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Sumário
1. O caso. 1.1. Encefalopatia estática: sin-
tomas e prognósticos. 1.2. O que foi feito com
Ashley? 1.3. Os pais de Ashley e suas razões. 2.
Abrangência da autoridade parental. 3. Direitos
de personalidade: seriam eles renunciáveis? 3.1.
O direito à procriação. 3.2. O direito ao desen-
volvimento físico. 4. Conclusão.
1. O caso
Ashley é uma garota americana de
nove anos portadora de uma doença rara
chamada “encefalopatia estática”. Em 2004,
foi submetida a um procedimento cirúrgico
para retirar seu útero e suas glândulas ma-
márias e, desde então, está tomando altas
doses de hormônio para interromper seu
crescimento, tudo com o consentimento
de seus pais.
Tal fato só foi divulgado pela mídia no
início do ano de 2007, pois o médico que
realizou as cirurgias apresentou o caso à
comunidade científica norte-americana,
narrando a situação. A repercussão dessas
interferências médicas tomou uma propor-
ção mundial, gerando debates acalorados
sobre a eticidade dessas medidas, que só
Ana Carolina Brochado Teixeira é Douto-
foram feitas porque os pais da criança
randa em Direito Civil pela UERJ. Mestre em
Direito Privado pela PUC/MG. Professora de
entenderam serem esses os meios mais
Direito Civil. Advogada. Diretora do Instituto adequados de garantir a qualidade de vida
Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. de sua filha.
Luciana Dadalto Penalva é Mestranda em Diante disso, este artigo propõe al-
Direito Privado pela PUC/MG. gumas reflexões sobre o que seria, nesse
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caso, o melhor interesse dessa criança, que Sua sintomatologia é a mais variada
está totalmente entregue aos cuidados dos possível, embora seja comum em todos os
pais, por total impossibilidade de fazê-lo tipos de encefalopatias o desenvolvimento
sozinha. A discussão passa, inevitavel- motor retardado. Os portadores de paralisia
mente, pelo estudo sobre titularidade e cerebral leve têm alterações finais de movi-
exercício de direitos de personalidade, mento; os de paralisia cerebral moderada
bem como sobre cessão e renúncia dos sofrem dificuldades variáveis em relação
mesmos. Tais questionamentos teóricos à fala e movimentos e, por sua vez, os de
serão feitos à luz do caso concreto de Ash- paralisia cerebral grave têm incapacidade
ley, de modo a verificar-se se as “verdades para andar, usar as mãos e falar.2
dogmáticas” aplicam-se indistintamente A síndrome da qual Ashley é portado-
a todas as situações, ou se podem sofrer ra é um tipo grave de paralisia cerebral,
variações de acordo com as nuances do denominado encefalopatia estática pelo
caso concreto. seu caráter persistente, ou seja, por sua
irreversibilidade. Enfim, em que pese os
1.1. Encefalopatia estática: avanços da neuropediatria nas pesquisas
sintomas e prognósticos de encefalopatias, não há, no momento,
Primeiramente, é preciso ressaltar que tratamento capaz de reverter o quadro
o objetivo deste estudo não é aprofundar de Ashley, cujo desenvolvimento mental
na análise da síndrome da qual Ashley é cessou aos três meses de vida e, hoje, com
portadora, até pelo cunho jurídico deste. nove anos, não fala, não anda, não senta e
Contudo, para o melhor entendimento do se alimenta exclusivamente por sondas.
caso, é de suma importância uma compre-
1.2. O que foi feito com Ashley?
ensão, ainda que superficial, da doença
encefelopatia estática, que se constitui em Em 2004, Ashley foi submetida, no Hos-
uma síndrome neonatal. pital de Criança de Seattle, com o aval do
Na literatura médica, poucos são os diretor do Centro Treuman Kartz para Bio-
autores que tratam especificamente dessa ética Pediátrica, Dr. Douglas Diekema, e de
síndrome, por ser extremamente rara. A seus pais, a dois procedimentos cirúrgicos:
Encefalopatia, mais conhecida como para- retirada das glândulas mamárias e remoção
lisia cerebral, é gênero do qual fazem parte, do útero. Desde então, está tomando altas
segundo a classificação mais aceita pelos doses de estrogênio a fim de manter-se
neurologistas, 7 (sete) categorias maio- pequena e retardar seu desenvolvimento
res, 34 (trinta e quatro) menores e várias sexual. Tal medida foi tomada porque a
subcategorias.1 A paralisia cerebral pode criança, aos seis anos, já estava apresentan-
ser relacionada com vários fatores, entre do sinais de puberdade precoce.
eles: hereditariedade, infecções congênitas, 2
“... apesar de caracterizada pela disfunção motora,
malformações congênitas, complicações a PC é sempre acompanhada por outras desordens da
obstétricas, uso de drogas e medicamentos função cerebral. Entre elas as anormalidades de cogni-
pela gestante, exposição a radiações, fatores ção, visão, audição, fala, sensações táteis, atenção e com-
portamento. A epilepsia geralmente está presente, bem
perinatais (prematuridade e baixo peso, por
como defeitos na função gastrintestinal e crescimento. As
exemplo) e fatores pós-natais (infecções e desordens de funções corticais mais altas têm impacto
traumas cranianos, entre outros). importante nas atividades da vida diária e afetam tarefas
como vestir-se ou apertar botões em uma criança que
1
Sobre esse assunto, ver: Paralisia Cerebral: aparentemente é levemente afetada.” (CÂNDIDO, Ana
abordagem para o pediatra em geral e manejo mul- Maria Duarte Monteiro. Paralisia Cerebral: abordagem
tidisciplinar. Disponível em: <www.paulomargotto. para a pediatria geral e manejo multidisciplinar. Dispo-
com.br/documentos/paralisiacerebra.doc>. Acesso nível em: <www.paulomargotto.com.br/documentos/
em: 23 mar. 2007.. paralisiacerebra.doc>. Acesso em: 23 mar. 2007).