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O tempo de cada um
O sociólogo polonês Zigmunt Bauman nos alerta, em seu livro ‘A arte da vida’, que,
embora haja uma corrida ao consumo, os bens capazes de produzir felicidade para as
pessoas não são negociáveis e estão cada vez mais distantes do campo monetário: trata-
se, no caso, do amor e da amizade.1
Em seu texto sobre a clínica, François Ansermet defende que a clínica médica se baseia
no olhar que busca constituir seu objeto por meio da observação e da descrição. Embora
baseada no olhar, esta se caracteriza pela pesquisa de uma possível correlação entre o
olhar e a linguagem. Desde sua constituição, trata-se de uma clínica que busca uma
passagem do que é visível àquilo que pode ser enunciado.3
Nesse sentido, a clínica médica estaria fundamentada no olhar que dá lugar à escuta e
ainda, em um olhar que possa ser transformado em linguagem, pois o quadro clínico é ao
mesmo tempo visível e legível. O chamado olho clínico examina o corpo, sua evolução, a
disfunção orgânica ou patológica. Constitui um olhar que registra, permitindo a distinção e
classificação do observado.
Entretanto, impasses subjetivos podem ocorrer no processo da clínica médica,
comprometendo, não só a investigação ou acompanhamento de rotina, como o próprio
tratamento que visa o restabelecimento orgânico e funcional da paciente. Esses impasses
são identificados com maior frequência nas dificuldades de comunicação, nas situações
de instabilidade ou urgência subjetiva da paciente e/ou de familiares (entre si ou
focalizado no médico/equipe) e, especialmente, na configuração do que, normalmente, é
nomeado como “não-adesão” ao tratamento.
Para Garcia, a angústia gerada no não entendimento entre os sujeitos, possui função
balizadora do campo subjetivo. Diante da angústia, o sujeito empreende seu processo de
lidar com sua experiência de existir, enfrentando uma tensão interna constante entre as
posições de indivíduo e de cidadão. A tensão entre o eu e o eu no mundo, obrigaria cada
pessoa a construir seu laço social.4
Antes mesmo de vir ao mundo, uma criança é falada e idealizada pelos outros parentais e
seu entorno. Imaginada por antecedência, a criança circula enquanto objeto de desejo no
discurso de seus pais e familiares, pontua Sílvia Zornig.5
Marcado pela sua dependência absoluta ao nascer, o bebê grita e espera que surja
alguma resposta de sua mãe que, com seu desejo, interpreta algo da demanda de seu
filho, oferecendo-lhe um objeto de satisfação, uma palavra. Tal experiência inaugura para
o infante o jogo da separação e da retomada das coisas do mundo. Eis a introdução da
linguagem: marca fundamental do ser humano. Daí em diante, cada um segue a vida se
interrogando: “o que o outro quer de mim?”
Isso implica em marcas específicas da palavra do outro sobre cada sujeito que se
constitui de maneira particular. Consequentemente, não há forma de reimprimir uma
história física ou psíquica, pois as pessoas se tornam únicas em um dado contexto
individual e coletivo.
Cada ser humano nasce alienado no desejo do outro e deverá ser introduzido como
membro na cultura. Terá que se apropriar do que lhe é ofertado e assimilar os limites do
seu corpo e das regras de convivência: as leis. Disso resultará o surgimento do sujeito
desejante, aquele que escolhe e tem a parcela de responsabilidade por suas escolhas. A
constituição subjetiva de cada um está ligada a esse modo de se posicionar em relação
ao desejo do outro, como irá se colocar frente ao mundo e às leis. Tal processo de
subjetivação sinaliza a possibilidade da criança encontrar uma posição na vida que não
seja, unicamente, a de objeto de desejo do outro, favorecendo a ela, maior implicação em
suas decisões futuras.
Nesse sentido, um sujeito se define tanto pelo seu funcionamento anatômico e fisiológico,
(os limites do seu corpo), como também pelos efeitos de linguagem (posição frente ao
desejo do outro). Cada paciente é um sujeito único, particular, com história e família
singulares.
Cada um, enquanto criança, desde muito cedo, teve que empreender um trabalho de
construção simbólica, ou seja, um trabalho de significação e interpretação da palavra do
outro que lhe foi dirigida. Esse trabalho inscreveu o sujeito na sua família e na cultura,
inaugurando para ele, a introdução na linguagem pela inscrição de traços ou marcas
subjetivas (inconscientes). No percurso da constituição subjetiva que apenas sinalizamos
de forma superficial no presente texto, desde a experiência inicial da criança, as marcas
vão se assentando como traços particulares de inscrição subjetiva.
A relação paciente-médico
No contato inicial da paciente com seu médico, há um lugar de saber e autoridade que se
mantém destinado ao profissional, cuja presença se faz essencial para a formação do
vínculo necessário ao andamento de todo tratamento.
Assim, percebemos que através do contato com o médico, a paciente demanda muito
mais do que realmente explicita em seu discurso. E seu pedido, carregado de elementos
emocionais, diz respeito ao seu posicionamento subjetivo na relação com o outro. Nesse
contexto, a demanda e o desejo não são equivalentes. O desejo inconsciente está
encoberto pela queixa inicial, implícito ao que a paciente diz objetivamente. A sutileza
desse contato reside na necessidade de que o médico esteja advertido sobre essas
nuances e saiba acolher a demanda para tratar o sintoma.
É preciso se ter clareza da não existência de simetria nessa relação, pois tanto os
pacientes como os profissionais estão sujeitos a vivenciar equívocos e frustrações entre
si, uma vez que, como sabemos, existem os mal-entendidos próprios da linguagem,
podendo abrir espaço para o surgimento da angústia. Há uma posição de saber que a
paciente atribui ao profissional que a atende quando o vínculo transferencial se
estabelece, porém o saber que a paciente tem sobre si mesma deve ser considerado,
favorecendo a superação dos impasses.
Veremos um pouco do que poderia nos revelar essa angústia surgida no processo do
acompanhamento médico.
Em 1930, Freud apontava três fontes de angústia ou infelicidade para o ser humano: o
nosso próprio corpo, o mundo externo (a natureza) e nossas relações com as outras
pessoas.6
O corpo é fonte de angústia tanto por suas características imutáveis, como pelo caráter de
transformação inexorável presente no seu envelhecimento, adoecimento e morte. O
mundo externo impõe ao sujeito sua condição de dependência e impotência frente aos
componentes e às intempéries da natureza. A terceira fonte constitui-se, enfim, na mais
difícil de ser contornada, pois o relacionamento com os outros está marcado pela falha do
entendimento absoluto. Fica sempre algum resíduo sem explicação, sem localização nos
relacionamentos. E se a relação com o outro promove a constituição do sujeito, ela
própria estará no centro do seu embaraço e sofrimento.
A angústia surge quando o sujeito não consegue significar determinada vivência. É afeto
que não engana, como pontua Lacan7, porque a angústia não é a dúvida, mas sim, a
origem da dúvida. Aparece como puro afeto, puro desconforto, e desprovido de sentido
para o sujeito, que conscientemente procura a razão para tamanho mal-estar.
Assim, por não favorecer a uma tradução simbólica, a angústia deixa o sujeito sem
palavras e o corpo torna-se a única saída para sua expressão, propiciando a realização
em ato daquilo que não se pode traduzir. Uma estranheza está implícita na angústia,
denunciando que o sujeito está perdido e não consegue localizar o que lhe está
ocorrendo. Nesse momento, uma solicitação poderá ser direcionada ao médico para que
este traga ao sujeito uma resposta sobre seu desconforto.
Tanto a masculinidade como a feminilidade supõem operações psíquicas que não são
totalmente equivalentes ao chamado desenvolvimento psicossexual, sendo necessário
considerar a existência de um hiato ou descolamento entre a anatomia e o significante do
sexo.8
Dito de outra forma, a percepção visual da diferença anatômica entre os sexos coloca-se
como insuficiente à criança, seja ela menina ou menino, para o esclarecimento sobre o
desejo sexual e sua representação psíquica. E no percurso da sexualidade humana, os
caminhos se diferenciam para as mulheres.
Como vimos no que se refere à constituição subjetiva, a questão básica inerente a cada
um ao se interrogar sobre o desejo do outro desdobra-se para a menina de forma muito
particular, numa busca de saber o que significa ser mulher. Nessa perspectiva, é possível
entender que a mulher não é dada como pronta. Está num constante tornar-se, pois não
obtém de sua mãe um representante concreto para o seu sexo e para o que é ser mulher.
A menina tentará localizar em sua mãe o ponto específico, aquele que revelaria para ela
qual é a essência do desejo feminino. E a decifração torna-se permanente em sua
existência, não só para si mesma, mas também para os que a rodeiam.
“Muito da estruturação da filha vai depender de como a mãe lida com a falta de resposta
com a qual se confronta ela própria a respeito de uma definição especificamente feminina,
já que é marcada, tanto quanto a filha, pela falta de significante de seu sexo. Em função
da aceitação de uma falta a marcá-la é que a mãe reserva um lugar para a palavra do pai
da criança.” 10
Nesse sentido, o futuro da menina está na inscrição da lei representada pelo pai, e ainda
na falta de um significante específico para o feminino, tal como ocorre com a sua mãe. A
dificuldade em aceitar a falta, tanto em si mesma como no outro, está na causa de grande
sofrimento e problemas para uma mulher.
Contudo, a mulher não renuncia facilmente à busca de respostas sobre sua sexualidade e
a maternidade pode constituir-se em mais uma tentativa de se obter esse saber. O próprio
desafio da maternidade também se coloca nesse contexto de se buscar uma resposta
para o feminino, dividindo a mulher em duas posições em relação ao filho: a de mãe e a
de mulher. A criança então, devendo se localizar entre ambas.11
O sofrimento recai sobre o casal, porém a maternidade, como vimos, tende a se associar
diretamente à feminilidade, tanto pelas características físicas dessa experiência como
pelas psíquicas. Tal associação, somada aos sintomas provenientes da angústia, tem
gerado diversos estudos.
Quando a mulher se torna mãe terá que se haver com os lugares de mãe e de mulher,
além de dar novo significado para a posição de filha. Tal conjunto de operações
permanece sujeito às transformações físicas e psicológicas de cada experiência,
confirmando quão complexo e singular é o percurso de cada mulher pela via da
feminilidade.
Realizaremos, a seguir, uma breve reflexão sobre a terminalidade. Constatamos que tanto
o envelhecimento como a morte representam, para a paciente e para os profissionais de
saúde, situações delicadas e de grande exigência emocional no contexto clínico.
No que diz respeito à informação dada à paciente e aos familiares sobre a sua situação
de saúde, é preciso considerar que ela é necessária para minimizar os efeitos da
angústia. A informação dada de forma cuidadosa, embora não elimine o mal-estar, pode
contribuir para que tanto a paciente quanto os seus familiares consigam lidar com o
impacto de um diagnóstico grave, como também para que o médico e os profissionais
envolvidos no cuidado possam falar e participar das elaborações psíquicas.
Deparar-se com a morte inevitável e possuir recursos para lidar com ela constitui trabalho
de escuta para todo profissional de saúde. Ainda que cada vez mais seja colocada em um
plano distante em nossa atualidade, é preciso saber lidar com a morte no contexto clínico
para evitar que pacientes e familiares vivenciem o sofrimento de maneira solitária,
comprometendo ainda mais sua elaboração das perdas e seu trabalho de luto. Ao
profissional, exige-se que seja capaz de reconhecer a dor sem perder-se nela ou recusá-
la. A paciente necessita dessa posição do médico e da equipe que a assiste, para que
ela própria possa suportar o que está em jogo em cada passo do seu caminho.
Referências Bibliográficas
6 Freud S. O mal-estar na civilização [1930] In: ESB, Rio de Janeiro: Imago; 1976.
vol.XXI, p.81-178.
11 Miller J-A. A criança entre a mulher e a mãe. In: Opção Lacaniana; 1998: Abril (21).
18, 19 Mucida A. O sujeito não envelhece – Psicanálise e velhice. 2.ed. Belo Horizonte:
Autêntica; 2006.
21 Ariès P. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Francisco Alves;1977. p.53.
1
Bauman Z, A arte da vida. 2009.
2
Ansermet, F. Clínica da origem. 2003.p.7-9
3
Idem.
4
Garcia C. Clínica do Social.1997. p.24
5
Zornig S. Construção da parentalidade. 2012. p.17-34
6
Freud S. O mal estar na civilização.1930-1976. p.81-178
7
Lacan J. Seminário Livro 10. A angústia. 2005,p.88.
8
Poli MC, Masculino/Feminino.2007.
9
Zalcberg M.A relação mãe e filha. 2003. p.97
10
Idem. p.97
11
Miller, J-A. A criança entre a mulher e a mãe. 1998. p. 7
12
Ribeiro M. 2004
13
Hollinrake, 2007
14
Wischmann 2003
15
Wischmann, 2006
16
Comitê de Psicologia da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana. Guia Sobre Saúde Mental em Reprodução
Humana;2006.
17
Jauniaux E, Farquharson RG., Christiansen OB, Exalto N. Evidence-based guidelines for the investigation and
medical treatment of recurrent miscarriage. 2006
18
Mucida A. O sujeito não envelhece. 2006.
19
Idem
20
Seldes R. Urgencia subjetiva. 2006. p.31-42
21
Ariès P.História da Morte no Ocidente. 1977.p.53.