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A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DA PSICOLOGIA ...

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2 A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DA
PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA*

Edna Maria Peeers Kahhale


Ana Gabriela Pedrosa Andrian!

A PSICOLOGIA, ASSIM COMO as demais ciências, é produto de um conjunto de


determinações históricas, as quais culminaram por estruturar idéias que fundamentaram
e possibilitaram seu surgimento como ciência. Compreender o momento em que se deu sua
construção histórica significa abrir caminhos para que se possa apreender, questionar e
transformar os princípios que fundamentam o pensamento psicológico hoje, de modo a
possibilitar novas formas de pensar, sentir e agir dos profissionais que o representam para
com a realidade (Bock, Gonçalves & Furtado. 2001).
Compreender o homem significa encará-lo como um ser que é parte integrante da
natureza, ao mesmo tempo que se diferencia dos demais animais pela relação que estabelece
com ela. Os animais têm seus comportamentos herdados biologicamente e determinados
basicamente pela transmissão do código genético. Seu modo de agir é caracterizado pelos
reflexos e instintos, que são os mesmos para uma dada espécie e não variam de indivíduo para
indivíduo dentro dessa espécie. A atuação do homem em relação à

* Este texto foi debatido no grupo PET/Psicologia e contou com a colaboração da ex bolsista Renata Moraes
Salles.
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natureza difere da relação do animal. Na relação que o homem estabelece com a natureza,
entretanto, não há uma redução de suas necessidades à satisfação imediata. O ato humano é
dotado de finalidade, intencionalidade, isto é, ele supera o “aqui e agora”, pois sua ação
possui um fim dirigido. A transmissão de suas experiências e conhecimento ocorre não apenas
pelo código genético, mas pela educação e pela cultura.
Ao atuar sobre a natureza, o homem não está somente alterando-a, mas também
modificando a si próprio nesta ação, desenvolvendo suas faculdades; enquanto o animal
permanece o mesmo, agindo segundo seu código genético, o homem encontra-se cada vez
mais diferenciado da natureza e das outras espécies animais. O homem na relação com a
natureza não apenas se altera, mas também produz o que é necessário para sua sobrevivência
e, ao fazê-lo ainda, está produzindo idéias. Neste processo, ele adquire consciência de que sua
atuação em relação à natureza possui um fim dirigido e que é capaz de incorporar
experiências anteriores. Ele é capaz de evocar o passado e planejar o futuro e estes são
processos intencionais, conscientes. Afirma-se, então, como ser social, ou seja, como um ser
que tem a sua sobrevivência diretamente vinculada à de outros, não podendo existir
isoladamente, uma vez que se constitui no, e com o grupo social.
A Psicologia, assim como outras ciências, propõe-se a pensar este homem. Para que
uma disciplina se estabeleça como uma ciência independente é preciso que ela possua um
objeto e métodos próprios. Um lugar não muito cômodo cabe à Psicologia, se comparada com
outras ciências humanas, devido a sua diversidade teórico-metodológica. É difícil definir
exatamente qual seu objeto de estudo e seu método de pesquisa. Os conteúdos inconscientes,
o comportamento, a subjetividade, o mundo interno, todas estas e algumas outras noções
fazem parte do chamado fenômeno psicológico. Estabelecer cientificamente a especificidade
deste objeto, colocando-o como autônomo em relação às outras ciências e longe da
especulação, é tarefa árdua e, talvez, possível, apenas se considerarmos a sua dimensão
histórica. É esta dimensão histórica que permite o diálogo entre toda a diversidade teórico-
metodológico existente dentro do que chamamos de Psicologia (Figueiredo, 1991a).
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O estudo científico dos aspectos psicológicos só se inicia no momento histórico em


que o homem se percebe ao mesmo tempo experimentando sentimentos aparentemente únicos
e particulares — sensação de ser detentor de uma subjetividade privada — e esta experiência
privada é questionada, entra em crise.

“Ter uma experiência da subjetividade privatizada bem nítida é para nós muito fácil e
natural: todos sentem que parte de suas experiências são íntimas, que mais ninguém
tem acesso a elas. (...) Ainda com maior freqüência temos a sensação de que aquilo
que estamos vivendo nunca foi vivido antes por ninguém, de que a nossa vida é única,
de que o que sentimos e pensamos é totalmente original e quase incomunicável.”
(Figueiredo, 1991a:16-17).

No entanto, a história tem nos mostrado que nem sempre o homem sentiu-se assim,
esta experiência subjetiva privatizada em geral só ocorre em momentos sócio-históricos de
crise, quando os valores, as normas e os costumes são questionados e surgem novas
alternativas; neste processo os homens se perguntam sobre os caminhos a seguir, quais seus
sentimentos, quais critérios utilizar para tomar decisões. Percebe-se, portanto, que o estudo
das bases materiais (condições sociais, econômicas e políticas que caracterizam um dado
momento histórico) das sociedades que vivenciaram a experiência de subjetividade
privatizada é de fundamental importância para a compreensão do processo de construção das
idéias que determinaram o momento de constituição do pensamento psicológico. É preciso
ressaltar, que as relações existentes entre base material e construção de idéias em um dado
momento histórico apresenta-se em um movimento complexo, contínuo e não linear: há uma
relação de reciprocidade entre as idéias e a base material de uma dada sociedade, uma vez que
as idéias são, simultaneamente um produto das condições econômicas, políticas e sociais de
um dado período histórico e determinantes na constituição e transformação deste mesmo
período, ou seja, as idéias retornam à base material — são aplicadas — transformando-a, ao
mesmo tempo em que é esta base material que, em última instância, possibilita o
aparecimento dessas idéias.
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O momento que marcadamente construiu o conjunto de idéias e necessidades que


fundamentaram o surgimento da psicologia como ciência foi o de transição do modo de
produção feudal para o modo de produção capitalista (a delimitação deste período é uma
questão não completamente definida, alguns historiadores situam-no entre os séculos X e
XIII). Pode-se dizer que o modo de produção feudal é fundamentado pelos modelos de
produção de subsistência, relação senhor versus servo e pelo domínio econômico e político da
aristocracia e do clero sobre a sociedade. Os proprietários de terra detinham grande parte do
poder econômico, pois a riqueza, o maior valor dos bens, encontrava-se relacionado à posse
de terras. A sociedade era organizada por ordens ou estamentos o que tornava extremamente
difícil a mobilidade entre as classes sociais.
O conjunto de idéias existentes nesta época era produto da organização social, política
e econômica e encontravam-se principalmente referidas e estipuladas pelo clero, detentor de
grande poder ideológico. Dentre as principais idéias defendidas e pregadas pela Igreja o
teocentrismo mostrou-se como fundamental e podemos caracterizá-lo: pela visão do homem
como ser predeterminado e pela explicação da igualdade humana como sendo produto da
vontade divina (sendo que a libertação viria após a morte). O mundo era visto de forma
hierarquizada, finalista e estática. Leis diferentes eram necessárias para explicar o céu e a
terra, porque estes seriam de natureza qualitativamente diferente. É possível perceber a
existência de um dualismo no que concerne às concepções de corpo e alma. O conhecimento
se dava por revelação e a razão estava submetida à fé. Desta forma, dialeticamente, as idéias
justificavam o modo de produção, ao mesmo tempo, que este as produzia.
Algumas mudanças históricas nas relações de produção, ou seja, nas relações
existentes entre o homem e seus mecanismos de subsistência (trabalho) possibilitaram o
surgimento de condições que levaram à acumulação de capital e desenvolvimento do sistema
capitalista de produção: a ativação do comércio facilitado pelas Cruzadas; o aparecimento das
cidades e a produção de excedentes agrícolas e artesanais, dado pelo aperfeiçoamento técnico
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e aumento populacional (devido à diminuição do número de mortes por doenças); a expansão


do comércio externo, além da exploração colonial, saques, pirataria e empréstimos usurários;
a formação de uma classe trabalhadora livre e sem propriedades devido à expulsão dos
camponeses da terra, dada pela elevação das taxas de arrendamento, cerceamento das terras
comuns e criação de ovelhas — o que necessitava de um número menor de trabalhadores.
Vale lembrar que todo este processo foi longo e constituído por várias lutas.
Neste contexto, a mercadoria passa a ser a figura básica que carrega a possibilidade de
acumulação do capital e do desenvolvimento de uma economia de mercado. Este é o
momento de ascensão da burguesia, em que a relação senhor — servo é substituída pela
relação dos detentores dos meios de produção — burguesia — e o proletariado, expropriado
dos meios de produção e detentor da força de trabalho. Esta burguesia substitui a aristocracia
em termos de poder econômico e político e o poder da Igreja passa a ser questionado, o que
culmina em sua destituição.
Acompanhando estas transformações, podemos observar também alterações no campo
ideológico. O universo passa a ser visto como infinito, indeterminado e em movimento, tendo
o sol como seu centro, além de passar a ser qualitativamente explicado (mecanicamente). As
mesmas leis explicariam o céu e a terra. O homem é agora capaz de conhecer a natureza e,
mais do que isso, transformá-la. O antropocentrismo é característica fundamental: o homem é
tido como livre, o que cria a possibilidade da definição de seu lugar social, pelo menos
ideologicamente. Ele — homem natural — pode agora ser conhecido e, passa a ser visto como
objeto e como parte integrante da natureza. A razão começa a ser encarada independente da fé
e os dogmas da Igreja são questionados, inclusive a existência de Deus. A produção de
conhecimento começa a se basear em lógicas de matemática, geometria, principalmente na
observação e experimentação.
Sendo assim, o momento em que a burguesia ascende como classe econômica teve
como idéias características a ênfase à razão, liberdade e individualização humana. Estas
mesmas estão expressas
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nas teorias do racionalismo, do mecanicismo e do liberalismo que se desenvolveram nesta


época¹.
Paralelamente e aos poucos, a vida que antes era coletiva vai dando lugar à vida
privada: as pessoas passam a morar em casas ocupadas somente pela família nuclear (até
então, as casas eram ocupadas por inúmeras pessoas, incluindo familiares que não possuíam
relações consangüíneas diretas e mesmo por amigos); desenvolve-se uma preocupação social
com a construção de lugares privados e com a diferenciação das famiias, classes sociais e
pessoas em geral, uma das outras. O homem passa a ser tido como ser singular, passível de
transformar, estudar, conhecer e ser conhecido.
A construção das idéias mecanicistas advém da equiparação das leis que
regulamentam o funcionamento do relógio e as leis que regem o funcionamento do mundo e
da natureza: ambos poderiam se explicados pela mesma regularidade e precisão do funcio-
namento de um relógio, como sendo mecanicamente determinados e construídos através de
relações causais. Tais idéias, tiveram como conseqüência também uma mudança na vivência e
na concepção do tempo que passa agora a ser marcado cronologicamente e não mais por
processos naturais (fases do dia e tarefas a fazer). Cabe mencionar a metáfora feita com o
relógio para explicar o espírito do mecanicismo: o mundo, a natureza poderiam ser explicados
com regularidade, como sendo mecanicamente determinados e por um processo de causa e
efeito. Além disso, leva a uma mudança na própria vivência do tempo que é marcado pelo
relógio — um produto humano — e não mais por processos naturais.

“E assim surgiram, entre os séculos XVII e XIX, a concepção dos seres humanos
como máquinas e o método — o método científico — mediante o qual era possível
investigar a natureza humana. As pessoas se tornaram máquinas, o mundo moderno
foi dominado pela perspectiva científica e todos os aspectos da vida passaram a ficar
sujeitos a leis mecânicas” (Schultz & Schultz, 1994:36).

Uma vez que a Igreja não ditava mais as verdades, para que os estudos fossem possíveis de
serem realizados e ainda, para que

1. O detalhamento destas duas concepções: racionalismo e liberalismo encontra-se no capítulo 1 deste livro.
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garantissem a obtenção de conliecimentos tidos como verdadeiros pelos homens, seria


necessária a utilização de instrumentos de controle, observação e medida bastante rigorosa, os
quais tiveram sua construção fundamentada em três correntes teóricas: no racionalismo, no
empirismo e no mecanicismo. Para a fundamentação racionalista, a razão é tida como
instrumento básico através do qual o homem pode desvendar leis naturais; já a fundamentação
empirista prega a necessidade da observação na utilização de estudos experimentais; o
mecanicismo, por sua vez, encontra-se pautado na idéia da existência de leis que garantem a
regularidade de funcionamento do mundo em associação com o funcionamento das máquinas.
Neste momento em que se toma necessário o estudo do homem em termos de
organização e funcionamento da mente, o pensamento psicológico começa encontrar terreno
fértil para ser constituído, colocando-se como produto e, a seguir, produtor das necessidades
históricas e econômicas vividas. Para que tal estudo fosse possível, dever-se-ia controlar e
precisar os experimentos realizados, com o intuito de que fossem descobertas leis universais e
verdadeiras sobre a mente humana. Esta última era assemelhada a uma máquina em termos de
propriedades e funcionamento. Desta forma, percebe-se que o pensamento psico1ógico foi
sendo construído a partir das idéias racionalistas, empiristas e mecanicistas, e
ainda a partir da concepção de homem corno ser único, livre e dotado de um “mundo interno”
que precisaria, dadas as necessidades deste momento histórico, ser desvendado.
Vale dizer novamente, que este processo de transformação social e ideológica só foi
possível devido às modificações trazidas pela acumulação do capital e surgimento da
burguesia. Tais transformações possibilitaram a construção de idéias relacionadas à existêrcia
da liberdade humana trazida pela razão e a valorização da razão como instrumento
fundamental para se atingir os conhecimentos verdadeiros, questiona-se a idéia de
imutabilidade do mundo, de que as coisas são dadas e não se transformam. Enfim, é
construído um momento histórico em que a possibilidade de transformação do mundo, a
liberdade, a razão e o homem são altamente vabrizados. Em decorrência disto, as idéias de
estabilidade e imu-
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tabilidade que vigoravam anteriormente perdem a força. Não é mais a Igreja que dita o que e
como deve se pensar, mas cada indivíduo o faz de maneira diferente passando a existir a
possibilidade de julgamento pessoal. Esta situação cria a vivência individualizada trazendo a
questão da privacidade e a possibilidade do surgimento da subjetividade. Os laços sociais
ficam frouxos e os indivíduos perdem seus parâmetros de identificação. Em outras palavras,
há uma mudança histórica que também altera a mentalidade da época que orienta as ações das
pessoas. O modo de vida do período anterior se caracterizava principalmente pelo antiprivado.
A vida social se organizava em comunidades estamentais, nas quais não existia
diferença entre as esferas pública e privada. Em um certo momento, fatores históricos
externos levam ao fortalecimento dos Estados, que passam a produzir normas na esfera
pública, a decidir o que é público e privado. As comunidades são privadas na sua própria
legalidade e o Estado se apropria disto, criando condições para o aparecimento da vida
privada. Para que a Psicologia surgisse como ciência foi preciso que isto entrasse em crise e o
mundo psicológico pudesse ser estudado através de conhecimentos e métodos da física,
matemática, fisiologia etc., deixando de ser mera especulação para ser considerada científica.
Há necessidade de um método rigoroso (método científico) para trazer estes conhecimentos
através da razão e que respondesse também às necessidades do homem de objetivar e
neutralizar suas produções. Neste sentido, Fechner (1801-1887) e Wundt 1832-192O3 apoiam
seus estudos sobre a subjetividade em técnicas e conhecimentos da fisiologia, desenvolvendo
a Psicologia Experimental.
O pensamento científico no início do século XIX mostrava-se fundamentalmente
desenvolvido na Inglaterra, França e Alemanha. Justifica-se a localização de pontos férteis
para o desenvolvimento científico em tais países, pela tentativa de alcance de progresso
econômico e tecnológico vivida por eles, o que culninou em amplas estratégias de incentivo e
financiamento de pesquisas. A Alemanha teve estratégias de incentivo ao desenvolvimento
científico e tecnológico ainda mais intensas que os demais países citados, dada a necessidade
de equiparar-se a eles em termos de progresso econômico, uma vez que vivia um considerável
retardo devido ao seu
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lento processo de unificação. A Alemanha ofereceu ampla abertura às ciências relacionadas


principalmente a Biologia, através da denominada Fisiologia Experimental.
No final do século XIX, os chamados fisiologistas, voltados para as questões ligadas
ao estudo e compreensão da constituição e funcionamento da mente humana, foram
responsáveis pela descoberta de regiões específicas do cérebro e ainda, pelo desenvolvimento
de técnicas de observação e controle amplamente utilizadas, mais tarde, pela Psicologia.
Realizavam pesquisas experimentais, através das quais a mente humana era estudada em
termos de estruturas neurais, sensações e percepções produzidas, utilizando-se, para tanto, de
técnicas de medida, observação e controle embasadas nos moldes pregados pelo método
experimental das ciências naturais. Percebe-se que parte do objeto de estudo adotado pela
ciência fisiológica (a mente humana) oferece ampla possibilidade de constituição de uma
nova ciência que estivesse diretamente relacionada a tal proposta de investigação. Neste
sentido, o estudo da obra de Wilhelm Wundt faz-se necessário por conter esta especificidade.
Alemão, nascido em 1832, Wundt teve sua formação na área de fisiologia. A partir de seus
estudos como fisiologista, começou a desenvolver a noção de uma psicologia independente
baseada na experimentação. Em 1875 montou o primeiro Laboratório de Psicologia do
mundo, em Leipzig, onde desenvolveu várias pesquisas que contribuíram para o
desenvolvimento da psicologia experimental. Além disso, teve papel importante na criação do
que chamou de Psicologia Cultural ou Social.

“A Psicologa Cultural tinha que ver com a investgação dos vários


estágios do desenvolvimento mental, manifestos a linguagem, na
arte, nos mitos, nos costumes sociais, na lei e na moral. As implicações dessa obra
(Võlkerpsychologie ou Psicologia Cultural) para a psicologia tem um significado
maior do que o seu conteúdo; ela serviu para dividir a nova ciência da psicologia em
duas partes, a experimental e a social.” (Schultz & Schultz, 1994:81).

Wundt tenta responder o que é a consciência o homem, que para ele poderia ser
estudada por dois aspectos dferentes: o dos órgãos dos sentidos e da experiência imediata; e o
da linguagem e
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dos processos simbólicos. O caminho para o estudo do primeiro aspecto seria através da
observação e experimentação, enquanto que a linguagem e os processos simbólicos seriam
analisados através do método comparativo.
No estudo da experiência consciente, Wundt acredita que os elementos da mente
humana encontravam-se interligados e organizados de forma ativa e não de forma passiva e
mecânica como pensavam os associacionistas britânicos. Segundo Wundt, a consciência era
dotada de uma capacidade própria de auto-organização de seus conteúdos em pensamentos.
Denominou o método de estudo utilizado para a realização de seus experimentos de
introspecção, o qual acreditava ser um mecanismo eficaz de observação da experiência
consciente. Relatava como sendo problema da Psicologia a descoberta dos elementos básicos
que compõem a consciência, bem como o entendimento da estrutura de organização e
funcionamento destes. O método utilizado por Wundt para o estudo de tais elementos básicos
era voltado ao exame da percepção interior através do qual obtinha uma espécie de relato
introspectivo dos sujeitos sobre tamanho, intensidade e duração de estímulos físicos. Ele
considerava, entretanto, que a experimentação psicológica tinha limites no estudo dos
processos mentais superiores.
Para entendermos melhor as propostas de Wundt é preciso esclarecer o que ele
entendia por conhecimento científico. Para ele os únicos fenômenos reais são os psíquicos.
Não há uma entidade substancial senão o conjunto de fenômenos psíquicos. Só há um tipo de
experiência que é a consciente ou interna.

“Por isso, todo conhecimento científico não se configura senão como ciência da
experiência interna. A distinção entre ciências físicas e psíquicas não se apóia em uma
diversidade de objetos, pois que todos só podem se ocupar de representações ou
experiências internas, funda-se numa diversidade de pontos de vista... Em toda
representação interna podemos distinguir três elementos: a coisa representada, ou seja,
o conteúdo da representação; o sujeito que a representa e as relações entre a coisa
representada e o sujeito que a representa.” (Penna, 1991:137).
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Ele propõe que a Psicologia estude a experiência imediata, ou seja, o conteúdo total da
experiência em suas relações com o sujeito. As ciências físicas só se constituem quando se
abstrai o objeto do sujeito, portanto estuda a experiência mediata. A Psicologia estuda, através
do método experimental, o controle das condições fisiológicas dos fenômenos psíquicos.
Este método, entretanto, só é adequado se aplicado aos processos ligados à
sensibilidade. Não se aplica aos processos superiores pelo caráter sintético ou produtivo
destes fenômenos. No plano da sensibilidade prevalecem as relações associativas; enquanto,
na esfera do pensamento, prevalecem os processos aperceptivos. A apercepção envolvida nos
processos psíquicos superiores é ativa, pois se refere às relações intrínsecas e lógicas da
consciência, seu foco é a atenção. As apercepções são sintéticas e produtivas. Em função dos
limites do método eperimental, os processos superiores deveriam ser estudados através do
método da observação.
Outro aspecto a ser considerado para entendemos as propostas de Wundt era o papel
da universidade moderna.

“A universidade medieval preparava seus estudantes para as antigas profissões da


medicina, do direito e da Igreja. Humboldt criou a universidade moderna quando ele
estabeleceu a Universidade de Berlin em 1809. O elemento novo da universidade
moderna foi a pesquisa ou a Wissenschaft. (..) Foi possível, então pela primeira vez,
conseguir graduar-se apenas através da pesquisa. O grau de doutor em filosofia (PhD)
atraiu muitos estudantes de fora da Alemanha e da Europa.” (Farr, 1998:37).

Havia nos círculos acadêmico; da Alemanha uma discussão sobre as distinções entre
pesquisa das ciências naturais (Naturavissenschaften) e as ciências humanas e sociais
(Geisteszvisscnschaften). Esta distinção levou Wundt a separar a Psicologia em Experimental,
vinculada às ciências naturais, e Social, vinculada às ciências humanas e sociais. A
proposição de limites à Psicologia Experimental fez com que seguidores de Wundt
questionassem se realmente a psicologia era somente em parte um ramo ds ciências naturas.
Külpe, em Wurzburgo, estuda o pensamento sem imagem eEbbinghaus, em
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Berlim a memória. Os dois tentam mostrar que é possível fazer experimentação com os
processos superiores e definem o organismo como objeto de estudo, substituindo a psique.

“As restrições propostas por Wundt ao método experimental, no que toca ao estudo do
pensamento, não foram compartilhadas por Külpe e pelos demais integrantes da
chamada Escola de Wurzburgo. Através da introdução do método da introspecção
experimental, Külpe imaginou contornar as dificuldades apontadas pelo mestre.
Wundt, contudo, jamais aceitou como válida a introspecção experimental, insistindo,
em argumentação cerrada, em que esse método não ultrapassava a condição de
simples método de observação.” (Penna, 1991:138).

A experimentação exige que se possa repetir em condições idênticas o mesmo


fenômeno e que se possa controlar sua aparição e sua observação; estes critérios não podiam
ser obtidos nos experimentos de Külpe, esta era a crítica de Wundt à introspecção
experimental.
Em 1896, ao publicar Grundiss, Wundt sistematiza a teoria tridimensional dos
sentimentos. Todos eles poderiam ser vistos por três dimensões: prazer e desprazer; tensão e
relaxamento; excitação e calma. Esta proposta teórica rompe com o associacionismo, por ser
inadequado para conceber o psiquismo, e propõe uma estreita ligação entre afetividade e a
produção de processos aperceptivos, sendo os sentimentos um sintoma experiencial da
apercepção.
Wundt propõe, para completar o método experimental, o método da observação
histórica e comparada, que permitiria estudar as funções mentais, as quais tornam possível a
vida espiritual coletiva e a evolução das sociedades humanas. Estas funções seriam a
linguagem, a arte, o mito, os costumes. A consciência é ao mesmo tempo individual e
coletiva. As funções mentais individuiis estão circunscritas aos limites da vida individual e
não dependem de outros indivíduos, mas as funções sociopsicológicas ou étnicas dependem
da interação do grupo e expressam a evolução do mesmo através das gerações. O estudo da
linguagem permite estudar as leis do pensamento, as diferentes línguas expressam diferentes
estágios do pensamento. A linguagem
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“aparece constituída de movimentos expressivos tais como gestos, gritos, modulações


vocálicas que são reconhecidos e distinguidos pelos indivíduos da mesma espécie.
Estes lhe atribuem, inicialmente, uma significação subjetiva correspondendo às
emoções e aos desejos. Mais tarde, na medida em que a inteligência se desenvolve,
uma significação objetiva se expressa, voltada para o mundo exterior”. (Penna,
1991:139-140).

Esta divisão da psicologia em experimental e social proposta por Wundt exemplifica a


influência do positivismo comtiano na constituição desta nova disciplina científica. Comte
criticava a psicologia da época por utilizar-se da observação interna, introspeccão. Como se
pode, ao mesmo tempo, pensar e pensar que se pensa? Ele não rega os fenômenos psíquicos
(pensamento, emoção, vontade), mas nega a possibilidade de conhecê-los através da reflexão,
da observação interna. O método de observação comparativa tinha se mostrado muito útil na
Biologia e deveria ser aplicado à Psicologia. Comte considerava inatas toda; as funções
mentais, afetivas ou intelectuais e a pluralidade das faculdades mentais eram distintas e
independentes entre si. Propõe que, de um lado, a Psicologia deve vincular-se à Fisiologia e,
de outro, à História e à Sociologia. É exatamente esta cisão que era vivida nas universidades
alemãs, entre ciências naturais e humanas e sociais, e é expressa na proposta de Wundt para a
Psicologia (Pena, 1991).
Wundt deu grande atenção ao ensido da experiência imedia. Tal estudo é considerado
por muitos como um avanço para a psicologia, uma vez que através dele foi possível a
formalização e a sistematização tados os conhecinentos da mente humana, aplicando a ela os
métodos das ciências físicas psicológicas. Quando a produção de conhecimento acerca da
natureza humana se dá através da experimentação e observação, a Psicologia começa a
delinear a sua independência como um campo autonômo de saber, deixando de ser pura
filosofia ou metafísica.
Como já afirmado anteriormente a constituição da Psicologia, como ciência autonoma, não
ocorre de maneira linear nem homogênea. Em meados do século XX, há um combata
epistemológico sobre a direção que a Psicologia deveria tomar: ou desenvolver-se
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como uma disciplina científica, preocupada com a verificação e experimentação dos fatos; ou
como uma disciplina filosófica, preocupada com a reflexão, com as essências, com as
intuições e os significados. Com relação à primeira possibilidade já analisamos a proposta
fundante de Wundt, cabe agora analisarmos a proposta de Henri Bergson (1859-1941)
referente à psicologia filosófica.
Bergson produz suas obras no período de 1889 a 1932, pretendendo que a Psicologia
Filosófica seja mais profunda do que a.Psicologia Científica. Para ele o homem se percebe
existente, pois existir é durar, ou seja, é ser no tempo (élan vital). Este durar, durée,
caracteriza-se como perpétuo, qualitativo, substancial, irreversível, imprevisível e criador.
Estas características são aspectos de uma única realidade e se implicam mutuamente.

“Quando define o durar como substancial é no sentido de que o tempo psicológico, ao


contrário do relógio, conserva-se de modo integral. (...) o cérebro concentra todo o
nosso psiquismo no momento atual. Mas o passado não se perde.(...) Não se pode
viver duas vezes o mesmo estado. Se todo o nosso passado se conserva, o que
vivemos pode ser análogo a outros momentos, mas nunca igual, daí o durar ser
irreversível. (...) Cada um dos nossos atos é absolutamente original. Somos nós que
criamos nós mesmos, pois cada um de nossos atos se revela como expressão de todo o
nosso passado. Na realidade exprime toda a nossa personalidade” (Penna, 1991:125).

Para Bergson, a consciência caracteriza-se pela memória, pela conservação integral do


passado. É uma ponte entre o passado e o futuro. A consciência não é atributo humano e não
está associada ao cérebro, ela é coextensiva com a vida. O cérebro é o órgão do esquecimento
e da escolha, segundo ele há mais no espírito do que no corpo. A evolução da duração do ser
no tempo tem duas linhas divergentes: uma orientada para a escolha e para a ação cada vez
mais livre; e outra dirigida para o torpor, para a inconsciência. A intuição é a via do
conhecimento, que integra a inteligência e o instinto. A inteligência é vazia porque só conhece
as relações, enquanto o instinto conhece as coisas, é pragmático. O passado, através da
memória, sobrevive de duas maneiras pela ação e pela representação. A memória-hábito
refere-se à ação, é motora, está vinculada à
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repetição e à passagem do tempo; a memória-pura ou “souvenier” evoca os fenômenos únicos


que se desenvolveram através da aprendizagem. Bergson estabelece uma íntima relação entre
percepção e atividade, o primeiro contato com o objeto permite detectar as possibilidades
práticas nele implicadas. A percepção é utilitária, está voltada para a ação. Bergson nega o
paralelismo psicofísico, a correspondência entre processos orgânicos e psicológicos é apenas
parcial, só existiria enquanto estes estados envolvessem ação (Penna, 1991).
Ele propõe duas dimensões para o eu: de superfície e profundo, O eu de superfície é
estático, objeto da Psicologia Experimental, é social recebendo as pressões do grupo, preside
a vida exterior, é espacializado podendo ser medido pela passagem do tempo, sua moral é
estática. O eu profundo é a própria duração do ser, é criador e livre, é dinâmico, seus atos são
imprevisíveis porque pessoais e originais, só o atingimos pela intuicão. Bergson critica os
fisiologistas da época, em especial Fechner, dizendo que os estados psíquicos não aumentam
em função do aumento da intensidade do estímulo físico. Eles não se alteram
quantitativamente, mas qualitativamente. O psiquismo não é descontínuo, mas tem uma
duração infinita (Penna, 1991). Estas reflexões de Bergson serão aprofundadas e
reinterpretadas pelos proponentes da Psicologia Genética e da Psicologia Humanista², que se
constituem como vertentes teóricas da psicologia em meados do século XX.
Apesar dos debates entre pcologia científica e filosófica, a influência do positivismo,
como fundamento e metodologia das ciências, era marcante na época, o que levou ao maior
desenvolvimento da dimensão dita científica da psicologia. A partir da abordagem teórica e
propostas de Windt, outros psicólogos começaram a pensar o funcionamento, estruturação e
organização da consciência. Dentre estes, pode-se destacar Edward Bradford Titchener
(1867.1927), que denominou sua abordagem teórica de Estruturalismo e William James
(1842-1910) que desenvolveu o movimento teórico conhecido como Funcionaismo.

2. Vide capítulos 8 e 9 deste livro.


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Titchener ocupava-se, assim como Wundt, do estudo da experiência consciente.


Entretanto, o foco de seus experimentos era dado ao entendimento das estruturas que
compõem separadamente a consciência. Ao contrário de Wundt, desenvolveu sua teoria de
acordo com os princípios associacionistas, acreditando que a consciência humana era
composta pela somatória de estruturas interligadas de forma mecânica e passiva. Caberia ao
psicólogo, portanto, desvendar e compreender a maneira como estas partes separadas
estruturavam o funcionamento da consciência, devendo utilizar-se, para que isto fosse
possível, de três passos fundamentais: redução das estruturas mentais a estruturas mais
simples; descoberta da lei que possibilita a interligação de tais estruturas e, por fim, conexão
destas estruturas às suas condições fisiológicas. Denominou o método utilizado para a
compreensão da consciência, assim como Wundt, de Introspecão, ressaltando a necessidade
da existência de um “olhar para dentro” para que os estudos fossem possíveis.
James, fundador do movimento funcionalista, ao ocupar-se do estudo do
funcionamento da consciência, acreditava ser esta mutável em termos de organização e
produto de um processo de adaptação ao ambiente. Para ele, a função da consciência era a de
capacitar o ser humano a adaptar-se ao meio ambiente e a fazer escolhas. Percebe-se aí a
ampla importância da teoria darwiniana na construção de suas concepções sobre a consciência
humana. Para James, a vida mental é finalista, isto é, a finalidade da vida psíquica
é a conservação e a defesa do indivíduo. Todos os estados mentais, úteis ou inúteis,
determinam a atividade corporal. James acredita que a consciência é um fluxo contínuo, é
pessoal, dinâmica e seletiva Ele propõe uma distinção entre o eu sujeito e o eu objeto. O eu
sujeito é puro ego, é consciente, e pode sê-lo nos diferentes objetos do eu objeto. O eu objeto
ou eu empírico apresenta-se dividido em eu material, eu social e eu espiritual. O eu material
compõe-se pelo corpo e pelas roupas e objetos de uso permanente com os quais nos
identificamos; o eu social é a imagem que os outros têm de nós e o eu espiritual é o conjunto
de todos os estados de consciência totalizados e apreendidos como realidae concreta. Para
James as emoções são a tomada de consciência de modificações viscerais
A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DA PSICOLOGIA ... 91

produzidas sempre que o sujeito se depara com uma situação determinada. O método proposto
para a realização dos estudos foi, também, o introspectivo, ressaltando, assim como os autores
anteriores, a necessidade de o sujeito voltar-se para a própria mente através do relato de
sensações e percepções. Instrumentos que precisavam a medida e controle das observações e
resultados eram utilizados durante os experimentos.
Os princípios teóricos e metodologias de investigação adotados e desenvolvidos pelos
autores citados possibilitaram a construção, ao longo da História, de novas correntes de
pensamento em Psicologia. Percebe-se que a preocupação fundamental relacionada à garantia
de obtenção de leis e verdades universais, a utilização de técnicas de Controle na realização
dos estudos e ainda, a concepção do homem como ser dotado de estruturas predeterminadas
encontradas nas teorias de Wundt, Titchener e James determinaram e foram reproduzidas na
construção destas novas correntes teóricas: Psicanálise; Psicologia Analítica ou Junguiana e
Psicclogia Genética³.
A utilização sistemática da introspecção como método experimental apresentava, ao
mesmo tempo, possibilidades e limites na produção de dados científiccs. Esse é um exemplo
de como a produção de conhecimento é um processo histórico e dinâmico pois a discussão
sobre o método, aliada às demandas sobre o conhedmento do “funcionamento” do homem
abrem espaço para novas concepções. O relato, decorrente da introspecção, dependia da
pessoa que se observava internamente, portanto ninguém poderia, independentemente,
conferir sua veracidade; observador e observado eram uma e a mesma pessoa, dificultando a
replicação e fidedignidade dos dados. Outro problema da introspecção era a falta de
procedimento que permitissem alcançar um consenso para situações conflitantes vindas de
laboratirios rivais. As críticas e os limites da introspecção, pelo menos nos EUA, abriram
caminho para a emer-

3. A constituição histórica e os conceitos da Psicanálise, Psicologia Análitica ou Junguianae Psico1ogia


Genética encontam-se detalhados os capítulos 4, 5 e 8, respecti vamente, deste livro.
92 A DIVERSIDADE DA PSICOLOGIA

gência do Behaviorismo4, em e ocorre urna separação entre observador e observado e são


possíveis medidas de confiabilidade entre observadores.
Na Alemanha, a Psicologia era ainda vista como um campo da filosofia. As pesquisas
realizadas por Wundt estavam dirigidas mais para investigações acadêmicas que para resolver
problemas da realidade concreta. Em outras partes do mundo, principalmente nos EUA, os
alunos e discípulos de Wundt desenvolviam uma Psicologia com um caráter de ordem prática
muito maior.
É perceptível o estabelecimento de uma relação entre os estudos de Wundt e o
desenvolvimento da Psicologia Experimental. Mas sua contribuição para as áreas da
Psicologia que passaram a estudar os processos simbólicos e a linguagem em geral quase não
é mencionada. É a partir de sua proposição do caráter dicotômico da consciência que se criam
as bases para o florescimento das concepções freudianas (Psicanálise) e junguianas
(Psicologia Analítica ou Junguiana).
A partir da área da Medicina e da Saúde, Freud (1856-1939) e Jung (1875-1961),
apoiados em questões práticas de como reintegrar indivíduos com “doenças nervosas” à
sociedade, passam a estudar os processos simbólicos e a linguagem, buscando possíveis
alternativas de tratamento ao emprego dos choques elétricos e dos métodos utilizados na
época. Estes pensadores, ao contrário de Wundt, não se encontravam inseridos no contexto
das universidades e presos à pesquisa acadêmica, mas tinham suas atividades voltadas para o
contato direto com as pessoas na clínica ou nos hospitais. A produção de conhecimento era
dada por um questionamento que possuía uma dinâmica mais ampla: ao se trabalhar com
processos simbólicos e lingüísticos, pretendiam proporcionar um tratamento que reinserisse o
indivíduo na sociedade e permitisse compreender melhor o processo psíquico do homem.
Neste sentido, as referências para o conhecimento não eram dadas apenas pelos órgãos
dos sentidos — como ocorria nas situações de laboratório — mas construídas nas relações
concretas dos

4. A constituição histórica do Behaviorismo encontra-se detalhada no capítulo 3 deste livro.


A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DA PSICOLOGIA ... 93

homens e através da estruturação da linguagem. Tais pensadores iniciaram seus estudos


utilizando o método conparativo, que era a proposta inicial de Wundt. Seus trabalhos
baseavam-se na observação do discurso do paciente (ou seja, o objeto de estudo se
caracteriza, nesta fase, pela linguagem), na análise da produção artística e simbólica e na sua
confrontação do discurso com a experiência vivida do paciente. Ao analisarem a lógica
interna da fala dos pacientes, eles notaram que nem sempre havia uma relação direta com a
experiência vivida. Porém, o que era relevante para a teoria não dizia respeito à veracidade
dos fatos, mas à coerência interna do discurso do paciente. Neste sentido, eles puderam
verificar que o discurso pode se referir à experincia vivida na realidade concreta ou a um
desejo de passar por estas experiências. Foi a utilização sistemática do método comparativo
de análise do discurso dos pacientes que levou Freud e Jung a proporem outros objetos de
estudo para a psicologia: o inconsciente e o simbolismo da vida psíquica.
A Alemanha, até a I Guera Mundial (1914-18), possuía hegemonja das universidades
no desenvolvimento da Psicologia e de outros interesses acadêmicos. Toda formação em pós-
graduação, doutorado, era feita neste país Os EUA desenvolveram suas próprias escolas de
pós-graduação na década de 20 do século XX. A guerra interronipeu o trabalho de muitos
pesquisadores e professores de ambos os lados do conflito, mas também os levou a estudarem
fenômenos decorrentes deste momento histórico-cultural. Por exemplo, Freud passa a estudar,
além de casos clínicos, a psicologia de massas; Lewin faz un estudo fenomenológico do
campo de guerra nas trincheiras. A mobilização de grandes massas Populacionais para a
guerra levou os psicólogos a criarem testes para selecionar pessoas para as diferentes tarefas
da guerra. Há um grande desenvolvimento da psicologia aplicada.
Segundo Penna (1990), no século XX há uma redução da aceiação do positivismo e do
naturalismo na psicologia e na ciência em geral. O positivismo é criticado por Popper, que
substitui a verificabilidade pela falsificabilidade das proposições e por consilerar que o
conhecimento origina-se da apreensão de problemas e não da observação e experimentação
dos fatos — propõe uma revião do positivismo através do neopositivismo ou empirismo lógi-
94 A DIVERSIDADE DA PSICOLOGIA

co. A teoria crítica da Escola de Frankfurt, marxismo ocidental, contesta a preocupação


empírica do positivismo, esvaziando o empirismo, conceituando o real como histórico e
dialético5, o conhecimento se produz pela práxis e não pela verificação ou falseamento
empírico. Essas novas visões epistemoçógicas, críticas ao positivismo, propiciaram que, ao
lado do Behaviorismo outras concepcões de Psicologia se desenvolvessem.
Pouco antes do início da II Guerra Mundial, outras formas de
fazer psicologia começaram a se desenvolver, algumas nos EUA, o Behaviorismo e a
Psicologia humanista. E outras na Europa: na Alemanha, a Gestalt, a Fenomenologia6 e o
Psicodrama7 na Suíça e França, a Psicologia Genética; na antiga Rússia, a Psicologia Sócio
Histórica8. O Behaviorismo trabalha com psicologia como ciência do comportamento e
enfatiza o observador e as relações funcionais do comportamento. A Psicologia Humanista
enfatiza as relações e a motivação humana. A Gestalt, a Fenomenologia e o Psicodrama
enfati.zam o ator, que vê sua ação como adequada às situações em que ele se encontra, não
explica por que age de determinada forma, a ênfase é no encontro; consideram que a
psicologia não pode seguir os métodos das ciências naturais, pois seu objeto de estudo
tem uma estrutura específica, deve buscar a compreensão, as razões e metas, enfim, o
significado e não as relações causais dos fenômenos. A Psicologia Genética enfatiza o
processo de desenvolvimento cognitivo do homem e pretende ser uma epistemologia. A
Psicologia Sócio-Histórica rompe com a visão positivista e assume o materialismo dialético e
histórico como fundamento epistemológico, colocando que o psiquismo é resultado do
processo de evolução da matéria e se constitui no processo de hurnanização. As diversas
propostas teóricas da psicologia só vieram a se confrontar e a se opor, quando Hitler ascende
ao poder e gera uma migração dos

5. A análise do materialismo histórico e dialético, marxismo, encontra-se no capítulo


1 deste livro.
6. A constituição histórica e epistemológica da fenomenologia encontra-se detalhada no capítulo 6 deste livro.
7. A constituição histórica e epistemológicã do psicodrama encontra-se detalhada no capítulo 7 deste livro.
8. A constituição histórica e epistemológica da Psicologia Sócio-Histórica encontra-se detalhada no capítulo 10
deste livro.
A CONSTITUIÇÃO HISTÕRICA DA PSICOLOGIA 95

psicólogos europeus para a América. Os anos entre as duas grandes guerras, 1919 a 1939,
caracterizaram-se pela mudança no fluxo de pesquisadores, são os europeus que vão para a
América, por exemplo: Moreno, Koffka, Wertheimer, Lewin, Köh1er, parte de integrantes da
Escola de Frankfurt, tais como Adorno, Horkheimer, Marcuse, Fromm (Farr, 1998).
Notamos que a Psicologia, em suas diversas correntes teóricas, ainda não conseguiu
superar as perspectivas mecanicistas e deterministas que fundamentaram sua constituição no
final do século XIX. Percebe-se, através dos conhecimentos produzidos e metodologias
utilizadas, que muitas das linhas de pensamento que a compõem, mantêm a concepção do
homem como um ser dotado de características, habilidades e tendências inatas que irão
desenvolver-se e atualizar-se ao longo de sua vida. Acreditam ser ele constituído por uma
espécie de funcionamento próprio autogerado e regulado, podendo ser conhecido em sua
totalidade. A reprodução de tais preceitos mostra que a relação entre os homens e a realidade
vivida ainda não gerou a necessidade de transformação de tais ideais e, desta forma, podemos
dizer que a Psicologia, muitas vezes, continua atuando como instrumento de controle e
estratificação social.

Referências bibliográficas

ANUNES, M. A Psiologia no Brasil uma leitura histcrica sobre sua constituição. São Paulo:
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BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADC, O. (orgs.). Psicologia sócio
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FARR, R. M. As raízes da psicologia scrial moderna. Petópolis: Vozes, 1998.
FIGUEIREDO, L. C. Psicologia, uma introdução; uma visão histórica da psicologia como
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______ Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis: Vozes, 1991b.
PENNA, A. G. Filosofia da mente: introdução ao estudo crítico da Psicologia. Rio de
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_____ História das idéias psicológicas. 2ª ed. Rio de Jajeiro: Imago, 1991.
SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. São Paulo: Cultrix,
1994

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