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Pontos relevantes da construção do saber histórico e epistemológico da Psicologia científica

● A psicologia (ou as psicologias) foi construída de forma dispersa, devido, ao longo da história, a
ideia do que possa ser "psicologia" ou mesmo seu objeto era distinto para cada autor. Era difícil uma
coesão em relação aos significados de "alma", "psiquê", "comportamento", "mente", "consciência" e aos
modos de acessá-los (se é que poderia) e estudá-los. Encara-se, portanto, uma divergência de
pensamentos que, inclusive, deixaria dúvidas sobre a cientificidade do saber psicológico. Em síntese, por
todas as dispersões, a psicologia se enraizou na sociedade em distinta formas, em outros campos,
saberes, metodologias, perspectivas teóricas. Não podemos enxergar a multiplicidade da psicologia como
imaturidade, mas como a articulação de experiência que formam o saber.
● A dicotomia Razão-Sentidos marcou profundamente a história da filosofia. Desde Platão, já
imperava a discussão do que poderia ser conhecido pelo homem. A separação entre mundo sensível
(enganoso, irreal) e intelegível (perfeitas ideias, iluminado) e a construção da dialética platônica lançou as
bases de uma pré-teoria do conhecimento. Aristóteles critica duramente a teoria de seu mestre e afirma
que nada chega à razão se não passar pelos sentidos (tema da própria psicologia).
● Na modernidade, Descartes, influenciado pela ciência moderna, se debruça a alcançar um
conhecimento indubitável, fundamentado em si, que pudesse ser o ponto de partida para a progressão de
outros conhecimentos. Posto isso, começou a duvidar metodicamente de tudo, até intuir que era um ser
pensante, tomando consciência de sua própria vivência. O fato de poder raciocinar e utilizar instrumentos
da razão, com base fundacional em si, produzidos pelo próprio ser pensante (matemática e lógica), fez
com que Descartes construísse a escola epistemológica chamada Racionalismo. Nela, discutia sobre a
origem das ideias, algumas conhecidas pelo argumento inatista (que gerou controvérsias em filósofos
posteriores) e as formas de conhecê-las. Imbuído da lógica mecanicista que permeava a ciência da
época, Descartes delimita a consciência como objeto apenas de reflexão filosófica, porque, ao contrário
do corpo biológico -- que possui extensão no espaço --, não pode ser observada experimentalmente,
medida, quantificada. Essa concepção ficou conhecida como dualismo cartesiano.
● Os empiristas contrapunham-se à noção de conhecimento dada por Descartes. Para eles,
tomamos conhecimento de algo quando experienciamos, quando apreendemos pelos nossos sentidos.
Esse movimento deu vazão a ideias posteriores no associacionismo, que se enraizou na psicologia,
sobretudo na dicotomia inato-aprendido. Para Locke, somos como tábulas rasas quando viemos ao
mundo e, a partir das experiências, moldamo-nos. Nesse sentido, a ideia de inatismo de Descartes é
criticada com veemência. Entretanto, ainda se constitui como uma discussão atual, do quanto pode ser
genético e quanto pode ser ambiental.
● A Ciência Moderna, construída a partir de grandes pensadores e sintetizada por Galileu, significou
o alcance de um conhecimento experimental, progressivo, abstraído da própria realidade, que pudesse
explicá-la de forma mais concreta. Foi imprescindível, alinhado a ideais iluministas, para a mudança de
mentalidade (Religiosa para racional), da concepção de homem (individual e subjetivo) e da visão de
mundo e de natureza, antes intocada pelo homem por ser obra do Divino. O conhecimento científico
alcançará, tempos depois, o domínio da técnica e, a partir dessa, da natureza. A visão cientificista fará
com a que psicologia, para se tornar ciência, tome rumos cada vez mais naturais, experienciais e
controláveis. Dessa forma, era necessário romper com a ideia metafísica de alma.
● A corrente humanista, latente nos ideais renascentista e iluminista, apropria-se da ideia de um
homem como centro das questões (considerando sua individualidade, subjetividade). Rompia com a
mentalidade de "rebanho" da igreja.
● Subjetividade: Interioridade reflexiva e individualizada, vivências centradas em uma experiência de
primeira pessoa, de um "eu" (o centro da subjetividade). Inexistente/sem sentido na antiguidade
Greco-Romana (vida calcada no autogoverno e justa medida, isto é, a vida era metricamente controlada).
"A invenção da interioridade individualizada [...] só será processada a partir de uma ética cristã." O homem
passa a procurar dentro de seu verdadeiro eu a essência de Deus como forma de se distanciar do mal. Na
modernidade, esse exame de si, uma relação consigo, acaba tendo uma finalidade em si, sem que se
utilize de aparatos religiosos para isso.
● A relação quase indistinguível entre as representações públicas e o foro privado da vida. Formação
da sociedade de corte e regras sociais de comportamento.
● Para Kant, as visões racionalista e empirista são limitadas isoladamente. Ele, porém, não invalida
nenhuma das teorias, mas reafirma que ambas possuem valor no processo de formação do sujeito
cognoscente (que conhece).
● Na filosofia de Kant, o sujeito transcendental (condição necessária para qualquer conhecimento;
sujeito que possui as condições de possibilidade da experiência, em formas a priori – como espaço e
tempo –, das quais é possível captadas um processo sensorial para ser obter um entendimento sobre)
legitima o conhecimento dos objetos (situados no tempo e no espaço), mas é completamento limitado ao
conhecimento de si. Esse entendimento será limitante para a constituição da psicologia como ciência no
século XVIII.
● É deste modo que a psicologia tenta unir aquilo que a modernidade tentou cindir: o sujeito
transcendental ou epistêmico (conceitos matematizáveis, observados no tempo e no espaço; geralmente
conceitos das ciências naturais, como sensação e adaptação evolutiva) e o sujeito empírico, impuro
(experiências conscientes).
● Toda a psicologia teria que realizar o trânsito do plano transfenomenal (opaco) ao da consciência
(o vivido). “Ou se faz uma psicologia partindo do vivido em direção aos mecanismos transfenomenais,
como realizariam a psicologia da Gestalt, a epistemologia genética e a psicanálise, caracterizando-se uma
direção metapsicológica, ou se parte do cientificamente estabelecido, para se abordar em seguida o
âmbito fenomenal consciencial, como procede o behaviorismo, numa linha parapsicológica”.
● O conceito de pessoa foi se modificando ao longo do tempo. De acordo com teorias de Aristóteles
e os teólogos medievais, pessoa era definida por sua associação indistinta entre alma e corpo, ideia que
perdura até Descartes. A partir do idealizador do Racionalismo, alma/consciência e corpo são entendidos
como duas substâncias distintas.
● Indivíduo: é uma unidade política diferenciada do restante da sociedade. Por meio de sua
singularidade, o indivíduo se particulariza, desagrega-se de um coletivo, e para o exercício da psicologia é
essencial. O poder da subjetividade no processo de individuação é muito importante, porque, a partir
dessa experiência interior, a identidade é construída, pela qual somos reconhecidos e, portanto,
particularizados. Tomando isso como premissa, a psicologia deve atuar para promover a autonomia desse
indivíduo.
● Conforme o Sociólogo Norbert Elias, no século XIII sequer existia a noção de indivíduo. Por mais
que, com a instituição da vida cristã, temos o exercício de uma experiência interior reflexiva e íntima, pelo
exame de si, não encontramos um processo de individualidade demarcado, devido a inexistente busca
pela autonomia e controle de si.
● Para além dessa relação focada em religiosidade, existiam relações contratuais que definiam o
indivíduo a partir de sua posição social.
● A particularização dessa unidade social só começa a partir do surgimento dos Estados Modernos,
em que o Estado deveria não apenas “acolher” a coletividade, mas também o indivíduo. A esse processo,
Foucault chama de “Poder Pastoral” (Cuidado com a ovelha e com o rebanho). Embora haja essa
particularização, firmada em Contrato Social, não há nenhuma garantia de bem-estar para o povo.
Inclusive, o Estado mantém-se no direito de, nas palavras de Foucault, fazer morrer e deixar viver.
● A individuação contratual, enquanto permitia a autonomia do sujeito individual, não aceitaria,
naqueles termos, a possibilidade de o indivíduo particularizado e singular ser objeto do conhecimento, da
ciência (que pretende buscar padrões e generalizações). Esse sujeito político e jurídico não poderia ser
alvo da ciência.
● Em contrapartida, por meio dos mecanismos de esquadrinhamento do biopoder sobre indivíduos e
populações, é produzido o sujeito disciplinado, determinado por uma normal social (e não por lei
contratual) que indica normalidade ou anormalidade, apropriando-se a esses conceitos uma
natureza/esfera científica/biológica. É o início da produção dos saberes psicológicos-psiquiátricos.
● As formas de individualização estão presentes em todas as práticas psicológicas, tanto em busca
por autonomia (soberania) quanto por controle dos sujeitos (disciplina). De certo modo, ambas
constituem o solo para construção das psicologias. A mudança está, na verdade, no ponto de partida e na
consequência: umas partem da autonomia do sujeito para enquadrá-lo numa determinação (viés mais
naturalista), tais como o funcionalismo, o construtivismo, o gestaltismo; outras partem da disciplina para
alcançaram o ideal de autonomia e autocontrole do sujeito, como o behaviorismo.
● A psicologia começa a ter um papel central quando surge os dispositivos de disciplina, como
escolas e hospitais, que procuram “ajeitar” indivíduos em certos termos morais, como certo e errado ou
normal e anormal. (É necessário entender como se deu o processo de individualização da criança e do
louco, por exemplo, para entender como a psicologia poderia atender essas demandas — especialmente
pela disciplina – por isso ela está tão atrelada à pedagogia e à psiquiatria).
● Antes do século XVII não se encontrava uma divisão radical entre razão e loucura. Tratada em
certos pontos como equivalentes, ou até mesmo superior à razão. Entretanto, é no século XVII e XVIII que
a loucura começa a ser dissociada do patamar outrora equivalente à razão, e passa a ser segregada,
reclusa a espaços asilares, por natureza moral e, após isso, patologizada (antes vista como doença dos
nervos e depois por alienação da natureza humana — com a ascensão da Psiquiatria de Pinel). Agora o
louco recebe a alcunha de doente mental.
● A cisão entre humanos e natureza ganha notoriedade na modernidade a partir da concepção de
homem como unidade política, autônoma, regido por força contratual e relação de poderes, diferente da
natureza, objeto de conhecimento até então — com rigorosa sistematização para o descobrimento de
suas leis, pelas quais era regida. Essa distinção entre homem em natureza produzia, como efeito colateral,
questões híbridas, como a relação homem-ambiente e suas modificações e o caso da própria Psicologia
— Ciência Humana laboratorial. O fato de ser um ciência híbrida causa confusões epistemológicas e de
organização em um corpo específico de conhecimentos — criticada por naturalistas e humanistas.
Durante o período clássico, influenciado pela composição dos saberes em ordem e gradações (tais como
em Descartes e na taxinomia biológica), que impera a distinção, sobretudo, entre sujeito e objeto: o
homem deveria ser sempre sujeito, jamais objeto. A epistemologia abala essa visão a partir da descoberta
da biologia evolucionista, que explica as modificações dos seres em relação com o ambiente, e o homem
não estaria fora dessa definição (tanto que, nas primeiras produções científicas sobre homem, aborda-no
sob o viés evolucionista)
● Para Foucault, ciências humanas, como a psicologia, seriam um intersecção entre as ciências
empíricas do homem (como a biologia, economia,...) e os conhecimentos das filosofias antropológicas.
● As críticas para a metafísica feita por autores como Kant, que afirmavam que a base dela [da
metafísica] não tinha fundamentos, colocam em cheque os saberes psicológicos do século XVIII, ainda
relegados à metafísica. Para a psicologia passar pelo crivo de ciência, é necessário superar os vetos
kantianos e produzir um saber com objetividade, rigor matemático e elemento de investigação/método.

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