, por exemplo, tando à sua esfera individual, que prima
no exercício de direitos de personalidade e, pela busca da sua realização enquanto tal.
em última instância, de direitos fundamen- Tais direitos estão atrelados à cláusula de
tais. É a partir dessa reflexão que pensare- tutela da pessoa humana, esculpida pelo
mos na atitude dos pais de Ashley, se seria Princípio da Dignidade Humana, vincu-
ou não admitida no Brasil. lado aos demais objetivos da República,
Quando uma criança nasce, ela é total- inscritos na Constituição Federal de 1988.
mente dependente dos pais ou de seus cui- As características comumente elencadas
dadores, vez que patente sua grande fragili- para os direitos personalíssimos são “a
dade psícofísica. À medida que vai crescen- generalidade, a extrapatrimonialidade, o
do – como já dissemos –, vive um gradativo caráter absoluto, a inalienabilidade, a im-
processo de aquisição de autonomia, que prescritibilidade e a intransmissibilidade”
vai-se manifestando paulatinamente, justi- (TEPEDINO, 2004, p. 33). Além dessas, tam-
ficadora, por outro lado, da diminuição da bém é bastante citada a indisponibilidade,
interferência dos pais. Entretanto, estamos a que “retira do seu titular a possibilidade de
pensar em uma criança que não tem a menor deles dispor, tornando-os também irrenun-
possibilidade de uma vida com autonomia, ciáveis e impenhoráveis” (TEPEDINO, 2004,
vez que sua integridade psicofísica está al- p. 34). Essa característica é a que será por nós
tamente comprometida pela síndrome que discutida, tendo em vista que o foco do pre-
a acomete. Entretanto, não se pode ignorar sente trabalho é investigar a possibilidade
que, “mesmo que um sujeito de direito passe de os pais de Ashley renunciarem por ela a
sua vida toda sem praticar nenhum ato ou direitos personalíssimos, especificamente o
negócio jurídico, de cunho patrimonial ou direito à procriação e à integridade física.
não, ainda assim será titular de um círculo A primeira questão cinge-se à viabili-
mínimo de direitos de personalidade” dade de renúncia – e, portanto, de exer-
(CARBONERA, 2004, p.151). cício – de direitos de personalidade por
Por essa razão, é de suma relevância outrem, in casu, pelos pais, no exercício da
refletirmos sobre o que os pais podem ou autoridade parental. Poderiam eles exercer
não fazer, como titulares do poder familiar, tais direitos pelos filhos? É claro que não,
com uma criança nessas condições. Os ge- e esse é exatamente o problema da contra-
nitores de Ashley a submeteram à cirurgia posição entre poder familiar e exercício
de retirada do útero e à impossibilidade dos direitos personalíssimos, pois estes só
do crescimento, ou seja, comprometeram podem ser exercidos pelo titular, sob pena
o exercício de relevantes direitos seus, tais de se descaracterizarem como tal, além de
como sua integridade física e o direito à não cumprir sua função constitucional de
reprodução. tutela da personalidade. Sobre essa pro-
O caso de filhos incapazes – principal- blemática, manifesta-se Pietro Perlingieri
mente se menores – é bastante peculiar (2007, p. 260):
e exige que a autoridade parental seja “A contraposição entre capacidade
exercida de forma qualitativa e quantita- e incapacidade de exercício e entre
tivamente diversa, pois, quanto menor o capacidade e incapacidade de enten-
discernimento, menor a autonomia e mais der e de querer, principalmente nas
densa a interferência dos pais. relações não-patrimoniais, não cor-

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responde à realidade: as capacidades ser possível afirmar que alguns direitos de
de entender, de escolher, de querer personalidade, em circunstâncias excep-
são expressões da gradual evolução cionais, são renunciáveis ou disponíveis,
da pessoa que, como titular de di- porque visam à realização de um objetivo
reitos fundamentais, por definição maior – concretização da dignidade huma-
não-transferíveis a terceiros, deve ser na – desde que tal escolha seja privativa
colocada na condição de exercê-los do titular. O art. 11 do Código Civil diz
paralelamente à sua efetiva idonei- que essa renunciabilidade só pode ocorrer,
dade, não se justificando a presença excepcionalmente, em casos expressamente
de obstáculos de direito e de fato que previstos em lei.
impedem o seu exercício (...).” Existem hipóteses, inclusive, em que o
Ultrapassada a questão da impossibili- ordenamento jurídico corrobora com tal
dade de exercício de direitos personalíssi- entendimento, como, por exemplo, “no
mos por terceiros, voltamos ao exame da caso de cessão de direito de imagem para
possibilidade de serem eles renunciáveis, fins de publicidade, ou ainda da dispo-
não obstante a doutrina afirme pela irrenun- sição gratuita de tecidos, órgãos e partes
ciabilidade. Tal problema torna-se relevante do corpo humano (rim, pulmão, sangue,
tendo em vista que os pais de Ashley opta- material genético), em vida ou post-mortem,
ram pela histerectomia9 e pelo impedimento para fins de transplante e tratamento (...)”
do crescimento da filha, por julgarem condi- (AMARAL, 2006, p. 250). Entretanto, a au-
zentes com os interesses desta, operando-se, tonomia não pode se limitar a tais situações,
portanto, uma renúncia, em nome dela, de tendo em vista que são múltiplos os direitos
seus direitos de personalidade. personalíssimos, não estando todos eles
Quando se analisa o exercício – ou não – previstos taxativamente, seja no Código
do direito de personalidade pelo próprio ti- Civil de 2002 ou em leis esparsas. Assim, a
tular, o conflito localiza-se entre autonomia impossibilidade a priori de renúncia a direi-
privada e a propalada irrenunciabilidade to de personalidade deve ser vista de forma
dos direitos personalíssimos, uma vez que crítica, mediante uma análise na qual fato
a pessoa pode entender que a forma que e norma dialoguem, de modo a perquirir
melhor realiza sua personalidade é por a função de determinada situação jurídica,
meio da disponibilidade de algum direito vez que é por meio dessa perspectiva que se
de personalidade, como é um caso de um cumprirão os objetivos constitucionais.
transexual.10 Por essa razão, entendemos Não obstante tais observações, o caso
Ashley não se enquadra nessa situação de
9
“É a retirada do útero, que pode ser total, quando a criança ou seus pais poderem renunciar
se retira o corpo e colo do útero, ou subtotal, quando só
o corpo é retirado. Na maioria das vezes, é feita através a seus direitos personalíssimos, pois, além
de uma incisão no abdômen, por onde se retira o útero de tal disposição não poder ser feita pelos
(histerectomia abdominal). Em alguns casos, também pais – e sim pelo titular –, Ashley, em razão
pode ser feita através de um incisão na vagina, por
onde se retira o útero (histerctomia vaginal). Uma ou-
da idade que acarreta a incapacidade abso-
tra abordagem é a histerectomia por videolaparosco- luta para a prática de atos jurídicos, também
pia, onde a cirurgia é realizada por pequenos orifícios não detém nenhum discernimento para se
de 5 a 10 mm no abdômen e a retirada do útero é feita autodeterminar, no aspecto patrimonial
pela vagina. Às vezes, essa cirurgia é acompanhada
da retirada dos ovários e trompas (histerectomia total ou existencial. É sob esse enfoque que será
com anexectonia bilateral).” (Disponível em:< www.
mioma.com.br>, acesso em: 3 dez. 2007). Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2004,
10
Sobre o tema, recomendamos a leitura de SÁ, p.199-222; KONDER, Carlos Nelson. O consentimento
Maria de Fátima Freire de. Da redesignação do estado no Biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes.
sexual. In: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Revista Trimestral de Direito Civil. ano 4, v. 14, jul.-set.
Maria de Fátima Freire de. Bioética, Biodireito e o novo 2003, p. 41-71.

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estudada a conduta de seus pais ao deter- eram voltadas ao patrimônio para a pessoa
minarem o não-exercício, pela filha, dos humana, de modo que o Princípio da Digni-
direitos à procriação e à integridade física. dade da Pessoa Humana passou a permear
e a legitimar todas as decisões jurídicas
3.1. O direito à procriação pátrias. Portanto, questões envolvendo
O desejo de procriar acompanha o ser problemas bioéticos são atualmente objeto
humano desde criança, pois as pessoas de análise e pesquisa para o profissional do
aprendem que ter filhos faz parte da ordem direito, pois afetam diretamente o homem
natural da vida. Na Antigüidade, as mu- e a sociedade, sendo uma das finalidades
lheres inférteis eram consideradas bruxas, precípuas do Direito regular relações entre
pois se entendia que o diabo as controla- estes.
va, impossibilitando-as de ter filhos (Cf. O texto constitucional brasileiro consa-
MURARO, 1991, p. 15). Com o desenvol- grou, em seu art. 226, § 7o, o direito ao livre
vimento da medicina, descobriu-se que planejamento familiar. Por isso, entende-se
a infertilidade é um problema biológico que esse direito, à luz dos princípios consti-
completamente desassociado de questões tucionais da Dignidade da Pessoa Humana
místicas. Assim, iniciou-se uma era de e da Igualdade entre homens e mulheres,
pesquisas cujo principal objetivo era fazer perfaz um verdadeiro direito reprodutivo.
com que as mulheres inférteis pudessem Todavia, questionamos: a Carta Magna
engravidar, respaldado por um suposto brasileira, ao consagrar o direito ao livre
direito à reprodução. planejamento familiar, também consa-
Desta feita, o Direito foi-se adaptando grou o direito à procriação? Ou, em outras
a essa nova situação e vários estudos dis- palavras, é possível dizer que existe no
cutiram técnicas de inseminação artificial ordenamento jurídico brasileiro um direito
e seus efeitos jurídicos, além de grandes a procriar? Em caso afirmativo, seria ele um
debates acerca da criopreservação de em- direito personalíssimo?
briões. Contudo, em que pese poder-se falar Falar em um direito à procriação signi-
hoje que há uma diversidade de discussões fica dizer que a todo ser humano deve ser
jurídicas a respeito dos direitos sexuais e garantido o direito de ser pai/mãe bioló-
reprodutivos,11 poucos são os estudiosos12 gico, de gerar uma criança e que tal direito
da ciência jurídica que pesquisam a existên- está limitado tão-somente nos Princípios da
cia de um possível direito à procriação, ra- Dignidade Humana e da Paternidade res-
zão pela qual os apontamentos deste artigo ponsável, segundo o art. 226, § 7o, CF/88.
têm um caráter preliminar e visam apenas Respaldadas pelo Princípio da Digni-
incitar a comunidade jurídico-científica a dade da Pessoa Humana e da Autonomia
debater a questão. Privada, entendemos haver um direito à
O Direito no Brasil vem sofrendo gran- procriação, pois a possibilidade de pro-
des transformações desde que a Consti- criar é uma condição humana, devendo
tuição Federal de 1988 entrou em vigor. inclusive ser alçada à qualidade de direito
Isso porque a atual Constituição brasileira
de personalidade, por ser um direito sem
deslocou as atenções jurídicas que antes
o qual a personalidade do ser humano
11
Sobre esse assunto, ver: BRAUNER, Maria
seria insatisfeita13. No entanto, ressalte-se
Cláudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução que, sob a égide da Autonomia Privada, é
humana:conquistas médicas e o debate bioético. Rio um direito que só será exercido se houver
de Janeiro: Renovar, 2003, passim
12
Sobre esse assunto, ver: SÁ, Maria de Fátima 13
Acerca desse tema, ver: TEPEDINO, Gustavo. A
Freire de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Filiação Tutela da personalidade no ordenamento jurídico ci-
e Biotecnologia. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, vil-constitucional brasileiro. In: ______. Temas de direito
passim. civil. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.23-58.

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manifestação de vontade da pessoa, sendo justificativa de serem essas cirurgias garan-
possível seu não exercício se assim seu tidoras do bem-estar de Ashley, parece-nos
titular quiser. mais uma atitude voltada para diminuir
Desta feita, o caso Ashley torna-se ainda as dificuldades de cuidado e vigilância –
mais interessante diante do impasse ao qual deveres inerentes à autoridade parental e,
nos conduzem as conclusões esboçadas. por óbvio, voltados à garantia do bem-estar
Já concluímos que Ashley é uma criança da filha –, pois certamente exercer o poder
desprovida de autonomia e, portanto, a familiar de uma filha desprovida de auto-
autoridade parental de seus pais é de um nomia, de vontade e de mobilidade motora
grau quantitativo elevado e qualitativo é um múnus que muito exige dos pais, do
diferenciado. Desse modo, por ser o direito que uma atitude humanista, voltada para
à procriação um direito da personalidade – o bem-estar da criança.
todavia, passível de disponibilidade, como Isso porque as relações jurídicas que
já abordado no item anterior –, questiona- envolvem menores devem ser respalda-
mos se seria possível entendermos, à luz do das pelo princípio do Melhor Interesse da
ordenamento jurídico brasileiro, que os pais Criança, e, no caso em tela, acreditamos
de Ashley praticaram uma conduta lícita ao não ser possível vislumbrar que os proce-
permitirem a realização da histerectomia. dimentos realizados vão ao encontro desse
Acreditamos que não, porque, apesar princípio, tendo em vista que o exercício
do amplo campo de incidência da auto- dos deveres da autoridade parental em
ridade parental dos pais de Ashley, esse sua plenitude gerariam os mesmos efeitos
poder – dever não lhes confere o direito práticos que os procedimentos invasivos
de decidir sobre a supressão da capacidade aos quais Ashley foi submetida, quais
reprodutiva dela, mesmo perpassado pelo sejam, evitariam que a menor fosse vítima
fundamento de que estariam defendendo de abuso sexual e preveniriam eventuais
seus melhores interesses. Assim, em que doenças.
pese o amplo poder de decisão que estes Enfim, não cabe ao Direito – pelo menos
possuem, apenas ela poderia solicitar que a ao Direito brasileiro – legitimar condutas
histerectomia fosse realizada, ou seja, ape- individualistas em detrimento da proteção
nas Ashley poderia não exercer esse direito dos direitos de personalidade. Em suma,
de personalidade, se tivesse discernimento acreditamos ser a conduta dos pais de
para fazê-lo. Ashley uma conduta ilícita e que a existên-
Entendemos como válidas as justificati- cia de um caso desse no Brasil deveria ser
vas para a realização de tal procedimento; encarada como uma violação frontal aos
entretanto, acreditamos que cabe aos pais direitos de personalidade e à Dignidade
de Ashley, no exercício amplo de sua da Pessoa Humana.
autoridade parental – tendo em vista que
durante toda a vida de Ashley este múnus 3.2. O direito ao desenvolvimento físico
será exercido em grande grau, seja por O direito ao desenvolvimento físico de
meio do poder familiar enquanto ela for Ashley enquadra-se no direito de persona-
menor, seja mediante a curatela, quando lidade à tutela da integridade física, de que
ela se tornar maior –, efetivar o dever de são exemplos os artigos 13, 14 e 15 do Códi-
cuidado e vigilância, garantindo que esta go Civil de 2002, que vedam a disposição do
não seja vítima de abuso sexual e levá-la a próprio corpo que importar em diminuição
médicos ginecologistas a fim de averiguar permanente da integridade física ou contra-
sua saúde reprodutiva. riar bons costumes, permitem a disposição
Enfim, realizar a histerectomia e a total ou parcial, desde que gratuita, do
retirada das glândulas mamárias, sob a próprio corpo para depois da morte, uma

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vez feita com objetivos científicos ou altru- trata de sua saúde, física e psíquica (...).
ísticos, além de proibirem que alguém seja A regra expressa o conceito de não-
forçado a submeter-se a tratamento médico instrumentalização do ser humano,
ou a intervenção cirúrgica que lhe acarrete significando que este jamais poderá
risco de vida, respectivamente. ser considerado objeto de intervenções
O direito à integridade física é, por- e experiências, mas será sempre sujeito
tanto, inegável componente do Princípio do seu destino e de suas próprias esco-
da Dignidade da Pessoa Humana. Maria lhas.” (MORAES, 2003, p. 99)
Celina Bodin de Moraes (2003, p. 93-102) Por essa razão, mesmo que pudéssemos
afirma, inclusive, que é um dos principais admitir que os pais, pela condição de extre-
corolários desse princípio. A integridade ma hipossuficiência de Ashley, pudessem
física constitui, juntamente com o aspecto escolher pelo exercício ou não desse seu
psíquico, o atual conceito de saúde, estabe- direito de personalidade, o pensamento
lecido pela nossa Constituição Federal de condutor é no sentido de preservar sua
1988, bem como pela Organização Mundial integridade física, vez que inexiste auto-
de Saúde – OMS. Assim, o impedir do nomia. Essa situação também é observada
crescimento físico de Ashley por seus pais quando da necessidade de transfusões
significa uma interferência direta em sua de sangue em filhos de Testemunhas de
saúde. Como já mencionamos, justificaram Jeová menores, cujos pais pretendem não
sua conduta ao argumento de facilitação da transfundi-los, mas a orientação é no sen-
mobilidade da filha, tendo em vista que, tido de se proceder à transfusão, tendo em
com o seu crescimento, ficaria mais difícil vista que estes podem escolher, quando
sua locomoção, o que é feito pelos próprios dotados de maturidade, religião diferente
pais. Novamente, paira a questão: eles estão da dos pais.14 Estão em jogo, nesse caso,
buscando a facilitação das próprias vidas, os bens jurídicos vida x liberdade religiosa,
como cuidadores da filha, ou, de fato, o que relativamente a pessoas que não têm ca-
é melhor para a criança? pacidade de entender e querer e, por essa
O art. 2o da Declaração de Helsinque, de razão, a intangibilidade de sua vida deve
1964, afirma que “os interesses e o bem-es- ser preservada – o que não significa que,
tar do ser humano deverão prevalecer sobre quando a pessoa menor de idade for do-
o interesse exclusivo da sociedade ou da ci-
ência”, o que significa que não impera mais 14
“Os Tribunais estadunidenses trazem casos ricos
a antiga concepção de interesse público que sobre a recusa dos pais a tratamento médico dos filhos,
por professarem fé que não permite a transfusão de
determinava o primado do social sobre o sangue. No caso In re Sampson, a Suprema Corte de
individual. Para o caso em análise, importa Nova Iorque confirmou a autorização outorgada por
estabelecer que não é o interesse dos pais juiz da vara de família para que Kevin Sampson, de
– mesmo que no exercício do seu papel de quinze anos de idade, fosse operado para correção de
deformidade física que o afastou da escola desde os
cuidadores e responsáveis pela filha – que nove anos. A mãe, Testemunha de Jeová, recusava-
deve prevalecer, mas o interesse de Ashley, se a autorizar a cirurgia, que requeria transfusão de
em sua condição de vulnerabilidade, não sangue. (...) Portanto, somos pela prevalência de pro-
apenas por ser menor, mas também pela cessos universais de tratamento médico em crianças e
adolescentes que necessitam de transfusão sangüínea,
sua condição de deficiente física e mental. mesmo que seus pais professem religiões que a proí-
Então, é o seu “melhor interesse” que deve bam. Entendemos, todavia, que há adolescentes que,
ser atendido. mesmo incapazes legalmente, têm discernimento sufi-
Em questões existenciais dessa natu- ciente para expressar vontade contrária ao tratamento
médico preconizado. Em casos assim, esgotadas as me-
reza, didas de persuasão, a decisão final deverá ser proferida
“o interesse, o ponto de vista do indi- pelo Judiciário, que deverá buscar a justiça para o caso
víduo, que deve prevalecer quando se concreto.” (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 136-137).

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tada de discernimento, não poderá ter sua BURKHOLDER, Amy. Ethiscist in Ashley case
vontade valorada juridicamente.15 Pelas answers questions. Disponível em: <http://www.cnn.
com/2007/HEALTH/01/11/ashley.ethicist/index.
mesmas razões, está em questão a integri- html?eref=rss_latest>. Acesso em: 15 mar. 2007.
dade física de uma criança que não tem – e
nunca terá, ao que tudo indica – condições CÂNDIDO, Ana Maria Duarte Monteiro. Paralisia
cerebral: abordagem para a pediatria geral e manejo
de se manifestar pelo exercício ou não de
multidisciplinar. Disponível em: <www. paulomar-
seus direitos de personalidade. Por isso, ela gotto.com.br/documentos/paralisiacerebra.doc.>.
deve ter sua integridade preservada, ainda Acesso em: 23 mar. 2007.
mais pelo caráter vitalício do impedimento
CARBONERA, Silvana. Reflexões acerca do consen-
de seu crescimento. timento informado de incapazes em intervenções
médico-cirúrgicas e pesquisas biomédicas. Ciência e
4. Conclusão opinião. v. 1, n. 2/4. Curitiba, jul. 2003/dez. 2004.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa
Diante do caso sob reflexão e dos apon- humana: uma leitura civil-constitucional dos danos
tamentos ora exarados, concluímos que: morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
a) pelas pesquisas médicas, a doença
MURARO, Rose Marie. O Martelo das feitiçeiras. 8 ed.
de Ashley, hoje, não tem cura, sendo ela Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991.
totalmente dependente dos pais para toda a
vida, o que leva à ampliação da autoridade NEVARES, Ana Luiza Maia; TEIXEIRA, Ana Caroli-
na Brochado; VALADARES, Maria Goreth Macedo.
parental, em situação de total ausência de O cuidado com o menor de idade na observância da sua
discernimento; vontade. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA,
b) a renúncia de direitos de persona- Guilherme. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro:
lidade só é possível pelo próprio titular, Forense, 2008.
em situações em que este seja dotado de PEREIRA, Tânia da Silva. O ‘melhor interesse da
maturidade e responsabilidade, nos limites criança’. In: PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). O
autorizados pelo Ordenamento Jurídico, melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar.
conjugados com o caso concreto; Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
c) por essa razão, a supressão dos di- PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 3 ed. Rio
reitos à procriação e à integridade física, de Janeiro: Renovar, 2007.
questão decidida pelo médico e pelos pais SÁ, Maria de Fátima Freire de. Da redesignação do estado
de Ashley, não condiz com o Princípio do sexual. In: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ,
Melhor Interesse da Criança, de modo que Maria de Fátima Freire de. Bioética, Biodireito e o novo
os procedimentos feitos visam facilitar os Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
cuidados com Ashley, mas não, efetiva- SÁ, Maria de Fátima Freire de; TEIXEIRA, Ana Caro-
mente, tutelá-la. lina Brochado. Filiação e biotecnologia. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2005.
SÁ, Maria de Fátima Freire; TEIXEIRA, Ana Carolina
Referências Brochado. Responsabilidade médica e objeção de
consciência religiosa. Revista Trimestral de Direito Civil.
AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6 ed. v. 21. Rio de Janeiro: Padma, jan./mar. 2005.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006. SILVA, Denis Franco. O princípio da autonomia priva-
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, sexualidade da: da invenção à reconstrução. In: MORAES, Maria
e reprodução humana: conquistas médicas e o debate Celina Bodin de (Coord.). Princípios do direito civil
bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, passim. contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
SOTTOMAYOR, Maria Clara. Quem são os verda-
15
Isso ocorre em alguns países como a Inglaterra, deiros pais? Adoção plena de menor e oposição dos
onde, a partir de 16 anos de idade, é possível a pessoa pais biológicos. Revista da Faculdade de Direito da Uni-
consentir com tratamentos médicos (menor maduro). versidade Católica Portuguesa, caderno Direito e Justiça.
(SILVA apud MORAES, 2006, p. 154) v.14, t. 1, p. 197, 2002.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 303


TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. A disciplina ju- ______. A disciplina da guarda e da autoridade pa-
rídica da autoridade parental. In: PEREIRA, Rodrigo rental na ordem civil-constitucional. In: CONGRESSO
da Cunha (Coord.). Família e dignidade humana. In: BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. 4., 2004,
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THomson, 2006.
______. A Tutela da personalidade no ordenamento
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e jurídico civil-constitucional brasileiro. In: TEPEDINO,
autoridade parental. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. Gustavo. Temas de direito civil . 3.ed. Rio de Janeiro:
Renovar. 2004.
TEPEDINO, Gustavo. A tutela constitucional da criança
e do adolescente: projeções civis e estatutárias. No prelo.
(original gentilmente cedido pelo autor).

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