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A perspectiva histórica da subjetividade: uma exigência para a psicologia atual.

A tradição da Psicologia, no Brasil, tem sido marcada pelo compromisso com os interesses
das elites e tem se constituído como uma ciência e uma profissão para o controle, a
categorização e a diferenciação. Poucas têm sido as contribuições da Psicologia para a
transformação das condições de vida, tão desiguais em nosso país.

A colonização do Brasil, por Portugal, foi caracterizada fundamentalmente pela exploração,


o que exigiu a construção de um forte aparelho repressivo. As idéias psicológicas
produzidas neste período, por representantes da igreja ou intelectuais orgânicos do sistema
português, terão a marca do controle. Vamos encontrar produções que buscam aumentar o
controle sobre as mulheres, as crianças e os indígenas.

No século XIX, o Brasil deixa de ser colônia e transforma-se em império. As idéias


psicológicas vão ser produzidas principalmente no âmbito da medicina e da educação.

Com a vinda da Corte portuguesa vamos ter duas conseqüências fundamentais:

• a demanda de serviços até então inexistentes como a educação nos seus diversos níveis,
inclusive superior, e o século XIX vai assistir à abertura de escolas que se tornarão
referência no Brasil como o colégio Pedro II, a Escola Normal em Niterói e em São Paulo e
o Pedagogium no Rio de Janeiro.

• e o desenvolvimento rápido da cidade do Rio de Janeiro que sem qualquer infra-estrutura


para suportar esse desenvolvimento se viu às voltas com doenças, miséria, prostituição e
loucura.

O século XIX vai assistir, assim, ao surgimento das idéias de saneamento e higienização
das cidades, higienização que será entendida como material e moral. Busca-se uma
sociedade livre da desordem e dos desvios.

As idéias psicológicas puderam colaborar significativamente no trabalho da educação e da


higienização moral.

A educação será marcada por práticas autoritárias e disciplinares. A escola vai surgir como
um lugar de disciplina e rigor moral, caracterizando-se por uma educação autoritária e
disciplinadora. A medicina, pela criação de hospícios como asilos higiênicos e de tratamento
moral (em 1842 é inaugurado no RJ o hospício Pedro II; em 1852 em SP o asilo Provisório
de Alienados da cidade de SP). A sociedade dominada pela ideologia da ordem e da
higienização.

O final do século XIX trouxe à República, a riqueza cafeeira e o desenvolvimento do pólo


econômico no sudeste. A psicologia adquiria o estatuto da ciência autônoma na Europa e,
em seguida, nos Estados Unidos.

Na educação, o pensamento está marcado pelo movimento da Escola Nova que coloca o
indivíduo como eixo de sua construção e dá ênfase a preocupação cientificista,
transformando as escolas em verdadeiros laboratórios.
As idéias psicológicas foram também associadas à administração e à gestão do trabalho,
baseadas no pensamento taylorista.

E a industrialização no Brasil vai fazer novas exigências à psicologia que, com a experiência
da psicologia aplicada à educação, pode colaborar significativamente com um
conhecimento que possibilitava a diferenciação das pessoas para a formação de grupos
mais homogêneos nas escolas e a seleção de trabalhadores adequados para a empresa.

As guerras trouxeram o desenvolvimento dos testes psicológicos, instrumentos estes que


viabilizaram esta prática diferenciadora e categorizadora da psicologia. E foi com este lugar
social que a psicologia se institucionalizou no Brasil, sendo reconhecida em 1962 como
profissão.

Esta pequena retrospectiva mostra que a Psicologia esteve comprometida com os


interesses das elites brasileiras. Uma profissão que, quando atingiu camadas de baixo
poder aquisitivo, nas empresas, nas escolas e na saúde, esteve sempre a serviço do
controle, da higienização, da discriminação e da categorização que permitiam melhorar a
produtividade, o lucro; permitiam melhorar as condições de vida das elites brasileiras, que
sempre fizeram política, nesse país, a partir exclusivamente de seus interesses.

Esta Psicologia “tradicional” se desenvolveu e se fundamentou em concepções


universalizantes e naturalizantes da subjetividade. Idéias que pensavam o homem e seu
mundo psíquico de forma a entendê-lo como um ser natural, dotado de capacidades e
características da espécie e que, inserido em um meio adequado, poderia ter seu
desenvolvimento. Um homem que é responsável pelo seu desenvolvimento e pelo seu
sucesso ou fracasso. O esforço de cada um era a garantia do desenvolvimento adequado.

São estas idéias que vamos desenvolver aqui para podermos fazer a crítica a
universalização e naturalização do homem, buscando uma perspectiva histórica para a
Psicologia.

A visão liberal de Homem

O liberalismo, ideologia fundamental do capitalismo, nasceu com a revolução burguesa para


revolucionar a ordem feudal e se instituiu para garantir a manutenção da ordem que se
instalava.

A burguesia constituiu as idéias liberais para se opor à ordem feudal: uma ordem baseada
na existência de uma hierarquia no universo; um mundo pensado como estável, ordenado e
organizado pela vontade divina.

Um mundo pronto no qual a verdade se revelava aos indivíduos. A hierarquia no universo


se refletia na hierarquia entre os homens. Um mundo paralisado, no qual cada um já nascia
no lugar no qual deveria ficar. Um universo que tinha a Terra como seu centro. Um mundo
de fé e dogmas religiosos que ofereciam aos homens as idéias prontas e os valores certos
para serem adotados. Um mundo que desconheceu individualidades, impedindo que os
sujeitos se constituíssem como tal. Um mundo que não precisou de uma Psicologia.

Assim, como oposição a estas idéias do feudalismo, a perspectiva liberal tem como um de
seus elementos centrais a valorização do indivíduo: o individualismo. Cada indivíduo é um
ser moral que possui direitos derivados de sua natureza humana. Somos indivíduos e
somos iguais, fraterno e livres, com direito à propriedade, à segurança, à liberdade e à
igualdade.

A visão liberal quebrava a estabilidade do mundo, sua hierarquia e suas certezas. O


indivíduo estava agora no centro e poderia e deveria se movimentar. E por que surgiam
estas idéias liberais?

Porque o capitalismo precisava destas idéias; precisava pensar o mundo como em


movimento, para explorar a natureza em busca de matérias-primas e precisava
dessacralizar a natureza. O capitalismo precisava do indivíduo, como ser produtivo e
consumidor. A Terra já podia então tomar seu humilde lugar no universo. A verdade já podia
ser plural. O mundo estava posto em seu movimento. O homem também estava em seu
movimento. E neste mundo, agora incerto, o homem se viu frente à possibilidade de ser, de
pensar e de fazer. A escolha tornava-se uma exigência e um elemento da condição
humana. Escolher entre várias possibilidades e escolher diferentemente de outros permite o
desenvolvimento de uma noção de indivíduo e conseqüentemente uma noção de eu entre
os homens.

Fertilizando estes novos elementos vamos assistir ao desenvolvimento da noção de vida


privada. Estudos interessantes, existentes hoje, mostram como a vida coletiva vai dando
lugar a um espaço privado de vida. As casas vão modificando sua arquitetura para reservar
locais privados para os indivíduos; os nomes vão se individualizando; marcas vão sendo
colocadas em roupas, guardanapos, lençóis permitindo identificação. A vida do trabalho vai
saindo da casa para a fábrica, modificando o caráter da vida pública. A casa vai se tornando
lugar reservado à família, que dentro de casa, vai também dividindo espaços e permitindo
lugares mais individuais e privados. Os banheiros saem dos corredores para se tornarem
lugares fechados e posteriormente individualizados.

A noção de eu e a individualização vão nascendo e se desenvolvendo com a história do


capitalismo. A idéia de um mundo “interno” aos sujeitos, da existência de componentes
individuais, singulares, pessoais, privados vai tomando força, permitindo o desenvolvimento
de um sentimento de eu. A possibilidade de uma ciência que estude este sentimento e este
fenômeno também é resultado deste processo histórico. A Psicologia vai se tornando
necessária.

As idéias liberais, construídas no decorrer do desenvolvimento do capitalismo vão permitir a


construção de uma determinada Psicologia. Essas idéias se caracterizam
fundamentalmente por pensar o homem a partir da noção de natureza humana. Uma
natureza que nos iguala e exige liberdade, como condição para o desenvolvimento das
potencialidades das quais somos dotados como seres humanos. Importante notar que o
liberalismo propiciou com estas idéias de igualdade natural entre os homens, o
questionamento das hierarquias sociais e desigualdades características do período histórico
da feudalismo.

Ao homem deveriam ser dadas as melhores condições de vida para que seu potencial
natural pudesse desabrochar. Frente às enormes desigualdades sociais do mundo
moderno, o liberalismo produziu sua própria defesa, construindo a noção de diferenças
individuais decorrentes do aproveitamento diferenciado que cada um faz das condições que
a sociedade “igualitariamente” lhe oferece.

Assim, as condições históricas deste período permitiram o surgimento da Psicologia e do


próprio fenômeno psicológico, como hoje está constituído. As idéias “naturalizadoras” do
liberalismo serão responsáveis pela concepção de fenômeno psicológico que se tornará
dominante na Psicologia. Para tratar deste assunto, escolhemos trazer alguns dados da
pesquisa realizada por Bock (1999) sobre o significado do fenômeno psicológico do
fenômeno psicológico entre os psicólogos de São Paulo.

Na publicação de tese de doutorado, Bock (1999) relata que encontrou em questionário


aplicados a 44 psicólogos, muitas definições para o fenômeno psicológico: “acontecimento
organísmicos, manifestações do aparelho psíquico, individualidade, algo que ocorre na
relação e é o que somos, conflitos pulsionais, confusão mental, manifestação do homem,
pensar e sentir o mundo, o homem e relação com o meio, consciência, saber-se indivíduo, o
que se mostra, subjetividade, funções egóicas, existência intersubjetiva, experiências,
vivências, loucura, distúrbio, o próprio homem, evento estruturantes do homem,
comportamento, engrenagem de emoção, motivação, habilidades e potencialidades,
experiências emocionais, psique, pensamento, sensação, emoção e expressão,
entendimento de si e do mundo, manifestação da vida mental, tudo que é percebido pelos
sentidos, é consciente e é inconsciente”.(Bock, 1999 pag. 173)

Cabe ainda trazer alguns dados a mais deste trabalho de Bock. Os psicólogos utilizam-se
de chavões para designar o fenômeno psicológico:

“- O fenômeno é bio-psico-social;

O fenômeno envolve ou implica a interação entre pessoas;

O fenômeno se refere ao um indivíduo que é agente e sujeito.”(Bock, 99, 174)

Ainda elementos recorrentes nas respostas aos questionários que indicam elementos de
uma conceituação consensual entre os psicólogos:

• “- É um fenômeno interior ao homem;

• Tem vários componentes;

• É uma estrutura, uma organização interna ao homem;

• Possui aspectos conscientes e inconscientes;


• Há algo de biológico e de social neste fenômeno;

• A interação é importante na sua constituição(interação com o meio, com os outros);

• Recebe influência de fora e influência do meio;

• É um fenômeno possível de ser conhecido(consciente), mas tem aspecto a que não se


tem acesso(inconsciente);

• O psicólogo possui instrumento e conhecimentos para contribuir no conhecimento desse


fenômeno e na sua restruturação;

• É um fenômeno que se desestrutura. A noção de desequilíbrio, de desorganização, de


desestruturação é bastante presente. Alguns identificam o fenômeno com a sua
desestruturação, isto é, o fenômeno é a doença, o desequilíbrio ou o conflito;

• Há uma noção, presente em alguns questionários que é a identificação do fenômeno com


a possibilidade de o indivíduo relacionar-se consigo mesmo”.(Bock, 99 pag 174/175)

Mas que coisa é esta, o fenômeno psicológico?

Ora é processo, ora é estrutura, ora manifestação, ora relação, ora é conteúdo, ora é
distúrbio, ora experiência. É interno, mas com relação com o externo. É biológico, é
psíquico e é social; é agente e é resultado; é fenômeno humano, relacionado ao que
denominamos “eu”.

O fenômeno psicológico seja lá qual for sua conceituação aparece descolado da realidade
na qual o indivíduo se insere e mais ainda, descolado do próprio indivíduo que o abriga.
Esta é a noção: algo que se abriga em nosso corpo, do qual não temos muito controle; visto
como algo que em determinados momentos de crise nos domina sem que tenhamos
qualquer possibilidade de controlá-lo; algo que inclui “segredos” que nem eu mesmo sei;
algo enclausurado em nós que é ou contém um “verdadeiro eu”.

E aqui cabe falarmos da relação deste fenômeno psicológico com o meio social e cultural.
Esta relação é afirmada como necessária e importante por muitos psicólogos; no entanto, é
vista como uma relação na qual o “externo”(mundo social) impede e dificulta o pleno e livre
desenvolvimento de nosso mundo “interno”(psicológico). O mundo social é um mundo
estranho ao nosso eu. Um lugar, no qual temos que estar e por isto nos resta a tarefa de
nos adaptarmos. E a história deste aparato psicológico passa a ser a história da sua
adaptação ao mundo social, cultural e econômico. Trabalhar, relacionar-se, aprender, fazer
são atividades desta adaptação. Amar, emocionar-se, perceber, motivar-se são vistas
também como possibilidades humanas que se desenvolvem, ou melhor, se atualizam(pois
já eram potencializadas) neste mundo externo.

Um fenômeno abstrato, visto como característica humana. Um fenômeno que existe em


nós, como estrutura, processo, expressão, ou qualquer de suas conceituações, porque
somos humanos e ele pertence a nossa natureza. Fica então naturalizado o fenômeno
psicológico. Algo que lá está como possibilidade, quando nascemos; algo que deverá ser
fertilizado por afeto, estimulações adequadas e boas condições de vida, mas que lá está,
pronto para desabrochar.

Em defesa de uma visão histórica do fenômeno psicológico

A Psicologia Sócio-Histórica, que toma como base a Psicologia histórico-cultural de Vigotski


(1896-1934), se apresenta desde seus primórdios como uma possibilidade de superação
destas visões dicotômicas. O discurso de Vigostki, no II Congresso Pan-Russo de
Psiconeurologia, em 1924, sobre o método de investigação reflexológica e psicológica,
demonstra isto com clareza, ao fazer a crítica a posições que foram consideradas
reducionistas e ao incentivar a produção de uma Psicologia dialética.

A psicologia sócio-histórica tem inerente a ela a possibilidade de crítica. Não apenas por
uma intencionalidade de quem a produz, mas por seus fundamentos epistemológicos e
teóricos.

Fundamenta-se no marxismo e adota o materialismo histórico e dialético como filosofia,


teoria e método. Nesse sentido, concebe o homem como ativo, social e histórico. A
sociedade, como produção histórica dos homens que, através do trabalho, produzem sua
vida material. As idéias, como representações da realidade material. A realidade material,
como fundada em contradições que se expressam nas idéias. E a história, como o
movimento contraditório constante do fazer humano, no qual, a partir da base material, deve
ser compreendida toda produção de idéias, inclusive a ciência e a psicologia.

A Psicologia Sócio-Histórica não trabalha com a concepção liberal de homem e de


fenômeno psicológico. Acredita que o fenômeno psicológico se desenvolve ao longo do
tempo.

Assim:

• o fenômeno psicológico não pertence à Natureza Humana

• o fenômeno psicológico não pré existe ao homem

• o fenômeno psicológico reflete a condição social, econômica e cultural em que vivem os


homens.

Portanto, para a Sócio-Histórica falar do fenômeno psicológico é obrigatoriamente falar da


sociedade. Falar da subjetividade humana é falar da objetividade onde vivem os homens. A
compreensão do “mundo interno” exige a compreensão do “mundo externo”, pois são dois
aspectos de um mesmo movimento, de um processo no qual o homem atua e constrói/
modifica o mundo e este, por sua vez, propicia os elementos para a constituição psicológica
do homem.

As capacidades humanas devem ser vistas como algo que surge após uma série de
transformações qualitativas. Cada transformação cria condições para novas
transformações, em um processo histórico, e não natural. O fenômeno psicológico deve ser
entendido como construção no nível individual do mundo simbólico que é social. O
fenômeno deve ser visto como subjetividade, concebida como algo que se constituiu na
relação com o mundo material e social, mundo este que só existe pela atividade humana.
Subjetividade e objetividade se constituem uma à outra sem se confundirem. A linguagem é
mediação para a internalização da objetividade, permitindo a construção de sentidos
pessoais que constituem a subjetividade. O mundo psicológico é um mundo em relação
dialética com o mundo social. Conhecer o fenômeno psicológico significa conhecer a
expressão subjetiva de um mundo objetivo/coletivo; um fenômeno que se constitui em um
processo de conversão do social em individual; de construção interna dos elementos e
atividades do mundo externo. Conhecê-lo desta forma significa retirá-lo de um campo
abstrato e idealista e dar a ele uma base material vigorosa. Permite ainda que se supere
definitivamente visões metafísicas do fenômeno psicológico que o conceberam como algo
súbito, algo que surge no homem, ou melhor, algo que já estava lá, em estado embrionário,
e que se atualiza com o amadurecimento humano. O homem e o fenômeno psicológico
pensados como sementes que se desenvolvem e desabrocham.

E por que a psicologia sócio-histórica é crítica a estas perspectivas?

Porque tais perspectivas fazem uma psicologia descolada da realidade social e cultural que
é constitutiva do fenômeno psicológico. E isto é uma questão importante, porque é desta
“descolagem” que se constitui o processo ideológico da psicologia. Passamos a contribuir
significativamente para ocultar os aspectos sociais do processo de construção do fenômeno
psicológico em cada um de nós. Fazemos ideologia.

Ideologia como definida por Charlot é “um sistema teórico, cujas idéias têm sua origem na
realidade, como é sempre o caso das idéias; mas que coloca, ao contrário, que as idéias
são autônomas, isto é, que transforma em entidades e em essências as realidades que ele
apreende, e que, assim, desenvolve uma representação ilusória ao mesmo tempo daquilo
sobre o que trata e dele próprio; e que, graças a essa representação ilusória, desempenha
um papel mistificador, quase sempre inconsciente(o próprio ideológico é mistificado,
acredita na autonomia de suas idéias): as idéias assim destacadas de sua relação com a
realidade servem, com efeito, para construir um sistema teórico que camufla e justifica a
dominação de classe. Ideológico não significa, portanto, errôneo(....). Aliás, é porque uma
ideologia é um sistema ilusório e não um sistema de idéias falsas que é social e
potencialmente eficaz (Charlot, 1979, p.32).

Chauí nos ajuda a completar o conceito quando afirma que a operação da ideologia é a
“criação de universais abstratos, isto é, a transformação das idéias particulares da classe
dominante em idéias universais de todos e para todos os membros da sociedade. Essa
universalidade das idéias é abstrata porque não corresponde a nada real e concreto, visto
que no real existem concretamente classes particulares e não a universalidade humana. As
idéias da ideologia são, pois, universais abstratos”.(Chauí, 1981, p.95). A ideologia é,
assim, uma representação ilusória que fazemos do real. O ilusório da ideologia está em que
parte da realidade fica ocultada nas constituições ideais. Na psicologia, ao construirmos as
noções e teorizações sobre o fenômeno psicológico tem ficado ocultada a sua produção
social. Com isto, as conseqüências são danosas do ponto de vista das possibilidades da
psicologia contribuir para a denúncia e a transformação das condições de vida constitutivos
do fenômeno.

O fenômeno psicológico, como qualquer fenômeno não tem força motriz que lhe seja
própria. É na relação com o mundo material e social que se desenvolvem as possibilidades
humanas. Claro, há um corpo biológico que se instituiu como elemento básico da relação e
é nele que se processará o que estamos chamando de fenômeno psicológico. Esta relação
com o mundo, através da atividade dos sujeitos, se torna essencial para que algo ocorra em
nós.

Temos usado a imagem do Barão de Munchhausen para expressar uma compreensão da


ideologia que se constitui a partir da psicologia.

“Uma outra vez quis saltar um brejo mas, quando me encontrava a meio caminho, percebi
que era maior do que imaginara antes. Puxei as rédeas no meio de meu salto, e retornei à
margem que acabara de deixar, para tomar mais impulso. Outra vez me saí mal e afundei
no brejo até o pescoço. Eu certamente teria perecido se, pela força de meu próprio braço,
não tivesse puxado pelo meu próprio cabelo preso em rabicho, a mim e a meu cavalo que
segurava fortemente entre os joelhos.” (Raspe, p.40)

É esta a melhor imagem que encontramos para designar esta ideologia do esforço próprio
de cada um para desenvolver-se, para desenvolver o potencial contido em sua natureza. A
Psicologia tem assim, há anos, contribuído para responsabilizar os sujeitos por seus
sucessos e fracassos; temos pensado e defendido condições de vida como canteiro
apropriado ou não para o desabrochar de potencialidades; temos acreditado e contribuído
para classificar e diferenciar pessoas pelas suas características e dinâmicas psicológicas;
temos criado ou contribuído para reforçar padrões de conduta, que interessam à sociedade
manter, como conduta necessária ao “bom desenvolvimento das pessoas”. A psicologia
tem reforçado formas de vida e de desenvolvimento das elites como padrão de normalidade
e de saúde, contribuindo para a construção de programas de recuperação e assistência
àqueles que não “conseguem(ao puxarem pelos seus próprios cabelos)” se desenvolver
nesta direção. Tem transformado o diferente, o “fora do padrão dominante” em anormal.

A psicologia não tem sido capaz de, ao falar do fenômeno psicológico, falar de vida, das
condições econômicas, sociais e culturais nas quais se inserem os homens. A psicologia
tem, ao contrário, contribuído significativamente para ocultar estas condições. Fala-se da
mãe e do pai sem falar da família como instituição social marcada historicamente pela
apropriação dos sujeitos; fala-se da sexualidade sem falar da tradição judaico-cristã de
repressão à sexualidade; fala-se da identidade das mulheres sem se falar das
características machistas de nossa cultura; fala-se do corpo sem inseri-lo na cultura; fala-se
de habilidade e aptidões de um sujeito sem se falar das suas reais possibilidades de acesso
à cultura; fala-se do homem sem falar do trabalho; fala-se do psicólogo sem falar do cultural
e do social. Na verdade, não se fala de nada. Faz-se ideologia!

Reverter este processo de construção da psicologia como ciência e profissão implica a


nosso ver redefinir o fenômeno psicológico.
E por que este aspecto faz da psicologia sócio-histórica uma perspectiva crítica? Porque já
não poderemos mais pensar a realidade social, econômica e cultural como algo fora do
Homem, estranho ao mundo psicológico que aparece como algo que o impede, o anula ou o
desvirtua. O mundo social e o mundo psicológico caminham juntos em seu movimento e a
psicologia para compreender o mundo psicológico terá obrigatoriamente que trazer para seu
âmbito a realidade social na qual o fenômeno psicológico se constrói; e por outro lado, ao
estudar o mundo psicológico estará contribuindo para a compreensão do mundo social.
Trabalhar para aliviar o sofrimento psicológico das pessoas possibilitará e exigirá do
psicólogo um posicionamento ético e político sobre o mundo social e psicológico.

A psicologia sócio-histórica pretende assim ser crítica porque posicionada. A psicologia


sócio-histórica exige a definição de uma ética e exige uma visão política sobre a realidade
na qual nosso “objeto de estudo e trabalho” se insere. A psicologia sócio-histórica carrega,
intrinsecamente à sua forma de pensar a realidade e o mundo psicológico, esta perspectiva
e a necessidade deste posicionamento.

As idéias liberais serão responsáveis pelo desenvolvimento da concepção de fenômeno


psicológico dominante na Psicologia. Um fenômeno concebido de forma abstrata,
enclausurado no homem, descolado da realidade social (a não ser como oportunidades
para o desabrochar do potencial); algo em nosso corpo, do qual não temos muito controle;
visto como algo que em determinados momentos de crise nos domina sem que tenhamos
qualquer possibilidade de controlá-lo; algo que inclui “segredos” que nem eu mesmo sei;
algo enclausurado em nós que é ou contém um “verdadeiro eu”.

Cabe ressaltar que nesta concepção a sociedade aparece como algo que se contrapõe aos
movimentos naturais do humano. A sociedade é algo oposto aos nossos interesses
naturais. O “Mundo externo” impede, dificulta o pleno desenvolvimento de nosso “mundo
interno”. Mundo interno e mundo externo ficam definitivamente separados. Ciências
diferentes são criadas para dar conta destas realidades tão diversas. A Psicologia,
enquanto ciência do mundo interno abandona qualquer vínculo mais profundo com a
realidade social e cultural, para pensar o homem isolado; para estudar o fenômeno
psicológico como algo já existente no homem que independe da relação com o mundo
cultural para se constituir.

A Prática profissional surge então carregada de uma perspectiva corretiva e terapêutica.


Não poderia ser outra, pois se já somos o que vamos ser, dada a natureza humana da qual
somos dotados, a Psicologia só poderia se constituir enquanto prática profissional como um
conhecimento e um conjunto técnico que detecta desvios do desenvolvimento humano (em
relação ao que é concebido como natural), propondo-se como algo que reencaminha,
realinha, adapta, cura.

A Psicologia se associa a idéia de doença, mas nosso objeto de trabalho não é o corpo que
adoece. Nosso objeto é o mundo simbólico. Nosso objeto é o registro que os sujeitos fazem
do mundo que os cerca, do cotidiano. Esse mundo não fica doente. Esse mundo se
estrutura, se desetrutura, sofre, mas não fica doente, no sentido de adquirir mal, moléstia ou
enfermidade. Só uma noção naturalizante do mundo psicológico poderia ter chegado a
essas noções. Pois, se o mundo psicológico é natural, é da espécie, é de nossa natureza
humana, já está lá e será desenvolvido com o passar do tempo e das experiências. Aí sim,
pode-se pensar que ele adoece.

A conseqüência mais evidente de tudo isto é que a Psicologia torna-se uma ideologia, pois
ajuda a acobertar as condições sociais que constituem o homem. Todas as qualidades e
todos os defeitos dos humanos são analisados da perspectiva naturalizante. E tudo que
foge à regra, ao esperado, ao comum é patologizado. Abrimos mão de nossa possibilidade
de, a partir do sofrimento psicológico, denunciar as condições de vida que desigualam,
desestruturam e geram sofrimento.

A Psicologia se instituiu assim em nossa sociedade moderna como uma ciência e uma
profissão conservadoras que não constrói, nem debate um projeto de transformação social.

É hora de rompermos. É hora de fazermos a crítica contundente a esta perspectiva liberal


de homem. É hora de abandonarmos definitivamente as visões naturalizantes de homem e
de mundo, adotando perspectivas históricas.

Necessitamos rever nossos conhecimentos e práticas a partir de noções que entendam o


homem como um ser constituído ao longo de sua própria vida, ao longo de sua ação sobre
o mundo, na interação com os outros homens, inseridos em uma cultura que acumula e
contém o desenvolvimento de gerações anteriores.

O fenômeno psicológico não pertence mais à natureza humana. O homem, ao construir a


cultura e a sociedade, se libertou de sua “natureza”, ultrapassando seus limites e
características. O fenômeno psicológico como registro, no homem, de sua relação com o
mundo, na medida em que este mundo é social e cultural, passa a se caracterizar por esta
condição. Assim, o fenômeno psicológico não preexiste no homem. Se desenvolve
conforme o homem se insere na sociedade, nas relações e na cultura. Ali estão as
possibilidade do homem se tornar humano. A humanidade do homem está na cultura, nas
relações sociais e nas formas de produção da vida. É lá que o homem vai buscar os
elementos para sua constituição.

A concepção histórica do fenômeno psicológico permite que se pense o homem e o mundo


em permanente movimento; permite que se construa uma prática profissional e saberes em
Psicologia colados a um projeto de sociedade; permite que o psicólogo perceba claramente
sua profissão como um fazer social, que incentiva um determinado projeto de transformação
social. A concepção histórica do fenômeno psicológico contribui significativamente para a
superação de perspectivas estigmatizadoras que a Psicologia desenvolveu. O homem é
visto como uma construção do homem. O controle, a categorização e a diferenciação
deixam de ser entendidas como naturais, para serem lidas como um determinado
compromisso da Psicologia com as necessidades e projetos sociais.

Os processos a serem analisados são da objetivação do homem em seu mundo e o da


apropriação do mundo, pelo homem, para se constituir. O homem atua, pondo no mundo
social seus conteúdos individuais. O homem se objetiva no mundo e faz isto junto com os
outros homens. Assim, a humanidade vai se constituindo no mundo, nos objetos, na cultura,
nas formas de sobrevivência e de produção humanas. De lá, que o homem vai retirar o
material para se constituir. Vai se apropriar da humanidade que construiu ao transformar o
mundo. Vai retomar para si a humanidade que construiu. Assim, o homem se constrói ao
construir o seu mundo.

Pensar esse processo de construção da subjetividade como um movimento e uma relação


do homem com o mundo, no qual nem homem nem mundo existem a priori (em um certo
sentido), é superar visões naturalizantes e ideológicas na Psicologia. O mundo psicológico
que estudamos não é natural; não está lá pronto; não possui conteúdos universais, nem
processos e estruturas prontas para serem movimentadas ou preenchidas.

Pensar desta forma a subjetividade nos coloca em uma outra relação com o mundo social.
Passamos a perceber a necessidade de nos posicionarmos sobre qual homem e qual
sociedade queremos estimular. Isto porque, passamos a pensar que o mundo psicológico
não está pronto e nem mesmo tem direção para seu desenvolvimento dada naturalmente.
Nossas intervenções profissionais são portanto direcionamentos. Qual mundo queremos
estimular? Qual sociedade? Qual subjetividade? Qual homem?

Ao mesmo tempo que esta tarefa, de definirmos o projeto de nossa intervenção, se coloca
como obrigatória, outro ganho acontece. Passamos a nos ver, como profissionais, que
através de nossas intervenções atuamos no mundo; mudamos o mundo; nos objetivamos
no mundo. Nos vemos, então, como sujeitos que transformam o mundo a partir de sua
prática profissional. Isto passa a exigir que façamos de nosso projeto profissional, um
projeto político, de construção do âmbito coletivo.

A Psicologia brasileira precisa se voltar para a sociedade. Precisa se perceber como uma
intervenção política na sociedade. A história de nossa ciência e de nossa profissão mostra
que sempre estivemos comprometidos com interesses sociais. Sempre fizemos de nossa
ciência e de nossa profissão um instrumento político. No entanto, a revisão histórica mostra
que estivemos comprometidos com os interesses das elites brasileiras. Queremos, com a
perspectiva histórica na Psicologia, reverter esse processo e nos comprometermos com
outros setores da população. Queremos acreditar que é possível pensar que os sofrimentos
psíquicos que temos e que nossos conteúdos e estruturas psíquicas são reflexo de um
mundo de competição, de discriminação, de estigmatização, de diferenciação... e que
querer trabalhar para mudar esses quadros é, também, acreditar que um mundo melhor é
possível. É em prol desse projeto, de um mundo melhor, que queremos colocar nossa
profissão.
-
conclusões: "o homem se constrói ao construir o seu mundo."

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