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A tradição da Psicologia, no Brasil, tem sido marcada pelo compromisso com os interesses
das elites e tem se constituído como uma ciência e uma profissão para o controle, a
categorização e a diferenciação. Poucas têm sido as contribuições da Psicologia para a
transformação das condições de vida, tão desiguais em nosso país.
• a demanda de serviços até então inexistentes como a educação nos seus diversos níveis,
inclusive superior, e o século XIX vai assistir à abertura de escolas que se tornarão
referência no Brasil como o colégio Pedro II, a Escola Normal em Niterói e em São Paulo e
o Pedagogium no Rio de Janeiro.
O século XIX vai assistir, assim, ao surgimento das idéias de saneamento e higienização
das cidades, higienização que será entendida como material e moral. Busca-se uma
sociedade livre da desordem e dos desvios.
A educação será marcada por práticas autoritárias e disciplinares. A escola vai surgir como
um lugar de disciplina e rigor moral, caracterizando-se por uma educação autoritária e
disciplinadora. A medicina, pela criação de hospícios como asilos higiênicos e de tratamento
moral (em 1842 é inaugurado no RJ o hospício Pedro II; em 1852 em SP o asilo Provisório
de Alienados da cidade de SP). A sociedade dominada pela ideologia da ordem e da
higienização.
Na educação, o pensamento está marcado pelo movimento da Escola Nova que coloca o
indivíduo como eixo de sua construção e dá ênfase a preocupação cientificista,
transformando as escolas em verdadeiros laboratórios.
As idéias psicológicas foram também associadas à administração e à gestão do trabalho,
baseadas no pensamento taylorista.
E a industrialização no Brasil vai fazer novas exigências à psicologia que, com a experiência
da psicologia aplicada à educação, pode colaborar significativamente com um
conhecimento que possibilitava a diferenciação das pessoas para a formação de grupos
mais homogêneos nas escolas e a seleção de trabalhadores adequados para a empresa.
São estas idéias que vamos desenvolver aqui para podermos fazer a crítica a
universalização e naturalização do homem, buscando uma perspectiva histórica para a
Psicologia.
A burguesia constituiu as idéias liberais para se opor à ordem feudal: uma ordem baseada
na existência de uma hierarquia no universo; um mundo pensado como estável, ordenado e
organizado pela vontade divina.
Assim, como oposição a estas idéias do feudalismo, a perspectiva liberal tem como um de
seus elementos centrais a valorização do indivíduo: o individualismo. Cada indivíduo é um
ser moral que possui direitos derivados de sua natureza humana. Somos indivíduos e
somos iguais, fraterno e livres, com direito à propriedade, à segurança, à liberdade e à
igualdade.
Ao homem deveriam ser dadas as melhores condições de vida para que seu potencial
natural pudesse desabrochar. Frente às enormes desigualdades sociais do mundo
moderno, o liberalismo produziu sua própria defesa, construindo a noção de diferenças
individuais decorrentes do aproveitamento diferenciado que cada um faz das condições que
a sociedade igualitariamente lhe oferece.
Cabe ainda trazer alguns dados a mais deste trabalho de Bock. Os psicólogos utilizam-se
de chavões para designar o fenômeno psicológico:
- O fenômeno é bio-psico-social;
Ainda elementos recorrentes nas respostas aos questionários que indicam elementos de
uma conceituação consensual entre os psicólogos:
Ora é processo, ora é estrutura, ora manifestação, ora relação, ora é conteúdo, ora é
distúrbio, ora experiência. É interno, mas com relação com o externo. É biológico, é
psíquico e é social; é agente e é resultado; é fenômeno humano, relacionado ao que
denominamos eu.
O fenômeno psicológico seja lá qual for sua conceituação aparece descolado da realidade
na qual o indivíduo se insere e mais ainda, descolado do próprio indivíduo que o abriga.
Esta é a noção: algo que se abriga em nosso corpo, do qual não temos muito controle; visto
como algo que em determinados momentos de crise nos domina sem que tenhamos
qualquer possibilidade de controlá-lo; algo que inclui segredos que nem eu mesmo sei;
algo enclausurado em nós que é ou contém um verdadeiro eu.
E aqui cabe falarmos da relação deste fenômeno psicológico com o meio social e cultural.
Esta relação é afirmada como necessária e importante por muitos psicólogos; no entanto, é
vista como uma relação na qual o externo(mundo social) impede e dificulta o pleno e livre
desenvolvimento de nosso mundo interno(psicológico). O mundo social é um mundo
estranho ao nosso eu. Um lugar, no qual temos que estar e por isto nos resta a tarefa de
nos adaptarmos. E a história deste aparato psicológico passa a ser a história da sua
adaptação ao mundo social, cultural e econômico. Trabalhar, relacionar-se, aprender, fazer
são atividades desta adaptação. Amar, emocionar-se, perceber, motivar-se são vistas
também como possibilidades humanas que se desenvolvem, ou melhor, se atualizam(pois
já eram potencializadas) neste mundo externo.
A psicologia sócio-histórica tem inerente a ela a possibilidade de crítica. Não apenas por
uma intencionalidade de quem a produz, mas por seus fundamentos epistemológicos e
teóricos.
Assim:
As capacidades humanas devem ser vistas como algo que surge após uma série de
transformações qualitativas. Cada transformação cria condições para novas
transformações, em um processo histórico, e não natural. O fenômeno psicológico deve ser
entendido como construção no nível individual do mundo simbólico que é social. O
fenômeno deve ser visto como subjetividade, concebida como algo que se constituiu na
relação com o mundo material e social, mundo este que só existe pela atividade humana.
Subjetividade e objetividade se constituem uma à outra sem se confundirem. A linguagem é
mediação para a internalização da objetividade, permitindo a construção de sentidos
pessoais que constituem a subjetividade. O mundo psicológico é um mundo em relação
dialética com o mundo social. Conhecer o fenômeno psicológico significa conhecer a
expressão subjetiva de um mundo objetivo/coletivo; um fenômeno que se constitui em um
processo de conversão do social em individual; de construção interna dos elementos e
atividades do mundo externo. Conhecê-lo desta forma significa retirá-lo de um campo
abstrato e idealista e dar a ele uma base material vigorosa. Permite ainda que se supere
definitivamente visões metafísicas do fenômeno psicológico que o conceberam como algo
súbito, algo que surge no homem, ou melhor, algo que já estava lá, em estado embrionário,
e que se atualiza com o amadurecimento humano. O homem e o fenômeno psicológico
pensados como sementes que se desenvolvem e desabrocham.
Porque tais perspectivas fazem uma psicologia descolada da realidade social e cultural que
é constitutiva do fenômeno psicológico. E isto é uma questão importante, porque é desta
descolagem que se constitui o processo ideológico da psicologia. Passamos a contribuir
significativamente para ocultar os aspectos sociais do processo de construção do fenômeno
psicológico em cada um de nós. Fazemos ideologia.
Ideologia como definida por Charlot é um sistema teórico, cujas idéias têm sua origem na
realidade, como é sempre o caso das idéias; mas que coloca, ao contrário, que as idéias
são autônomas, isto é, que transforma em entidades e em essências as realidades que ele
apreende, e que, assim, desenvolve uma representação ilusória ao mesmo tempo daquilo
sobre o que trata e dele próprio; e que, graças a essa representação ilusória, desempenha
um papel mistificador, quase sempre inconsciente(o próprio ideológico é mistificado,
acredita na autonomia de suas idéias): as idéias assim destacadas de sua relação com a
realidade servem, com efeito, para construir um sistema teórico que camufla e justifica a
dominação de classe. Ideológico não significa, portanto, errôneo(....). Aliás, é porque uma
ideologia é um sistema ilusório e não um sistema de idéias falsas que é social e
potencialmente eficaz (Charlot, 1979, p.32).
Chauí nos ajuda a completar o conceito quando afirma que a operação da ideologia é a
criação de universais abstratos, isto é, a transformação das idéias particulares da classe
dominante em idéias universais de todos e para todos os membros da sociedade. Essa
universalidade das idéias é abstrata porque não corresponde a nada real e concreto, visto
que no real existem concretamente classes particulares e não a universalidade humana. As
idéias da ideologia são, pois, universais abstratos.(Chauí, 1981, p.95). A ideologia é,
assim, uma representação ilusória que fazemos do real. O ilusório da ideologia está em que
parte da realidade fica ocultada nas constituições ideais. Na psicologia, ao construirmos as
noções e teorizações sobre o fenômeno psicológico tem ficado ocultada a sua produção
social. Com isto, as conseqüências são danosas do ponto de vista das possibilidades da
psicologia contribuir para a denúncia e a transformação das condições de vida constitutivos
do fenômeno.
O fenômeno psicológico, como qualquer fenômeno não tem força motriz que lhe seja
própria. É na relação com o mundo material e social que se desenvolvem as possibilidades
humanas. Claro, há um corpo biológico que se instituiu como elemento básico da relação e
é nele que se processará o que estamos chamando de fenômeno psicológico. Esta relação
com o mundo, através da atividade dos sujeitos, se torna essencial para que algo ocorra em
nós.
Uma outra vez quis saltar um brejo mas, quando me encontrava a meio caminho, percebi
que era maior do que imaginara antes. Puxei as rédeas no meio de meu salto, e retornei à
margem que acabara de deixar, para tomar mais impulso. Outra vez me saí mal e afundei
no brejo até o pescoço. Eu certamente teria perecido se, pela força de meu próprio braço,
não tivesse puxado pelo meu próprio cabelo preso em rabicho, a mim e a meu cavalo que
segurava fortemente entre os joelhos. (Raspe, p.40)
É esta a melhor imagem que encontramos para designar esta ideologia do esforço próprio
de cada um para desenvolver-se, para desenvolver o potencial contido em sua natureza. A
Psicologia tem assim, há anos, contribuído para responsabilizar os sujeitos por seus
sucessos e fracassos; temos pensado e defendido condições de vida como canteiro
apropriado ou não para o desabrochar de potencialidades; temos acreditado e contribuído
para classificar e diferenciar pessoas pelas suas características e dinâmicas psicológicas;
temos criado ou contribuído para reforçar padrões de conduta, que interessam à sociedade
manter, como conduta necessária ao bom desenvolvimento das pessoas. A psicologia
tem reforçado formas de vida e de desenvolvimento das elites como padrão de normalidade
e de saúde, contribuindo para a construção de programas de recuperação e assistência
àqueles que não conseguem(ao puxarem pelos seus próprios cabelos) se desenvolver
nesta direção. Tem transformado o diferente, o fora do padrão dominante em anormal.
A psicologia não tem sido capaz de, ao falar do fenômeno psicológico, falar de vida, das
condições econômicas, sociais e culturais nas quais se inserem os homens. A psicologia
tem, ao contrário, contribuído significativamente para ocultar estas condições. Fala-se da
mãe e do pai sem falar da família como instituição social marcada historicamente pela
apropriação dos sujeitos; fala-se da sexualidade sem falar da tradição judaico-cristã de
repressão à sexualidade; fala-se da identidade das mulheres sem se falar das
características machistas de nossa cultura; fala-se do corpo sem inseri-lo na cultura; fala-se
de habilidade e aptidões de um sujeito sem se falar das suas reais possibilidades de acesso
à cultura; fala-se do homem sem falar do trabalho; fala-se do psicólogo sem falar do cultural
e do social. Na verdade, não se fala de nada. Faz-se ideologia!
Cabe ressaltar que nesta concepção a sociedade aparece como algo que se contrapõe aos
movimentos naturais do humano. A sociedade é algo oposto aos nossos interesses
naturais. O Mundo externo impede, dificulta o pleno desenvolvimento de nosso mundo
interno. Mundo interno e mundo externo ficam definitivamente separados. Ciências
diferentes são criadas para dar conta destas realidades tão diversas. A Psicologia,
enquanto ciência do mundo interno abandona qualquer vínculo mais profundo com a
realidade social e cultural, para pensar o homem isolado; para estudar o fenômeno
psicológico como algo já existente no homem que independe da relação com o mundo
cultural para se constituir.
A Psicologia se associa a idéia de doença, mas nosso objeto de trabalho não é o corpo que
adoece. Nosso objeto é o mundo simbólico. Nosso objeto é o registro que os sujeitos fazem
do mundo que os cerca, do cotidiano. Esse mundo não fica doente. Esse mundo se
estrutura, se desetrutura, sofre, mas não fica doente, no sentido de adquirir mal, moléstia ou
enfermidade. Só uma noção naturalizante do mundo psicológico poderia ter chegado a
essas noções. Pois, se o mundo psicológico é natural, é da espécie, é de nossa natureza
humana, já está lá e será desenvolvido com o passar do tempo e das experiências. Aí sim,
pode-se pensar que ele adoece.
A conseqüência mais evidente de tudo isto é que a Psicologia torna-se uma ideologia, pois
ajuda a acobertar as condições sociais que constituem o homem. Todas as qualidades e
todos os defeitos dos humanos são analisados da perspectiva naturalizante. E tudo que
foge à regra, ao esperado, ao comum é patologizado. Abrimos mão de nossa possibilidade
de, a partir do sofrimento psicológico, denunciar as condições de vida que desigualam,
desestruturam e geram sofrimento.
A Psicologia se instituiu assim em nossa sociedade moderna como uma ciência e uma
profissão conservadoras que não constrói, nem debate um projeto de transformação social.
Pensar desta forma a subjetividade nos coloca em uma outra relação com o mundo social.
Passamos a perceber a necessidade de nos posicionarmos sobre qual homem e qual
sociedade queremos estimular. Isto porque, passamos a pensar que o mundo psicológico
não está pronto e nem mesmo tem direção para seu desenvolvimento dada naturalmente.
Nossas intervenções profissionais são portanto direcionamentos. Qual mundo queremos
estimular? Qual sociedade? Qual subjetividade? Qual homem?
Ao mesmo tempo que esta tarefa, de definirmos o projeto de nossa intervenção, se coloca
como obrigatória, outro ganho acontece. Passamos a nos ver, como profissionais, que
através de nossas intervenções atuamos no mundo; mudamos o mundo; nos objetivamos
no mundo. Nos vemos, então, como sujeitos que transformam o mundo a partir de sua
prática profissional. Isto passa a exigir que façamos de nosso projeto profissional, um
projeto político, de construção do âmbito coletivo.
A Psicologia brasileira precisa se voltar para a sociedade. Precisa se perceber como uma
intervenção política na sociedade. A história de nossa ciência e de nossa profissão mostra
que sempre estivemos comprometidos com interesses sociais. Sempre fizemos de nossa
ciência e de nossa profissão um instrumento político. No entanto, a revisão histórica mostra
que estivemos comprometidos com os interesses das elites brasileiras. Queremos, com a
perspectiva histórica na Psicologia, reverter esse processo e nos comprometermos com
outros setores da população. Queremos acreditar que é possível pensar que os sofrimentos
psíquicos que temos e que nossos conteúdos e estruturas psíquicas são reflexo de um
mundo de competição, de discriminação, de estigmatização, de diferenciação... e que
querer trabalhar para mudar esses quadros é, também, acreditar que um mundo melhor é
possível. É em prol desse projeto, de um mundo melhor, que queremos colocar nossa
profissão.
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conclusões: "o homem se constrói ao construir o seu mundo."