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A abordagem dos aspectos emocionais da paciente

Capítulo Livro – Ginecologia – equipe de reprodução humana do HCUFMG

Márcia Aparecida de Abreu Fonseca


Psicóloga do Hospital das Clínicas da UFMG
Especialista em Psicologia Hospitalar pela FUMEC
Mestre em Psicologia Social pela UFMG
Doutora em Estudos Psicanalíticos pela UFMG
Endereço: Av. Professor Alfredo Balena, 189 – Sala 1403
Santa Efigênia – Belo Horizonte/MG - CEP: 30110-100
e-mail: fonsecabreu97@gmail.com
Telefone: (31)9 9915 6056

Andréa Marques Chiaretti Munaier


Psicóloga do Hospital das Clínicas da UFMG
Especialista em Psicologia Clínica pelo CFP
Especialista em Psicanálise nas Instituições de Saúde pela PUC/MG
A abordagem dos aspectos emocionais da paciente

A clínica ginecológica sustenta o desafio de acolher e acompanhar a saúde das mulheres


em seu complexo percurso pela via da feminilidade e suas transformações. A abertura
para a vida subjetiva de cada paciente, em sua particularidade, configura-se instrumento
fundamental aos profissionais.

Nesse capítulo, discutiremos alguns aspectos subjetivos envolvidos no campo da saúde


da mulher. Dentre eles há situações que podem ser aplicadas a pacientes de outras
especialidades. Entretanto, nosso foco será o cuidado na ginecologia. Dividimos o texto
em temas que frequentemente mobilizam tanto a paciente como o profissional e equipe
de referência.

O tempo de cada um

Antes de iniciarmos a discussão dos aspectos emocionais envolvidos no tratamento da


paciente da clínica ginecológica, é importante uma reflexão sobre o modo de viver das
pessoas na contemporaneidade e suas repercussões sobre o contexto das vivências
afetivas.

A informação rápida e globalizada, marcador típico de nosso tempo, tem deixado um


saldo de ansiedade no ar, imprimindo clima de urgência para todos nos processos de
ação e decisão da vida diária, incluindo as relações interpessoais.

O sociólogo polonês Zigmunt Bauman nos alerta, em seu livro ‘A arte da vida’, que,
embora haja uma corrida ao consumo, os bens capazes de produzir felicidade para as
pessoas não são negociáveis e estão cada vez mais distantes do campo monetário: trata-
se, no caso, do amor e da amizade.1

Nessa realidade, o pragmatismo se apresenta no ideal de alcançar respostas mais


rápidas e necessárias aos impasses advindos dessa era do imediatismo. A situação não é
diferente para os campos do conhecimento, assim como para o campo da saúde. Tal
como em outras disciplinas, a medicina mantém sua busca crescente no avanço e
aperfeiçoamento das tecnologias, atingindo respostas que visam desfechos resolutivos. E
na lógica da assistência médica, o discurso científico orienta os tratamentos em conjunto:
a cada sintoma bem isolado, os procedimentos e intervenções se conjugam para a
superação e restabelecimento do quadro de saúde.2

Quando, porém, ocorre o excesso da técnica no horizonte dos objetivos, resultados e


relações, lidamos com a eliminação gradativa dos aspectos subjetivos e verdadeiramente
significativos para cada pessoa. Nesse contexto, os envolvidos não respondem como
autônomos nem como agentes de seu desejo. Tendem a se apresentar como peças de
um sistema mecanizado, cujo movimento automático, não está sob seu controle.
Mostram-se como indivíduos cujas rédeas de si muitas vezes inexistem, tornando-se
seres assujeitados às demandas e exigências vindas de um outro, quer seja do trabalho,
da família, do consumo, de conflitos internos, etc.

Paralelamente ao progressivo saber gerado no campo da saúde física e psíquica, a


clínica dedicada às mulheres sinaliza e confirma que cada uma é e permanecerá única
em seu percurso de tornar-se mulher. Daí a necessidade de manejar com delicadeza os
desafios que podem surgir nas relações e nos processos de comunicação, no momento
do acolhimento das pacientes por parte dos profissionais de saúde que a elas se
dedicam. Disso dependerá a resposta favorável da paciente ao cuidado que lhe é
oferecido, a implicação em seu tratamento e o investimento de seu desejo em prol de sua
saúde.

A clínica do olhar e a escuta clínica

Em seu texto sobre a clínica, François Ansermet defende que a clínica médica se baseia
no olhar que busca constituir seu objeto por meio da observação e da descrição. Embora
baseada no olhar, esta se caracteriza pela pesquisa de uma possível correlação entre o
olhar e a linguagem. Desde sua constituição, trata-se de uma clínica que busca uma
passagem do que é visível àquilo que pode ser enunciado.3

Nesse sentido, a clínica médica estaria fundamentada no olhar que dá lugar à escuta e
ainda, em um olhar que possa ser transformado em linguagem, pois o quadro clínico é ao
mesmo tempo visível e legível. O chamado olho clínico examina o corpo, sua evolução, a
disfunção orgânica ou patológica. Constitui um olhar que registra, permitindo a distinção e
classificação do observado.
Entretanto, impasses subjetivos podem ocorrer no processo da clínica médica,
comprometendo, não só a investigação ou acompanhamento de rotina, como o próprio
tratamento que visa o restabelecimento orgânico e funcional da paciente. Esses impasses
são identificados com maior frequência nas dificuldades de comunicação, nas situações
de instabilidade ou urgência subjetiva da paciente e/ou de familiares (entre si ou
focalizado no médico/equipe) e, especialmente, na configuração do que, normalmente, é
nomeado como “não-adesão” ao tratamento.

É comum o relato de profissionais da saúde acerca de dificuldades relacionadas aos “mal-


entendidos” da comunicação que comumente acontecem em uma consulta médica e que
podem gerar angústia.

Para Garcia, a angústia gerada no não entendimento entre os sujeitos, possui função
balizadora do campo subjetivo. Diante da angústia, o sujeito empreende seu processo de
lidar com sua experiência de existir, enfrentando uma tensão interna constante entre as
posições de indivíduo e de cidadão. A tensão entre o eu e o eu no mundo, obrigaria cada
pessoa a construir seu laço social.4

Consideraremos a seguir, alguns elementos da base da constituição psíquica de um ser


humano numa perspectiva psicanalítica, visando localizar como essa angústia pode surgir
para uma paciente e se manifestar no contexto da consulta ginecológica e do
acompanhamento em saúde.

No início, a palavra é sempre do outro – a constituição subjetiva

Antes mesmo de vir ao mundo, uma criança é falada e idealizada pelos outros parentais e
seu entorno. Imaginada por antecedência, a criança circula enquanto objeto de desejo no
discurso de seus pais e familiares, pontua Sílvia Zornig.5

Marcado pela sua dependência absoluta ao nascer, o bebê grita e espera que surja
alguma resposta de sua mãe que, com seu desejo, interpreta algo da demanda de seu
filho, oferecendo-lhe um objeto de satisfação, uma palavra. Tal experiência inaugura para
o infante o jogo da separação e da retomada das coisas do mundo. Eis a introdução da
linguagem: marca fundamental do ser humano. Daí em diante, cada um segue a vida se
interrogando: “o que o outro quer de mim?”
Isso implica em marcas específicas da palavra do outro sobre cada sujeito que se
constitui de maneira particular. Consequentemente, não há forma de reimprimir uma
história física ou psíquica, pois as pessoas se tornam únicas em um dado contexto
individual e coletivo.

Cada ser humano nasce alienado no desejo do outro e deverá ser introduzido como
membro na cultura. Terá que se apropriar do que lhe é ofertado e assimilar os limites do
seu corpo e das regras de convivência: as leis. Disso resultará o surgimento do sujeito
desejante, aquele que escolhe e tem a parcela de responsabilidade por suas escolhas. A
constituição subjetiva de cada um está ligada a esse modo de se posicionar em relação
ao desejo do outro, como irá se colocar frente ao mundo e às leis. Tal processo de
subjetivação sinaliza a possibilidade da criança encontrar uma posição na vida que não
seja, unicamente, a de objeto de desejo do outro, favorecendo a ela, maior implicação em
suas decisões futuras.

Nesse sentido, um sujeito se define tanto pelo seu funcionamento anatômico e fisiológico,
(os limites do seu corpo), como também pelos efeitos de linguagem (posição frente ao
desejo do outro). Cada paciente é um sujeito único, particular, com história e família
singulares.

Retomando o contexto do atendimento em saúde, até mesmo quando um quadro


patológico ou de deficiência se instala, haverá especificidades a serem consideradas no
fato do quadro ter ocorrido em uma paciente específica, e se a mesma possui ou não um
grupo de suporte.

Através do contato com a família, podemos conhecer alguns detalhes e a dinâmica


interna desse grupo que tende a ser o principal responsável pelas trocas afetivas e
simbólicas dessa paciente. Dependendo da idade, teremos os pais, especialmente a mãe,
ou ainda irmãos como figuras de maior relevância. E ampliando o contexto do grupo de
suporte afetivo da história da paciente, os cônjuges e amigos podem se configurar fontes
fundamentais de apoio. As relações estão na base da subjetividade de cada pessoa.

Cada um, enquanto criança, desde muito cedo, teve que empreender um trabalho de
construção simbólica, ou seja, um trabalho de significação e interpretação da palavra do
outro que lhe foi dirigida. Esse trabalho inscreveu o sujeito na sua família e na cultura,
inaugurando para ele, a introdução na linguagem pela inscrição de traços ou marcas
subjetivas (inconscientes). No percurso da constituição subjetiva que apenas sinalizamos
de forma superficial no presente texto, desde a experiência inicial da criança, as marcas
vão se assentando como traços particulares de inscrição subjetiva.

É da herança ou produto desse trabalho de significação que algumas diretrizes simbólicas


localizam cada sujeito de forma singular em sua relação com o outro e no mundo. Tal
complexidade do traço subjetivo se atualiza em todos os relacionamentos. Veremos
algumas especificidades desse processo na relação da paciente com o médico e equipe
de saúde.

A relação paciente-médico

No contato inicial da paciente com seu médico, há um lugar de saber e autoridade que se
mantém destinado ao profissional, cuja presença se faz essencial para a formação do
vínculo necessário ao andamento de todo tratamento.

Lidamos, atualmente, com o desafio da pulverização e generalização de informações no


campo da saúde. Entretanto, ao dirigir sua queixa ao médico, a paciente demanda algo
mais além da informação sobre o que fazer com seu mal-estar localizado no corpo. Trata-
se de uma demanda de amor dirigida ao saber do médico. Um saber que não é qualquer
um, ou seja, o que está implícito é a crença de que este – o seu médico – sabe sobre seu
ser, mais do que ela mesma. A expectativa da paciente é a de que o médico, pelo saber
que possui, resolva o seu sofrimento. Por outro lado, o médico aposta em que o
cumprimento de suas recomendações e premissas forneça o resultado esperado.
Dependendo da natureza do vínculo instalado entre ambos, uma relação de confiança
poderá ou não se consolidar.

Chamamos de transferência a esse vínculo favorável de confiança existente entre o


médico e sua paciente, cuja instalação torna possível à paciente falar do que está
ocorrendo em sua vida, abrindo espaço para uma nova dimensão de sentido para sua
queixa em determinado plano de sua história. Através da escuta, pode ser possível à
paciente construir uma nova demanda: a de falar a alguém interessado em escutar,
possibilitando-lhe a elaboração de um novo saber sobre si e sobre o que a faz sofrer.
Vale ressaltar que o sentido do sofrimento para cada paciente está atravessado pela
subjetividade. Ainda que sofra no corpo consequências de uma doença ou disfunção, a
paciente conjuga sua dor com elementos subjetivos próprios que se associam a essa
experiência no contexto de sua história.

Assim, percebemos que através do contato com o médico, a paciente demanda muito
mais do que realmente explicita em seu discurso. E seu pedido, carregado de elementos
emocionais, diz respeito ao seu posicionamento subjetivo na relação com o outro. Nesse
contexto, a demanda e o desejo não são equivalentes. O desejo inconsciente está
encoberto pela queixa inicial, implícito ao que a paciente diz objetivamente. A sutileza
desse contato reside na necessidade de que o médico esteja advertido sobre essas
nuances e saiba acolher a demanda para tratar o sintoma.

É preciso se ter clareza da não existência de simetria nessa relação, pois tanto os
pacientes como os profissionais estão sujeitos a vivenciar equívocos e frustrações entre
si, uma vez que, como sabemos, existem os mal-entendidos próprios da linguagem,
podendo abrir espaço para o surgimento da angústia. Há uma posição de saber que a
paciente atribui ao profissional que a atende quando o vínculo transferencial se
estabelece, porém o saber que a paciente tem sobre si mesma deve ser considerado,
favorecendo a superação dos impasses.

Veremos um pouco do que poderia nos revelar essa angústia surgida no processo do
acompanhamento médico.

Angústia – afeto que não engana

Em 1930, Freud apontava três fontes de angústia ou infelicidade para o ser humano: o
nosso próprio corpo, o mundo externo (a natureza) e nossas relações com as outras
pessoas.6

O corpo é fonte de angústia tanto por suas características imutáveis, como pelo caráter de
transformação inexorável presente no seu envelhecimento, adoecimento e morte. O
mundo externo impõe ao sujeito sua condição de dependência e impotência frente aos
componentes e às intempéries da natureza. A terceira fonte constitui-se, enfim, na mais
difícil de ser contornada, pois o relacionamento com os outros está marcado pela falha do
entendimento absoluto. Fica sempre algum resíduo sem explicação, sem localização nos
relacionamentos. E se a relação com o outro promove a constituição do sujeito, ela
própria estará no centro do seu embaraço e sofrimento.

A angústia surge quando o sujeito não consegue significar determinada vivência. É afeto
que não engana, como pontua Lacan7, porque a angústia não é a dúvida, mas sim, a
origem da dúvida. Aparece como puro afeto, puro desconforto, e desprovido de sentido
para o sujeito, que conscientemente procura a razão para tamanho mal-estar.

Assim, por não favorecer a uma tradução simbólica, a angústia deixa o sujeito sem
palavras e o corpo torna-se a única saída para sua expressão, propiciando a realização
em ato daquilo que não se pode traduzir. Uma estranheza está implícita na angústia,
denunciando que o sujeito está perdido e não consegue localizar o que lhe está
ocorrendo. Nesse momento, uma solicitação poderá ser direcionada ao médico para que
este traga ao sujeito uma resposta sobre seu desconforto.

Considerando as ponderações feitas a respeito da angústia, sua íntima ligação com o


corpo e o que ele pode representar para o sujeito que sofre, nos aproximamos da
relevância do acolhimento e cuidado no campo da saúde.

Relativamente à saúde da mulher, há particularidades a serem observadas e que podem


auxiliar no sentido de melhor acolher a subjetividade do campo feminino. Uma questão se
faz importante: ‘Como isso pode interferir positiva ou negativamente na conduta dos
profissionais da clínica ginecológica?’

Feminilidade – a falta do significante

Tanto a masculinidade como a feminilidade supõem operações psíquicas que não são
totalmente equivalentes ao chamado desenvolvimento psicossexual, sendo necessário
considerar a existência de um hiato ou descolamento entre a anatomia e o significante do
sexo.8

Dito de outra forma, a percepção visual da diferença anatômica entre os sexos coloca-se
como insuficiente à criança, seja ela menina ou menino, para o esclarecimento sobre o
desejo sexual e sua representação psíquica. E no percurso da sexualidade humana, os
caminhos se diferenciam para as mulheres.

Na direção da feminilidade, a figura materna possui um papel privilegiado, exatamente por


possuir a condição dupla de mãe e mulher.9 Já a figura paterna traz consigo a importante
função simbólica da lei. Isto é, a figura do pai representa a lei quando se interpõe na
relação mãe-criança, assegurando que a criança não fique capturada na fantasia e poder
exclusivos da mãe.

Como vimos no que se refere à constituição subjetiva, a questão básica inerente a cada
um ao se interrogar sobre o desejo do outro desdobra-se para a menina de forma muito
particular, numa busca de saber o que significa ser mulher. Nessa perspectiva, é possível
entender que a mulher não é dada como pronta. Está num constante tornar-se, pois não
obtém de sua mãe um representante concreto para o seu sexo e para o que é ser mulher.
A menina tentará localizar em sua mãe o ponto específico, aquele que revelaria para ela
qual é a essência do desejo feminino. E a decifração torna-se permanente em sua
existência, não só para si mesma, mas também para os que a rodeiam.

A questão permanentemente lançada à mãe, na busca por um significante do feminino


contribui para um estatuto de enigma, comumente atribuído às mulheres e a maneira
como se relacionam com os homens e com outras mulheres. Ela também nos fornece
uma ideia da relevância da relação da menina com sua mãe. Nas palavras de Zalcberg:

“Muito da estruturação da filha vai depender de como a mãe lida com a falta de resposta
com a qual se confronta ela própria a respeito de uma definição especificamente feminina,
já que é marcada, tanto quanto a filha, pela falta de significante de seu sexo. Em função
da aceitação de uma falta a marcá-la é que a mãe reserva um lugar para a palavra do pai
da criança.” 10

Nesse sentido, o futuro da menina está na inscrição da lei representada pelo pai, e ainda
na falta de um significante específico para o feminino, tal como ocorre com a sua mãe. A
dificuldade em aceitar a falta, tanto em si mesma como no outro, está na causa de grande
sofrimento e problemas para uma mulher.

Contudo, a mulher não renuncia facilmente à busca de respostas sobre sua sexualidade e
a maternidade pode constituir-se em mais uma tentativa de se obter esse saber. O próprio
desafio da maternidade também se coloca nesse contexto de se buscar uma resposta
para o feminino, dividindo a mulher em duas posições em relação ao filho: a de mãe e a
de mulher. A criança então, devendo se localizar entre ambas.11

A infertilidade feminina – a mãe não recobre a mulher

Se a maternidade pode se constituir uma tentativa de se realizar como mulher, quando há


impedimentos reais para a mesma, com a constatação de infertilidade, a angústia poderá
se instalar de forma intensa, exigindo o manejo por parte do médico e equipe. A
consideração da subjetividade feminina é fundamental por parte do médico na clínica
ginecológica e revela-se essencial na abordagem da paciente que busca superar a
infertilidade.

Em seu trabalho de investigação sobre o masculino e o feminino, Marina Ribeiro


argumenta que a fertilidade de um casal sempre foi, historicamente, mais associada ao
lado do feminino, bem como considerada uma capacidade da mulher. Nesse sentido, o
desejo de ter filhos, construído desde a infância, pode se apresentar para uma mulher
como possibilidade de responder ao seu questionamento sobre o feminino.12

As vivências decorrentes da infertilidade podem se apresentar como perdas complexas,


resultando em frustração tão intensa ou maior que outros processos de luto. Afinal,
envolve a perda de um projeto que é a criança, isto é, a perda de um futuro idealizado,
podendo ser um ponto que deflagra estados depressivos importantes.13

O sofrimento recai sobre o casal, porém a maternidade, como vimos, tende a se associar
diretamente à feminilidade, tanto pelas características físicas dessa experiência como
pelas psíquicas. Tal associação, somada aos sintomas provenientes da angústia, tem
gerado diversos estudos.

As pesquisas sobre a temática da infertilidade envolvendo aspectos subjetivos vêm


passando por mudanças significativas, como aponta Wischmann. Em relação às
intervenções psicossociais na infertilidade, Wischmann relata que, num primeiro
momento, os estudos se concentraram no chamado modelo de infertilidade psicogênica,
aquela que seria causada por vinculação a fatores psicológicos. 14 Porém, mesmo em
estudos com número significativo de indivíduos seguindo exigências científicas, não foi
estabelecida evidência da infertilidade por fatores psíquicos.15

Entretanto, aspectos subjetivos se apresentam nessa clínica e no modo de cada mulher


lidar com a constatação da infertilidade e das possibilidades de superá-la. O sofrimento
psíquico das mulheres que se empenham no tratamento da infertilidade pode ultrapassar
limites chegando à extrema angústia, num quadro com características de devastação. As
pesquisas confirmam que tais vivências podem sinalizar significativo nível de estresse,
além de depressão com ou sem necessidade de suporte psíquico.16

Particularmente nos casos de abortamento de repetição, constatamos que o acolhimento


feito pelo médico e pela equipe de referência, quando realizado de maneira cuidadosa,
afetiva e individualizada à mulher, desde o início e ao longo da nova gestação, resulta em
significativo sucesso dessa gravidez até o nascimento do bebê.17

Quando a mulher se torna mãe terá que se haver com os lugares de mãe e de mulher,
além de dar novo significado para a posição de filha. Tal conjunto de operações
permanece sujeito às transformações físicas e psicológicas de cada experiência,
confirmando quão complexo e singular é o percurso de cada mulher pela via da
feminilidade.

Realizaremos, a seguir, uma breve reflexão sobre a terminalidade. Constatamos que tanto
o envelhecimento como a morte representam, para a paciente e para os profissionais de
saúde, situações delicadas e de grande exigência emocional no contexto clínico.

O sujeito não envelhece

Nesse ponto, é importante diferenciar o envelhecimento do adoecimento e da morte.


Envelhecer remete à coexistência de processos variados de luto na vida de uma mulher.
Com o avanço do tempo cronológico, há uma inevitável contagem de vivências,
mudanças, transformações e perdas. Essa perspectiva deve ser considerada com
cuidado no acompanhamento em saúde, pois é frequente a associação entre velhice e
doença.
O fato de estar envelhecendo pode ser utilizado por uma paciente como álibi, visando
justificar possíveis dificuldades em aceitar as transformações inevitáveis do seu corpo.
Isso pode favorecer, dentre outras condutas de defesa, a uma procura interminável por
médicos e especialistas para que estes possam tamponar a falta real desse momento,
que se configura de forma insuportável para a paciente. A angústia se apresenta com
frequência nesse enquadre, afetando a paciente e demarcando-lhe uma estranheza ao
lidar com a própria imagem, já nem tanto reconhecida como sua, uma vez que as perdas
corporais são explícitas e sem perspectivas de recuperação.18

Diferentemente de outras fases da vida, como a infância, a adolescência ou a gravidez,


quando a mulher envelhece, as transformações sofridas não lhe apresentam novos
atributos a desenvolver, e sim superações a empreender física e emocionalmente. Esse
sujeito não envelhece subjetivamente, mas necessita dar sentido às perdas: novas
apresentações da falta no corpo real e na relação com o outro.19

Os esforços da indústria farmacêutica e estética, com ofertas de métodos e químicas, não


são suficientes para barrar as insistentes marcas do tempo sobre o corpo. Nessa visão, a
menopausa também pode se constituir em período de grandes alterações e angústia para
a paciente, que tende a demandar um suporte a mais ao seu médico.

Quando a situação, de fato, envolve a consideração da terminalidade e suas


consequências, a angústia tende a irromper na possível rede de proteção que assegura
certa distância, ainda que ilusória, entre a fonte do mal-estar e o sujeito. Nesse momento,
instala-se uma verdadeira urgência subjetiva, com características de crise na vida do
sujeito, que por não dispor de palavras para nomear, entender ou manejar seu sofrimento,
cai no silêncio e na inibição.

Salientamos que a urgência subjetiva implica em perda de referências psíquicas para


abordar uma determinada vivência ou acontecimento. O sujeito é tomado de surpresa
pelo ocorrido, que envolverá sempre uma situação para a qual ele não teria como se
preparar. Ricardo Seldes complementa que na situação de urgência subjetiva, uma
paralisação drástica pode se instalar, exigindo um vetor ou a presença de alguém a quem
o sujeito possa direcionar seu sofrimento e sair do mutismo que o captura.20
A morte se constitui no verdadeiro desconhecido, colocando em cheque as referências
ordenadas pelos sujeitos tanto coletiva como individualmente. De forma coerente com o
que já apontamos a respeito da contemporaneidade pragmática e acelerada, constatamos
a ocorrência da gradativa interdição da morte a partir do último século, com a tentativa de
afastá-la do nosso cotidiano e pensamento.21

Assim, o desconforto com a possível aproximação do fim da vida pode desencadear


quadros de ansiedade, angústia e até urgência subjetiva, pois a morte não possui
representação no psiquismo. Trata-se de uma das poucas coisas na vida que o ser
humano não pode repetir. Contudo, lidar com situações de perdas sempre se configura
vivência que exige elaboração para cada sujeito, desde a mais tenra idade. Ao perder
alguém, o sujeito fica diante do fato de que a morte é do outro, mas o trabalho de dar
sentido à perda, à falta, permanece do lado de quem sobrevive. É impossível
experimentar a própria morte, cuja presença se faz no imaginário desconhecido de cada
sujeito.

Por outro lado, o acompanhamento da paciente que se apresenta fora de possibilidades


terapêuticas torna-se, para o médico e a equipe, uma experiência que exige o
reconhecimento dos limites da vida e o essencial manejo de aspectos objetivos e
subjetivos inerentes à situação.

No que diz respeito à informação dada à paciente e aos familiares sobre a sua situação
de saúde, é preciso considerar que ela é necessária para minimizar os efeitos da
angústia. A informação dada de forma cuidadosa, embora não elimine o mal-estar, pode
contribuir para que tanto a paciente quanto os seus familiares consigam lidar com o
impacto de um diagnóstico grave, como também para que o médico e os profissionais
envolvidos no cuidado possam falar e participar das elaborações psíquicas.

Deparar-se com a morte inevitável e possuir recursos para lidar com ela constitui trabalho
de escuta para todo profissional de saúde. Ainda que cada vez mais seja colocada em um
plano distante em nossa atualidade, é preciso saber lidar com a morte no contexto clínico
para evitar que pacientes e familiares vivenciem o sofrimento de maneira solitária,
comprometendo ainda mais sua elaboração das perdas e seu trabalho de luto. Ao
profissional, exige-se que seja capaz de reconhecer a dor sem perder-se nela ou recusá-
la. A paciente necessita dessa posição do médico e da equipe que a assiste, para que
ela própria possa suportar o que está em jogo em cada passo do seu caminho.

Referências Bibliográficas

1 Bauman Z. A arte da Vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 2009.

2,3 Ansermet F. Clínica da origem – a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de


Janeiro: Contra Capa Livraria; 2003. p.7-9.

4 Garcia, C. Clínica do Social. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH - Mestrado em Psicologia;


1997. p.24.

5 Zornig, Silvia A-J, Construção da parentalidade: da infância dos pais ao nascimento do


filho. In: Piccinini CA, Alvarenga P.(Org.) Maternidade e Paternidade – a parentalidade
em diferentes contextos. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2012. p.17-34.

6 Freud S. O mal-estar na civilização [1930] In: ESB, Rio de Janeiro: Imago; 1976.
vol.XXI, p.81-178.

7 Lacan J. O Seminário – Livro 10 – A Angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Ed.; 2005. p.88.

8 Poli MC. Feminino/Masculino.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 2007.

9,10 Zalcberg M. A relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Elsevier;2003. p.97.

11 Miller J-A. A criança entre a mulher e a mãe. In: Opção Lacaniana; 1998: Abril (21).

12 Ribeiro MFR. Infertilidade e Reprodução Assistida: desejando filhos na família


contemporânea. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2004.
13, 1 Hollinrake E, Abreu A, Maifeld RNC, Bradlley JVV, Anuja D. Increased risk of
depressive disorders in women with polycystic ovary syndrome. Fertility and Sterility.
2007; 87 (6): 1369-73.

14 Wischmann T. Psychogenic infertility – myths and facts. Journal of Assisted


Reproduction and Genetics; 2003: 20(12):485-94.

15 Wischmann T. Psychosocial interventions in infertility: What works and what doesn’t?


Paper presented at the 22nd Annual Meeting of ESHRE. Prague; 18.06.2006.

16 Comitê de Psicologia da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana. Guia Sobre


Saúde Mental em Reprodução Humana; 2005/2006.

17 Jauniaux E, Farquharson RG., Christiansen OB, Exalto N. Evidence-based guidelines


for the investigation and medical treatment of recurrent miscarriage. Human Reproduction.
2006; 21(9):p.2216-22.

18, 19 Mucida A. O sujeito não envelhece – Psicanálise e velhice. 2.ed. Belo Horizonte:
Autêntica; 2006.

20 Seldes R. La urgencia subjetiva, un nuevo tiempo. In: Bellaga G (org.) – La urgencia


generalizada – La práctica en el hospital. Buenos Aires: Grama Ediciones; 2006. p.31-42.

21 Ariès P. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Francisco Alves;1977. p.53.

1
Bauman Z, A arte da vida. 2009.
2
Ansermet, F. Clínica da origem. 2003.p.7-9
3
Idem.
4
Garcia C. Clínica do Social.1997. p.24
5
Zornig S. Construção da parentalidade. 2012. p.17-34
6
Freud S. O mal estar na civilização.1930-1976. p.81-178
7
Lacan J. Seminário Livro 10. A angústia. 2005,p.88.
8
Poli MC, Masculino/Feminino.2007.
9
Zalcberg M.A relação mãe e filha. 2003. p.97
10
Idem. p.97
11
Miller, J-A. A criança entre a mulher e a mãe. 1998. p. 7
12
Ribeiro M. 2004
13
Hollinrake, 2007
14
Wischmann 2003
15
Wischmann, 2006
16
Comitê de Psicologia da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana. Guia Sobre Saúde Mental em Reprodução
Humana;2006.
17
Jauniaux E, Farquharson RG., Christiansen OB, Exalto N. Evidence-based guidelines for the investigation and
medical treatment of recurrent miscarriage. 2006
18
Mucida A. O sujeito não envelhece. 2006.
19
Idem
20
Seldes R. Urgencia subjetiva. 2006. p.31-42
21
Ariès P.História da Morte no Ocidente. 1977.p.53.

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