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In: CURINGA – 37. PSICANÁLISE E CIÊNCIA. ( pág. 129 -132). Outubro/2013.

PERDAS DE REPETIÇÃO – CASO VERA 1


Márcia Aparecida de Abreu Fonseca 2
Ângela Maria Resende Vorcaro 3

Na lógica da assistência em saúde geral, a prática médica e o discurso da ciência

orientam os tratamentos: a cada sintoma bem isolado, corresponde um protocolo de

procedimentos e intervenções que se conjugam em nome da superação dos mesmos e do

restabelecimento da saúde orgânica. No entanto, quando se constata a incidência de um

impasse subjetivo capaz de ameaçar o plano de cuidado técnico ao paciente, solicita-se

uma “atenção psicológica” ao mesmo. A expectativa é a de que uma intervenção de

ordem psicoterápica poderia neutralizar o impasse subjetivo, seja por meio da

localização e da dissolução do impasse impeditivo do restabelecimento do

funcionamento orgânico, seja para contribuir nas decisões pelas melhores estratégias de

manejo e tratamento. Como parte da chamada “humanização do tratamento”, o apelo ao

profissional responsável pela abordagem ao psiquismo nasce, no hospital, atravessado

pelo ideal de potencialização da eficácia dos procedimentos. Nesse contexto considera-

se a atenção psicológica como meio de viabilizar a adesão ao protocolo.

Vale destacar que, quando um psicanalista é convocado para tal tarefa, ele

problematizará o raciocínio da neutralização de entraves relativos à técnica. Afinal, a

direção do psicanalista não se compromete com o gozo da técnica. Ao contrário,

privilegia a hipótese de uma verdade incluída na insistência opositiva do paciente. O

psicanalista não responderá ou facilitará os ideais da eficácia, mas em vez disso,

1
No me fict ício.
2
Psicanalista. Doutora em Psicologia/ Estudos Psicanalíticos/UFM G. Psicóloga do Hospital das
Clín icas/UFM G/ EBSERH.
3
Psicanalista. Psicó loga. Doutora em Psicologia Clín ica.Professora do Departamento de Psicologia da
FAFICH/ UFM G.Bolsista Pr/ CNPq.Membro do Centro de Pesquisas Outrarte/IEL-Unicamp.
introduzirá a escuta do impasse que, em vez de ser ouvido, quer ser eliminado pelas

rotinas dos tratamentos ou protocolos médicos.

François Ansermet pontua que curiosamente, à medida que a psiquiatria fecha

suas portas à psicanálise, por outro lado, alguns serviços de medicina de ponta a estão

abrindo. Talvez não só pela insistência do sintoma do paciente, mas pela insistência

delirante de completar a realidade. Em suas palavras:

A tecnologia médica – em part icular aquela que concerne o mundo perinatal


– oferece hoje a possibilidade de fazer delirar a realidade, seja ao modo da
fantasia de cada um, segundo as vias das teorias sexuais infantis, seja através
dos múltiplos mitos de origem tais co mo são veiculados por dife rentes
culturas (ANSERM ET, 2003, p.01) 4 .

O atendimento clínico em equipe de Reprodução Medicamente Assistida de uma

instituição hospitalar universitária marca o início da psicologia nesse setor, ocorrendo a

uma década, levando a projeto de pesquisa em psicanálise. A equipe vinha se deparando

com respostas inesperadas de pacientes submetidas às técnicas de reprodução assistida.

Uma surpresa envolveu a equipe ao lidar com uma paciente de 38 anos, que após o

fracasso da segunda tentativa de procedimento de fertilização, ataca uma grávida que

passeava pelo Parque. Tal encontro com o que pareceu ser um real insuportável para

essa paciente se dá após ela ter saído da consulta, sabendo de mais uma perda no seu

projeto de gravidez. A equipe se angustia, constatando que há um mais além na

demanda de ter filhos que pode implicar em uma urgência subjetiva. Constata-se que o

anseio muito enérgico de ter um filho, que compele uma mulher a se submeter a uma

procriação assistida, pode implicar o sujeito feminino numa lógica imprevisível.

Os discursos científicos tocam o organismo, argumenta Ansermet. Devemos,

porém, “ouvir para além do que o corpo revela” (ANSERMET, 2003, p.14). A clínica

4
Este texto: “Da psicanálise aplicada às biotecnologias e retorno” apareceu sob o título “Le principe de
l'incertitude”, no volume preparatório da Jornada das Seções Clín icas: Presença da Instituição na clínica,
publicado pelo Institut du Champ freudien, Encontro Pipol, 14 -15 de junho/2003.
psicanalítica em andamento nesse serviço tem sinalizado e nos levado a interrogar quais

os efeitos da medicina reprodutiva sobre as mulheres que abortam espontaneamente. O

diagnóstico de “perda de repetição” possui causas diversas e é feito após a terceira perda

espontânea da gravidez, em mulheres que, embora não tenham dificuldades para

engravidar, não sustentam uma gestação até o fim. Uma parcela dessas mulheres é

enquadrada na descrição de Infertilidade ou Esterilidade sem Causa Aparente (ISCA ou

ESCA).

Se os psicanalistas são considerados como tendo o hábito de tratar a loucura,


eles ficam desprovidos quando é a própria realidade que se torna louca
devido às intervenções técnicas da med icina contemporânea. Médicos e
pacientes se encontram nesse ponto igualmente surpresos, desconcertados, às
vezes, também, até espantados. O que podemos constatar hoje é que, de fato,
a medicina parece to mada de vertigem face às suas próprias produções
(ANSERM ET, Agosto de 2003, p.1).

Um caso atendido no Laboratório de Reprodução Humana do HC/UFMG é de

uma paciente aqui chamada Vera, encaminhada para o atendimento psicológico após a

terceira perda. Os médicos afirmam que não há explicação após vários exames,

inclusive genéticos, do casal e dos embriões perdidos. Vera chega extremamente

ansiosa e desconfiada. Afirma que ninguém descobre por que não consegue tornar-se

mãe. Logo ela, filha de uma mãe tão fértil, que teve sete filhas!. Vera se ressente

angustiada a cada sobrinho que nasce, visto que suas irmãs, uma a uma, vão

aumentando sua família. Vera é convidada a falar mais sobre a gravidez não das outras,

mas da sua experiência. Desde a primeira vez, Vera localiza um mal-estar que se

instaura tão logo a gestação é confirmada. Algo se agita dentro dela, fica de olho no

olhar das outras pessoas sobre si. Especialmente “o olhar das outras mulheres”, sejam

elas mães ou não. Confessa que não havia percebido elementos em comum nos três

períodos em que foi uma gestante. Mas, um quadro de desconfiança “fecha o coração”,

diz Vera. “Fico logo pensando que as outras querem tirar o meu bebê de mim, que estão

com inveja, do mesmo jeito em que eu reconheço que fico quando encontro com uma
grávida na rua ou nos encontros da família”. A agitação e angústia vão aumentando,

relata Vera, e quando o aborto enfim ocorre, “ele já era esperado!”. Alívio e culpa

permeiam o período subsequente à perda, para, em seguida, recomeçar as incessantes

consultas e exames, na busca por nova gravidez. Mesmo que também anseie por um

trabalho, por estudos e por uma carreira, a busca pela gravidez “que não será perdida”

impede Vera de se inscrever em cursos de aperfeiçoamento ou seleções de emprego. Faz

planos de como gastaria o dinheiro que iria ganhar com o seu trabalho, melhorar sua

simples casa, ajudar a família. Mas, diz ela, “se quero ser mãe não posso desejar outras

coisas. Minha mãe não tinha tempo nem de ver a paisagem do campo, com as sete

meninas para olhar”...

Enfim, Vera se dá conta de sua divisão entre a maternidade e a colocação

profissional. Vera apazigua-se e chega a se decidir por procurar um trabalho, fazer o que

sente vontade. Seu marido apoia a decisão: “não adianta você grávida e infeliz.”

Entretanto, Vera, aparece grávida pela quarta vez. Embora se observe menos

angustiada, certa euforia mascara a agitação e o desamparo dos quais havia falado. E

antes de completar oito semanas da concepção, ela se vê abortar novamente. Desta vez a

decisão por estudar e trabalhar ganha força. Vera e o esposo decidem “dar um tempo”

do atendimento médico, interrompendo o acompanhamento na série de tentativas de

gravidez. Com o emprego, também interrompe as sessões de psicanálise no

ambulatório. Após quase um ano do último encontro, Vera aparece no hospital para dar

notícias. Estava grávida de quase sete meses, chamando o filho pelo nome enquanto

tocava a barriga. Refere que nessa gravidez tudo estava diferente por que ela estava

diferente. Quando confirmou a nova gravidez não procurou a equipe médica de

reprodução, pois ela e o esposo sentiram que já sabiam o que fazer. Mas, estava ali para

dar notícias, ‘ser vista’.


Nossa interrogação considera a diversidade das formas pelas quais as mulheres

respondem à reprodução assistida, na medida em que expressam algo de singular na

escuta de cada uma. Pegadas da especificidade do percurso da feminilidade,

demarcações sobre os distintos lugares que a expectativa do filho comporta e os

diferentes efeitos de procedimentos e técnicas de reprodução medicamente assistida na

lógica do sintoma são alguns pontos implicados em nossa pesquisa.

Referências

ANSERMET F. A clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de


Janeiro: Contra Capa, 2003.
ANSERMET F. Da psicanálise aplicada às biotecnologias e retorno. Latusa Digital,
Ano 0, nº 1, agosto de 2003.

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