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2 A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DA
PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA*
* Este texto foi debatido no grupo PET/Psicologia e contou com a colaboração da ex bolsista Renata Moraes
Salles.
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natureza difere da relação do animal. Na relação que o homem estabelece com a natureza,
entretanto, não há uma redução de suas necessidades à satisfação imediata. O ato humano é
dotado de finalidade, intencionalidade, isto é, ele supera o “aqui e agora”, pois sua ação
possui um fim dirigido. A transmissão de suas experiências e conhecimento ocorre não apenas
pelo código genético, mas pela educação e pela cultura.
Ao atuar sobre a natureza, o homem não está somente alterando-a, mas também
modificando a si próprio nesta ação, desenvolvendo suas faculdades; enquanto o animal
permanece o mesmo, agindo segundo seu código genético, o homem encontra-se cada vez
mais diferenciado da natureza e das outras espécies animais. O homem na relação com a
natureza não apenas se altera, mas também produz o que é necessário para sua sobrevivência
e, ao fazê-lo ainda, está produzindo idéias. Neste processo, ele adquire consciência de que sua
atuação em relação à natureza possui um fim dirigido e que é capaz de incorporar
experiências anteriores. Ele é capaz de evocar o passado e planejar o futuro e estes são
processos intencionais, conscientes. Afirma-se, então, como ser social, ou seja, como um ser
que tem a sua sobrevivência diretamente vinculada à de outros, não podendo existir
isoladamente, uma vez que se constitui no, e com o grupo social.
A Psicologia, assim como outras ciências, propõe-se a pensar este homem. Para que
uma disciplina se estabeleça como uma ciência independente é preciso que ela possua um
objeto e métodos próprios. Um lugar não muito cômodo cabe à Psicologia, se comparada com
outras ciências humanas, devido a sua diversidade teórico-metodológica. É difícil definir
exatamente qual seu objeto de estudo e seu método de pesquisa. Os conteúdos inconscientes,
o comportamento, a subjetividade, o mundo interno, todas estas e algumas outras noções
fazem parte do chamado fenômeno psicológico. Estabelecer cientificamente a especificidade
deste objeto, colocando-o como autônomo em relação às outras ciências e longe da
especulação, é tarefa árdua e, talvez, possível, apenas se considerarmos a sua dimensão
histórica. É esta dimensão histórica que permite o diálogo entre toda a diversidade teórico-
metodológico existente dentro do que chamamos de Psicologia (Figueiredo, 1991a).
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“Ter uma experiência da subjetividade privatizada bem nítida é para nós muito fácil e
natural: todos sentem que parte de suas experiências são íntimas, que mais ninguém
tem acesso a elas. (...) Ainda com maior freqüência temos a sensação de que aquilo
que estamos vivendo nunca foi vivido antes por ninguém, de que a nossa vida é única,
de que o que sentimos e pensamos é totalmente original e quase incomunicável.”
(Figueiredo, 1991a:16-17).
No entanto, a história tem nos mostrado que nem sempre o homem sentiu-se assim,
esta experiência subjetiva privatizada em geral só ocorre em momentos sócio-históricos de
crise, quando os valores, as normas e os costumes são questionados e surgem novas
alternativas; neste processo os homens se perguntam sobre os caminhos a seguir, quais seus
sentimentos, quais critérios utilizar para tomar decisões. Percebe-se, portanto, que o estudo
das bases materiais (condições sociais, econômicas e políticas que caracterizam um dado
momento histórico) das sociedades que vivenciaram a experiência de subjetividade
privatizada é de fundamental importância para a compreensão do processo de construção das
idéias que determinaram o momento de constituição do pensamento psicológico. É preciso
ressaltar, que as relações existentes entre base material e construção de idéias em um dado
momento histórico apresenta-se em um movimento complexo, contínuo e não linear: há uma
relação de reciprocidade entre as idéias e a base material de uma dada sociedade, uma vez que
as idéias são, simultaneamente um produto das condições econômicas, políticas e sociais de
um dado período histórico e determinantes na constituição e transformação deste mesmo
período, ou seja, as idéias retornam à base material — são aplicadas — transformando-a, ao
mesmo tempo em que é esta base material que, em última instância, possibilita o
aparecimento dessas idéias.
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“E assim surgiram, entre os séculos XVII e XIX, a concepção dos seres humanos
como máquinas e o método — o método científico — mediante o qual era possível
investigar a natureza humana. As pessoas se tornaram máquinas, o mundo moderno
foi dominado pela perspectiva científica e todos os aspectos da vida passaram a ficar
sujeitos a leis mecânicas” (Schultz & Schultz, 1994:36).
Uma vez que a Igreja não ditava mais as verdades, para que os estudos fossem possíveis de
serem realizados e ainda, para que
1. O detalhamento destas duas concepções: racionalismo e liberalismo encontra-se no capítulo 1 deste livro.
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tabilidade que vigoravam anteriormente perdem a força. Não é mais a Igreja que dita o que e
como deve se pensar, mas cada indivíduo o faz de maneira diferente passando a existir a
possibilidade de julgamento pessoal. Esta situação cria a vivência individualizada trazendo a
questão da privacidade e a possibilidade do surgimento da subjetividade. Os laços sociais
ficam frouxos e os indivíduos perdem seus parâmetros de identificação. Em outras palavras,
há uma mudança histórica que também altera a mentalidade da época que orienta as ações das
pessoas. O modo de vida do período anterior se caracterizava principalmente pelo antiprivado.
A vida social se organizava em comunidades estamentais, nas quais não existia
diferença entre as esferas pública e privada. Em um certo momento, fatores históricos
externos levam ao fortalecimento dos Estados, que passam a produzir normas na esfera
pública, a decidir o que é público e privado. As comunidades são privadas na sua própria
legalidade e o Estado se apropria disto, criando condições para o aparecimento da vida
privada. Para que a Psicologia surgisse como ciência foi preciso que isto entrasse em crise e o
mundo psicológico pudesse ser estudado através de conhecimentos e métodos da física,
matemática, fisiologia etc., deixando de ser mera especulação para ser considerada científica.
Há necessidade de um método rigoroso (método científico) para trazer estes conhecimentos
através da razão e que respondesse também às necessidades do homem de objetivar e
neutralizar suas produções. Neste sentido, Fechner (1801-1887) e Wundt 1832-192O3 apoiam
seus estudos sobre a subjetividade em técnicas e conhecimentos da fisiologia, desenvolvendo
a Psicologia Experimental.
O pensamento científico no início do século XIX mostrava-se fundamentalmente
desenvolvido na Inglaterra, França e Alemanha. Justifica-se a localização de pontos férteis
para o desenvolvimento científico em tais países, pela tentativa de alcance de progresso
econômico e tecnológico vivida por eles, o que culninou em amplas estratégias de incentivo e
financiamento de pesquisas. A Alemanha teve estratégias de incentivo ao desenvolvimento
científico e tecnológico ainda mais intensas que os demais países citados, dada a necessidade
de equiparar-se a eles em termos de progresso econômico, uma vez que vivia um considerável
retardo devido ao seu
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Wundt tenta responder o que é a consciência o homem, que para ele poderia ser
estudada por dois aspectos dferentes: o dos órgãos dos sentidos e da experiência imediata; e o
da linguagem e
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dos processos simbólicos. O caminho para o estudo do primeiro aspecto seria através da
observação e experimentação, enquanto que a linguagem e os processos simbólicos seriam
analisados através do método comparativo.
No estudo da experiência consciente, Wundt acredita que os elementos da mente
humana encontravam-se interligados e organizados de forma ativa e não de forma passiva e
mecânica como pensavam os associacionistas britânicos. Segundo Wundt, a consciência era
dotada de uma capacidade própria de auto-organização de seus conteúdos em pensamentos.
Denominou o método de estudo utilizado para a realização de seus experimentos de
introspecção, o qual acreditava ser um mecanismo eficaz de observação da experiência
consciente. Relatava como sendo problema da Psicologia a descoberta dos elementos básicos
que compõem a consciência, bem como o entendimento da estrutura de organização e
funcionamento destes. O método utilizado por Wundt para o estudo de tais elementos básicos
era voltado ao exame da percepção interior através do qual obtinha uma espécie de relato
introspectivo dos sujeitos sobre tamanho, intensidade e duração de estímulos físicos. Ele
considerava, entretanto, que a experimentação psicológica tinha limites no estudo dos
processos mentais superiores.
Para entendermos melhor as propostas de Wundt é preciso esclarecer o que ele
entendia por conhecimento científico. Para ele os únicos fenômenos reais são os psíquicos.
Não há uma entidade substancial senão o conjunto de fenômenos psíquicos. Só há um tipo de
experiência que é a consciente ou interna.
“Por isso, todo conhecimento científico não se configura senão como ciência da
experiência interna. A distinção entre ciências físicas e psíquicas não se apóia em uma
diversidade de objetos, pois que todos só podem se ocupar de representações ou
experiências internas, funda-se numa diversidade de pontos de vista... Em toda
representação interna podemos distinguir três elementos: a coisa representada, ou seja,
o conteúdo da representação; o sujeito que a representa e as relações entre a coisa
representada e o sujeito que a representa.” (Penna, 1991:137).
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Ele propõe que a Psicologia estude a experiência imediata, ou seja, o conteúdo total da
experiência em suas relações com o sujeito. As ciências físicas só se constituem quando se
abstrai o objeto do sujeito, portanto estuda a experiência mediata. A Psicologia estuda, através
do método experimental, o controle das condições fisiológicas dos fenômenos psíquicos.
Este método, entretanto, só é adequado se aplicado aos processos ligados à
sensibilidade. Não se aplica aos processos superiores pelo caráter sintético ou produtivo
destes fenômenos. No plano da sensibilidade prevalecem as relações associativas; enquanto,
na esfera do pensamento, prevalecem os processos aperceptivos. A apercepção envolvida nos
processos psíquicos superiores é ativa, pois se refere às relações intrínsecas e lógicas da
consciência, seu foco é a atenção. As apercepções são sintéticas e produtivas. Em função dos
limites do método eperimental, os processos superiores deveriam ser estudados através do
método da observação.
Outro aspecto a ser considerado para entendemos as propostas de Wundt era o papel
da universidade moderna.
Havia nos círculos acadêmico; da Alemanha uma discussão sobre as distinções entre
pesquisa das ciências naturais (Naturavissenschaften) e as ciências humanas e sociais
(Geisteszvisscnschaften). Esta distinção levou Wundt a separar a Psicologia em Experimental,
vinculada às ciências naturais, e Social, vinculada às ciências humanas e sociais. A
proposição de limites à Psicologia Experimental fez com que seguidores de Wundt
questionassem se realmente a psicologia era somente em parte um ramo ds ciências naturas.
Külpe, em Wurzburgo, estuda o pensamento sem imagem eEbbinghaus, em
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Berlim a memória. Os dois tentam mostrar que é possível fazer experimentação com os
processos superiores e definem o organismo como objeto de estudo, substituindo a psique.
“As restrições propostas por Wundt ao método experimental, no que toca ao estudo do
pensamento, não foram compartilhadas por Külpe e pelos demais integrantes da
chamada Escola de Wurzburgo. Através da introdução do método da introspecção
experimental, Külpe imaginou contornar as dificuldades apontadas pelo mestre.
Wundt, contudo, jamais aceitou como válida a introspecção experimental, insistindo,
em argumentação cerrada, em que esse método não ultrapassava a condição de
simples método de observação.” (Penna, 1991:138).
como uma disciplina científica, preocupada com a verificação e experimentação dos fatos; ou
como uma disciplina filosófica, preocupada com a reflexão, com as essências, com as
intuições e os significados. Com relação à primeira possibilidade já analisamos a proposta
fundante de Wundt, cabe agora analisarmos a proposta de Henri Bergson (1859-1941)
referente à psicologia filosófica.
Bergson produz suas obras no período de 1889 a 1932, pretendendo que a Psicologia
Filosófica seja mais profunda do que a.Psicologia Científica. Para ele o homem se percebe
existente, pois existir é durar, ou seja, é ser no tempo (élan vital). Este durar, durée,
caracteriza-se como perpétuo, qualitativo, substancial, irreversível, imprevisível e criador.
Estas características são aspectos de uma única realidade e se implicam mutuamente.
produzidas sempre que o sujeito se depara com uma situação determinada. O método proposto
para a realização dos estudos foi, também, o introspectivo, ressaltando, assim como os autores
anteriores, a necessidade de o sujeito voltar-se para a própria mente através do relato de
sensações e percepções. Instrumentos que precisavam a medida e controle das observações e
resultados eram utilizados durante os experimentos.
Os princípios teóricos e metodologias de investigação adotados e desenvolvidos pelos
autores citados possibilitaram a construção, ao longo da História, de novas correntes de
pensamento em Psicologia. Percebe-se que a preocupação fundamental relacionada à garantia
de obtenção de leis e verdades universais, a utilização de técnicas de Controle na realização
dos estudos e ainda, a concepção do homem como ser dotado de estruturas predeterminadas
encontradas nas teorias de Wundt, Titchener e James determinaram e foram reproduzidas na
construção destas novas correntes teóricas: Psicanálise; Psicologia Analítica ou Junguiana e
Psicclogia Genética³.
A utilização sistemática da introspecção como método experimental apresentava, ao
mesmo tempo, possibilidades e limites na produção de dados científiccs. Esse é um exemplo
de como a produção de conhecimento é um processo histórico e dinâmico pois a discussão
sobre o método, aliada às demandas sobre o conhedmento do “funcionamento” do homem
abrem espaço para novas concepções. O relato, decorrente da introspecção, dependia da
pessoa que se observava internamente, portanto ninguém poderia, independentemente,
conferir sua veracidade; observador e observado eram uma e a mesma pessoa, dificultando a
replicação e fidedignidade dos dados. Outro problema da introspecção era a falta de
procedimento que permitissem alcançar um consenso para situações conflitantes vindas de
laboratirios rivais. As críticas e os limites da introspecção, pelo menos nos EUA, abriram
caminho para a emer-
psicólogos europeus para a América. Os anos entre as duas grandes guerras, 1919 a 1939,
caracterizaram-se pela mudança no fluxo de pesquisadores, são os europeus que vão para a
América, por exemplo: Moreno, Koffka, Wertheimer, Lewin, Köh1er, parte de integrantes da
Escola de Frankfurt, tais como Adorno, Horkheimer, Marcuse, Fromm (Farr, 1998).
Notamos que a Psicologia, em suas diversas correntes teóricas, ainda não conseguiu
superar as perspectivas mecanicistas e deterministas que fundamentaram sua constituição no
final do século XIX. Percebe-se, através dos conhecimentos produzidos e metodologias
utilizadas, que muitas das linhas de pensamento que a compõem, mantêm a concepção do
homem como um ser dotado de características, habilidades e tendências inatas que irão
desenvolver-se e atualizar-se ao longo de sua vida. Acreditam ser ele constituído por uma
espécie de funcionamento próprio autogerado e regulado, podendo ser conhecido em sua
totalidade. A reprodução de tais preceitos mostra que a relação entre os homens e a realidade
vivida ainda não gerou a necessidade de transformação de tais ideais e, desta forma, podemos
dizer que a Psicologia, muitas vezes, continua atuando como instrumento de controle e
estratificação social.
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