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O lançamen- trolou o PCI até 1943, e aponta- organização monetária proposta

to da revista mentos acerca de uma das obras pelo governo cubano com argu-
América So- mais conhecidas de Antônio mentos ultraliberais.
cialista 18 Gramsci, Cadernos do Cárcere, Em comemoração aos 150
surge em um também ganham espaço. O ar- anos da Comuna de Paris, traze-
cenário onde tigo traz uma análise profunda mos nesta edição da AS o clássi-
a morte de não só de Gramsci, mas de todo co da teoria marxista, Lições da
milhões de contexto do surgimento do co- Comuna de Paris de Leon Trotsky.
pessoas na munismo na Itália. O artigo datado do cinquentená-
pandemia O ano de 2020 foi marca- rio da Comuna, retoma desde o
não permite do pelo aumento assustador da heroísmo das massas operárias
que o véu “progressista” das di- violência doméstica, em todo o de Paris até a falta de um parti-
reções traidoras se sustente. O mundo. A luta pela emancipação do, o que inclui a falta de líde-
papel nefasto que o reformismo da mulher tem sido árdua e a res que estivessem à altura dos
tem na luta dos trabalhadores e a disputa teórica, com todo o tipo communardes. Também aborda
necessidade das lições da história de teorias que buscam adaptar a tática na ação de tomada do
estão mais atuais do que nunca. a luta das mulheres ao sistema poder, a necessidade de uma es-
Nesta edição trazemos um vigente, tem se intensificado. trutura partidária que tivesse se
conjunto de artigos que retra- Para contribuir neste debate, preparado para isso, portanto,
tam, da economia às artes, as li- trazemos aqui um artigo de fun- em condições de responder às
ções que os revolucionários tan- damental importância sobre a necessidades das massas. De-
to precisam, desde os exemplos a questão do trabalho doméstico. nuncia os líderes covardes que,
serem seguidos até aqueles a se- David Rey resgata a história da nas palavras de Trotsky, são de
rem repelidos. O papel do refor- luta das mulheres trabalhadoras, um certo anarquismo mundano.
mismo como um entrave para a desmascara os reformistas de to- Tira desses acontecimentos li-
emancipação dos trabalhadores das as estirpes e retoma nossas ções fundamentais para nossos
está muito bem demarcado nesta bandeiras históricas na luta pelo dias: “O partido não cria a revo­
edição da revista. socialismo e, portanto, do desa- lução ao seu gosto, não escolhe
Para abrir a edição temos o parecimento de qualquer vestí- conforme lhe convém o momento
artigo de Francesco Giliani, da gio de escravidão doméstica e de para tomar o poder, mas inter­
sessão Italiana da CMI. submissão da mulher ao homem. vém ativamente em todas as cir­
Em 21 de janeiro deste ano, Os ataques ao que resta das cunstâncias... Quanto mais pro­
o Partido Comunista da Itália conquistas da Revolução Cubana fundamente penetrar um partido
completou 100 anos. Em razão estão muito mais intensos do que revolucionário em todas as esferas
do centenário, nossa seção ita- a imprensa burguesa divulga. Os da luta revolucionária e quanto
liana está desenvolvendo di- embargos econômicos, numa mais unido estiver em torno de
versas atividades que tratam pressão gigantesca para pôr fim um objetivo através da disciplina,
do nascimento do comunismo ao que resta de uma economia melhor e mais rapidamente pode
naquele país e a influência dos planificada e que, mesmo com realizar sua missão.”
acontecimentos italianos no todas as dificuldades, demons- Trotsky faz ainda uma bri-
conjunto do movimento operá- trou seu significado, por exem- lhante relação entre a Revolu-
rio internacional. Neste contex- plo, na saúde pública, gratuita ção Russa e a Comuna, e cha-
to, publicamos a primeira par- e para todos. Até o fechamento ma atenção para o fato de que,
te de um artigo sobre Antônio desta edição Cuba registrou me- aos revolucionários não cabe
Gramsci, personagem político nos de 500 mortos por Covid 19, fazer premonições, mas sim se
destacado em todo o mundo. enquanto o império americano preparar e analisar os aconte-
Neste artigo temos a contex- passa de 550 mil mortos. É neste cimentos da história de forma
tualização dos acontecimentos cenário que trazemos dois arti- atenciosa, dando os passos re-
que envolveram Gramsci, seus gos de Jorge Martin tratando de solutos em todos os momen-
erros em meio ao surgimen- questões da atualidade da situ- tos, sejam eles em tempos de
to da Oposição de Esquerda; a ação de Cuba. O primeiro trata aparente paz, sejam de guerra.
falsificação da transformação das propostas de reorganização Sem nenhuma dúvida, uma re-
de Gramsci, comunista ligado monetária encaminhadas pelo flexão à altura de um dos maio-
à vanguarda operária de Turim, governo cubano e a necessidade res dirigentes da nossa classe
em um intelectual palatável e de adotar o caminho inverso do que a história já viu. O líder do
que “transformou” o marxismo que se está propondo. No segun- Exército Vermelho nos presen-
em algo ao gosto da intelectuali- do, Jorge Martin polemiza com teia com um texto impecável e
dade, são alguns dos destaques. José Alejandro Rodrigue, da Ju­ de fundamental leitura a todos
O papel do stalinismo, que con- ventud Rebelde, que justifica a re- os revolucionários.
Em seguida, apresentamos crime que significa grande par- Para fechar a edição, apre-
aos nossos leitores o artigo “Ke­ te da esquerda assumir essa po- sentamos um artigo de Michel
ynes está morto! Os reformistas lítica. Finaliza apontando a luta G. Silva e Serge Goulart sobre a
não o ressuscitarão” de Antonio pela teoria e prática do marxis- política de Nahuel Moreno e do
Erpice. O artigo retoma o sur- mo como a única saída. PST argentino levada durante a
gimento do keynesianismo na O artigo seguinte é o inspirador guerra das Malvinas, ocorrida há
história e como o economista da capa da AS 18, A revolução gráfica 39 anos. Este foi um exemplo gri-
expoente da intelectualidade de do Maio francês de Daniele Chiavelli. tante de incompreensão da luta
Cambridge se tornou a referên- Aos revolucionários amantes da arte pela Frente Única e um desvio
cia no cenário mundial dos anos esse artigo nos deixa saciados, um total do marxismo. Neste artigo
30, tornando-se, mais tarde, o texto agradável que traz a história do se percebe o que não se deve fa-
“queridinho” inclusive de grande que se transformou a Escola Nacional zer e uma demonstração de que
parte da esquerda atual. Antonio Superior de Belas Artes de Paris, du- os esquemas, os clichês e a repe-
explica as manobras econômicas rante o maio de 1968. O artigo nos tição de fórmulas esterilizadas,
pouco científicas de Keynes, to- traz a sinestesia de sermos parte da- não servem para a construção da
dos os acontecimentos históricos queles dias, as assembleias, o serviço organização revolucionária, nem
quando aparentemente o keyne- de ordem, os espaços comunitários para ajudar o movimento ope-
sianismo deu certo e a total im- de alimentação, a produção coleti- rário a avançar, e muito menos
possibilidade de ressuscitá-lo na va, onde a obra passa, de fato, ser para se chegar a uma revolução
atualidade. Apresenta também a maior que o autor. O texto faz ainda vitoriosa. A análise desta política
fragilidade teórica da economia um comparativo entre a influência de apoio à guerra desencadeada
keynesiana em relação ao mar- do movimento na Itália e os limites pela ditadura militar argentina
xismo e conclui explicando o pa- impostos pelo Partido Comunista tem toda a atualidade.
pel inútil da burguesia em tentar daquele país ao desenvolvimento da
ressuscitar o keynesianismo e o revolução gráfica italiana. Excelente leitura a todos!
04 O mito de Gramsci, “o ocidental”. Hegemonia, guerra
de movimento e posição: o que resta de Gramsci no
“gramscismo”?
Francesco Giliani
19 O trabalho doméstico é um trabalho “não remunerado”?
Como uma premissa teórica falsa conduz a uma
posição reacionária na prática
David Rey
28 O que significa o ordenamento monetário em Cuba
Jorge Martin
34 O problema da economia cubana é o “papai Estado”
e sua “superproteção igualitarista”?
Jorge Martin
37 Lições da Comuna de Paris
Leon Trotsky (1921)
42 Keynes está morto! Os reformistas não o ressuscitarão
Antonio Erpice
48 A revolução gráfica do Maio Francês de 1968
Daniele Chiavelli
55 Nahuel Moreno, revisionismo e adaptação
na Guerra das Malvinas
Michel Silva e Serge Goulart

Contato com a Corrente Marxista Internacional (CMI) nas Américas

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O mito de Gramsci, “o ocidental”.
Hegemonia, guerra de movimento e
posição: o que resta de Gramsci no
“gramscismo”?
Francesco Giliani

O presente artigo faz parte de uma coletânea de textos e atividades organizadas pela seção italiana da Corrente
Marxista Internacional em razão do centenário de nascimento do Partido Comunista da Itália, em 21 de janeiro
de 2021. Uma oportunidade de tratar de todos os principais aspectos políticos relacionados ao nascimento do mo­
vimento comunista no país: desde os grandes eventos históricos, como as lutas operárias do Biênio Vermelho e a
ascensão do fascismo, até as principais tendências do movimento operário da época (reformismo, maximalismo,
abstenção...); desde o papel da Internacional Comunista em eventos italianos, até as ideias políticas dos principais
líderes como Gramsci e Dordiga.
Nota do editor

“Os organismos de conservação desunidos ou opostos, mas eles Os Cadernos raramente foram
são hoje os partidos stalinistas, encontram um elo vivo e dialético, lidos pelo que são. Desde o período
que pretendem impor sua autori­ um elo que o Partido Comunista após o fim da Segunda Guerra Mun-
dade e direção a priori, suprimindo stalinizado destruiu completamen­ dial, eles têm sido apresentados e re-
dentro do partido e do movimento te, substituindo a concepção de forçados para valorizar culturalmen-
operário toda aceitação consciente comunismo crítico por uma con­ te numerosas reviravoltas das direitas
e espontânea do princípio de auto­ cepção burocrática e idealista do na política do PCI1. Desde o “ponto
ridade e ditadura. gabinete do partido”. de virada de Salerno”, de Togliatti,
Em todo o trabalho de Gramsci (A. [Alfonso Leonetti], “ Grams­ em 1944, com o qual o PCI abando-
e em todo seu pensamento revolu­ ci: l’Ufficio del Partito”, La Verità, nou seu preconceito antimonárquico
cionário, os dois termos ‘liberdade Paris, n. 2, abril de 1904) e entrou no governo Badoglio, até o
e ditadura’ e ‘autoridade e cons­ “compromisso histórico” com a De-
ciência’ nunca são formalmente Prefácio mocracia Cristã avançado pelo então
secretário do PCI, Enrico Berlinguer,
O destino póstumo de Gramsci nos anos 70. Naquele momento,
é um caso particular e estridente do quando a liderança do PCI se apre-
embalsamamento do pensamento sentou mais abertamente como o
político de um comunista. Poucos à “partido da nação” e não como uma
esquerda o criticam, mesmo entre os força de classe, a necessidade de sua
mais inveterados reformistas. Sorte escolha ser reconhecida de acordo
oposta à de Lenin, tão intensamente com a tradição comunista também
presente na formação gramsciana. O aumentou, acima de tudo para de-
“gramscismo”, portanto, tornou-se sencorajar qualquer ultrapassagem
uma ideologia reformista. de massa à sua esquerda. Foi a “du-
O debate interpretativo sobre o plicidade” togliattiana.
significado dos Cadernos do Cárce- Ainda nos anos 80, nas imponen-
re é a chave para entender por que tes marchas partidárias, um slogan
Gramsci não foi purgado formal- frequentemente entoado era “Viva o
mente pelos intelectuais e líderes grande partido comunista de Grams-
de uma esquerda que estava pro- ci, Togliatti, Longo e Berlinguer”.
fundamente degenerada ideologi- Mesmo no auge do longo caminho
camente e obcecada, nas décadas para se valorizar na burguesia italia-
atrás de nós, com o desejo de con- na como gerente “responsável” e ra-
siderar “cães mortos”, por sua vez, cional das contradições da sociedade
um Lenin “muito Jacobino”, um capitalista, o grupo governante do
Marx “liberto da utopia”, um Engels então PCI (Natta, Occhetto, D’Alema
Antonio Gramsci “positivista” e assim por diante. etc.) nunca pronunciou reprovação

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Francesco Giliani

contra Gramsci. No máximo, poderia de: certas coisas eram feitas, mas sobre os Cadernos, o ponto inflama-
acontecer que Gramsci, em meio a não deviam ser ditas. do utilizado para a transformação de
rios de elogios, fosse definido como Após o colapso do stalinismo em Gramsci em panfletário e refinado
“muito fundamentalista”, como fez 1989-1991, os “gramscianos” da aca- assertivo de uma luta democrática e
Alessandro Natta, então secretário demia tomaram o bastão dos “grams- cultural para transformar profunda-
do PCI, em 19872. Isto se manteve cianos” de órbita PCI – muitas vezes mente a sociedade capitalista, e tal-
mesmo após a dissolução do PCI e os últimos se transformaram nos vez até mesmo a alma humana. Mas
o nascimento do Partido Democrata primeiros. Gramsci foi totalmente este Gramsci, “o deles”, um autênti-
de Esquerda (1991) e mesmo após a transformado em um intelectual com co reformista, nunca existiu. Apesar
fundação do PD (2007). traços acadêmicos. Um sacerdote do de todas as oscilações e dos erros de
Ainda hoje, no Comitê de Fiado- poder taumatúrgico das palavras e da Gramsci, que por sua vez permane-
res da Fundação Gramsci há políticos escrita. O comunista Gramsci, um ho- ceu sempre um comunista.
reformistas e liberais de origem PCI mem do partido ligado à vanguarda
que serão lembrados pelas políticas operária de Turim, o único que conhe- Na cabeça do partido: Gramsci
anti-trabalhadores e de privatização cemos, foi ofuscado por um intelectu- entre a “bolchevização” e a Tese
do patrimônio público e do Estado al etéreo capaz de refinar o marxismo de Lyon (1924-1926)
social que eles perseguiram nas úl- – que, entre os acadêmicos, é consi-
timas décadas. Quem são? Pierluigi derado a priori rude – em uma sofis- Para uma compreensão comple-
Bersani, Gianni Cuperlo, Massimo ticada ferramenta de análise cultural, ta das teses expostas por Gramsci
D’Alema, Vasco Errani, Piero Fassino, naturalmente sem nenhum objetivo em Cadernos, é particularmente
Anna Finocchiaro, Giorgio Napolita- de transformação revolucionária da necessário recordar sua evolução
no, Achille Occhetto, Ugo Sposetti, realidade, muito menos em conexão política nos anos imediatamen-
Aldo Tortorella, Livia Turco, Walter com a classe trabalhadora. te anteriores à sua prisão. Referi-
Veltroni, Luciano Violante... Esta operação político-cultural, mo-nos, em particular, ao perío-
Os intelectuais orgânicos no para dizer a verdade, já tinha tido do (1924-1926) durante o qual
grupo executivo do PCI conside- uma forte antecipação nos anos 60 Gramsci esteve à frente do jovem
ravam Gramsci “coisa deles”. Fo- e 70, quando o arquipélago acadê- Partido Comunista da Itália (PCdI).
ram sempre “justificadores” diante mico do “marxismo ocidental”4 fez Ainda em junho de 1923,
das contradições mais evidentes de Gramsci uma de suas referências, Gramsci considerou necessário
entre os escritos do comunista em oposição ao “marxismo orien- formar um bloco com a ala esquer-
sardo e a linha seguida nas dé- tal”, uma forma de pensamento por da de Amadeo Bordiga contra a
cadas seguintes pelo PCI. Mesmo definição própria de áreas socioeco- ala direita do partido liderado por
historiadores importantes, como nômicas atrasadas das quais o maior Angelo Tasca, que ele acreditava
Paolo Spriano, defenderam feroz- intérprete teria sido Lenin, ou uma es- ter expressado uma tendência de
mente a continuidade Gramsci/ sência chamada de “leninismo”, mas liquidação e conciliação com os lí-
Togliatti, mesmo que isso custas- na realidade baseada no stalinismo e deres reformistas da CGL.
se o distanciamento momentâneo obcecada em tomar o poder apenas Embora nunca tenha adotado
do uso de um método rigoroso pela força militar. A tese, que deve ter uma visão coincidente com a de
de pesquisa3. Um exemplo desta parecido original para muitos “bus- Bordiga, Gramsci se opôs, junta-
tendência, política e psicológica cadores de novidade”, já havia sido mente à liderança do PCdI, à fren-
ao mesmo tempo, foi a resposta formulada em suas linhas essenciais te única e à palavra de ordem do
evasiva dos intelectuais do PCI pelo socialista reformista Filippo Tu- governo dos trabalhadores e cam-
quando, na conferência organiza- rati e pela social-democracia inter- poneses, as principais elaborações
da em 1977 para o 40º aniversá- nacional entre o final da década de táticas do 3º e 4º Congressos da
rio da morte de Gramsci, estudio- 1910 e o início da década de 1920. Internacional Comunista (IC).
sos da área socialista (Norberto Em resumo, salvar Gramsci de Le- Mesmo nesse período, no en-
Bobbio, Massimo Salvadori) ras- nin e da Revolução de Outubro tem tanto, Gramsci tinha alguma com-
garam parcialmente o véu colo- sido, durante décadas, o grito de ba- preensão dos limites de uma políti-
cado sobre Gramsci, que havia se talha de legiões de intelectuais e pro- ca baseada apenas em propaganda
tornado o “pai nobre” do “com- fessores, colocados de forma variada e fundamentada na expectativa de
promisso histórico”, pedindo ao no campo da esquerda reformista, que o partido pudesse se beneficiar
PCI que abandonasse o comunis- muitas vezes stalinistas, mas também da decepção dos trabalhadores
ta sardo como irreconciliável com de origem “movimentista”. com as políticas reformistas do PSI
o caminho reformista de Enrico A interpretação dos conceitos de e dos líderes do CGL.
Berlinguer. Mas, naquela época hegemonia de Gramsci e do binômio, Além disso, a passividade polí-
ainda existia, dentro do PCI, uma guerra de posição/guerra de movi- tica do PCdI bordiguiano durante
camada consistente de duplicida- mento, constitui, dentro da reflexão a crise do regime político liberal

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O mito de Gramsci, “o ocidental”. Hegemonia, guerra de movimento e posição: o que resta de Gramsci no “gramscismo”?

manifestou-se, por exemplo, no sistematicamente os líderes bolche- Esta evolução de Gramsci em


abstencionismo por ocasião da as- viques, incluindo Trotsky, sem dú- direção às posições do bolchevismo
censão do movimento “ousadia do vida desempenhou um papel nesta ocorreu em um determinado mo-
povo”5. A IC, em várias ocasiões, mudança de posição. mento. Primeiramente, em dezem-
criticou duramente o mero propagan- Alguns meses depois, ele foi além bro de 1923, começou a batalha da
dismo da seção italiana. e reconheceu que a tática da frente Oposição de Esquerda de Trotsky
A liderança do PCdI, eleitoral- única tinha valor universal e não esta- contra a burocratização do partido e
mente abstencionista em princípio, va limitada a nenhuma área geográfi- do Estado soviético. Em reação, foi
havia aceitado apenas a disciplina ca ou socioeconômica do planeta: formado um bloco entre Zinoviev,
internacional para participar das “Primeiro porque a concepção po­ Kamenev e Stalin.
eleições, entendida pela IC leninista lítica dos comunistas russos foi for­ Gramsci mostrou que também esta-
como uma tribuna de propaganda mada em um terreno internacional e va consciente do aspecto ideológico do
de ideias revolucionárias. Por outro não nacional; segundo porque na Eu­ debate em curso na URSS, que opunha
lado, Bordiga e seus seguidores re- ropa Central e Ocidental o desenvol­ Trotsky à doutrina antimarxista do “so-
cusaram em princípio qualquer táti- vimento do capitalismo determinou cialismo em um país” formulada por
ca que, com o objetivo de conquistar não apenas a formação de amplos es­ Stalin em janeiro de 1924. No início,
a maioria dos trabalhadores organi- tratos proletários, mas também criou Gramsci também parecia sentir uma
zados, incluísse a possibilidade de o estrato superior, a aristocracia ope­ certa simpatia pelas teses da Oposição:
uma unidade de ação com outras or- rária com seus anexos de burocracia “Sabe-se que em 1905 Trotsky já
ganizações políticas do movimento sindical e grupos social-democratas. acreditava que uma revolução so­
operário sobre objetivos parciais. A determinação, que na Rússia foi cialista e operária poderia ter lugar
A IC criticou severamente esta direta e lançou as massas nas ruas na Rússia, enquanto os bolcheviques
linha, condensada nas Teses de no assalto revolucionário, na Euro­ tendiam apenas a estabelecer uma
Roma, aprovadas no 2º Congresso pa Central e Ocidental é complicada ditadura política do proletariado
Nacional do Partido, realizado em por todas essas superestruturas polí­ aliado ao campesinato, que serviria
1922. Em uma carta de março de ticas, criadas pelo maior desenvolvi­ de embrulho para o desenvolvimento
1922 do Presidium da IC ao Comitê mento do capitalismo, torna a ação do capitalismo, que não seria afetado
Central do PCdI, inspirada em Trot- das massas mais lenta e cautelosa e, em sua estrutura econômica. Sabe-se
sky e Radek, lemos: portanto, exige do partido revolucio­ também que em novembro de 1917
“Apelamos para o PCI para lutar nário toda uma estratégia e táticas (...) Lenin e a maioria do partido
pela dissolução da Câmara a fim de muito mais complexas e demoradas havia mudado para a concepção de
estabelecer um governo de trabalhado­ do que as que foram necessárias pelos Trotsky e pretendiam mexer não só
res. Ao estabelecer um programa míni­ bolcheviques no período entre março com o governo político, mas também
mo para as demandas a serem realiza­ e novembro de 1917”8. com o governo industrial”9.
das pelo governo dos trabalhadores, os
comunistas devem declarar-se prontos
para formar um bloco com o partido
social-democrata e apoiá-lo, na medi­
da em que este defenda os interesses da
classe trabalhadora. Se o PSI aceitar,
começarão as lutas, que serão trans­
feridas do campo parlamentar para
outros campos. Esta é a resposta à
objeção de que a palavra de ordem do
governo dos trabalhadores não signifi­
ca nada mais do que uma combinação
parlamentar. Se o PSI rejeitar nossa
proposta, então as massas serão per­
suadidas de que lhes mostramos uma
maneira concreta, o que o PSI, ao in­
vés disso, não sabe o que fazer”6.
Finalmente, em setembro de
1923, Gramsci abandonou sua opo-
sição à política de frente única e ao
slogan do governo dos trabalhado-
res e dos camponeses7. Sua estadia
em Moscou, onde pôde confrontar Zinoviev, Trotsky e Levi, no 2º Congresso da Internacional Comunista

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Francesco Giliani

Conflitos também irromperam Apesar de seu nome, “bolcheviza- definitiva sobre as divergências existen­
na IC. Após o fracasso da insurrei- ção” certamente não foi a suposição tes no Partido Comunista da URSS, sem
ção de outubro de 1923 na Alema- das lições da história do bolchevismo informações, sem debate. Com isso, eles
nha, Trotsky previu uma relativa e da Revolução Russa, mas sim uma sabiam de antemão que a posição toma­
estabilização do capitalismo. Em tendência a resolver questões políti- da dependia de poderem ou não perma­
contraste, as previsões de Stalin e cas recorrendo a meios organizacio- necer na Internacional Comunista”.13
Zinoviev, que não reconheceram a nais. Foi uma etapa, a primeira etapa, O partido italiano foi reorganiza-
derrota sofrida na Alemanha, foram na degeneração da IC. do diretamente de Moscou. Após o
de revolução iminente. No 5o Con- A prova de que o grupo de 5º Congresso da Internacional, o CC
gresso da IC, em junho de 1924, a Gramsci estava em clara minoria foi aumentado para 17 membros:
aplicação da tática da frente única dentro do partido veio da conferên- nove do centro do partido, quatro
foi descartada, com exceção de sua cia extraordinária em Como, reali- da direita e quatro “terços”, ou seja,
aplicação ultimatística “de baixo”: zada em junho de 1924. Estiveram membros de uma corrente do PSI
“A tática da frente única assume seu presentes os secretários inter-regio- liderada por Giacinto Serrati que
significado mais apropriado quando nais e federais e membros do Comi- naquele ano se fundiu com o PCdI.
a frente única é realizada sob a lide­ tê Central. Havia três documentos A ala esquerda do Bordiga permane-
rança comunista entre trabalhadores em discussão: um da direita pela ceu do lado de fora.
comunistas, social-democratas e não­ Tasca, um do centro apresentado Em abril de 1925, foi formado o
partidários na fábrica, no conselho de por Gramsci e um da esquerda assi- Comitê de Compreensão para ligar
trabalho, no sindicato”.10 nado por Bordiga. Ao todo, 33 dos todos os elementos da corrente de
Na prática, isto equivaleu a um 45 secretários da federação, quatro esquerda. O centro do partido se en-
convite aos trabalhadores socialis- dos cinco secretários inter-regio- fureceu e demitiu todos os seus mem-
tas para deixarem seu partido. A nais, o representante da Juventude bros de suas posições de liderança.
frente unida foi assim reduzida a Comunista e um membro do Comitê Bruno Fortichiari, entre outros, foi
um ultimato ineficaz e os líderes re- Central (CC) votaram no documen- removido como secretário da fede-
formistas puderam apresentá-la aos to de Bordiga. O de Tasca obteve os ração de Milão. As posições ficaram
trabalhadores que ainda os seguiam votos de cinco secretários federais, ainda mais divididas quando o Bordi-
como uma espécie de engano en- um secretário inter-regional e qua- ga tomou abertamente uma posição
gendrado pelos comunistas. tro membros do CC. O de Gramsci para a Oposição no debate da URSS,
Nestes tumultuosos anos de revo- teve os votos de quatro secretários em um artigo intitulado “A questão
lução e contrarrevolução, os aconte- federais e quatro membros do CC. Trotsky” que, escrito em fevereiro de
cimentos se sucederam em um ritmo Esse resultado deslegitimou o 1925, foi bloqueado por meses pela
infernal. Na primavera de 1924, após centro de Gramsci. Depois dele, liderança do partido e depois publi-
o assassinato do deputado do Parti- Gramsci e seus seguidores não cado por l’Unità apenas em julho.
do Socialista Unido (PSU)11 Giacomo pensaram em se questionar de Naquela disputa, Gramsci havia se
Matteotti por assassinos fascistas sob forma alguma, avaliando a impos- posicionado ao lado da maioria do
as ordens de Mussolini, o país entrou sibilidade de liderar um partido partido soviético.
em uma fase de aguda luta política. comunista sem que o corpo mili- Em um relatório para o CC em fe-
As massas entraram em tumulto, os tante compartilhasse a linha. Mas vereiro de 1925, ele declarou:
fascistas ainda não haviam consolida- isto, afinal, estava em consonân- “Na moção devemos, além disso,
do sua ascensão ao poder. cia com o método de construção dizer como as concepções de Trotsky e
Quase ao mesmo tempo, o Partido dos grupos executivos ditados por especialmente sua atitude representam
Comunista colocou Gramsci e um pe- Zinoviev, então secretário da IC. um perigo, na medida em que a fal­
queno grupo que trabalhava com ele Mantido ao longo do tempo, este ta de unidade no partido em um país
desde os anos do Biênio Vermelho12 método de liderança só poderia onde existe apenas um partido, divide
à frente do partido. Esse grupo líder, facilitar o desenvolvimento de o Estado. Isto produz um movimen­
ainda uma minoria no partido, foi co- uma burocracia dentro do partido. to contra-revolucionário; o que não
locado na sela por uma manobra da Trotsky definiu a “bolchevização” significa, porém, que Trotsky seja um
IC, incapaz de discutir politicamente nestes termos: contra-revolucionário: pois nesse caso
com a liderança bordigiana. Este ato “A ‘bolchevização’ de 1924 tinha um devemos exigir sua expulsão”.14
constituiu uma ruptura com a tradi- caráter absolutamente caricatural. Uma Como o Partido Comunista Italia-
ção política leninista dos primeiros pistola foi apontada para os templos dos no (PCdI), dirigido por Gramsci e em
anos da Internacional Comunista. Em órgãos dirigentes dos partidos comunis­ processo de “bolchevização”, atuou
um certo sentido, foi o batismo, na tas, exigindo que eles tomassem uma na crise de Matteotti de 1924-1925?
Itália, dos métodos zinovievistas, que posição sobre as divergências no Parti­ O abandono da tática da frente única
dominaram a fase da chamada bol- do Comunista da URSS; foi exigido que sancionada pelo 5º Congresso da IC
chevização dos partidos comunistas. eles tomassem uma posição imediata e provocou erros e nervosismo.

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O mito de Gramsci, “o ocidental”. Hegemonia, guerra de movimento e posição: o que resta de Gramsci no “gramscismo”?

A princípio, a iniciativa estava nas A proposta foi naturalmente re- fato, dificilmente foram mantidos em
mãos das forças liberais e reformis- jeitada por todas as outras partes. passividade pela linha “aventiniana”
tas. Em 14 de junho, os deputados O slogan lançado pelo Partido Co- de capitulação diante dos liberais
dos partidos de oposição decidiram munista da Itália (PCdI) tentou sair praticados por seus líderes.
deixar de participar dos trabalhos da passividade do Aventino, mas A proposta do “antiparlamento”,
parlamentares e formaram o Comitê o fez com uma formulação que se no entanto, continuou a ser reivin-
das Oposições. O Aventino começou, abriu à colaboração entre partidos dicada, mesmo nas teses de Lyon de
ou seja, o boicote ao trabalho parla- que representavam classes diferen- 1926, como um exemplo daquelas
mentar combinado com um apelo ao tes e antagônicas; além disso, essa “soluções intermediárias para pro-
rei para deter a ascensão do fascismo. unidade, se alcançada, não teria blemas políticos gerais” que o par-
A este bloco, formado pela maioria dissipado as ilusões das massas na tido deveria ter usado no terreno
das oposições burguesas, assim como opção democrática nem teria sepa- agitacional para “poder constituir
maximalistas e reformistas, também rado os trabalhadores que seguiam uma ponte para as palavras de or-
se juntou, no início, o Partido Comu- o PSI e o PSU de seus líderes. dem do partido”16. Se, formalmente,
nista Italiano. O Comitê das Oposi- Nesse mesmo outono, o PCdI lan- a formulação do problema estava
ções era um movimento democrático çou campanhas nacionais para forta- substancialmente correta, surgiu
e legalitário. Assustado com a ação de lecer a Associação Nacional de Defesa confusão em sua aplicação e foi am-
massa, recusou a proposta comunista dos Camponeses, dirigida pelo parti- plificada pela justaposição com as
da greve geral: deveria ter sido o rei do e contra a Federterra, uma organi- táticas seguidas pelos bolcheviques
e o Judiciário a retirar Mussolini do zação de massa dirigida pelos socia- em relação ao governo Kerensky, por
poder – mas eles não tinham a menor listas. Nas fábricas, a mesma linha de ocasião da tentativa de golpe de Es-
intenção e não o fizeram! ação foi praticada através dos Comi- tado de Kornilov (agosto de 1917)17.
O grupo parlamentar do PCdI dei- tês de Agitação da Unidade Proletá- Em junho de 1925, quando Mus-
xou esse comitê e quando, em 27 de ria, na verdade alternativas aos sin- solini havia recuperado o controle da
junho, o CGL proclamou uma absten- dicatos existentes. O fracasso destas situação, o PCdI apresentou o slogan
ção de 10 minutos do trabalho, os co- duas tentativas de uma frente unida confuso de uma “Assembleia Repu-
munistas foram os únicos a convocar “de baixo” foi uma oportunidade per- blicana com base nos Comitês dos
uma greve geral de um dia inteiro. dida, pelo menos para aproximar um Trabalhadores e Camponeses”. A fór-
Depois de sair do bloqueio do setor das massas socialistas. Estes, de mula foi criticada por Trotsky, tanto
Aventino, o PCdI usou destemida- em sua correspondência com o gru-
mente o fórum parlamentar, mas as- po bordighiano Prometheus quanto
sumiu uma posição geral incerta. Sua com Pietro Tresso, Alfonso Leonetti e
palavra de ordem, “Fora com o gover­ Paolo Ravazzoli, os três membros do
no dos assassinos!”, não deixava claro Bureau Político do PCdI expulsos em
qual governo substituiria pelo fascis- 1930 por trotskismo:
ta. Esta indecisão estendeu a mão, de “Vocês lembram que eu critiquei
fato, ao Comitê de Oposição. na época a fórmula ‘Assembleia Re­
O desenvolvimento posterior to- publicana com base nos Comitês dos
mou a forma, em 15 de outubro de Trabalhadores e Camponeses’, uma
1924, da proposta do CC de lançar fórmula lançada na época pelo Par­
a fórmula antiparlamentar, ou seja, tido Comunista Italiano. Vocês dizem
transformar o Aventino em uma as- que esta fórmula era apenas de valor
sembleia parlamentar das oposições: esporádico e que agora foi abandona­
“O Partido Comunista acredita da. Quero lhes dizer, entretanto, por
que a reunião dos grupos parlamen­ que considero esta fórmula equivoca­
tares da oposição em uma assem­ da ou pelo menos equívoca como uma
bleia convocada com base nas regras fórmula política. A ‘Assembleia Repu­
parlamentares como um Parlamento blicana’ é indiscutivelmente um orga­
contra o Parlamento fascista teria, nismo do Estado burguês. O que são,
por outro lado, um valor bem dife­ por outro lado, os ‘Comitês de Traba­
rente da abstenção passiva, pois am­ lhadores e Camponeses’? É evidente
pliaria a crise e colocaria as massas que, de alguma forma, eles são equi­
de volta em movimento, o que é uma valentes aos soviets dos trabalhadores
condição essencial para uma luta efe­ e camponeses. Então, é preciso dizer.
tiva contra o fascismo. Portanto, a Como organismos de classe dos pobres
Comissão pede às oposições que con­ trabalhadores e das massas campone­
voquem esta assembleia.”15 Bordiga sas – sejam eles soviets ou comitês –

8
Francesco Giliani

eles sempre constituem organizações Apesar disso, nessas teses foram partido, também foi compreendi-
de luta contra o Estado burguês e de­ fortemente defendidos alguns pontos do e antecipado, mesmo que cer-
pois se tornam organizações insurre­ estratégicos fundamentais para um tamente não fosse possível prever,
cionais e os transformam, finalmente, partido revolucionário comunista. em 1926, o alcance que teria em
após a vitória, em organizações da A tese número 4, por exemplo, 1943-1948:
ditadura proletária. Como é possível, esclareceu a natureza da futura “A própria compressão que o
nestas condições, que uma assembleia revolução italiana e sua principal fascismo exerce tende a alimentar
republicana – o órgão supremo do força motriz: a opinião de que, como o prole­
Estado burguês – tenha como base os “O capitalismo é o elemento pre­ tariado é incapaz de derrubar o
organismos do Estado proletário?”18 dominante na sociedade italiana e a regime rapidamente, a melhor tá­
Estas oscilações foram acompa- força predominante na determinação tica é aquela que leva, se não a
nhadas, na parábola gramsciana, de seu desenvolvimento. Deste fato um bloco burguês-proletário para
por uma acomodação com a de- fundamental deriva a consequência a eliminação constitucional do
clinação mais oportunista da linha de que não há possibilidade de uma fascismo, a uma passividade da
imposta por Zinoviev e Stalin à IC. revolução na Itália a não ser a revolu­ vanguarda revolucionária, a uma
O caso do Comitê Anglo-Russo, ção socialista. Nos países capitalistas ativa não intervenção do Partido
formado entre os sindicatos russo a única classe que pode efetuar uma Comunista na luta política ime­
e britânico com o objetivo de criar transformação social real e profunda diata, a fim de permitir que a
um escudo protetor extra para a é a classe trabalhadora”.21 burguesia utilize o proletariado
URSS, mostrou isto claramente. As perspectivas do movimento de como uma massa de manobras
Mesmo após a traição da greve massas que poderiam ter derrubado eleitorais contra o fascismo. Este
geral de maio de 1926 pela lideran- o fascismo, igualmente corretas, pre- programa é apresentado com a
ça sindical britânica, na verdade, figuraram uma linha oposta à “Virada fórmula de que o Partido Comu­
Gramsci sentiu que aquele bloco de- de Salerno” imposta ao partido por nista deve ser a ‘ala esquerda’ de
veria ser salvaguardado: Stalin e Togliatti em 1944: uma oposição de todas as forças
“Penso que apesar da indecisão, “A possibilidade do derrube do re­ que conspiram para derrubar o
fraqueza e, se querem, a traição da gime fascista através da ação de gru­ regime fascista. É a expressão de
esquerda inglesa durante a greve pos autodenominados democráticos um profundo pessimismo sobre
geral, o Comitê Anglo-Russo deve antifascistas só existiria se esses grupos a capacidade revolucionária da
ser mantido, porque é o melhor conseguissem, neutralizando a ação do classe trabalhadora”.23
terreno para revolucionar não só proletariado, controlar um movimento A mesma fórmula de governo
o mundo sindical inglês, mas tam- de massa a ponto de poder refrear seu dos trabalhadores e camponeses,
bém os sindicatos em Amsterdã”.19 desenvolvimento. A função da oposição tal como formulada pelo 4º Con-
Trotsky, por outro lado, criticou a democrática burguesa é, ao invés disso, gresso da IC, em 1922, foi final-
liderança do PCUS e da IC porque, colaborar com o fascismo para impedir mente posta em foco, pelo menos
em maio de 1926, “era necessário a reorganização da classe trabalhado­ em termos teóricos:
acompanhar as forças mais ativas do ra e a realização de seu programa de “Todas as agitações particulares
proletariado britânico e romper com classes. (...) A oposição só poderá vol­ que o partido conduz e as atividades
o Conselho Geral naquela época como tar a ser protagonista na ação de defe­ que ele realiza em todas as direções
traidor à greve geral”20. sa do regime capitalista quando a mes­ para mobilizar e unificar as forças da
Marcado pela “cicatriz” da cha- ma compressão fascista não for mais classe trabalhadora devem convergir e
mada bolchevização, em 1925- capaz de impedir o desencadeamento serem resumidas em uma fórmula polí­
1926 o PCI certamente ainda não de conflitos de classe, e o perigo de uma tica que seja de fácil compreensão para
era um partido estalinizado. Isto insurreição dos proletários e sua solda­ as massas e que tenha o maior valor
é atestado pelas teses preparadas gem com uma guerra de camponeses agitacional para elas. Esta fórmula é
para o 3º Congresso, realizado parecer grave e iminente”.22 a do ‘governo dos trabalhadores e dos
clandestinamente em janeiro de Esse papel de defesa do regime camponeses’. Indica também às mas­
1926, em Lyon, França. capitalista, em 1943-1948, deve- sas mais atrasadas a necessidade da
Deve-se salientar que essas ria ser assumido não apenas pelas conquista do poder para a solução dos
teses, que obtiveram 90% dos correntes burguesas liberais, mas problemas vitais que lhes dizem respei­
delegados contra 10% para a es- também, e isso foi decisivo para to, e fornece os meios para trazê-los ao
querda, também foram impostas desorientar e desviar o impulso terreno próprio da vanguarda proletá­
por métodos organizacionais e bu- revolucionário das massas, pe- ria mais avançada (luta pela ditadura
rocráticos. Por exemplo, todos os los líderes do PCI e do PSI. Esse do proletariado)”.24
membros que não votaram a favor perigo, identificado nas teses de Neste caso, porém, a prática osci-
da esquerda foram contados como Lyon pelo possível crescimento lante do partido durante a fase da cri-
votos para a liderança. de uma “tendência de direita” no se Matteotti esteve na origem de uma

9
O mito de Gramsci, “o ocidental”. Hegemonia, guerra de movimento e posição: o que resta de Gramsci no “gramscismo”?

certa confusão na definição concreta A principal tragédia do Congresso tão sendo perturbadas e ameaçadas,
dessa palavra de ordem. A tese, de de Lyon reside, portanto, na chegada a ou seja, os pilares do Estado dos tra­
fato, foi assim: posições políticas que em grande parte balhadores e da revolução”.30
“Neste sentido, é uma fórmula de retomam os traços essenciais da linha A Oposição, para Gramsci, não
agitação, mas não corresponde a um aprovada nos quatro primeiros con- colocou corretamente o problema
estágio real de desenvolvimento his­ gressos da IC, mas em um momento da hegemonia do proletariado na
tórico, exceto da mesma forma que as “errado”, pois coincidiu com a primei- sociedade soviética e não seria ca-
soluções intermediárias referidas no ra fase da degeneração burocrática da paz de aprender da classe traba-
número anterior [o ‘antiparlamento’]”. IC. Este último processo teria inevita- lhadora a necessidade, às vezes, de
E, depois, continuou com uma de- velmente marcado o futuro do PCdI. sacrificar seus próprios “interesses
finição geral mais correta e precisa: O mesmo poderia ser dito, em corporativos” a fim de manter a
“A sua realização [fórmula de nível de trajetória pessoal, para “hegemonia”. Assim, ele resumiu
agitação do governo operário e cam­ Gramsci. Dramaticamente, quando sua condenação da corrente que
ponês] de fato não pode ser concebi­ ele rompeu com a concepção ultra- estava combatendo a degeneração
da pelo partido senão como o início esquerda do Bordiga, os eventos na burocrática do regime que surgiu a
de uma luta revolucionária direta, URSS e na IC colocaram um obstá- partir de “outubro”:
ou seja, da guerra civil dirigida pelo culo para que ele se aproximasse das “Na ideologia e prática do bloco
proletariado, em aliança com o cam­ posições de Lenin e Trotsky. de oposições renasce plenamente
pesinato, para a conquista do poder. Isto poderia ter sido calculado, em toda a tradição de social-demo­
O partido poderia ser levado a sérios outubro de 1926, pelo conteúdo da cracia e sindicalismo que até ago­
desvios de sua tarefa de liderar a revo­ carta de Gramsci, em nome do Bu- ra tem impedido o proletariado
lução se interpretasse o governo operá­ reau Político do PCdI, enviada ao CC ocidental de se organizar em uma
rio e camponês como resposta a uma do partido russo. Ele temia a divisão classe dominante”.31
fase real de desenvolvimento na luta do PCUS, mas atribuiu a eventual res- O pedido, na parte final da carta,
pelo poder, ou seja, se considerasse que ponsabilidade à Oposição Unificada, de usar de clemência para com os lí-
esta palavra de ordem indica a possi­ nascida como resultado da conver- deres da Oposição32 foi julgado por
bilidade de que o problema do Estado gência da Oposição de Esquerda, da Togliatti como uma concessão exces-
será resolvido no interesse da classe tendência “Centralismo Democráti- siva à Oposição, mas certamente não
trabalhadora de uma forma diferente co” e do grupo de Zinoviev e Kame- pode ser suficiente para atribuir uma
da ditadura do proletariado”.25 nev que havia rompido com Stalin28. licença de anti-stalinismo a Gramsci.
Herdadas da linha seguida du- A Oposição foi até responsabiliza- Para Togliatti, atribuir também
rante a crise de Matteotti, nas te- da pelo uso instrumental das divi- “algum erro até mesmo ao Comitê
ses de Lyon ficaram algumas refe- sões do regime fascista no Partido Central” teria sido resolvido “para o
rências não inteiramente claras ao Comunista Soviético29. benefício total da Oposição”33 e isto
Partido Republicano, definido como Sobre os méritos do debate polí- teria sido um erro imperdoável.
petit-bourgeois, mas assimilado tico, a postura de Gramsci foi clara, Amargurado pela carta de Togliat-
com os maximalistas do PSI e os ainda mais do que no passado, a fa- ti, especialmente por seu tom, Grams-
“unitários” do PSU entre as forma- vor da corrente de Stalin: ci, entretanto, escreveu que estava
ções a serem consideradas em uma “Declaramos agora que conside­ disposto a fazer uma nova concessão,
política de frente única26. ramos a linha política da maioria do inserindo seu julgamento condenató-
No campo da concepção or- Comitê Central do Partido Comunis­ rio no início da carta, antes da seção
ganizacional, a “bolchevização” ta da URSS como fundamentalmente sobre os riscos inerentes à possível
havia deixado uma marca mais correta e que a maioria do partido divisão do Partido Comunista Sovi-
marcante. As teses do centro italiano certamente se pronunciará ético34. Ele, além disso, reiterou que
gramsciano, de fato, proibiam as neste sentido, se for necessário colo­ “as oposições representam na Rússia
frações, abrindo caminho para o car toda a questão à votação. (…) todos os velhos preconceitos de corpo­
subsequente monolitismo esta- Repetimos que estamos impressiona­ rativismo de classe e sindicalismo que
linista (“32. A centralização e a dos com o fato de a atitude das oposi­ pesam sobre a tradição do proletaria­
compacidade do Partido exigem que ções investirem toda a linha política do ocidental e retardam seu desenvol­
não haja grupos organizados den­ do Comitê Central, tocando o pró­ vimento ideológico e político”35.
tro dele que assumam o caráter de prio coração da doutrina leninista e Algumas semanas após esta cor-
frações. [...] A existência e a luta da ação política de nosso Partido da respondência, Gramsci perdeu sua
de frações são de fato inconcebíveis União. É o princípio e a prática da liberdade pessoal nas mãos do regi-
com a essência do partido do prole­ hegemonia do proletariado que estão me fascista. No auge de sua maturi-
tariado, cuja unidade eles rompem sendo postos em questão, são as re­ dade política, na prisão ele também
abrindo caminho para a influência lações fundamentais de aliança entre levaria consigo todos os sinais da
de outras classes”27). trabalhadores e camponeses que es­ fase de “bolchevização”.

10
Francesco Giliani

Ficha de cárcere de Gramsci

Gramsci na prisão e a história do PCI reivindicações democráticas, como a outra coisa, pelo completo silên-
da Assembleia Constituinte, na pers- cio a seu respeito nas publicações
No 10º Plenário do Comitê Exe- pectiva de um interlúdio democráti- oficiais do PCI, de junho de 1931
cutivo da Internacional Comunista co-burguês causado pela fraqueza do a dezembro de 1933.
(IC), realizado em julho de 1929, a partido revolucionário. Ao contrário do que Togliatti fa-
virada aventureira associada à teo- No período pós-guerra, a apre- bricou em seu obituário36, no qual
ria do “social-fascismo” explodiu em sentação unilateral desta posição havia uma referência nojenta à
face do PCI. Na análise da IC, no ca- gramsciana, sem as referências ne- “Trotsky puta do fascismo”, Gramsci
minho da estalinização, a social-de- cessárias ao debate internacional, na prisão não mostrou interesse no
mocracia e o fascismo já se tornaram permitiu à liderança Togliatti inter- pensamento de Stalin e não solicitou
“estrelas gêmeas”. Esta mudança pretá-la como uma antecipação da nenhum de seus livros às autorida-
implicou, por exemplo, a recusa de política reformista seguida pelo PCI des penitenciárias. E ele certamente
princípio da liderança da Kommu- com a “virada de Salerno”. não aprendeu russo para ler as obras
nistische Partei Deutschlands (KPD, Além disso, Gramsci foi utilizado de Stalin, como grotescamente dizia
Partido Comunista da Alemanha) como um recurso indispensável para Togliatti. Pelo contrário, segundo o
de organizar qualquer tipo de frente apresentar o PCI como o partido que testemunho do ex-deputado do Par-
unida com o Partido Social Demo- carregava a tocha da cultura nacional tido Comunista Italiano Ezio Riboldi,
crata contra a ascensão dos nazistas. e democrática italiana. Os Cadernos companheiro de Gramsci em Turi na
Voltando a 1929, no PCdI Togliatti tornaram-se um “produto finito” a ser primeira metade de 1930, ele comen-
adaptou rapidamente a linha do par- incluído no desenvolvimento a longo tou sobre o fideísmo com o qual o 4º
tido às diretrizes stalinistas. prazo da cultura italiana, eliminando Congresso do Partido havia aceitado
Isto se traduziu na perspectiva de completamente a tempestade mun- a perspectiva de Stalin da iminente
uma iminente desintegração do regi- dial na qual Gramsci se formou e fez queda do fascismo na Itália, acom-
me fascista e de um verbalismo revo- escolhas claras entre guerras, revolu- panhada pelo crescimento direto da
lucionário completamente divorciado ções e contrarrevoluções. revolução proletária:
da realidade, incluindo a rejeição de E tudo isso levou a um en- “É preciso ter em mente que o as­
qualquer palavra de ordem demo- cobrimento das notas que, de pecto mental de Stalin é bem diferente
crática. Gramsci, na prisão de Turi, forma enigmática, tratavam de do de Lenin. Lenin, tendo vivido muitos
expressou um veemente desacordo questões controversas sobre o anos no exterior, possuía uma visão in­
com a nova linha ultraesquerda que desenvolvimento da União Sovi- ternacional dos problemas político-so­
ele sofreu como um “soco no estoma- ética na década de 1930. ciais: algo que não se pode dizer de Sta­
go”. Na hipótese do colapso do fas- Mas o fato de ter havido desa- lin, que permaneceu sempre na Rússia,
cismo, para Gramsci não iminente, cordos entre Gramsci e o partido preservando a mentalidade nacionalis­
ele insistiu na necessidade de adotar foi atestado, mais do que qualquer ta que se expressa no culto aos ‘grandes

11
O mito de Gramsci, “o ocidental”. Hegemonia, guerra de movimento e posição: o que resta de Gramsci no “gramscismo”?

russos’. Mesmo o Stalin internacional juntado à Forza Italia, foi mais longe Sobre o conceito de hegemonia,
é primeiro russo e depois comunista: é e explicou – com a franqueza que Togliatti troca para uma interpreta-
preciso ter cuidado”.37 podia ser proporcionada por alguém ção cultural, mas manteve-se cau-
Esta observação, que obviamente que não obedecesse mais a qualquer teloso e afirmou uma continuida-
não pode ser verificada categorica- duplicidade por ter se juntado à bur- de entre Lenin e Gramsci. Naquela
mente, penetra na estreiteza nacio- guesia – que as escolhas feitas pelo época, o PCI ainda jurava o pensa-
nal da formação política de Stalin e PCI tinham, na prática, marcado uma mento embalsamado e distorcido
é de considerável importância, espe- lacuna intransponível com Gramsci. de Lenin e não era aconselhável
cialmente porque demonstraria a su- Aldo Schiavone interveio para refor- criar contraposições entre dois “ho-
peração da admiração expressa por çar Colletti – o tempo estava maduro mens santos” desse calibre.
Gramsci em várias ocasiões, mesmo para uma mudança em direção ao O discurso, no entanto, mudou no
antes da prisão, sobre um suposto re- campo social adverso, mesmo nos in- conceito de guerra de posição. Neste
alismo “nacional” de Stalin.38 telectuais ligados ao PCI – e escreveu terreno, a releitura de Gramsci come-
Mas o obituário eulogístico escri- sobre a total inadequação do Grams- çou com o PCI de Togliatti. A ocasião,
to por Togliatti não é surpreenden- ci “político”. Gramsci, sustentou de fato, era conveniente. Um Gramsci
te. Foi, de fato, com a virada do 7º Schiavone, teve que ser relançado que se opôs rigidamente à guerra de
Congresso da IC, em agosto de 1935, apenas no nível cultural para torná- posição, ou à lenta construção do blo-
para a política das Frentes Populares, -lo um autor clássico da história das co social anticapitalista, à guerra de
alianças interclasses nas quais os par- doutrinas políticas. movimento, ou seja, à prevalência da
tidos comunistas se subordinaram a Como se ele fosse um Nicolau Ma- ofensiva aberta contra a burguesia,
uma fração da burguesia, que se tra- quiavel ou um Thomas Hobbes. era perfeitamente adequado à estra-
çam os primeiros sinais de mudança tégia gradualista adotada pelo PCI,
no tratamento público da figura de O “Gramsci de Togliatti” a chamada democracia progressista
Gramsci. Em um artigo de Ruggiero aplicada com zelo de ferro já durante
Grieco, no Lo Stato Operaio, o men- Os Cadernos do Cárcere foram a Resistência. A guerra de posição foi
sal teórico do partido, Gramsci foi publicados pela primeira vez na Itália apresentada como a imagem teóri-
apresentado como um grande inte- em 1951. Tendo eliminado o conflito ca da política do PCI no pós-guerra.
lectual e um “grande italiano”. Esta entre Gramsci na prisão e o partido Gramsci tornou-se – sem poder obje-
ideia não parou de circular. Uma de estalinizado, sua figura foi utilizada tar nada! – o nobre pai.
suas muitas consagrações, na Itália, conscientemente para apresentar o O trabalho paciente de uma prefei-
foi a conferência acadêmica realizada PCI como um partido “nacional” e tura conquistada pelo PCI ou de uma
em Cagliari em 1967 para o 30º ani- para se credenciar a um grande setor cooperativa “vermelha”, casamata
versário da morte de Gramsci. de intelectuais de origem não comu- “gramsciana” do PCI dentro do capi-
As laboriosas e confusas reinter- nista. A operação sobre os Cadernos talismo, poderia assim ser contrastado
pretações de Gramsci foram o pro- de Notas tornou-se crucial. com o suposto irrealismo daqueles que
duto da permanente duplicidade da Era necessário concentrar-se no achavam catastrófico tomar o cami-
liderança do PCI, em tensão entre mártir antifascista e no homem – ofe- nho da estrada “italiana”, parlamentar
sua política reformista e suas ori- recendo sugestões do Ressurgimento e pacífica para o socialismo, adotado
gens revolucionárias, viva na me- – isolado de suas escolhas políticas. A pelo 8º Congresso do PCI em 1956.
mória coletiva dos explorados até primeira edição das Cartas do Cárce- O Estado também, Constituição em
os anos 80, e por vezes ainda mais. re, publicada em 1947 e cuidadosa- mãos, teve que ser conquistado e es-
Pressionados por intelectuais de- mente censurada por Felice Platone, vaziado de sua essência reacionária de
mocráticos sobre a necessidade de um homem próximo a Togliatti, já dentro, enviando cada vez mais depu-
romper com Gramsci como uma re- havia feito isso. Togliatti havia apa- tados e senadores a Roma e centrando
ferência política atual, os líderes do gado qualquer referência cordial de a atividade do partido no parlamento.
PCI sempre mostraram uma certa Gramsci a Bordiga, Trotsky, Rosa Lu- Esta estratégia de inserção no Estado
resistência. Até Giorgio Napolitano, xemburgo e figuras menores, como burguês tinha sido perseguida pelo
expoente da corrente de direita do Lucien Laurat, que não eram aprecia- PCI de Togliatti desde o “ponto de vi-
partido, o “miglioristi”, tomou posi- das por Stalin. Mas somente os Cader- rada de Salerno” e uma leitura instru-
ção contra o pedido de romper com nos, apresentados fraudulentamente mental dos Cadernos de Notas ajudou
o “político” Gramsci formulado por como produto acabado, permitiram a contrariar aqueles que descobriram
Mondo Operaio, a revista teórica do um salto qualitativo na mumificação que as contas não faziam sentido, por
então Partido Socialista Italiano39. de Gramsci. Togliatti, de fato, tinha causa da experiência política pessoal
Alguns anos mais tarde, no artigo em suas mãos um conjunto de notas ou coletiva ou mesmo porque tinham
“Addio a lui e a Turati”40, Lucio Col- que, embora desorganizadas e frag- lido com olhos abertos o Estado e a
letti, tendo esfriado seu ardor revo- mentadas, foram divididas em blocos Revolução de Lenin, um texto sempre
lucionário juvenil, mas ainda não se e propostas como uma teoria geral. detestado pelos reformistas.

12
Francesco Giliani

É justo, no entanto, perguntar seja, depois de ter quebrado o feuda- hegemônica antes de se tornar a
se existiam realmente pontos fracos lismo a partir de dentro. Sugerir este classe politicamente dominante. A
nos Cadernos, usados pelos epígonos paralelo ou não explicitar sua inade- ideia é um absurdo.
para abrir brechas e rastrear revisões. quação – como talvez seja o caso de Mas Gramsci distingue cuidado-
Para iniciar tal trabalho, basta seguir Gramsci – seria aludir àpossibilidade samente entre a hegemonia política
as citações preferidas pelos comen- de o proletariado impor seu modo a ser exercida em relação à classe
taristas de Togliatti e pelo próprio de produção e sua visão de mundo média, potencialmente a classe
Togliatti. Assim se encontra, em um sem guerra de movimento, ou seja, aliada, e a coerção em relação às
dos primeiros volumes das notas de sem ruptura revolucionária? classes opostas após a conquista do
Gramsci da prisão, publicadas pelo Além de certos limites, o paralelo poder. A hipótese de Stefano Merli
Einaudi, a seguinte consideração, com a transição para a sociedade bur- de uma “teoria de revolução sem
inspirada na introdução de Marx a guesa não se mantém teoricamente e revolução”, portanto, também con-
sua Crítica da Economia Política, de traz consigo distorções. Embora, de tém elementos forçados.
1859, citada com abundância por To- fato, a burguesia fosse, como a nobre- Para chegar ao fundo da ques-
gliatti e mais tarde desviada ao extre- za, uma classe proprietária e pudesse tão, a posição do proletariado é es-
mo num sentido gradualista: assim coexistir, em alguns casos por truturalmente diferente (riqueza,
“É necessário avançar no qua­ vários séculos, ao lado dos senhores educação, lazer etc.) da posição da
dro de dois princípios: (1) nenhu­ feudais, o proletariado é uma classe burguesia da época do Iluminismo,
ma sociedade se estabelece tarefas não proprietária, na verdade, a pri- que foi capaz de elaborar sua cultura
para cuja solução as condições ne­ meira classe não proprietária a se dentro do Antigo Regime. Mas, se al-
cessárias e suficientes ainda não impor a tarefa de conquistar o poder guém emprega o termo hegemonia
existem ou não estão pelo menos e abolir a propriedade privada. Sobre para ambos, pode surgir confusão.
no processo de aparecimento e este assunto, Riccardo Guastini escre- Esta confusão, que também estava
desenvolvimento; (2) nenhuma veu nos anos 70: presente nas notas de Gramsci nos
sociedade se dissolve e pode ser “Finalmente, mesmo sem esquecer Cadernos sobre jacobinismo, per-
substituída, a menos que tenha que estamos lidando com as notas de mitiu que a sistemática posterior de
primeiro realizado todas as for­ um prisioneiro e não com um progra­ seu pensamento indicasse a possi-
mas de vida que estão implícitas ma partidário, não se pode deixar de bilidade da ascensão da hegemonia
em suas relações”.41 notar o silêncio absoluto de Gramsci “cultural” pela classe trabalhadora,
Existe, nesta passagem, espaço sobre um ponto crucial da estratégia ou seja, a direção da sociedade, sem
para uma interpretação forçada da política: o momento (o quando e o a conquista do poder político e a
transição do capitalismo para o so- como) da ruptura revolucionária. transformação da estrutura.
cialismo que traça mecanicamente a Após a conquista da hegemonia Esta operação foi bem-sucedi-
fase secular de transição da Europa e de seus aparelhos, após o cerco do da também porque Gramsci, nos
feudal para a burguesia?42 poder central, será ainda necessária Cadernos de Notas, parece ter
No Ocidente, segundo Gramsci, o a destruição (mais ou menos violen­ tomado como certo o axioma dos
Estado não era redutível a seu apare- ta, mas certamente não indolor) dos primeiros quatro congressos mun-
lho repressivo central porque existia aparelhos políticos da burguesia? Ou diais da Internacional Comunista
ao seu redor uma série de “fortifi- devemos esperar um envolvimento sobre a necessidade histórica de
cações”, “trincheiras” e “casamatas” automático, uma queda espontânea força na derrubada do Estado
da burguesia, por vezes estratifica- das fortificações de capital restantes? burguês, uma premissa politi-
das ao longo dos séculos. De forma Gramsci está em silêncio sobre tudo camente oposta pela maioria de
geral, portanto, Gramsci acreditava isso. E por esta razão Stefano Merli seus comentaristas posteriores.
que no Ocidente o proletariado teria falou da doutrina gramsciana como Gramsci, no entanto, nunca ques-
encontrado maior resistência e teria uma ‘teoria de revolução sem revolu­ tionou este princípio, mesmo se
que lutar uma longa guerra de po- ção’, isto é, sem ruptura revolucioná­ nos Cadernos não voltou a ele,
sições em torno das “casamatas” da ria e sem o poder dos trabalhadores”.43 exceto em notas marginais. Vale
sociedade capitalista. Até o momen- O problema surge, portanto, na a pena notar, em confirmação a
to, nada de objetável. O que, então, assimilação da respectiva posição isto, a crítica de Gramsci a Cro-
não faz sentido? Que Gramsci não estrutural da burguesia e do pro- ce por sua exaltação unilateral do
esclareceu se no Ocidente o proleta- letariado. A extensão do conceito momento “consensual e ético” na
riado deveria e poderia ter conquis- cria problemas. Muitos intérpretes história europeia, em detrimento
tado o poder da mesma forma que de Gramsci escreveram que a tese do momento e da força militar. É,
a burguesia, que havia subido politi- mais original do comunista sardo portanto, questionável construir
camente à cabeça da sociedade após era a ideia de que, numa formação interpretações sobre a indetermi-
uma longa fase de erosão da supre- social capitalista, a classe traba- nação presente nos Cadernos de-
macia econômica da nobreza, ou lhadora poderia ser culturalmente Gramsci sobre a hipótese de que a

13
O mito de Gramsci, “o ocidental”. Hegemonia, guerra de movimento e posição: o que resta de Gramsci no “gramscismo”?

hegemonia total do proletariado não há perspectiva de uma conquista desproporção no estudo de Gramsci
pode preceder cronologicamen- pacífica de consenso que leve a uma ainda existe hoje e é reveladora de
te, no processo revolucionário, à nova gestão – “de baixo” ou “parti- medos e ambiguidades persistentes.
conquista do poder político. cipada”, por assim dizer – de insti-
Sobre o conceito em questão, a tuições burguesas. Nicola Badaloni “Marxismo ocidental” e Gramsci:
história das revoluções tem fornecido reclamou disso, do ponto de vista do um interlúdio decisivo
respostas bastante afiadas e concor- PCI da Berlinguer, observando que
dantes. O que nos ensina o estudo Gramsci “não chega a pensar na de- Desde o final da Segunda Guer-
cuidadoso da Rússia soviética nos mocracia como o lugar político geral ra Mundial, a democracia burguesa,
anos da guerra civil, entre outras coi- da transição histórica”. Isto não é, en- especialmente graças ao boom eco-
sas, quando mesmo após a conquista tretanto, como Badaloni sempre afir- nômico, passou por tempos relativa-
do poder o Partido Bolchevique en- ma, uma “desvalorização soreliana mente mais estáveis nos países ca-
trou em conflito em várias ocasiões da democracia” 44, mas simplesmen- pitalistas avançados do que na fase
com elementos de corporativismo te a adesão de Gramsci à concepção histórica anterior. Este fato tem uma
presentes nos setores mais profis- marxista do Estado e da revolução. ligação com o desenvolvimento do
sionalizados da classe trabalhadora Paralelamente à espessa cortina chamado marxismo ocidental. Na
– por exemplo, os trabalhadores fer- de fumaça nos Cadernos, foi neces- esfera intelectual, de fato, as rela-
roviários ainda influenciados pelos sário que a liderança do PCI fizes- ções menos amargas entre as classes
mencheviques – e o Exército Verme- se com que o Gramsci do período e a consolidação no campo da classe
lho teve que enfrentar, tanto política 1919-1926 fosse conhecido o míni- trabalhadora da social-democracia e
quanto militarmente, bandos de cam- mo possível. Era o Gramsci das teses do stalinismo favoreceram e alimen-
poneses que não queriam conhecer sobre os conselhos de fábrica como taram uma divisão entre a pesquisa
nem os Brancos nem os Vermelhos? células da sociedade comunista e, e a militância política.
A questão é que, se o capitalismo sobretudo, o Gramsci que foi total- Muitos professores que se con-
se afirmou e se reproduziu de forma mente inserido no debate da Inter- sideravam marxistas começaram a
espontânea e ampliada dentro dos nacional Comunista antes de sua usar uma linguagem cada vez mais
poros da sociedade feudal, uma eco- degeneração nacional-reformista codificada, longe da classe para a qual
nomia socialista não será construída no período stalinista. Um Gramsci, eles procuravam emancipação. Nes-
“em fatias” ou com “ilhas libertadas” portanto, muito pouco nacional e te ambiente, Gramsci tornou-se um
a serem acrescentadas uma após constitucional. Era preciso esquecer ponto de referência indiscutível, seus
a outra. Além disso, essas “fatias”, aquele Gramsci que, em meio ao Bi- escritos da prisão tornaram-se uma
nascidas em momentos de crise par- ênio Vermelho, podia escrever: antecipação da situação social e polí-
ticular do sistema e da força do mo- “A classe trabalhadora não está pre­ tica do período de 30 anos pós-guerra
vimento, nunca foram capazes de co- ocupada com o desmoronamento do na Europa, nos EUA e no Japão. Este
existir por muito tempo, como uma Estado burguês, pelo contrário, contri­ sentimento foi amplificado por um
ilha feliz, com formas econômicas ca- bui para o fato com toda a sua força, é pessimismo sobre a capacidade da
pitalistas dominantes apoiadas pelo na verdade a única que realmente ten­ classe trabalhadora de se emancipar
Estado que permaneceu burguês. Já de a ‘salvar’ a pátria e evitar a catástro­ a si mesma. Um pessimismo que, no
sabemos pela história do PCI ou do fe industrial: mas para o cumprimento entanto, não era de Gramsci.
Partido Social Democrata da Alema- desta missão quer todo o poder”.45 O próprio Gramsci havia en-
nha (SPD) o que é o resultado de um Gramsci nunca será digerível para fatizado isto, refletindo sobre a
trabalho a longo prazo de “hegemo- o reformismo: sua prosa, na verdade, função de sua própria experiên-
nia” liderado por um partido que está não exala um suspiro patriótico sobre cia política em tempos de refluxo,
cada vez mais no governo, apoiado o que a Itália poderia ter sido e não precisamente nos Cadernos:
por um sindicato cada vez mais “res- foi. Nem pensa em eliminar os defei- “Algo mudou fundamentalmente.
ponsável” e por uma cooperativa eco- tos do desenvolvimento da sociedade E se pode ver. O quê? Antes, todos que­
nômica cada vez mais poderosa, que italiana dentro do capitalismo, mas, riam ser lavradores da história, ter as
está cada vez mais inserida no siste- ao contrário, em usar até mesmo os partes ativas, cada um ter uma parte
ma bancário, de seguros e financeiro. defeitos de um capitalismo retrógra- ativa. Ninguém queria ser o ‘esterco’
Mas a guerra de posição, neces- do para derrubá-lo. da história. Mas, pode-se arar sem
sária segundo Gramsci para desgas- Se observarmos o cronograma de antes adubar a terra? Portanto, deve
tar o adversário mesmo em razão da publicação do Editori Riuniti, a edito- haver o lavrador e o ‘esterco’. Abstra­
hegemonia, para ele nunca significou ra do então PCI, podemos ver que os tamente, todos admitiram isso. Mas, e
a aceitação das regras do jogo de- escritos políticos da Gramsci de 1919- de forma prática? ‘Esterco’ por ‘ester­
mocrático burguês e a confiança na 1926 receberam pouca atenção. A co’ tanto valia ficar para trás, voltar
evolução das instituições liberais em primeira edição de bolso, incomple- para a escuridão, para o indistinto.
um sentido proletário. Em Gramsci, ta, só foi publicada em 1973. Esta Algo mudou, porque há aquele que

14
Francesco Giliani

se adapta ‘filosoficamente’ a ser ester­ stalinismo. Mas também não estava cionou o abandono do materialismo
co, que sabe que tem que sê-lo, e se relacionado com as características histórico e o fechamento da revista à
adapta. É como a questão do homem sociológicas desse grupo. É necessá- história do movimento trabalhista.
a ponto de morrer, como se costuma rio também ressaltar que na Europa o A adaptação aos gostos culturais
dizer. Mas há uma grande diferença, stalinismo apareceu a muitos intelec- do mundo acadêmico foi acentua-
porque no momento da morte se está tuais fascinados pelo marxismo como da com o exílio nos Estados Unidos,
em um ato decisivo que dura um mo­ a única encarnação política da classe após a tomada do poder por Hitler
mento; enquanto que na questão do trabalhadora que fazia sentido, inde- em 1933. Após a guerra, o reconhe-
esterco dura muito tempo, e se repete pendentemente de suas escolhas po- cimento acadêmico na República
a cada momento. Uma pessoa só vive líticas pessoais, que poderiam ser de Federal pró-ocidental da Alemanha
uma vez, como se costuma dizer, a adesão, como no caso de Althusser, e a despolitização dos estudos an-
personalidade própria é insubstituí­ de apoio crítico a Sartre, ou de rejei- daram de mãos dadas, até a apolo-
vel. Não há, para representá-la, uma ção e isolamento ao Marcuse47. gia de Horkheimer ao capitalismo,
escolha espasmódica de um instante, Mas a cesura histórica foi profun- em 1970. Adorno permaneceu mais
na qual todos os valores são aprecia­ da. Desde os dias da Segunda Inter- alienado da política. Marcuse, em po-
dos fulminantemente e é preciso deci­ nacional, mesmo líderes socialistas a sições mais radicais, mas isolado de
dir sem adiamento. Aqui, o adiamen­ nível nacional ou internacional com uma força política marxista, acabou
to é de cada instante e a decisão deve formação intelectual tinham manti- teorizando a integração da classe tra-
ser repetida a cada instante. Por isso, do uma certa unidade entre teoria e balhadora no mecanismo consumista
diz-se que algo mudou. Também não prática. Mas o nascimento do Insti- e a impossibilidade do pensamen-
se trata de viver um dia como um leão tuto de Pesquisa Social em Frank- to socialista de se conectar à práxis
ou 100 anos como uma ovelha. Não furt, fundado em 1923 pelo aus- do proletariado contemporâneo em
se vive como um leão nem por um mi­ tro-marxista Karl Grunberg como qualquer país capitalista avançado.
nuto, pelo contrário: você vive como instituição afiliada à Universidade Esta deriva foi certamente favo-
uma subovelha por anos e anos e sabe de Frankfurt, foi uma novidade, recida pelo ambiente estreito dos
que tem que viver assim. A imagem do mesmo que ainda houvesse a cola- partidos stalinistas. A pesquisa livre
Prometeu que, em vez de ser atacado boração com o Instituto Marx-En- foi censurada: reflexões muito dis-
pela águia, é devorado por parasitas. gels em Moscou. Até então, mesmo tantes dos problemas cruciais da es-
Jó poderia ter imaginado os judeus; os líderes dos trabalhadores, como tratégia revolucionária puderam ser
Prometeu só podia imaginar os gre­ Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo, salvas, e não sempre.
gos; mas os judeus eram mais realis­ desprezavam os “socialistas da ca- A característica básica do “mar-
tas, mais impiedosos, e davam maior deira” (Kathedersozialisten) que xismo ocidental” foi sua separação
destaque a seu herói”.46 evitavam posições partidárias em da luta revolucionária, que acabou
O pessimismo e o cinismo de mui- favor do ensino na universidade. se transformando em hostilidade. O
tos intelectuais foram alimentados, Em 1930, Grunberg foi substitu- silêncio dos prolíficos “marxistas oci-
no período pós-guerra, pela derro- ído por Max Horkheimer, que não dentais” sobre o funcionamento da
ta da extensão da revolução, parti- tinha experiência política concreta: economia capitalista, sobre a natu-
cularmente nos países capitalistas seu discurso inaugural focalizou a re- reza do Estado burguês e, de modo
avançados, e pela consolidação do forma escolar, sua administração san- mais geral, sobre os problemas da es-
tratégia revolucionária, não é aciden-
tal. Essa corrente intelectual mudou
decisivamente para a filosofia, a qual,
por sua vez, estava atolada no subje-
tivismo de longa data.
O marxismo foi assim reduzi-
do a um interminável e intrincado
discurso sobre método, uma ob-
sessão epistemológica, uma exal-
tação pela leitura dos Manuscritos
Marxistas de 1844, publicados em
Moscou em 1932, em um cami-
nho intelectual que reproduzia,
invertendo, o próprio itinerário de
Marx. A obsessão mais comum era
buscar diante de Marx um ponto
de observação para revelar o ca-
Ao todo, Gramsci redigiu 33 cadernos em seu período de prisão ráter “verdadeiro” da obra marxis-

15
O mito de Gramsci, “o ocidental”. Hegemonia, guerra de movimento e posição: o que resta de Gramsci no “gramscismo”?

ta, combinado com uma rejeição Na ausência de um pólo revolu- tura, indicando em seu grau de auto-
superficial dos escritos filosóficos cionário de classe, a principal atra- nomia uma questão a ser investigada
ingleses. Em resumo, nos “marxis- ção, incluindo as propostas cíclicas em relação ao derrube da estrutura
tas ocidentais” não havia traços da de um “retorno a Marx”, veio da social capitalista. Se, portanto, os
Tese 11 marxista sobre Feuerbach: cultura burguesa. “marxistas ocidentais” se apoiaram
a interpretação do mundo não pa- Entende-se que o Gramsci dos parcialmente em certas fraquezas
recia servir ao propósito de mudá- Cadernos, com sua análise do que das notas de Gramsci nos Cadernos,
-lo de cima para baixo. A atividade Engels teria definido como os níveis Gramsci não pode, entretanto, ser
teórica tornou-se uma disciplina mais altos da superestrutura, era o incluído entre seus “pais espirituais”.
esotérica, poluída por uma técnica ícone dos “marxistas ocidentais”. Mas
expressiva e linguística que ainda Gramsci, ao contrário deles, havia Fim da primeira parte. Continua
hoje se avoluma. estudado o problema da superestru- na América Socialista 19.

Notas:

[1] Referimo-nos, em primeiro lugar, ao trabalho de edição facciosa preparatória para a publicação dos tra­
balhos de Gramsci que surgiram em 1947 para o Einaudi de Elsa Fubini e Felice Platone, supervisionado por
Togliatti. Para referências, ver G. Bergami, Il Gramsci di Togliatti e l’altro. L’autocritica del comunismo italia­
no, Le Monnier, Florence 1991, pp. 133-138.
[2] F. Ottolenghi, G. Vacca, “50 anos após a morte do grande comunista. Assim, Gramsci nos ensinou a inovar
com coragem. Natta’s reflexões sobre um legado histórico”, l’Unità, 18-1-1987.
[3] Este último, por exemplo, escreveu: “Mas a insistência de Gramsci em 1937, antes de tudo, sobre a nova
ligação (inconcebível em 1930, por exemplo) entre a Assembleia Constituinte e a Frente Popular, adquire um
significado maior, não mais colide, de fato se aproxima, torna-se consonante, com o que alguns, se não todos,
líderes comunistas no exílio do Centro Estrangeiro pensavam”, em P. Spriano, Gramsci na prisão e o Partido,
p. 108. A única evidência neste sentido, entretanto, foi uma nota do líder stalinista Mario Montagnana para
Togliatti, escrita no próprio dia da morte de Gramsci, na qual Montagnana informou a Togliatti que tinha
aprendido com Sraffa que “Ele [Gramsci] disse que o irmão popular na Itália é a Assembleia Constituinte”, P.
Spriano, ibidem, p. 102. Entretanto, foi o próprio Sraffa que invalidou a Declaração de Montagnana em carta
endereçada ao próprio Spriano, em P. Spriano, ibidem, p. 103.
[4] Para uma reconstrução da gênese histórica do “marxismo ocidental”, cf. P. Anderson, Considerations on
Western Marxism, Laterza, Bari 1969.
[5] Os Arditi del Popolo eram um movimento espontâneo e anti-fascista em massa, que surgiu a partir de
1921 em várias cidades italianas. Embora fossem politicamente heterogêneos, a composição social do Ar­
diti del Popolo era fortemente proletária, mas o PCdI, contrariando a possibilidade de que seus militantes
pudessem se organizar no terreno político e militar com trabalhadores “ideologicamente não-comunistas”,
preferiu formar sua própria organização de autodefesa, separando seus militantes do resto da classe. Assim,
uma oportunidade decisiva foi perdida para deter o avanço das milícias fascistas.
[6] L. Trotsky, Escritos sobre a Itália, Erre Emme, Roma 1990, p. 82.
[7] A. Gramsci, “Lettera a Negri” [Mauro Scoccimarro], 5-1-1924, em P. Togliatti (ed.), La formazione del
gruppo dirigente del Partito Comunista italiano nel 1923-1924, Editori Riuniti, Roma 1962, p. 150.
[8] Cf. Masci [Antonio Gramsci] a Palmi [Palmiro Togliatti] e Urbani [Umberto Terracini], 9-2-1924, in ibidem, pp. 196-197.

16
Francesco Giliani

[9] Ibid, p. 187.


[10] “Teses sobre as Táticas do Comintern”, em A. Agosti (ed.), La Terza Internazionale. Storia documen­
taria, vol. II (1924-1928), t. 1, Editori Riuniti, Roma 1976, p. 121.
[11] Partido nascido de uma cisão de direita do Partido Socialista Italiano, que havia ocorrido em 1922.
[12] Um processo revolucionário que se desenvolveu na Itália após a Primeira Guerra Mundial, entre 1919
e 1920, culminando com a ocupação das principais fábricas do país. O movimento foi derrotado principal­
mente por causa da linha hesitante do Partido Socialista.
[13] L. Trotsky, A Terceira Internacional depois de Lenin, Samonà e Savelli. Roma, p. 160.
[14] A. Gramsci, “Report to the Central Committee”, 6-2-1925, em A. Gramsci, La costruzione del partito
comunista 1923-1926, Einaudi, Turim 1974, p. 473.
[15] Il partito decapitato, L’internazionale, Milão 1988, p. 149.
[16] La situazione italiana e i compiti del PCdI, teses aprovadas pelo III Congresso do Partido Comunista da
Itália, janeiro de 1926, em A. Gramsci, The Construction of the Communist Party 1923-1926, cit., p. 512.
[17] “A apresentação e agitação dessas soluções intermediárias é a forma específica de luta que deve ser usada
contra os partidos democráticos autodenominados, que na realidade são um dos mais fortes apoiadores da
ordem capitalista vacilante e como tal se alternam no poder com grupos reacionários, quando esses autode­
nominados partidos democráticos estão ligados a estratos importantes e decisivos da população trabalhadora
(como na Itália nos primeiros meses da crise de Matteotti) e quando um perigo reacionário é iminente e grave
(tática adotada pelos bolcheviques em relação a Kerenski durante o golpe de Kornilov)”, La situazione italia­
na e i compiti del PCdI, tese aprovada pelo III Congresso do Partido Comunista da Itália, janeiro de 1926, in
ibidem.
[18] L. Trotsky, Escritos sobre a Itália, cit., p. 184.
[19] A. Gramsci, “An Examination of the Italian Situation”, 2-3 de agosto de 1926, em A. Gramsci, The
Construction of the Communist Party 1923-1926, cit., p. 124. O texto constituiu o relatório dado por
Gramsci ao Comitê Executivo do partido em 2-3 de agosto de 1926.
[20] L. Trotsky, “Resolution on the general strike in Britain”, julho de 1926, em L. Trotsky, On Britain, Monad
Press, New York 1973, p. 255. O documento foi apresentado ao Plenário PCUS de 14-23 de julho de 1926.
[21] La situazione italiana e i compiti del PCdI, teses aprovadas pelo III Congresso do Partido Comunista
da Itália, janeiro de 1926, em A. Gramsci, La costruzione del partito comunista 1923-1926, cit., p. 490.
[22] Ibid, p. 499.
[23] Ibid, p. 501.
[24] Ibid, p. 512.
[25] Ibid, p. 513.
[26] Ibid, p. 511.
[27] Ibid, pp. 505-506.
[28] “Uma divisão deste tipo, independentemente dos resultados numéricos dos votos do Congresso, pode
ter as repercussões mais graves, não só se a minoria da oposição não aceitar com a maior lealdade os prin­
cípios fundamentais da disciplina do partido revolucionário, mas também se, ao conduzir suas polêmicas e
sua luta, ultrapassar certos limites superiores a todas as democracias formais”, A. Gramsci, “To the Central
Committee of the Soviet Communist Party”, outubro de 1926, in A. Gramsci, La costruzione partito comu­
nista 1923-1926, cit., p. 126. Gramsci, The Construction of the Communist Party 1923-1926, cit., p. 126.
[29] “Esta campanha, se mostra como ainda são imoderadas as simpatias que a República Soviética desfru­
ta entre as grandes massas do povo italiano que, em algumas regiões, durante os últimos seis anos, não re­
ceberam nada além de escassa literatura partidária ilegal, ela também mostra como o fascismo, que conhece
muito bem a verdadeira situação interna italiana e aprendeu a lidar com as massas, tenta usar a atitude do
bloco de oposição para quebrar definitivamente a aversão firme dos trabalhadores ao governo de Mussolini
e para provocar um estado de espírito no qual o fascismo aparece pelo menos como uma necessidade histó­
rica inelutável, apesar das crueldades e males que o acompanham”, ibidem, p. 127.
[30] Ibid, p. 129.
[31] Ibid, p. 130.
[32]“Os camaradas Zinoviev, Trotsky, Kamenev contribuíram poderosamente para nos educar para a revolu­
ção, às vezes nos corrigiram com muita energia e severidade, têm estado entre nossos professores. A eles nos
voltamos especialmente como os mais responsáveis pela situação atual, porque queremos ter certeza de que
a maioria do Comitê Central da URSS não pretende exagerar na luta e está preparada para evitar medidas
excessivas”, ibidem.
[33] P. Togliatti a A. Gramsci, 18-10-1926, em A. Gramsci, La costruzione del partito comunista 1923-1926,
cit., p. 132.

17
O mito de Gramsci, “o ocidental”. Hegemonia, guerra de movimento e posição: o que resta de Gramsci no “gramscismo”?

[34] “Em qualquer caso, precisamente em vista disto e da possibilidade de tal aparição, em uma carta adi­
cional eu tinha autorizado você a modificar o formulário: você poderia muito bem ter adiado as duas partes
e colocado nossa afirmação da “responsabilidade” da oposição no início. Esta sua maneira de raciocinar me
causou uma impressão muito dolorosa”, A. Gramsci para P. Togliatti, 26-10-1926, in ibidem, p. 135.
[35] Ibid, p. 136.
[36] P. Togliatti, “Antonio Gramsci capo della classe operaia italiana”, Lo Stato Operaio, no. 5-6, 1937.
[37] E. Riboldi, Vicende socialiste. Trent’anni di storia italiana nei ricordi di un deputato massimalista, Edi­
zioni Azione Comune, Milão 1964, p. 182.
[38] Para uma inversão da relação entre nacional e internacional, leia a seguinte nota de Gramsci: “As
relações internacionais precedem ou seguem (logicamente) as relações sociais fundamentais? Eles sem
dúvida seguem”, A. Gramsci, Caderno 13, Nota 2. Ou a seguinte nota, que é mais articulada: “Certa­
mente o desenvolvimento é em direção ao internacionalismo, mas o ponto de partida é ‘nacional’ e é a
partir deste ponto de partida que precisamos começar. Mas a perspectiva é internacional e só pode ser
assim. Portanto, é necessário estudar exatamente a combinação de forças nacionais que a classe inter­
nacional terá que dirigir e desenvolver de acordo com a perspectiva e as diretrizes internacionais. A
classe dominante só o é se interpretar exatamente esta combinação, da qual ela mesma é um componen­
te e como tal pode dar ao movimento uma certa direção em certas perspectivas. Neste ponto, parece-me
ser a discordância fundamental entre Leo Davidovici [Trotsky] e Bessarion [Stalin] como intérprete do
movimento majoritário. As acusações de nacionalismo são ineptas se se referem ao cerne da questão. Se
estudarmos o esforço de 1902 a 1917 por parte da maioria [bolcheviques], vemos que sua originalidade
consiste em purificar o internacionalismo de cada elemento vago e puramente ideológico (em sentido
dissuasivo), a fim de dar-lhe um conteúdo de política realista. O conceito de hegemonia é aquele em
que as exigências de um caráter nacional são atadas, e pode-se entender como certas tendências deste
conceito não falam ou só escamoteiam. Uma classe de caráter internacional, na medida em que orienta
estratos sociais estritamente nacionais (intelectuais) e muitas vezes menos que nacionais, particularis­
tas e municipalistas (camponeses), deve “nacionalizar-se”, em certo sentido, e este sentido não é muito
estreito, pois antes que as condições de uma economia de acordo com um plano mundial sejam forma­
das, é necessário passar por múltiplas fases nas quais as combinações regionais (de grupos de nações)
podem ser várias”, A. Gramsci, Caderno 14, Nota 68.
[39] Cf. F. Coen (ed.), “Hegemonia e democracia”. Gramsci e la questione comunista nel dibattito di Mondo­
peraio”, suplemento a Mondoperaio, n. 7/8, julho-agosto de 1977, pp. 64-65.
[40] L. Colletti, “ Addio a lui e a Turati “, L’Espresso, 8-3-1987.
[41] A. Gramsci, Caderno 13, nota de rodapé 17.
[42] A dinâmica dessa transição, entretanto, deve ter sido clara para Gramsci, que escreveu: “As diferenças
entre a França, a Alemanha e a Itália no processo de tomada do poder pela burguesia (e a Inglaterra). Na
França, há o mais rico processo de desenvolvimento e elementos políticos ativos e positivos. Na Alemanha, o
processo ocorre em alguns aspectos, assemelhando-se aos da Itália, em outros assemelhando-se aos da Ingla­
terra. Na Alemanha, o movimento de 48 fracassou por causa da falta de concentração burguesa (a palavra
de ordem tipo jacobina foi dada pela extrema esquerda democrática: “revolução em permanência”) e porque
a questão da renovação do Estado estava entrelaçada com a questão nacional; as guerras de 64, 66 e 70
resolveram as questões nacionais e de classe juntas em um tipo intermediário: a burguesia obtém o governo
econômico-industrial, mas as velhas classes feudais permanecem como a classe governante do Estado político
com amplos privilégios corporativos no exército, na administração e na terra: mas pelo menos, se essas velhas
classes conservam tanta importância e gozam de tantos privilégios na Alemanha, exercem uma função nacio­
nal, tornam-se os “intelectuais” da burguesia, com um certo temperamento dado pela origem e tradição de
castas. Na Inglaterra, onde a revolução burguesa ocorreu mais cedo do que na França, temos um fenômeno
semelhante ao alemão de fusão entre o antigo e o novo, apesar da extrema energia dos “jacobinos” ingleses, ou
seja, das “cabeças redondas” de Cromwell; a antiga aristocracia permanece como uma classe governamental,
com certos privilégios, ela também se torna a classe intelectual da burguesia inglesa (afinal, a aristocracia
inglesa tem quadros abertos e é continuamente renovada com elementos vindos dos intelectuais e da burgue­
sia)”, em A. Gramsci, Caderno 19, Nota 24.
43] R. Guastini, Note sul Machiavelli, sulla politica e sul Stato moderno, em AA. VV., Gramsci un’eredità con­
trastata. La nuova sinistra rilegge Gramsci, Ottaviano, Milão 1979, p. 82.
[44] N. Badaloni, Il marxismo di Gramsci. Dal mito alla ricomposizione politica, Einaudi, Turim 1975.
[45] Cf. Avanti! , 11-2-1920.
[46] A. Gramsci, Caderno 9, supra nota 53.
[47] Cf. P. Anderson, The Debate in Western Marxism, op. cit., pp. 97-119.

18
O trabalho doméstico é um trabalho
“não remunerado”? Como uma
premissa teórica falsa conduz a
uma posição reacionária na prática
David Rey

No calor do auge do movimento classificado pelo capitalismo, que só O que é salário?


feminista e das lutas contra a opres- valoriza o trabalho do homem fora
são da mulher, setores da esquerda do lar familiar. Em conclusão: se o Devemos começar primeiro
e do próprio movimento feminista “homem” recebe uma remuneração por definir o que é e como se de-
voltaram a resgatar a ideia do “salá- por um trabalho considerado pro- termina o valor da força de tra-
rio para a dona de casa” e a qualifi- dutivo, o “trabalho de reprodução”, balho; isto é, do salário. A for-
car o trabalho doméstico realizado que é de importância vital para se ter ça de trabalho é o conjunto das
pela dona de casa como um traba- trabalhadores e trabalhadoras pron- capacidades físicas e intelectuais
lho “não remunerado” guardado tos para trabalhar, deve ser colocado que permitem a um trabalhador
pelos capitalistas. Qual é a posição no mesmo nível de importância que ou trabalhadora realizar um tra-
do marxismo sobre isto? o primeiro e a mulher dona de casa balho remunerado, através de
A destacada feminista Silvia Fe- deveria receber uma remuneração um salário, para uma empresa,
derici, uma das defensoras mais en- de acordo com isto, o que lhe permi- entidade ou pessoa individual.
tusiastas do salário para a dona de tiria também ter uma independência O valor da força de trabalho,
casa, defende esta reivindicação da dentro da unidade familiar. o salário, se determina da mesma
seguinte maneira: Os marxistas, quando abordamos forma que qualquer outra mer-
Este salário seria um meio para questões de teoria e doutrina, deve- cadoria pelo tempo de trabalho
se conseguir a desnaturalização do mos voltar sempre aos nossos prin- socialmente necessário para pro-
trabalho assistencial e uma forma cípios para estabelecer uma posição duzi-la, ou seja, pela quantidade
de expor que se trata de um tra- correta. A posição do marxismo sobre indispensável dos meios de vida
balho em si. O trabalho doméstico esta questão se fundamenta em dois necessários, nas condições sociais
deve ser considerado como uma ati- aspectos. O primeiro, no ponto de vis- dadas de cada época, que assegu-
vidade remunerada, visto que “con- ta científico, de acordo com a Lei do rem a reprodução do trabalhador.
tribui para a produção da mão de Valor-Trabalho formulada por Marx e Assim, com seu salário, o traba-
obra e produz capital, possibilitan- mais concretamente sobre a composi- lhador pode adquirir tais meios
do a realização de qualquer outra ção do valor da força de trabalho, isto de vida indispensáveis para estar
forma de produção” é, do salário. Em segundo lugar, no em condições de trabalhar diaria-
Podemos sintetizar a tese desse ponto de vista político, socialista, de mente: comida, moradia, roupa,
setor da esquerda e do feminismo acordo com o interesse geral da classe instrução, transporte etc.
da seguinte forma: no lar familiar, trabalhadora e da mulher trabalha- A reprodução do trabalhador,
procriam-se, alimentam-se e edu- dora em particular, em sua luta pela através de seu salário, tem um
cam-se os filhos dos trabalhadores emancipação social, pela superação aspecto duplo: a reprodução da
que serão trabalhadores amanhã. da família patriarcal e pelo socialismo. força de trabalho propriamen-
Todo esse trabalho sai de graça para Analisaremos o trabalho do- te dita do trabalhador para que
os capitalistas, que não aportam méstico que a mulher dona de casa desempenhe seu labor diário e,
nada para dispor de trabalhadores realiza com base em ambos os pon- o que é a chave do assunto que
e trabalhadoras prontos para se- tos de vista para tirar conclusões nos ocupa, para lhe permitir for-
rem explorados em suas empresas sobre a justeza ou não de reclamar mar uma família que assegure
quando ingressem no mercado de sua remuneração. Para simplificar a reprodução sexual de futuros
trabalho. Ainda mais, o “demiurgo” a nossa análise partiremos do caso trabalhadores e trabalhadoras
desse “trabalho reprodutivo” (de re- mais básico, o da família trabalha- para que, assim, o modo de pro-
produção da força de trabalho) é a dora onde o parceiro masculino, o dução capitalista possa continu-
mulher dona de casa, que não rece- homem, trabalha fora de casa e a ar operando quando a força de
be um centavo por isto. Seu “traba- mulher exerce a função de dona de trabalho desgastada abandonar
lho” fica assim desqualificado e des- casa no lar, todo o seu tempo. o processo produtivo.

19
O trabalho doméstico é um trabalho “não remunerado”? Como uma premissa teórica falsa conduz a uma posição reacionária na prática

Marx e Engels sobre o salário e Na mesma obra, Marx destaca: E mais uma vez:
o trabalho doméstico “Seu limite mínimo [o do salário] “O possuidor da força de trabalho
está determinado pelo elemento físico; é um ser mortal. Portanto, para que
Marx e Engels estabeleceram a isto é, que para poder se manter e se sua presença no mercado seja con­
definição precedente que fizemos do reproduzir, para poder perpetuar sua tínua, como o requer a transforma­
salário, em todas as suas obras eco- existência física, a classe trabalhadora ção contínua de dinheiro em capital
nômicas. Assim, segundo Marx: tem que obter os artigos de primeira é necessário que o vendedor da força
“Que é, portanto, o valor da força necessidade absolutamente indispensá­ de trabalho se perpetue, “como se per­
de trabalho? Da mesma forma que o veis, nas condições sociais dadas, para petua todo ser vivo, pela procriação”.
de toda outra mercadoria, este valor se viver e se multiplicar. O valor desses Pelo menos, terão que ser repostas
determina pela quantidade de trabalho meios de sustento indispensáveis cons­ por um número igual de novas for­
necessária para sua produção. A força titui, pois, o limite mínimo do valor do ças de trabalho as que o desgaste e a
de trabalho de um homem existe, pura trabalho” (K. Marx, Salário, Preço e morte retiram do mercado. A soma
e exclusivamente, em sua individualida­ Lucro. Os destaques são meus. dos meios de vida necessários para a
de viva. Para poder desenvolver-se e sus­ É importante como Marx destaca produção da força de trabalho inclui,
tentar-se, um homem tem que consumir sem ambiguidades que o salário não portanto, os meios de vida dos subs­
uma determinada quantidade de artigos só tem como fim o sustento individu- titutos, ou seja, dos filhos dos traba­
de primeira necessidade. Mas o homem, al do trabalhador, mas o sustento de lhadores, para que esta raça especial
da mesma forma que a máquina, se des­ sua família, o que inclui o sustento de possuidores de mercadorias possa
gasta e tem que ser substituído por outro. da mulher-dona de casa e dos filhos. se perpetuar no mercado” (O Capital,
Além da quantidade de artigos de pri­ Como explica em O Capital: vol. 1. Cap. IV, “A transformação do
meira necessidade requeridos para o seu “O valor da força de trabalho dinheiro em capital”, epígrafe 3, Com­
próprio sustento, o homem necessita de não estava determinado pelo tem­ pra e venda da força de trabalho).
outra quantidade para criar determina­ po de trabalho necessário para Engels também é claro a respeito.
do número de filhos, chamados a subs­ manter o trabalhador adulto indi­ Em sua conhecida resenha sobre O
titui-lo no mercado de trabalho e a per­ vidual, mas pelo necessário para Capital, explica:
petuar a raça trabalhadora. Ademais, é manter a família operária” (O “Qual é o valor da força de traba­
preciso dedicar outra soma de valores ao Capital, vol. 1. Cap. XII, “Maqui­ lho? O valor de toda mercadoria se
desenvolvimento de sua força de traba­ naria e grande indústria”, epígra­ mede pelo trabalho necessário para
lho e à aquisição de uma certa destreza” fe 3. Ênfase no original. As negri­ produzi-la. A força de trabalho existe
(K. Marx, Salário, Preço e Lucro, 1865). tas são minhas). sob a forma do trabalhador vivo que,

Cárcere do trabalho doméstico.

20
David Rey

para viver e manter ademais a sua o trabalho doméstico um setor do dinheiro para pagar a parte da edu-
família de forma a garantir a per­ movimento feminista, já é remu- cação e dos cuidados de saúde dos
sistência da força de trabalho mes­ nerado, mas dentro do salário re- filhos que deveriam corresponder à
mo depois de sua morte, necessita cebido pelo trabalhador. mãe, ou o da moradia que ela ocupa,
de uma determinada quantidade de Não há uma injustiça moral se não recebe um centavo como dona
meios de vida. O tempo de trabalho ou econômica na não remunera- de casa? Por muitas voltas que se lhe
necessário para produzir estes meios ção direta da dona de casa pelo dê, a resposta é muito clara: todos es-
de vida representa, portanto, o valor trabalho que realiza dentro do tes meios de vida necessários para a
da força de trabalho. O capitalista lar. Esse suposto salário que lhe mulher e para os filhos (alimentação,
paga semanalmente ao trabalhador deveria corresponder, isto é, os moradia, roupa, educação, saúde,
e compra com isso o uso de seu traba­ meios de vida necessários para eletricidade etc.) só podem ser prove-
lho durante uma semana. Até aqui, que ela viva, já estão incluídos nientes – com é o caso – do salário de
esperamos que os senhores economis­ no salário ou nos salários do seu marido. Contudo, se o salário do
tas estarão, mais ou menos, de acor­ membro ou membros da unida- marido só incluísse os meios de vida
do conosco, no que se refere ao valor de familiar que trabalham fora para sustentá-lo, não sobraria nada
da força de trabalho” (F. Engels, Re­ de casa. O que temos não é uma para a sua mulher e para seus filhos.
senha do primeiro tomo de O Capital injustiça de exploração capitalis- Ou é que os capitalistas são tão gene-
de Karl Marx para o Demokratisches ta, mas uma situação de opres- rosos que pagam ao trabalhador um
Wochenblatt. A ênfase é minha). são e escravidão doméstica sob salário do qual possam viver (ou mal
É interessante a observação de o modo de produção capitalista, viver) várias pessoas? Mas isso é, de
Marx sobre os gastos de instrução onde a mulher dona de casa está fato, o que ocorre.
e educação do trabalhador, que condenada a exercer de empre- Se os capitalistas ouvissem o ar-
também se incluem no salário: gada do marido e de seus filhos, gumento de gente como Federici e
“Para modificar a natureza hu­ e a depender completamente do outros, diriam: “Parece-nos perfei-
mana de modo que ela possa ad­ primeiro para subsistir. Por isso, to o que propões. A mulher deve
quirir habilidade e aptidão num as pretensões de um setor do ser remunerada por seu trabalho,
determinado ramo do trabalho e movimento feminista, a favor do e, sabendo-se que com o salário
se torne uma força de trabalho de­ salário para as donas de casa, é que pagamos a um trabalhador
senvolvida e específica, faz-se ne­ uma utopia impossível de se re- pode viver mais de uma pessoa,
cessária uma formação ou um trei­ alizar, sem base científico-eco- reduziremos o salário do trabalha-
namento determinado, que, por nômica, e reacionária como logo dor ao imprescindível para que ele
sua vez, custam uma soma maior trataremos. possa dar um jeito de viver sozinho
ou menor de equivalentes de mer­ (para não violar a teoria do valor-
cadorias. Esses custos de formação Os capitalistas são pessoas -trabalho de Marx que deixamos
variam de acordo com o caráter generosas? de cumprir há mais de dois séculos
mais ou menos complexo da força sem nos darmos conta, como nos
de trabalho. Assim, os custos dessa Enfoquemos o assunto a partir de dizem esses conselheiros de es-
educação, que são extremamente outro aspecto. Se a mulher executa querda) e daremos à dona de casa
pequenos no caso da força de tra­ um trabalho produtivo que consiste a parte que lhe corresponde para
balho comum, são incluídos no va­ em contribuir para a fabricação de que possa viver por si só”.
lor total gasto em sua produção” trabalhadores assalariados nas pes- Isto poderia ser um grande triun-
(O Capital, vol. 1. Cap. IV, A trans­ soas de seus filhos e de seu marido fo para a causa feminista, conseguir
formação do dinheiro em capital, (prepara-lhes as refeições, dá banho o salário para a dona de casa; isso
epígrafe 3, A compra e a venda de nos filhos, cuida deles quando adoe- sim: à custa de reduzir à metade
força de trabalho). cem, os veste, limpa e mantém o lar o salário do esposo. No final, nada
A questão central é a seguinte. etc.), a mulher teria que ser conside- haveria mudado: juntando ambos
Como explicam Marx e Engels, o rada uma trabalhadora que, como o os salários somariam o mesmo ve-
salário de um trabalhador inclui seu marido, deveria ter um preço-sa- lho salário do marido. O capitalista
o tempo de trabalho necessário lário consistente nos meios de vida não aportaria mais do que aportava
para sustentar o trabalhador nas que lhe permitam viver todos os dias. antes, nem mais nem menos, mas
condições sociais dadas para que Mas, claro, ela não recebe uma remu- o que isso provaria? Que antes, o
possa voltar todos os dias ao tra- neração direta de nenhum capitalista salário do marido incluía os meios
balho e para a reprodução da for- particular, e estaria, então, condena- de vida para sustentar sua mulher e
ça de trabalho, ou seja, para ter da a morrer de inanição, mas não é seus filhos, que era o que queríamos
uma família e deixar uma descen- o caso. De onde vêm, então, os meios demonstrar e que Marx e Engels já
dência. Ou seja, o chamado “tra- de vida que permitem a existência da haviam explicado e demonstrado
balho reprodutivo”, como define mulher dona de casa? De onde sai o há um século e meio.

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O trabalho doméstico é um trabalho “não remunerado”? Como uma premissa teórica falsa conduz a uma posição reacionária na prática

Trabalhadoras em fábrica maquiladora, ou “maquila”

A depreciação do salário familiar sua família inteira. Ela desvaloriza, as­ res um a um, pesando cada situação
sim, sua força de trabalho. É possível, concreta, trata-se do salário médio
Esta realidade sobre o caráter do por exemplo, que a compra parcelada estabelecido segundo as condições
salário e do sustento familiar vê-se das quatro forças de trabalho de uma dadas em cada ramo produtivo e
corroborada de muitas formas no pla- família custe mais do que anterior­ área geográfica com respeito ao tipo
no prático cotidiano. mente a compra da força de trabalho médio de família estabelecida em
Em um país de capitalismo atra- de seu chefe, mas, em compensação, tal área geográfica e de acordo com
sado como a Espanha, a incorpora- temos agora quatro jornadas de traba­ ocusto médio de compra da cesta bá-
ção massiva da mulher no trabalho lho no lugar de uma, e o preço delas sica estabelecido em tal área.
produtivo ocorreu mais tarde do que cai na proporção do excedente de mais­ Aprofundando nas consequ-
na Europa Ocidental e na América -trabalho dos quatro trabalhadores em ências para a família operária do
do Norte. Por isso é muito comum relação ao mais-trabalho de um. Para trabalho da mulher fora de casa,
atualmente que as pessoas mais ve- que uma família possa viver, agora são Marx acrescenta uma nota de ro-
lhas afirmem que há 40 ou 50 anos quatro pessoas que têm de fornecer ao dapé na epígrafe do texto de O
uma família se sustentava com um capital, não só o trabalho, mas mais­ Capital mencionado:
só salário [o do marido, acrescen- -trabalho. Desse modo, a maquinaria “Como certas funções da família,
tamos], mas em que isso afeta a desde o início amplia, juntamente com por exemplo, cuidar das crianças e
teoria de Marx sobre a composição o material humano de exploração, ou amamentá-las etc., não podem ser
do salário na família trabalhadora? seja, com o campo de exploração pro­ inteiramente suprimidas, as mães de
A mudança operada é a seguinte: a priamente dito do capital, também o família confiscadas pelo capital têm
incorporação massiva da mulher no grau de exploração” (O Capital, vol. 1. que arranjar quem as substitua em
mercado de trabalho fez com que o Cap. XIII, Maquinaria e grande indús­ maior ou menor medida. É necessário
capital tenda a reduzir o salário mé- tria, epígrafe 3. Ênfase no original). substituir por mercadorias prontas
dio geral porque, na medida em que Ou seja, o salário que permite sus- os trabalhos domésticos que o consu­
a mulher trabalha, já não necessita tentar uma família se deprecia indivi- mo da família exige, como costurar,
aportar ao marido uma quantidade dualmente conforme mais membros remendar etc. A um dispêndio menor
“extra” para sustentar sua mulher e da família que vivem dentro do lar se de trabalho doméstico corresponde,
o resto da família. incorporam ao mercado de trabalho, portanto, um dispêndio maior de
Isto já foi explicado anteriormente o que, inversamente, confirma: que dinheiro, de modo que os custos de
por Marx, quando explicava o efeito todo salário individual inclui a parte produção da família operária cres­
do maquinismo na família trabalha- proporcional que permite sustentar a cem e contrabalançam a receita au­
dora, não só com a incorporação da família em seu conjunto. mentada. A isso se acrescenta que a
mulher ao trabalho como também Naturalmente, como acontece economia e a eficiência no uso e na
dos filhos que vivem no seio familiar. nos demais aspectos da economia preparação dos meios de subsistên­
“Ao lançar no mercado de trabalho capitalista (preços, taxa de lucro, cia se tornam impossíveis” (Parte da
todos os membros da família do traba­ taxa de mais-valia etc.) não se trata Nota 121 à epígrafe 3 do Cap. XIII,
lhador, a maquinaria reparte o valor de que cada empresário particular Maquinaria e grande indústria, O
da força de trabalho do homem entre ajuste o salário de seus trabalhado- Capital, Vol. 1. Ênfase no original).

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David Rey

Ou seja, por mais que aumente A mesma confusão entre valor de do que o gasta para estas finalidades
o salário familiar com a incorpora- uso e valor de troca, bem como a in- através dos impostos ou por contri-
ção da mulher no trabalho produti- compreensão do conceito de salário, buições diretas. Da mesma forma, já
vo, isto se vê contrabalançado pelo vemos em outro destacado militante vimos que no salário do marido se in-
aumento dos gastos de sustento da da causa do salário doméstico, Iñaki cluem a manutenção do filho, da mãe
família, seja por um maior consumo Gil de San Vicente: e o resto dos gastos de sustentação do
de produtos básicos que antes não Se incorporássemos no valor da for­ lar familiar.
eram necessários (roupa etc.) ou ça de trabalho remunerada o valor do O problema para Federici, Gil
pela necessidade de contratar tra- trabalho investido no plano doméstico de San Vicente e os demais está em
balho assalariado para cuidar dos ou reprodutivo, o salário a receber das que devem nos explicar por que ra-
filhos, limpar a casa etc. pessoas localizadas na esfera produtiva zão, se a mãe (e o pai) supostamente
deveria ser muito maior do que o salá­ criaram a mercadoria “trabalhadores
São os filhos um “valor de troca” rio recebido, no entanto, isto não é as­ assalariados” com os seus filhos, não
produzido pela dona de casa? sim... Ao não existir um mecanismo de recebem um centavo do capitalista
reconhecimento do trabalho reproduti­ quando este compra tal mercadoria
Um último aspecto a analisar é vo, o valor que este gera é expropriado para empregá-la em sua empresa. A
a caracterização que fazem os teóri- pelo capitalista, assim para o sistema quem o capitalista compra esta mer-
cos deste novo feminismo de que as capitalista é favorável manter em silên­ cadoria? Não à mãe nem ao pai, mas
mulheres donas de casa são traba- cio o trabalho reprodutivo desenvolvi­ à própria mercadoria “força de traba-
lhadoras, cuja função é formar seus do majoritariamente pelas mulheres, lho” que aquele emprega; isto é, aos
filhos como mercadorias “força de já que ao visibilizá-lo ou remunerá-lo próprios filhos. Os filhos recebem um
trabalho”, como trabalhadores as- a taxa de lucro e de acumulação do ca­ salário, seu “valor de troca”, para re-
salariados, que carregam um “valor pital cairia (Iñaki Gil de San Vicente, alizar um trabalho produtivo na em-
de troca”, um custo de produção, Capitalismo e emancipação nacional e presa do capitalista, um salário que
pelo qual elas – como sabemos – social de gênero (2000). ² lhes pertence única e exclusivamente.
não recebem remuneração alguma. Toda essa argumentação supos- Com esse salário, os filhos adquirem
Embora isso já tenha sido respon- tamente marxista está errada do co- os meios de vida que lhes permitem
dido em grande medida em nossa meço ao fim. Em primeiro lugar, uma se manter cotidianamente, o que in-
análise precedente, vale a pena nos parte do argumento fica desmentida clui contribuir com sua parte propor-
estendermos nisso para chegar a pelo fato de que a instrução e a edu- cional o sustento do lar familiar, ou se
novas conclusões. cação dos filhos – parte principalís- emancipam e abandonam o lar para
Em seu livro O Trabalho repro- sima de seu processo de formação se estabelecerem por sua conta.
dutivo ou doméstico, Isabel Lar- como futuros trabalhadores assala- Isto nos leva a uma conclusão. Um
rañaga, Begoña Arregui e Jesús riados – desenvolve-se fora do lar: objeto, qualquer valor de uso, conver-
Arpal afirmam: na creche, na escola, no instituto, na te-se em mercadoria com um “valor
“O eclipse do trabalho reprodutivo academia, no curso profissional, na de troca”, não porque incorpore tra-
diante do produtiva parte da diferen­ universidade, sem participação direta balho humano geral em seu processo
ciação entre o valor de uso e o valor da mãe (nem do pai). E, em segundo de produção, mas quando entra no
de troca subscrito pela teoria econô­ lugar, já vimos que o gasto para isto já processo de circulação do mercado
mica, segundo a qual ao trabalho está remunerado no salário do mari- para ser trocado por dinheiro. Posso
destinado a cobrir as necessidades é
concedido valor de uso, enquanto aos
produtos destinados ao intercâmbio
no mercado se lhes reconhece um
valor de troca. A perspectiva mercan­
til, que concede valor unicamente às
mercadorias suscetíveis de aportar
valor de troca, despoja de relevância
social o trabalho reprodutivo, rele­
gando-o ao doméstico, não quanti­
ficável como benefício econômico. A
ótica do capital assimilou trabalho
a emprego e impôs uma visão envie­
sada e reduzida da atividade econô­
mica” (O Trabalho reprodutivo ou
doméstico, Isabel Larrañaga, Begoña
Arregui e Jesús Arpal).

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O trabalho doméstico é um trabalho “não remunerado”? Como uma premissa teórica falsa conduz a uma posição reacionária na prática

fabricar um par de sapatos, mas se decidem buscar seus meios de vida e cuidados por seus amos. A mulher,
os destino para meu uso pessoal não por si próprios, é quando têm a pos- assim, fica atada com correntes ao sa-
são uma mercadoria, mas simples sibilidade de se converterem em mer- lário do marido e à vontade suprema
valores de uso, objetos produzidos cadorias “força de trabalho” dispostas deste último. A respeito, é conhecida
pelo trabalho humano destinados a a se vender diariamente a outro para a famosa frase de Marx: “a mulher é
satisfazer uma utilidade concreta. Só poder viver. Só então sua força de tra- a escrava do escravo”. Engels, em sua
quando levo esses sapatos ao merca- balho seria uma mercadoria com um obra clássica sobre a origem da famí-
do para vendê-los é que se conver- valor de troca, pronta para se alistar lia, cita Marx quando afirma:
tem em mercadorias com um valor na escravidão assalariada. “A família moderna contém, em
de troca, e posso intercambiá-los por O raciocínio anterior não está em germe, não apenas a escravidão (ser­
seu valor monetário. Ainda mais, o contradição com o fato de que os ca- vitus) como também a servidão, pois,
que caracteriza a mercadoria “força pitalistas, tangidos pela necessidade desde o começo, está relacionada com
de trabalho” é que seu único possui- de renovar a força de trabalho de- os serviços da agricultura. Encerra,
dor é ela mesma, não pertence a ou- vido ao desgaste, ao envelhecimen- em miniatura, todos os antagonismos
tro, é uma pessoa “livre”. Portanto, to ou à morte de seus assalariados, que se desenvolvem, mais adiante, na
o trabalhador e a trabalhadora são estão obrigados a remunerar os tra- sociedade e em seu Estado” (Engels, A
apenas mercadorias quando entram balhadores com a quantidade de sa- origem da família, da propriedade pri­
no mercado de trabalho, não antes; lário suficiente para que possam pro- vada e do Estado).
e o fazem como possuidores eles criar e cuidar dos filhos que amanhã Agora, ex-marxistas como Silvia
mesmos de sua força de trabalho possam substituí-los nos centros de Federici tratam de empurrar para
que vendem ao capitalista durante trabalho. O capitalista paga por isso, 150 anos atrás a ciência social com
um tempo estipulado. mas não adquire nenhuma garantia relação à posição da mulher na so-
Assim, o trabalho da mulher dona absoluta de que isso ocorrerá sim: o ciedade, situando o papel da mulher
de casa não é produzir bens para a casal pode não ter filhos, estes últi- trabalhadora dona de casa, sem estu-
venda no mercado, trate-se de seus mos podem falecer antes de se torna- dos nem emprego, entre panelas, ca-
filhos ou de qualquer outra coisa. O rem adultos ou simplesmente podem çarolas, fraldas, lavagem de roupas e
chamado trabalho doméstico vem sa- encontrar seus meios de vida fora do telenovelas alienantes.
tisfazer as necessidades da manuten- trabalho assalariado. Mas o capitalis- Afirma Federici:
ção do lar e da vida familiar, da mes- ta não tem outra opção senão fazer “A reivindicação do salário no tra­
ma forma como o faziam os escravos isso por uma razão muito prosaica: balho de cuidados familiares pode ser
domésticos da antiga Roma, com a numa sociedade como a nossa, onde muito libertadora para a mulher, visto
diferença de que a mulher no capi- o sistema de trabalho assalariado que implica que as mulheres compre­
talismo é, em termos jurídicos, uma é o dominante, se uma família não endam que o que fazem é um trabalho
pessoa “livre”. puder alimentar seus filhos, simples- e não é algo natural, mas construído
A mulher, como na antiga econo- mente não tem filhos e, portanto, o socialmente” (Silvia Federici)³
mia doméstica camponesa, produz sistema de trabalho assalariado esta- O que temos aqui é uma teoria
valores de uso destinados ao auto- ria condenado a tombar até os alicer- moralista (“Como o trabalho da dona
consumo familiar. O cuidado dos ces, pela inexistência de seres huma- de casa em seu lar não é produtivo?
filhos, no seio familiar, entra nessa nos dispostos a trabalharpara outro Por que se valoriza economicamente
categoria de valores de uso, e não por um salário. Sem trabalhadores só o trabalho do homem?), mas ca-
na de mercadorias. Evidentemente, não há produção capitalista. rente de valor científico, como acaba-
quando se transformam em merca- mos de explicar.
dorias incorporam um valor de troca Trabalho reprodutivo ou escravi- A remuneração do “trabalho repro-
que é o resultado do custo socialmen- dão doméstica? dutivo” da dona de casa em seu lar, isto
te necessário que custou produzi-los. é, da escravidão doméstica, ademais
Mas o fato de que, potencialmente, De um ponto de vista socialista, de manter invariável o nível de vida
os filhos possam entrar amanhã no nossa rejeição ao salário e ao trabalho da família trabalhadora e, portanto, o
mercado de trabalho não os converte doméstico da mulher em geral não é grau de emancipação da mulher dona
aqui e agora em “valores de troca”, menos firme que desde o ponto de vis- de casa, é algo que serviria para per-
em mercadorias. Os casais não pro- ta da ciência econômica. Este assunto petuar a mulher dona de casa como a
criam com o objetivo declarado de já foi abordado em certa extensão em burra de carga de todas as pressões da
proporcionar trabalhadores para os outro artigo, pelo que nos limitaremos sociedade sobre o lar operário, incluí-
capitalistas, mas movidos por razões a sintetizar os pontos básicos. do o maltrato psicológico e, eventual-
elementares de afetividade humana. Já demonstramos que a posição mente, o maltrato físico. Implica man-
A procriação e a criação dos filhos da mulher dona de casa é muito simi- tê-la distante da vida social, encerrada
permanece fora do circuito da econo- lar à dos escravos domésticos da an- entre as quatro paredes de sua casa,
mia capitalista. Só quando os filhos tiga Roma. São alimentados, vestidos embrutecê-la com o esforço físico que

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David Rey

deforma seu corpo e embota sua men- “Nos anos 1970, quando se teve O trabalho assalariado nas ta-
te, tornando-a mais manipulável para que tomar decisões estratégicas, refas domésticas
as ideias dominantes que favorecem tanto nos Estados Unidos quanto
uma atitude conservadora da dona de na Europa, o movimento feminista O trabalho assalariado nas tare-
casa ante a militância política e sindi- abandonou completamente o terre­ fas domésticas: cuidar de crianças,
cal do marido, dos filhos etc. no da reprodução e se empenhou, anciãos e incapacitados, limpeza da
Isto estava claro, inclusive, para quase exclusivamente, no trabalho casa, preparação dos alimentos etc.,
a maior parte do movimento femi- fora de casa. O objetivo era con­ tem um caráter completamente di-
nista nos anos 1960 e 1970, que quistar a igualdade através do ter­ ferente do trabalho realizado pela
abominava, para seu mérito na- reno trabalhista. Mas os homens dona de casa em seu próprio lar. Só
quele momento, a escravidão do- estavam enfastiados nesse âmbito e as pessoas de pensamento obtuso
méstica da mulher, acompanhando conquistar a igualdade para estar não veriam a diferença.
com isto o marxismo. Particular- igualmente enfastiadas e oprimidas O caráter assalariado do trabalho
mente na Espanha, devido ao cará- não é uma estratégia”4 “assistencial”, para ampliar o eufe-
ter revolucionário e de classe que Que nos propõe Federici? O tra- mismo cafona com que o progressis-
a luta contra a ditadura franquis- balho doméstico é mau, mas o tra- mo liberal e de esquerda denomina
ta adquiriu, qualquer um que, nos balho em uma empresa também é as tarefas domésticas e de atenção
anos 1970, defendesse em uma as- mau, e ademais também temos um a crianças e anciãos, introduz uma
sembleia feminista ou de esquerda “segundo turno” em casa com os mudança social qualitativa nestas ta-
o salário doméstico teria sido ex- filhos, a limpeza etc. Assim, como refas. Sim, continua sendo um traba-
pulso a patadas e sem contempla- não vemos uma alternativa, melhor lho esgotador e duro, e é mal pago.
ções, e merecidamente. voltar ao lar escravizante, mas exi- Mas, diferentemente da dona de casa
O lamentável é que, hoje em jamos um salário em troca. comum, a trabalhadora desse setor
dia, tenha se levantado uma hor- Este é o horizonte maravilho- não tem nenhum interesse pessoal no
da de “teóricas e teóricos” no mo- so que as feministas radicais como trabalho que faz, ele lhe é indiferen-
vimento feminista e na esquerda, Federici destinam a milhões de mu- te. Não existe o tipo de submissão que
defendendo a tese de que o tra- lheres oprimidas, pobres e trabalha- condena a dona de casa a cuidar 24
balho doméstico em seu próprio doras, um horizonte naturalmente horas de “seu lar”, enquanto a traba-
lar é um trabalho libertador para muito distante, estamos convenci- lhadora assalariada só o faz por 4, 6
a mulher que o capitalismo não dos, do próprio mundo em que vi- ou 8 horas e em troca de um salário;
paga e que deve ser remunerado, vem Federici e as demais feministas sem salário não há tarefa. O simples
perpetuando a escravidão domés- dessa tendência. fato de sair de casa todos os dias, de
tica disfarçada com um subsídio Sim, o mundo do trabalho no enfrentar por si mesma a vida social
do Estado o do empresário. capitalismo é alienante e explora- que implica trasladar-se ao seu posto
A mudança de posição de al- dor, para o homem e para a mu- de trabalho, de conversar e comparti-
gumas feministas que se autode- lher. E é verdade, esta última está lhar experiências com trabalhadoras
nominam marxistas, com relação obrigada a trabalhar uma “jornada de sua mesma ou diferente condição,
aos anos 1970, tem explicação. dupla”, na empresa onde trabalha ou de ser contratada por uma empresa
Embora continuem se reivindi- e em sua casa. Claro que trabalhar para essa tarefa e de comprovar, por-
cando marxistas, já que, sem esta fora do lar, por si mesmo, não libe- tanto, os interesses comuns de classe
etiqueta, perderiam o seu gla- ra a mulher, mas é a condição para que a ligam às demais trabalhadoras
mour de antissistema e já não po- poder se emancipar de seu marido. dessa empresa, a ajuda a compreen-
deriam vender tantos livros nem O que é realmente uma quimera é der a natureza de classe da sociedade
ser convidados a tantas conferên- conseguir no capitalismo um “sa- e como ela funciona. Poder filiar-se a
cias, abandonaram qualquer pre- lário doméstico”, ainda mais no um sindicato, poder reclamar ante a
tensão de se basearem no mar- contexto atual de crise econômica lei determinados direitos, entender a
xismo e em toda perspectiva de e austeridade prolongada. Nossa necessidade da luta política por seus
transformação socialista da socie- alternativa, como logo veremos, é interesses etc., tudo isto introduz na
dade. Assim, do que se trata para vincular a demanda de socializa- psicologia da trabalhadora assalariada
eles é aparecer como “realistas” e ção das tarefas do lar à luta pelo “assistencialista” um nível de consci-
“pragmáticos” para se adaptarem socialismo, a única maneira de se ência política e de autoestima pessoal,
ao capitalismo. solucionar pela raiz a opressão da que não se compara de forma alguma
Uma prova a mais de sua adap- mulher e não nos conformarmos com o nível de consciência que a dona
tação ao capitalismo são as afir- com migalhas, com o mal menor de casa comum alcança fechada em
mações como as que se seguem, ou com a agitação de reivindica- seu lar. A alienação que a trabalhado-
em uma entrevista há anos, onde ções impossíveis ou francamente ra assalariada sofre é a mesma de que
Silvia Federici declarava: reacionárias dentro do capitalismo. padece qualquer trabalhador, seja ele

25
O trabalho doméstico é um trabalho “não remunerado”? Como uma premissa teórica falsa conduz a uma posição reacionária na prática

Por uma alternativa socialista à es-


cravidão doméstica

Os marxistas defendemos a so-


cialização da criação e alimentação
de crianças, anciãos e incapacitados,
para que seja a sociedade em seu
conjunto que assuma estas tarefas e
libere as famílias trabalhadoras das
mesmas, e, em particular, a mulher
dona de casa. De fato, o desenvolvi-
mento capitalista já obrigou à socie-
dade a socializar, embora de forma
parcial e insuficiente, alguns aspec-
tos da vida familiar e comunitária,
seja através de sistemas públicos de
gestão ou concedidos a conglome-
rados privados. Tais são a educação,
os cuidados sanitários, o transporte,
as telecomunicações, a iluminação,
a coleta e gestão de resíduos etc. De
um tempo para cá estamos vendo
Mulheres Pelo Socialismo em São Paulo, 2019. Foto: Johannes Halter uma tendência similar no cuidado de
anciãos e incapacitados, os chamados
metalúrgico, administrativo ou dia- nada de trabalho seria de 4 ou 5 horas, serviços de dependência.
rista: a de um trabalhador, e não a ou menos, incorporariam os avanços Contudo, no capitalismo, estes
de um escravo. Para a dona de casa, tecnológicos mais avançados na mo- passos em direção à socialização das
seu lar é o seu mundo; para a tra- vimentação de pessoas para reduzir tarefas domésticas encontram limites
balhadora doméstica, seu mundo é a ao mínimo o esforço físico requerido absolutos. Os capitalistas resistem
rua, a vida social e a defesa de seus para manipular anciãos ou enfermos com unhas e dentes a ceder à socie-
interesses como trabalhadora e de incapacitados. Toda a tecnologia esta- dade mais parcelas da mais-valia que
milhares de pessoas como ela. ria orientada para reduzir ao mínimo extraem dos trabalhadores (a fonte
O pagamento de salários pelas a mão de obra em todas essas tarefas, de seus lucros) e com elas financiar
tarefas domésticas e de atenção à in- como em qualquer tarefa penosa ou uma socialização integral das tarefas
fância e à velhice prepara as condições que requeira um grande esforço físico. domésticas e de alta qualidade.
para a futura emancipação da mulher Como o expressa magnifica- Sendo assim as coisas, deve
e da família de sua escravidão domés- mente Engels: uma mulher dona de casa receber
tica, através da socialização das tarefas “A emancipação da mulher e sua uma remuneração para depen-
do lar. Trata-se, como antes indicado, igualdade com o homem são e conti­ der somente de si mesma, de for-
de tirar do lar os trabalhos asfixiantes nuarão sendo impossíveis enquanto ma independente? Naturalmente
que afogam as famílias: lavar roupa, elapermanecer excluída do trabalho que sim; mas não por sua con-
preparar a comida, cuidar das crianças produtivo social e confinada dentro do dição de dona de casa, da qual
e dos anciãos. Além de creches bem trabalho doméstico, que é um traba­ deve se libertar. Nós exigimos
equipadas nos bairros e nas próprias lho privado. A emancipação da mulher que toda pessoa desempregada
empresas, haveria centros de ócio e não se torna possível senão quando esta deve ter um posto de trabalho
diversão para as crianças e adolescen- pode participar em grande escala, em fixo e digno, bem remunerado; e
tes em cada bairro, bem supridos sob escala social, na produção e o trabalho até enquanto não o consiga deve
critérios saudáveis e cultos; as residên- doméstico não lhe tome senão um tem­ receber um subsídio de desem-
cias de anciãos não seriam os atuais po insignificante. Esta condição só pode prego igual ao salário-mínimo
locais lúgubres, sujos, mal atendidos ser realizada com a grande indústria interprofissional. Nós, portanto,
e caros; seriam semelhantes a hotéis moderna, que não só permite o traba­ exigimos que as donas de casa,
da máxima qualidade, gratuitos ou a lho da mulher em vasta escala, como como pessoas desempregadas,
um custo mínimo com salas de atendi- também até o exige e tende cada vez recebam este subsídio e as ani-
mento anexas plenamente equipadas. mais a transformar o trabalho domés­ mamos a encontrar um traba-
Os trabalhadores deste setor não tico privado em uma indústria pública” lho que lhes permita obter seus
tolerariam longas jornadas esgotado- (Engels, A origem da família, da pro­ meios de vida por si mesmas, as
ras e fisicamente extenuantes. Sua jor- priedade privada e do Estado). exortamos a ampliar seu mun-

26
David Rey

do para a vida social mais am- casa e empurrá-la a sair para fora do em um assunto social; o cuidado e a
pla que está fora e não dentro lar como pessoa economicamente in- educação dos filhos, também” (Engels,
do lar familiar, e que se somem dependente de seu marido. A origem da família, da propriedade
à luta consciente dos demais tra- Devemos explicar à classe tra- privada e do Estado).
balhadores e trabalhadoras por balhadora e à mulher trabalhadora Dessa forma, combinando os
um programa de transição ao em particular que só sob um sistema avanços de uma economia socialista
socialismo que inclua deman- socialista que converta em proprie- planificada, o trabalho coletivo, a su-
das tais como: creches públicas dade coletiva as alavancas econô- pressão do lucro em qualquer ativi-
gratuitas, restaurantes públicos micas fundamentais da sociedade, dade humana, um verdadeiro amor
gratuitos, lavanderias públicas administradas democraticamente pelo próximo desprovido de toda
gratuitas, ampliação do trabalho pelos trabalhadores, poderemos al- hipocrisia religiosa e de qualquer
de “dependência” a cargo de pes- cançar tal socialização integral do interesse pessoal, mais a técnica e a
soal assalariado, que o Estado forne- trabalho doméstico. ciência mais avançadas, a socieda-
ça alimentação e roupa básica a todas Como Engels explica: de socialista faria desaparecer todo
as crianças e adolescentes de 0 a 18 “Quando os meios de produção vestígio de escravidão doméstica e
anos; definitivamente, trata-se de passarem a ser propriedade comum, de submissão da mulher ao homem,
tornar desnecessário ou de reduzir ao a família individual deixará de ser para que ela alcance a verdadeira
mínimo as chamadas “tarefas do lar” a unidade econômica da sociedade. estatura que lhe negou a sociedade
a cargo até agora da mulher dona de A economia doméstica se converterá durante milhares de anos.

Notas:

¹(Citado em https://generoyeconomia.wordpress.com/2014/06/04/silvia-federici-capitalismo-y-economia-femenina/)
² Citado em https://generoyeconomia.wordpress.com/2010/03/17/trabajo-reprodutivo-y-acumulacion-capitalista)
³ citado em https://generoyeconomia.wordpress.com/2014/06/04/silvia-federici-capitalismo-y-economia-femenina)
4 (https://www.pikaramagazine.com/2014/07/tell-us-federici/)

27
O que significa a reorganização
monetária em Cuba?
Jorge Martin

No dia 12 de outubro, o vice-primeiro-ministro cubano e ministro da Economia e do Planejamento, Alejandro


Gil Fernández, apareceu no programa de televisão Mesa Redonda para falar sobre a estratégia econômica “vi-
sando impulsionar a economia e superar a crise global provocada pela COVID-19”. Uma parte central disso é a
“reorganização monetária”, que gerou tantos rumores e incertezas em Cuba nos últimos meses.

Imagem do Capitólio Cubano e a degradação das construções no coração de Cuba - 2013. Foto: arquivo da editora

Por um acidente da história, o epi- base material em que se baseia a diferenciado provoca, entre outras coi-
sódio da Mesa Redonda coincidiu, Revolução Cubana? sas, uma sobrevalorização da moeda
quase exatamente, com o 60º aniversá- As medidas envolvidas no que se nacional no setor público e, portanto,
rio da Lei 890 de “nacionalização por convencionou chamar de “reorgani- encarece as exportações e barateia
expropriação compulsória de todas as zação monetária” em Cuba vão muito as importações. Unificar a moeda ao
empresas industriais e comerciais” e da além da unificação da moeda. Na me- mesmo tempo em que se unifica a
Lei 891 de nacionalização dos bancos, dida em que, em Cuba, não só existem taxa de câmbio implicará em uma for-
ambas aprovadas em 13 de outubro de diferentes moedas circulantes (o peso te desvalorização do peso cubano em
1960, e a lei da reforma urbana, de 14 cubano CUP, o peso conversível CUC relação às moedas estrangeiras. O que
de outubro de 1960, que expropriou as e as moedas livres conversíveis MLC), se pretende com isso é desestimular
casas dos latifundiários e as entregou mas também várias taxas de câmbio, as importações e estimular as expor-
como propriedade aos seus inquilinos. as implicações são mais profundas. tações, para assim tentar atrair divisas
Com a aprovação dessas leis, o capi- Em primeiro lugar, o que se propõe para a economia nacional. Inevitavel-
talismo foi praticamente abolido em é a eliminação do CUC e o restabele- mente, isso fará com que os preços
Cuba. É com base nisso, a proprie- cimento do peso cubano como moe- subam para os consumidores. Para
dade estatal dos meios de produção, da central da economia. Se houvesse amenizar o golpe desse aumento de
que todas as conquistas da Revolução apenas uma taxa de câmbio, esta seria preços, espera-se que seja implemen-
Cubana nos campos da saúde, educa- uma operação relativamente simples tado um aumento geral de salários
ção, habitação e libertação nacional de retirar uma moeda de circulação e que, segundo fontes oficiais, será de
etc., que sobrevivem até hoje, ainda substituí-la por outra. O problema é a 4,9 vezes o nível atual.
que de forma enfraquecida. disparidade das taxas de câmbio. No No âmbito das medidas de incenti-
Quais são as medidas que ago- setor estatal, 1 CUC é equivalente a 1 vo às exportações, já foram assinados
ra estão sendo propostas, por que CUP e, portanto, a 1 dólar. Para o se- mais de 100 contratos de exportação
estão sendo propostas agora e que tor privado, a taxa de câmbio é de 24 e importação por empresas privadas
impacto elas têm sobre aquela ou 25 CUP para 1 CUC. Esse câmbio cubanas. Embora esses contratos se-

28
Jorge Martin

jam canalizados por meio de empresas nômicos terão maior autonomia em Não é apenas um retrocesso da
estatais, a verdade é que essas medi- termos de gestão da moeda estran- base material da revolução, também
das enfraquecem o monopólio estatal geira gerada pelas exportações, pelas representa mais avanços em um pro-
do comércio exterior, que é uma das vendas em moeda estrangeira, pelas cesso de declínio da consciência que
linhas de defesa do planejamento es- vendas de mercadorias a empresas da já vem se desenvolvendo há anos,
tatal da economia. Zona Especial de Mariel etc. Embora no qual as soluções individuais são
Além disso, algo muito perigoso, as o governo retenha um percentual das promovidas, a “eficiência” por meio
medidas propostas incluem a elimina- divisas geradas, a maior parte (entre da concorrência é priorizada sobre
ção do que é descrito como “subsídios 80 e 100% conforme o caso) ficarão as soluções coletivas, a cooperação,
excessivos e gratificações indevidas”. com a empresa, seja ela estatal ou do o controle social e a participação
Na realidade, isso significa caminhar setor “não estatal” (ou seja, privado). ativa e consciente da classe traba-
para a abolição do princípio da uni- O Estado abandona seu papel central lhadora de forma organizada na re-
versalidade dos subsídios sociais e que na alocação de moeda estrangeira. solução dos problemas.
estes sejam direcionados apenas para Isto é grave porque significa uma dola- É óbvio, e todos podem com-
aqueles que “realmente precisam de- rização parcial da economia, aumenta preender, que a economia cubana
les”. É um reconhecimento implícito a diferenciação interna entre as dife- (e a revolução) enfrenta uma série
do aumento da diferenciação social na rentes empresas de acordo com o seu de obstáculos muito importantes e
ilha nos últimos anos, nomeadamente setor de atividade e, sobretudo, por- que estes limitam as respostas que
desde as medidas tomadas em 2011 que diminui a percentagem de divisas podem ser dadas. Esses obstáculos
no âmbito das Orientações do 6º Con- à disposição do Estado para exercer o são parcialmente estruturais e tam-
gresso do PCC, a eliminação de postos planejamento central com base nos in- bém foram agravados por razões
de trabalho no setor público e a pro- teresses da maioria. circunstanciais recentes.
moção de trabalho autônomo. Em geral, todas essas medidas
As medidas de “reorganização” econômicas apontam em uma di- Elementos circunstanciais da cri-
também promovem incentivos sala- reção clara: menos planejamento, se econômica em Cuba
riais, que estarão vinculados à capaci- mais mercado livre. A linguagem
dade das diferentes empresas estatais que é usada oficialmente às vezes Vamos começar com os problemas
de obterem divisas. Esta estratégia, tenta encobrir esse fato. Por exem- mais imediatos. A economia cubana
considerada necessária para encora- plo, em julho deste ano, quando já havia entrado em uma situação
jar o trabalho com base no aumento o ministro do Planejamento apre- muito complicada antes do início da
dos salários, terá, na verdade, o efeito sentou a Estratégia Econômico- pandemia Covid-19 por três motivos.
de intensificar a diferenciação social. -Social de Cuba, disse que uma Por um lado, a chegada de Trump ao
Haverá empresas que, devido à sua de suas linhas gerais era “manter poder nos Estados Unidos em 2016
atividade, estarão mais bem posicio- o planejamento”, que “é um pon- significou reverter uma série de me-
nadas para exportar seus produtos, to forte do nosso sistema”, mas didas tomadas pelo governo Obama
cujos trabalhadores serão beneficia- depois acrescentou: “O que não que, embora não levantassem o em-
dos, enquanto haverá outras que não significa alocação centralizada bargo, eram favoráveis à economia
poderão exportar, cujos trabalhadores de recursos. Estamos dando pas- cubana (tornando a política das re-
receberão o salário-base, mas não os sos no sentido de descentralizar a messas e do turismo mais flexível
incentivos. Além disso, as empresas alocação administrativa de recur- etc.). Não só isso, Trump também,
que não apresentarem lucro, após um sos”. Ou seja, uma coisa e seu con- na tentativa de reter o voto latino da
período de adaptação, serão fechadas. trário. Na verdade, para ver com Flórida, endureceu a agressão con-
Isso vai na mesma direção geral da mais clareza, deve-se ler também tra Cuba ativando o Capítulo III da
tentativa de aumentar a produtivida- outra frase, um pouco mais adian- Lei Helms-Burton que permite ações
de por meio do chicote do mercado te quando o documento fala em contra empresas que lidam com em-
capitalista: se uma empresa não é lu- “regulação do mercado, principal- presas cubanas que usam bens nacio-
crativa, ela é fechada; se uma empre- mente por métodos indiretos”. Ou nalizados pela revolução.
sa for lucrativa, os bônus serão pagos seja, o que se está considerando, Como assinala um camarada
aos trabalhadores. A autonomia das claramente, é o retrocesso do pla- cubano que revisou a primeira versão
empresas é aumentada, o trabalho nejamento e o avanço do mercado deste artigo, “Os ataques do governo
autônomo é mais liberalizado, a cria- em diferentes aspectos da eco- Trump não se limitaram a reverter
ção de pequenas e médias empresas nomia, entre eles, a alocação de as medidas de Obama e à ativação
é incentivada, tanto no setor público recursos, a circulação de moedas do Capítulo III. Talvez tenha sido o
quanto no setor privado etc. Outro as- etc. Portanto, essas medidas são governo que mais medidas tenha to-
pecto é a resolução 115 do Ministério um retrocesso e solapam a base mado para apertar o bloqueio e que
do Planejamento (aplicável a partir de material em que se baseiam as tenha tentado com mais ferocidade
2021), que afirma que os atores eco- conquistas da Revolução Cubana. estrangular as fontes de renda da

29
O que significa a reorganização monetária em Cuba?

economia cubana. A perseguição a O segundo golpe na economia leceram, em termos de exportação


todas as transações e operações fi- cubana nos últimos anos foi o fim dos de serviços e importação de petró-
nanceiras internacionais em Cuba contratos de envio de médicos cuba- leo a preços preferenciais.
foi brutal. Quase todos os meses, nos ao Brasil, com Bolsonaro chegan- A chegada da Covid-19 e a crise
e nos últimos tempos, quase todas do ao poder no final de 2018. A isso mundial do capitalismo que ela de-
as semanas, surgem novas sanções se soma a mesma medida tomada na sencadeou agravaram ainda mais a
e medidas que reforçam o bloqueio Bolívia após o golpe de um ano atrás. situação da economia cubana. Em
a Cuba”. Segundo o relatório que Além disso, os Estados Unidos rea- primeiro lugar, o impacto da pró-
Cuba apresentou à ONU em julho lizaram uma campanha sustentada pria pandemia em Cuba, com a pa-
de 2020, “de abril de 2019 a março e sistemática contra a colaboração ralisação da atividade produtiva de
de 2020, o bloqueio causou preju- médica cubana, que é uma das prin- centenas de milhares de trabalhado-
ízos a Cuba na ordem de 5,57 bi- cipais fontes de receita do país, mul- res do setor estatal que, no entanto,
lhões de dólares, o que representa tiplicando a pressão contra os gover- continuam recebendo seus salários.
um aumento de cerca de 1,2 bilhões nos de todo o mundo para que não A isso deve ser adicionado o custo
de dólares em relação ao período contratem médicos cubanos. das medidas sanitárias, dos testes
anterior. Pela primeira vez, o mon- O terceiro é o resultado da bru- de PCR etc. Em segundo lugar, a
tante total dos danos causados por tal recessão econômica na Vene- Covid-19 paralisou completamente
esta política em um ano supera a zuela, que começou em 2014 e pa- a importante indústria do turismo
marca dos cinco bilhões de dólares, rece não ter fim. Isso tem limitado por mais de seis meses, com a con-
o que ilustra até que ponto o blo- gravemente as relações econômi- sequente queda nas receitas. A tudo
queio se intensificou nesta fase”. cas muito favoráveis que se estabe- isso se soma a redução das remessas
enviadas por cubanos do exterior,
que também são afetados pela cri-
se econômica nos Estados Unidos e
na Europa. Além disso, as remessas
também são afetadas pelas medidas
punitivas aplicadas pelos Estados
Unidos que, por exemplo, levaram
à suspensão das operações de envio
de dinheiro para a ilha pela Western
Union a partir de 23 de novembro.
O colapso da atividade econômi-
ca mundial devido à crise capitalista,
por sua vez, causou uma queda no
preço do níquel, que Cuba exporta,
de US $ 17.000 a tonelada, há um
ano, para US $ 15.000 agora. Não va-
mos esquecer que o preço do níquel
foi de $ 28.000, em 2011, e atingiu o
pico de $ 50.000 em 2007, antes da
grande recessão.
Nem todos os impactos interna-
cionais em Cuba são negativos. O pre-
ço do petróleo que Cuba importa caiu
significativamente dos 100 dólares o
barril, entre 2010 e 2014, e dos 60
dólares o barril há um ano, para 37
dólares agora. Por outro lado, a pan-
demia permitiu à Cuba, temporaria-
mente, encontrar outras saídas para
sua exportação de serviços médicos.
Mas esses dois fatores positivos estão
longe de ser capazes de equilibrar o
impacto negativo dos outros golpes
recebidos. Além disso, a queda do
preço do petróleo é contrabalançada
Comércio de rua em Trinidad - Património Mundial da Humanidade - 2013. Foto: arquivo da editora pela crescente pressão dos Estados

30
Jorge Martin

Unidos sobre governos e empresas de das leis de julho, agosto e outubro de todos os aspectos da educação, ide-
terceiros países para que não vendam 1960, há 60 anos, às quais nos referi- ologia, cultura, arte, vida política e
petróleo à Cuba sob ameaça de san- mos no início deste artigo. também política externa.
ções e represálias. Pode-se dizer que, menos de dois Também do ponto de vista eco-
É praticamente uma tempesta- anos após a chegada ao poder, a Re- nômico houve consequências ne-
de perfeita para a economia cubana volução Cubana havia cumprido o gativas. As idéias de Che Guevara
que, apesar de muitas dificuldades, programa Moncada, um programa sobre a necessidade de industriali-
sobreviveu. De fato, é necessário des- nacional, democrático e anti-im- zar Cuba e desenvolver sua classe
tacar que a Revolução Cubana não só perialista, e no processo aboliu a trabalhadora foram abandonadas,
sobreviveu, mas que nos últimos me- propriedade privada dos meios de e a ilha continuou a depender da
ses enfrentou a pandemia de forma produção expropriando a burguesia, exportação de açúcar. No entanto,
exemplar, apesar da difícil situação cubana e imperialista. A Revolução em termos puramente monetários,
econômica. Isso só foi possível devido Cubana não poderia ter cumprido a relação era favorável a Cuba, que
à existência de um regime socioeco- seu programa de outra forma. vendia sua safra à URSS e aos países
nômico que não é ditado pelo interes- Desta forma, um dos princípios do Leste Europeu a preços superio-
se do lucro privado capitalista. da estratégia da revolução perma- res aos do mercado mundial e deles
nente ficou demonstrado na prática: comprava manufaturados a preços
Elementos estruturais da econo- na época do imperialismo, nos países inferiores aos do mercado mundial.
mia cubana capitalistas atrasados, a burguesia A relação de Cuba com a revolu-
é incapaz de cumprir qualquer uma ção bolivariana (apesar de a Venezue-
Mas é preciso dizer que, mes- das tarefas pendentes da revolução la nunca romper com o capitalismo)
mo que se encontrasse uma solução democrática nacional. Elas só podem também foi muito favorável para a
para todas essas dificuldades de cur- ser alcançadas superando-se os limi- ilha. Certamente o foi do ponto de vis-
to prazo, ainda subsistem elementos tes estreitos do capitalismo. ta econômico, mas também o foi do
de fragilidade na economia cubana. A teoria da revolução permanente, ponto de vista político, com a chegada
Em primeiro lugar, a dependência entretanto, tem outra parte. As tarefas do novo ar fresco de entusiasmo revo-
do mercado mundial, dentro do qual da revolução socialista não podem ser lucionário que soprava da Venezuela.
Cuba é uma economia débil e subor- concluídas em um único país, muito O outro aspecto estrutural que li-
dinada, e, em segundo lugar, o peso menos em um país atrasado domina- mita e restringe o desenvolvimento
morto da burocracia no funciona- do pelo imperialismo. A expropriação econômico de Cuba é a própria exis-
mento da economia planificada. do capital em um país deve ser o pre- tência da burocracia. Nos últimos me-
A primeira questão tem a ver com lúdio para a expansão da revolução ses, muito se falou em Cuba sobre a
o fato de que a Revolução Cubana para outros países e, em última instân- necessidade de “liberar as forças pro-
ocorreu em um país capitalista atra- cia, para a revolução mundial. dutivas” para que desenvolvam plena-
sado dominado pelo imperialismo. De certa forma, a própria histó- mente todo o seu potencial. Mas, em
A construção do socialismo começa ria econômica da Revolução Cubana geral, o que se quer dizer com isso é
com base nas forças produtivas mais confirma esta segunda parte da tese. acabar com o planejamento estatal da
avançadas do capitalismo. Cuba em Os dois períodos em que a economia economia e soltar as rédeas do merca-
1959 era um país cuja economia se cubana teve o desenvolvimento mais do como mecanismo dominante.
baseava na exportação de matérias- importante foram durante sua cone- Na realidade, não é o planeja-
primas (principalmente açúcar) e, xão com a URSS (em particular de mento estatal que restringe por si
portanto, estava totalmente à mercê 1971 a 1986) e no auge da revolu- mesmo o desenvolvimento das for-
do mercado mundial, no qual entra- ção bolivariana (de 2002 a 2013). A ças produtivas, mas o planejamento
va em condições de dominação total- conexão da Revolução Cubana com burocrático da economia. Em teoria,
mente desiguais. As principais em- a URSS teve um impacto negativo em Cuba, os trabalhadores são os
presas e setores econômicos do país do ponto de vista de encerrar o pe- donos dos meios de produção. Mas,
estavam nas mãos dos interesses es- ríodo heroico (década de 1960) em na prática, eles não se sentem donos.
tadunidenses com uma débil burgue- que Cuba lutou contra a reacionária Na medida em que não possuem me-
sia nacional de pés e mãos amarrados “coexistência pacífica” e, para esten- canismos reais de controle e gestão
e subserviente ao vizinho do norte. der a revolução, desafiou a visão me- para dirigir a economia, os trabalha-
A Revolução Cubana, que come- cânica e burocrática do “marxismo” dores se sentem alienados dela. Além
çou com um programa nacional-de- vinda da Rússia stalinista, e assim disso, em uma economia capitalista
mocrático avançado que a princípio por diante. Para a burocracia sovié- (“mercado”), existem, até certo pon-
não questionava explicitamente o ca- tica isso era uma ameaça e o fortale- to, mecanismos de controle automá-
pitalismo, culminou na expropriação cimento das relações econômicas foi tico. Se uma empresa não é eficiente
das propriedades da burguesia impe- acompanhado pela rígida imposição (ou seja, se não adota os mecanismos
rialista e “nacional”. Este é o sentido do modelo burocrático-stalinista em mais avançados para desenvolver a

31
O que significa a reorganização monetária em Cuba?

produtividade do trabalho), ela é eli- da geopolítica. Embora existam espa- No entanto, em Cuba são feitas
minada por seus concorrentes. Numa ços em Cuba onde se discute a situa- concessões crescentes ao mercado e
economia planificada, o único meca- ção mundial desde um ponto de vista são enfraquecidos o monopólio esta-
nismo possível que exerce esse papel autenticamente comunista, este não é tal do comércio exterior e o planeja-
de controle de qualidade, de eficiên- o tom dominante do discurso oficial mento. Essas concessões aumentam
cia econômica, é a gestão da econo- ou da mídia. Em geral, o discurso pú- a diferenciação social e fortalecem
mia pelos próprios trabalhadores. Se blico tem o mesmo nível dos políticos os elementos burgueses e peque-
isso não existir, então o desperdício, a reformistas de outros países; os exces- no-burgueses que adquirem maior
indolência e o embrutecimento buro- sos do capitalismo são criticados (em confiança e passam a expressar po-
cráticos são galopantes. Na verdade, muitos casos se usa o eufemismo “ne- liticamente seus próprios interesses
as medidas propostas agora e que se oliberalismo”), mas a partir de uma contra os interesses da propriedade
discutem há anos em Cuba, de certa perspectiva em que se assume que as do Estado. Mas essas concessões são
forma, admitem essa premissa, ao se soluções são possíveis no âmbito do apresentadas não como tais, mas
concentrarem no problema dos in- capitalismo. Mesmo no auge da revo- como a solução, o caminho a seguir
centivos aos trabalhadores. lução bolivariana na Venezuela, ques- para resolver os problemas. Em vez
Em suma, os dois fatores inter-rela- tões candentes levantadas por ela, de alertar para o perigo que repre-
cionados que afetam negativamente a como o movimento de controle dos sentam, são apresentados como uma
economia cubana são o isolamento e a trabalhadores, nunca foram discutidas panaceia e uma forma de “libertar as
burocracia. Na verdade, a burocracia é em profundidade em Cuba. forças produtivas” e “construir um
justamente o reflexo do isolamento da Por outro lado, a democracia dos socialismo próspero e sustentável”.
revolução em um país atrasado. trabalhadores é o incentivo mais eficaz Em seu discurso na Mesa Redonda,
para aumentar a produtividade do tra- o Ministro Alejandro Gil destacou que
Como enfrentar a crise da econo- balho. Se os trabalhadores sentem de “terapias de choque não serão aplica-
mia cubana? maneira tangível que os meios de pro- das e sempre haverá atendimento e
dução lhes pertencem, que a direção prioridade para as pessoas mais vulne-
Se partirmos dessas premissas, a do país está em suas mãos, então terão ráveis”. Essa preocupação é louvável.
conclusão é clara. Os problemas es- interesse que funcione de maneira efi- No entanto, o problema é que as forças
truturais da economia cubana podem caz. Essa é a lição das experiências de de mercado quando desencadeadas
ser superados por meio da revolução controle operário na Venezuela e em têm uma lógica própria. As conquistas
mundial e da democracia operária. A qualquer parte do mundo. O que vale da Revolução Cubana se baseiam na
primeira questão fala por si mesma. para uma fábrica vale para o funcio- propriedade nacionalizada dos meios
Se a revolução socialista triunfasse namento da economia como um todo. de produção; se esta for enfraquecida
em um ou vários países do continente Com relação aos problemas de e eventualmente extinta, as conquis-
americano (Equador, Bolívia, Vene- curto prazo, pode ser necessário tas não podem mais ser garantidas. E
zuela, Chile etc.), isso colocaria ime- fazer concessões parciais ao mer- isso independentemente da vontade
diatamente a Revolução Cubana em cado, tentar atrair investimentos subjetiva dos que empreendam este
melhor posição, tanto do ponto de vis- estrangeiros e exportar produtos caminho.
ta puramente de intercâmbio econô- para obter a moeda estrangeira A economia cubana está em uma
mico quanto do ponto de vista político necessária. Afinal, a NEP de Lenin situação muito difícil. Ninguém nega
do moral revolucionário. Uma revo- na década de 1920 era apenas isso: isso. O status quo é insustentável.
lução nos Estados Unidos seria ainda uma série de concessões e recuos. Correto. Mas existem duas maneiras
mais decisiva para mudar a situação A diferença é que Lenin apresentou possíveis de sair do atoleiro. Uma leva
da Revolução Cubana. essa política honestamente pelo ao domínio do mercado capitalista (à
É claro que a revolução em outros que ela era: como concessões e re- maneira chinesa ou vietnamita). A
países não depende da Revolução cuos. As alavancas centrais da eco- outra está no caminho da revolução
Cubana, ou pelo menos não depen- nomia permaneceram nas mãos do mundial e da democracia operária.
de exclusivamente dela. No entanto, Estado, e o monopólio do comércio É claro que em Cuba existe a
a Revolução Cubana tem um enorme exterior foi visto como um elemen- resistência de muitos militantes e
prestígio político e atua como um fa- to-chave na defesa da propriedade quadros comunistas à aplicação de
rol poderoso em todo o continente e estatal dos meios de produção. E, medidas de mercado. Um sinal cla-
além. Pode desempenhar um papel ao mesmo tempo, os bolcheviques ro disso foi o debate sobre a reforma
importante. Para isso, seria necessário, da década de 1920 perseguiam constitucional. O esboço inicial pro-
em primeiro lugar, que a política inter- uma determinada política de revo- posto removeu muitas referências ao
nacional fosse amplamente discutida lução internacional, construindo a socialismo e ao objetivo comunista fi-
em Cuba desde um ponto de vista re- Internacional Comunista, intervin- nal da Revolução Cubana. O texto fi-
volucionário e socialista, não desde o do na política revolucionária da nalmente posto à votação recuperou
ponto de vista limitado e reacionário Alemanha, Itália, França etc. muitas das expressões originalmente

32
Jorge Martin

apagadas. O motivo? A enorme resis- ocasião que “a estratégia econômica o proprietário privado dos meios de
tência que essas propostas suscitaram em Cuba deve se concentrar na substi- produção saqueando a propriedade
na militância do Partido Comunista e tuição do planejamento centralizado”. do Estado. A restauração do capita-
nas camadas da população. Monreal não se engana ao iden- lismo na URSS e nos países do Leste,
Outro indício dessa resistência às tificar a Oposição de Esquerda com liderados por essa mesma burocra-
medidas de “mercado” é o apareci- uma política favorável ao fortaleci- cia stalinista, significou uma queda
mento no Granma de um artigo inti- mento do desenvolvimento indus- assustadora nos padrões de vida e o
tulado “A bondade neoliberal dos as- trial, planejado, e contrário às con- colapso da economia.
sessores entusiastas” em maio deste cessões aos elementos burgueses, do A Revolução Cubana está em uma
ano. O artigo alertava, acertadamente, campo e da cidade, que começavam encruzilhada crucial. Muitas das me-
contra a promoção de pequenas e mé- a se desenvolver como uma ameaça didas propostas já foram discutidas
dias empresas privadas e da via chine- à própria existência do poder sovi- há 10 anos. Algumas já começaram a
sa ou vietnamita como solução para os ético. O programa da Oposição de ser aplicadas, ainda que parcialmente.
problemas econômicos da revolução. Esquerda combinava uma crítica à Os resultados são claramente visíveis.
No entanto, também não ofereceu política econômica com uma defesa O aumento da diferenciação social, o
nenhuma alternativa clara. É interes- do regime democrático dentro do crescimento de uma camada peque-
sante que, em sua resposta ao citado partido e do Estado e um ataque aos no-burguesa com interesses próprios.
artigo do Granma, o economista cuba- métodos burocráticos de censura de O que agora se propõe é avançar ain-
no Pedro Monreal, de forma irônica, opinião. Sabemos como terminou da mais decisivamente neste caminho.
recomende àqueles que se opõem às essa história, a burocracia stalinista É importante abrir um debate
PYMES [Pequenas e médias empre- suprimiu toda oposição, expulsando- sério sobre isso e que os comunistas
sas - NDT] privadas que “seria me- -os do partido e depois eliminando-os possam intervir de maneira decisiva.
lhor irem para as ‘grandes ligas’ lendo fisicamente. É claro que essa mesma A solução não é recuar para o mer-
Trotsky e a ‘Oposição de Esquerda’ de burocracia stalinista, quando o sis- cado, enfraquecer e diluir a proprie-
1926” (Éramos pocos y parió Catana: tema de planejamento burocrático dade estatal dos meios de produção,
una oposición de izquierda en Cuba?). entrou em uma fase de estagnação que já tem 60 anos, mas caminhar
Monreal é um economista pró-capita- nos anos 70 e 80 do século passado, para o internacionalismo revolucio-
lista que deixou claro em mais de uma entusiasticamente passou a se tornar nário e a democracia operária.

33
O problema da economia cubana é o
“papai Estado” e sua “superproteção
igualitarista”?
Jorge Martin

[Esta nota de resposta a um artigo de Juventud Rebelde foi publicada originalmente no blog cubano Comu-
nistas e teve ampla difusão na ilha]

Quando vi o artigo pela primei- “O velho paternalista compreen­ do” utilizam em todos os lugares,
ra vez, não dei crédito aos meus deu que ele é o maior responsável para justificar o seu assalto às con-
olhos. Um companheiro me pas- de que toda a família não participe quistas que a classe trabalhadora
sou por WhatsApp uma captura do esforço, e de muitas acomoda­ ganhou nos últimos cem anos de
de tela do anúncio do artigo de ções e desvios de uma parte de sua luta e organização.
Juventud Rebelde “Com lupa para cria” (ênfase minha). Para dar um exemplo: como par-
descer”1 no Facebook da publica- Os argumentos que o compa- te das medidas para aliviar o impacto
ção da União de Jovens Comunis- nheiro José Alejandro Rodriguez da pandemia na economia, o gover-
tas de Cuba. Pensei que não era utiliza para justificar as medidas no espanhol do PSOE e Unidas Po-
possível, que devia ser uma mon- de ordenamento monetário que demos propôs introduzir uma renda
tagem para desacreditar a publi- estão sendo aplicadas em Cuba Mínima Vital de entre 460 e 1015
cação. Mas qual foi a minha sur- são exatamente os mesmos que os euros para pessoas e famílias em si-
presa quando ao procurar cheguei fundamentalistas liberais utilizam tuação de pobreza extrema. Logo de-
ao artigo de 15 de dezembro, de nos países capitalistas para justifi- pois, a direita, a partir dos herdeiros
José Alejandro Rodriguez. car cortes do gasto público, o des- do franquismo no PP até a extrema-
Vou reproduzir integralmente as mantelamento do chamado “Esta- -direita de Vox, abriram um, como
duas primeiras frases, para que não do do bem-estar” e a destruição de fizeram as organizações empresa-
fique nenhuma dúvida ao leitor. qualquer tipo de legislação prote- riais que representam os interesses
“Papai Estado se convenceu tora dos direitos dos trabalhado- dos capitalistas. Seu argumento? A
definitivamente de que a família res, das mulheres, dos jovens. introdução desta “auxílio” faria com
não pode prosperar com tanta A ideia de que o problema da que as pessoas não quisessem mais
superprodução igualitarista, ao economia é a existência de um trabalhar. Vejamos um exemplo. O
extremo de que seus filhos labo­ “papai Estado superprotetor” que jornalista de direita Antonio Gallego
riosos e esforçados se desgastem provoca que seus ‘vegijos’2 se tor- escrevia no jornal burguês El Español
trabalhando e não progridam nem “preguiçosos e extraviados”, uma coluna de opinião chamada
como desejam, para que seus ir­ e que a manutenção dessa “super- “Uma paguita para todos”:
mãos preguiçosos e extraviados proteção igualitarista” é o motivo “Escuto estes dias a já clássi-
vivam muitas vezes melhor da in­ de que não sejam “laboriosos e es- ca proposta eleitoral podemita de
venção e do engano, prosperando forçados”, é o argumento central criar uma renda básica cidadã.
com as dificuldades. que os defensores do “livre merca- Uma paguita para todos, traba-

Faixa em rua de Cuba, em alusão à Revolução - 2013. Foto: arquivo da editora

34
Jorge Martin

lhem ou não. Seja um preguiçoso O Chile de Pinochet foi o primei- mos que gritam contra “papai
ou não. No final do mês, faças ou ro campo de experimentação dos Estado” correm para exigir um
desfaças, madrugues ou não, pa­ Chicago Boys e de seu fundamen- “resgate bancário” quando ex-
pai Estado te dará um dinheirinho”. talismo monetarista. O Reino Uni- plode a crise, e pedem ao Estado
“A implementação desta iniciativa do de Thatcher foi outro exemplo subsídios e subvenções quando
que premia a vagabundagem... in- onde essas políticas foram levadas entram em dificuldades. Para a
centivará milhares de cidadãos a ao extremo. A sociedade não exis- classe capitalista trata-se de pri-
trabalhar menos”.3 te, era o slogan da Dama de Ferro. vatizar os lucros e socializar os
Parece-lhe familiar o argu- Do que se tratava na realidade prejuízos. No capitalismo, a ban-
mento, companheiro Rodríguez? era de destruir qualquer barreira ca sempre ganha.
O dirigente do partido de ultra- ou impedimento para a realização O artigo do companheiro José
direita Vox, Jorge Buxadé, foi dos lucros empresariais e de abrir Alejandro em Juventud Rebelde
mais além. Para Buxadé, a “pa­ todos os setores da economia ao reproduz, palavra por palavra,
guita clientelista” proposta pelo lucro privado. O argumento era: os mesmos argumentos dos fer-
governo espanhol é uma “renda se o Estado estabelece um salário- renhos defensores do sistema
básica social-comunista” que faz -mínimo muito elevado, os empre- capitalista, mas os aplica à rea-
parte da “agenda chavista” do sários não vão contratar trabalha- lidade cubana. No final do arti-
vice-presidente Pablo Iglesias e dores, não se criarão empregos, go, a conclusão do companheiro
que equivale a introduzir uma a economia não crescerá. Claro, é que no marco destas reformas
“cartilha de racionamento”. O seguindo o argumento até suas úl- econômicas “há que se detectar
articulista de Juventud Rebelde timas consequências, haveria que e atalhar a tempo os focos de
se encontra em muito má compa- legalizar o trabalho infantil nas vulnerabilidade que derivem das
nhia ao usar estes argumentos. minas e por um salário de fome, próprias medidas. Com uma lupa,
De fato, a ideia da existência com o objetivo de “estimular a para ver profundamente e fazer
de um “papai Estado” que, com economia”. Sob essas premissas, cumprir ao pé da letra, todos os
sua “superproteção”, faz com que além da destruição das leis tra- dias, esse lema vigilante de que
seus filhos sejam “preguiçosos”, balhistas que protegiam os traba- ninguém ficará desamparado”.
uma ideia ultraliberal, era o cen- lhadores, abriram-se setores como Isto é, propõe-se eliminar as me-
tro da argumentação das políticas a educação, as aposentadorias, a didas universais de proteção para
econômicas dos monetaristas Chi- saúde, ao lucro privado. aplicá-las somente “em situações
cago Boys que iniciaram o assal- Qualquer tipo de subsídio pa- muito particulares”. Essa coloca-
to ao “Estado do bem-estar” que liativo, de desemprego, às mães ção (que está calcada a partir do
havia se desenvolvido no período solteiras, aos incapacitados, era que aplicaram os conservadores
do boom do pós-guerra em mui- considerado como uma barrei- britânicos durante o governo de
tos países capitalistas avançados. ra que tirava o incentivo à busca Thatcher) é totalmente errônea.
A crise mundial do capitalismo de trabalho. Os fanáticos do livre Em outro lugar expliquei o
dos anos 1970 não deixava mar- mercado esqueceram os fatos bási- impacto que, na minha opinião,
gem de manobra à burguesia para cos: a grande maioria dos desem- vão ter as medidas do ordena-
manter as concessões que o mo- pregados queria trabalhar, se não mento monetário em Cuba4. Os
vimento dos trabalhadores havia havia empregos era consequência problemas da economia cubana
arrancado durante anos de luta. da crise do sistema capitalista. são vários, mas, para mim, os
Começava uma ofensiva privatiza- A política econômica ultraliberal cruciais são a inserção em termos
dora e de ataque frontal a todas as dos monetaristas não é mais que desiguais no mercado mundial
conquistas da classe trabalhadora. uma expressão da luta de classes. capitalista (agravada pelo blo-
Os monetaristas consideravam Com sua organização e luta, a classe queio) e a gestão burocrática da
que todas as medidas sociais de trabalhadora consegue concessões economia planificada. A solução
intervenção do Estado na econo- e proteções legais. Elas diminuem para esses problemas se encon-
mia, de regulação do mercado de os lucros empresariais e, portanto, tra em uma política de interna-
trabalho, eram barreiras ao de- os capitalistas resistem e passam à cionalismo revolucionário e na
senvolvimento da capacidade de contraofensiva quando se sentem gestão democrática da economia
“empreendimento” dos capitalis- fortes para fazê-lo. É algo que Marx por parte da classe trabalhado-
tas e, portanto, barreiras ao cres- já havia explicado: a luta entre a ra, mantendo-se o caráter estatal
cimento da economia. Foram eles classe trabalhadora e os capitalistas dos meios de produção.
que cunharam a expressão do “Es- pela apropriação da mais-valia. No entanto, as medidas que
tado protetor” ou benfeitor, que, Sequer é certo que os capitalis- estão sendo tomadas e que, na
às vezes, em inglês se denomina tas estejam contra a intervenção realidade, estão sendo discutidas
“the nanny state”, o Estado babá. do Estado na economia. Os mes- há anos, partem da base de que

35
O problema da economia cubana é o “papai Estado” e sua “superproteção igualitarista”?

o problema é a própria planifica­ cionamento por serem preguiço- blema da economia cubana não
ção estatal da economia, e que, sos e que vivem melhor do que são esses misteriosos “filhos pre-
portanto, é necessário introduzir os que trabalham? Companhei- guiçosos” constrangidos em sua
mecanismos de mercado na ges- ro, isto é claramente falso. Que laboriosidade pela “superproteção
tão econômica. A ideia central há gente que vive e prospera do estatal”, e sim a pressão asfixian-
que o companheiro comentarista engodo? Sem dúvida. Em uma te do mercado mundial capitalista
de Juventud Rebelde coloca não é economia que enfrenta grandes dominado pelo imperialismo e o
propriamente sua, mas vem justa- dificuldades e escassez sempre enorme e parasitário desperdício
mente do ordenamento que inclui floresce o mercado negro, os es- que representa a burocracia sobre
a eliminação do que se denomina peculadores etc, mas, por acaso, a economia planificada.
“subsídios excessivos e gratuida- estes elementos prosperam com Há duas soluções para os pro-
des indevidas”. Pôr o foco nesta a “superproteção igualitarista”? blemas econômicos e políticos
questão é completamente incorre- Isso é falso. que a Revolução Cubana enfren-
to. É um discurso que criminaliza Por acaso não seria melhor e ta: uma é a solução do mercado,
os pobres e os humildes, que ques- mais correto pôr o foco nos pri- que promove o individualismo, a
tiona se realmente necessitam de vilégios da burocracia, que, no concorrência privada e que leva à
ajudas sociais, culpa-os dos pro- final das contas, saem do traba- acumulação de riqueza por parte
blemas da economia e enfrenta a lho do povo? Por acaso não há de uma minoria. A outra é a solu-
classe trabalhadora com os setores corrupção e roubo por parte dos ção coletiva, que se baseia no con-
mais vulneráveis da sociedade. gerentes de empresas do setor trole e na participação consciente
Existe em Cuba um problema estatal, dos burocratas, dos car- e organizada da população sobre
com os “preguiçosos e extravia- reiristas e novos ricos? O próprio a economia e o Estado. Argumen-
dos” que vivem “muitas vezes Fidel denunciou isto abertamen- tos ultraliberais, como os do colu-
melhor de invenções e do enga- te em seu famoso discurso na nista de ‘‘Juventud Rebelde’’, con-
no, prosperando com as dificul- Aula Magna em 2005. tribuem para destruir qualquer
dades”? Certamente. Mas esse Essa estratégia adotada vai le- ideia de uma solução comunista
problema deve ser quantificado var inevitavelmente ao aumento e conduzem diretamente ao pân-
e identificado corretamente. Por da desigualdade social e à acumu- tano capitalista liberal contra o
acaso o autor está afirmando que lação privada de capital. Vai haver qual as massas chilenas e equato-
há pessoas que vivem dos subsí- ganhadores, mas também perde- rianas se levantaram há um ano.
dios estatais ou da livreta de ra- dores, no caso, a maioria. O pro- 17 de dezembro de 2020

Notas:

1 (http://www.juventudrebelde.cu/opinion/2020-12-14/con-lupa-para-llegar-abajo)
2 Expressão cubana para se referir às crianças
3 (https://cronicaglobal.español.com/pensamiento/paguita-para-todos_239577_102.html):
4 (http://www.marxist.com/que-implica-el-ordenamiento-monetario-en-cuba.htm).

36
Lições da Comuna de Paris
Leon Trotsky

Por ocasião do 50º aniversário da Comuna de Paris, em 1921, Leon Trotsky escreveu este brilhante artigo
à luz da então recente Revolução Russa de 1917 e da posterior Guerra Civil da qual saiu vitorioso o Exército
Vermelho comandado pelo próprio Trotsky.

A cada vez que estudamos a his-


tória da Comuna descobrimos um
novo matiz graças à experiência que
nos foi proporcionada pelas lutas re-
volucionárias posteriores, não apenas
a Revolução Russa, mas também a
alemã e a húngara. A guerra franco-
-prussiana foi uma explosão sangren-
ta, prenúncio de uma imensa carni-
ficina mundial; a Comuna de Paris
foi como um relâmpago, anunciando
uma revolução proletária mundial.
A Comuna nos mostrou o hero- Comunardos em barricada. Foto: BHVP/Roger-Viollet
ísmo das massas operárias, sua ca-
pacidade para unir-se em bloco, sua A razão pela qual Jules Favre, mulada e organizada do proletaria-
generosidade de se sacrificar pelo Picard, Garnier-Pagès e companhia do. Somente com a ajuda do partido,
futuro... Mas, ao mesmo tempo, evi- tomaram o poder em Paris em 4 de que se apóia em toda sua história pas-
denciou a incapacidade das massas setembro é a mesma que permitiu a sada, que prevê teoricamente a dire-
de encontrar seu caminho, sua inde- Paul-Boncour, A. Varenne, Renaudel ção que os acontecimentos seguirão
cisão na direção do movimento, sua e muitos outros tornarem-se duran- e que prevê suas etapas e define as
tendência fatal a deter-se depois dos te um período de tempo os amos do linhas de ação precisas, somente as-
primeiros êxitos permitindo desta partido do proletariado. sim pode o proletariado se libertar da
forma que o inimigo se recuperasse e Por suas preferências, seus hábi- necessidade de recomeçar constante-
retomasse suas posições. tos intelectuais e por seu comporta- mente sua história: suas dúvidas, sua
A Comuna chegou demasia do mento, os Renaudel e os Boncour, indecisão, seus erros.
tarde. Teve todas as possibilidades e mesmo os Longuet e Pressemane, O proletariado de Paris carecia
de tomar o poder em 4 de setembro, estão muito mais próximos de Jules de tal partido. Os socialistas bur-
o que teria permitido ao proletaria- Favre e de Jules Ferry que do prole- gueses, dos quais estava repleta a
do de Paris colocar-se à cabeça de tariado revolucionário. E justamen- Comuna, elevavam seus olhares
todos os trabalhadores do país em te porque Favre, Simon, Picard e para o céu esperando um milagre
sua luta contra as forças do passado, os demais abusaram da fraseologia ou uma palavra profética, duvida-
tanto contra Bismarck quanto contra democrático-liberal, seus filhos e vam e, durante esse tempo, as mas-
Thiers. Mas o poder caiu nas mãos seus netos tiveram de recorrer à fra- sas andavam às cegas, desorienta-
dos charlatães democráticos, os de- seologia socialista. Mas se trata de das por causa da indecisão de uns e
putados de Paris. O proletariado pa- filhos e netos dignos de seus pais, da fraqueza de outros. O resultado
risiense não tinha nem um partido continuadores de sua obra. E, quan- foi que a Revolução explodiu no
nem líderes a que estivessem ligados do se trata de se decidir não a com- meio delas demasiado tarde. Paris
estreitamente através de lutas ante- posição de uma camarilha ministe- estava cercada.
riores. Os patriotas pequeno-burgue- rial e sim que classe deve tomar o Passaram-se seis meses até que
ses, que se acreditavam socialistas e poder, Renaudel, Varenne, Longuet o proletariado recuperasse a memó-
buscavam o apoio dos operários, ca- e seus iguais estarão no campo de ria das revoluções anteriores, de suas
reciam completamente de auto-con- Millerand – colaborador de Gallifet, lições, dos combates anteriores, das
fiança. Não faziam mais que minar a o verdugo da Comuna... Quando os reiteradas traições da democracia e
confiança do proletariado em si mes- charlatães reacionários dos salões e tomasse o poder.
mo, procurando continuamente ad- do Parlamento se encontram cara Estes seis meses foram uma per-
vogados famosos, jornalistas, depu- a cara, na vida, com a Revolução, da irreparável. Se, em setembro
tados, cuja única bagagem consistia nunca a reconhecem. de 1870, à cabeça do proletariado
em uma dúzia de frases vagamente O partido operário – o verdadei- francês se encontrasse o partido
revolucionárias, para lhes confiar a ro – não é instrumento de manobras centralizado da ação revolucioná-
direção do movimento. parlamentares, é a experiência acu- ria, toda a história da França e, com

37
Lições da Comuna de Paris

ela, toda a história da humanidade ninguém que pensasse. Nos gran- Estabeleceu conversações com os
teria tomado outra direção. des acontecimentos, por seu lado, vereadores de Paris para se cobrir,
Se, em 18 de março, o poder tais decisões somente podem ser to- pela direita, com a “legalidade”.
passou às mãos do proletariado de madas por um partido revolucioná- Se, ao mesmo tempo, tivesse pre-
Paris, não o foi porque este tivesse rio que espera uma revolução, que parado um ataque violento contra
se apoderado dele conscientemente se prepara para ela, que se mantém Versalhes, as conversações com os
e sim porque seus inimigos haviam firme, um partido que está habitu- vereadores teriam significado uma
abandonado a capital. Estes últimos ado a ter uma visão de conjunto e astúcia militar plenamente justificada
iam perdendo terreno constante- que não teme a ação. e de acordo com os objetivos. Mas, na
mente, os operários os despreza- E o proletariado francês carecia realidade, estas conversações foram
vam e odiavam, perderam a con- exatamente de um partido de combate. mantidas para tentar que um milagre
fiança da pequena burguesia e os O Comitê Central da Guarda evitasse a luta. Os radicais pequeno-
grandes burgueses temiam que já Nacional era, de fato, um Conselho -burgueses e os socialistas idealistas,
não fossem capazes de defendê-los. de Deputados dos operários arma- ao respeitar a “legalidade” e as pes-
Os soldados estavam confrontados dos e da pequena burguesia. Tal soas que encarnavam uma parcela
aos seus oficiais. O governo fugiu Conselho, eleito diretamente pelas do Estado “legal”, deputados, verea-
de Paris para concentrar suas forças massas que tomaram o caminho da dores etc., esperavam, desde o mais
em outra parte. Então, o proletaria- revolução, representa uma excelen- profundo de seu ser, que Thiers se de-
do se tornou o amo da situação. te estrutura executiva. Mas, ao mes- tivesse respeitosamente ante a Paris
Mas não entendeu isto até o dia mo tempo, e justamente por causa revolucionária tão logo quanto esta
seguinte. A Revolução caiu-lhe sobre de sua ligação imediata e elementar se dotasse de uma Comuna “legal”.
os ombros sem que a esperasse. com as massas que se encontram A passividade e a indecisão vi-
Este primeiro êxito foi uma nova tal e como as encontrou a revolu- ram-se favorecidas neste caso pelo
fonte de passividade. O inimigo ha- ção, o Conselho reflete não somente sagrado princípio da federação e
via fugido a Versalhes. Por acaso não os pontos fortes das massas, como da autonomia. Paris, como podem
era isto uma vitória? Nesse momento também suas debilidades, e reflete comprovar, não é mais que uma Co-
teria sido possível esmagar a facção mais as debilidades: sua evidente muna entre outras. Paris não quer
governamental sem maiores efusões indecisão, sua tendência a ficar es- se impor a ninguém, não luta pela
de sangue. Em Paris, teria sido possí- perando, sua tendência à inativida- ditadura, em todo caso seria a “a di-
vel deter todos os ministros, a come- de depois dos primeiros êxitos. tadura do exemplo”.
çar por Thiers. Ninguém teria movido O Comitê Central da Guarda Na- Em resumidas contas, isto não era
um dedo para defendê-los. Mas não cional necessitava de direção. Era mais que uma tentativa de substituir
se fez isso. Não havia um partido or- indispensável dispor de uma organi- a revolução proletária que estava
ganizado de forma centralizada ca- zação que encarnasse a experiência se desenvolvendo por uma reforma
paz de uma visão de conjunto sobre a política do proletariado e que esti- pequeno-burguesa: a autonomia co-
situação e com organismos especiais vesse presente em todos os lugares – munal. A verdadeira tarefa revolucio-
para executar as decisões. não somente no Comitê Central, mas nária consistia em assegurar ao prole-
O restante da infantaria não que- também nas legiões, nos batalhões, tariado o Poder em todo o país. Paris
ria retroceder para Versalhes. Os vín- nas camadas mais profundas do pro- deveria servir de base, de ponto de
culos que ligavam oficiais e soldados letariado francês. Por meio dos Con- apoio, de praça de armas. Para alcan-
eram muito frágeis. E se existisse em selhos de Deputados, que, neste caso, çar este objetivo era necessário derro-
Paris um centro dirigente de partido, eram órgãos da Guarda Nacional, o tar Versalhes sem perda de tempo e
haveria ele introduzido entre as tro- partido poderiaestar continuamente enviar por toda a França agitadores,
pas em retirada – tendo em vista que em contato com as massas, monito- organizadores, forças armadas. Era
havia a possibilidade de retirada – al- rando dessa forma o seu Estado de necessário entrar em contato com
gumas centenas ou pelo menos algu- ânimo; seu centro dirigente pode- os simpatizantes, convencer aos que
mas dezenas de operários leais, aos ria lançar diariamente palavras de duvidavam e quebrar a oposição dos
quais seriam dadas instruções para ordem que os militantes do partido adversários. Mas, em vez desta polí-
alimentar o descontentamento dos difundiriamentre as massas, unindo tica de ofensiva e agressão, a única
soldados contra os oficiais e aprovei- seu pensamento e sua vontade. que poderia salvar a situação, os di-
tar o primeiro momento psicológico Mal o governo havia se retirado rigentes de Paris tentaram se limitar
favorável para liberar a tropa de seus para Versalhes, a Guarda Nacional à sua autonomia comunal: eles não
comandantes e conduzi-la a Paris já se apressou a declinar de toda atacariam aos demais se estes não os
para se unir ao povo. Teria sido fácil responsabilidade, precisamente atacassem; cada cidade deveria re-
fazer isso, segundo confessaram até quando esta responsabilidade era cuperar o sagrado direito de autogo-
mesmo os partidários de Thiers. Mas enorme. O comitê central imaginou verno. Esta tagarelice idealista – uma
ninguém pensou nisso. Não havia eleições “legais” para a Comuna. espécie de anarquismo mundano

38
Leon Trotsky

– camuflava na realidade a covardia de um objetivo através da disciplina,


ante uma coalizão revolucionária que melhor e mais rapidamente pode re-
havia necessidade de se levar até suas alizar sua missão.
últimas conseqüências, pois, de outra A dificuldade consiste em ligar
forma, não se deveria ter começado... estreitamente esta organização cen-
A hostilidade a uma organização tralizada de partido, soldada intima-
centralizada – uma herança do lo- mente por uma disciplina de ferro,
calismo e do autonomismo peque- ao movimento das massas, com seus
no-burguês – é, sem sombra de dú- fluxos e refluxos. Não se pode con-
vidas, o ponto débil de certa fração quistar o poder sem uma poderosa
do proletariado francês. Para alguns pressão revolucionária das massas
revolucionários, a autonomia das trabalhadoras. Mas, nesta ação, o
sessões, dos bairros, dos batalhões, elemento preparatório é inevitável. E
das cidades, é a suprema garantia da quanto melhor compreenda o partido
verdadeira ação e da independência a conjuntura e o momento, melhor
individual. Mas isto não foi mais que preparadas estarão as bases de apoio,
um grande erro que custou muito melhor repartidas estarão as forças Barricada durante a Comuna de Paris, André Devambez.
caro ao proletariado francês. e seus objetivos, mais seguro será o
Sob a forma de “luta contra o cen- êxito e menos vítimas causará. A cor- A manifestação armada das jorna-
tralismo despótico” e contra a disci- relação entre uma ação cuidadosa- das de julho foi uma vasta verificação
plina “asfixiante” livra-se um comba- mente preparada e o movimento de que fez o partido para sondar o grau
te pela autopreservação dos diversos massas é a tarefa político-estratégica de união no seio das massas e a capa-
grupos e subgrupos da classe operá- da tomada do poder. cidade de resistência do inimigo. Esta
ria, por seus mesquinhos interesses, A comparação entre o 18 de mar- verificação se transformou em luta de
com seus pequenos líderes de bairro ço de 1871 e o 7 de novembro de postos avançados. Fomos rechaçados,
e seus oráculos locais. A classe ope- 1917 é, a partir deste ponto de vis- mas, ao mesmo tempo, mediante a
rária em sua totalidade, embora con- ta, muito instrutiva. Em Paris, hou- ação, se estabeleceu a conexão entre
serve a originalidade de sua cultura e ve absoluta falta de iniciativa para a o partido e as mais amplas massas.
seus matizes políticos, pode agir com ação por parte dos círculos dirigentes Durante os meses de agosto, setembro
método e firmeza, sem ir a reboque revolucionários. O proletariado ar- e outubro desenvolveu-se um pode-
dos acontecimentos e dirigindo seus mado pelo governo burguês era, de roso fluxo revolucionário. O partido
golpes mortais contra os pontos fra- fato, dono da cidade e dispunha de o aproveitou e aumentou de maneira
cos do inimigo, desde que esteja sen- todos os meios materiais do poder considerável seu apoio no seio da clas-
do liderada, acima de bairros, seções – canhões e fuzis – mas não se deu se operária e da guarnição. Depois,
e grupos, por um aparelho centraliza- conta disso. A burguesia fez uma ten- a harmonia entre os preparativos da
do e unido por uma disciplina férrea. tativa de arrebatar a esse gigante suas conspiração e a ação de massas foi
O partido não cria a revolução ao armas: tentou roubar do proletariado quase automática. O Segundo Con-
seu gosto, não escolhe conforme lhe seus canhões. Mas fracassou na tenta- gresso dos Sovietes foi marcado para
convém o momento para tomar o tiva. O governo fugiu aterrorizado de 7 de novembro. Toda nossa agitação
poder, mas intervém ativamente em Paris a Versalhes. O campo estava li- anterior devia conduzir à tomada do
todas as circunstâncias, monitora a vre. Mas o proletariado só se deu con- poder pelo Congresso.
todo o momento o Estado de ânimo ta de que era o amo de Paris no dia O golpe de Estado ficou marcado
das massas e avalia as forças do ini- seguinte. Os “chefes” iam a reboque para 7 de novembro. Tratava-se de
migo, determinando assim o momen- dos acontecimentos, tomavam nota um fato perfeitamente conhecido e
to propício para a ação definitiva. deles somente quando já se haviam compreendido pelo inimigo. Por isso,
Esta é a mais difícil de todas as suas produzido e faziam de tudo para res- Kerensky e seus conselheiros tenta-
tarefas. O partido não conta com tringir o alcance revolucionário. ram consolidar sua posição em Pe-
soluções que valham para todos os Em Petrogrado, os acontecimen- trogrado, na medida do possível, face
casos. Necessita de uma teoria justa, tos se desenvolveram de forma muito ao momento decisivo. Sobretudo, ne-
de um contato estreito com as mas- diferente. O partido caminhava firme cessitavam retirar da capital o setor
sas, de uma certeira compreensão da e decidido para a conquista do poder. mais revolucionário da guarnição. De
situação, de uma visão revolucioná- Distribuiu seus militantes por todas nossa parte, aproveitamo-nos desta
ria e de uma grande firmeza. Quan- as partes, reforçando todas as posi- tentativa de Kerensky para derivar
to mais profundamente penetrar ções e aproveitando todas as ocasiões dela um novo conflito que teve im-
um partido revolucionário em todas para aprofundar a brecha entre os portância decisiva. Acusamos aber-
as esferas da luta revolucionária e operários e a guarnição, de um lado, tamente ao governo de Kerensky – e
quanto mais unido estiver em torno e o governo, de outro. nossa acusação se viu depois confir-

39
Lições da Comuna de Paris

mada por escrito em um documento acreditava que ainda não havia Ninguém acreditava já na guerra con-
oficial – de planejar o afastamento de chegado o momento de agir, que tra a Alemanha, e mesmo os soldados
um terço da guarnição de Petrogra- Petrogrado encontrar-se-ia iso- menos inclinados para a revolução
do, não por considerações de ordem lada do restante do país, que os não queriam mais marchar ao front.
militar e sim por interesses contrar- proletários não contariam com o E embora somente por esta razão a
revolucionários. O conflito fez com apoio dos camponeses, etc. guarnição inteira estivesse do lado
que estreitássemos ainda mais nossas Outros camaradas acreditavam dos operários, ela se reafirmava cada
relações com a guarnição e implicou que não prestávamos atenção sufi- vez mais em sua decisão à medida
em que esta última se colocasse uma ciente aos detalhes do complô militar. que se tornavam conhecidas as ma-
tarefa bem definida: apoiar o Con- Em outubro, um dos membros do quinações de Kerensky. Mas o estado
gresso dos Sovietes marcado para 7 Comitê Central exigia que se cercasse de ânimo da guarnição de Petrogrado
de novembro. E, visto que o gover- o Teatro Alexandrina, sede da Confe- tinha uma causa ainda mais profun-
no insistia – embora de forma pouco rência Democrática, e que se procla- da na situação do campesinato e no
enérgica – em que a guarnição fosse masse a ditadura do Comitê Central desenvolvimento da guerra imperia-
afastada, com o pretexto de se verifi- do Partido. Ele disse: “ao concentrar lista. Se a guarnição tivesse se dividi-
car as razões militares do projeto go- nossa agitação, bem como o nosso do e Kerensky tivesse a oportunidade
vernamental, criamos no Soviete de trabalho de preparação militar para o de se apoiar em alguns regimentos,
Petrogrado, que já dominávamos, um momento do 2º Congresso, estamos nosso plano teria fracassado. Os ele-
Comitê revolucionário de guerra. mostrando o nosso plano para o ad- mentos puramente militares do com-
Desta forma, dotamo-nos de um versário, estamos dando a ele a possi- plô (conspiração e grande rapidez na
órgão puramente militar, à cabeça bilidade de preparar-se e até mesmo ação) teriam prevalecido. E fica claro
das tropas de Petrogrado, que era re- de aplicar-nos um golpe preventivo”. que teria sido necessário escolher ou-
almente um instrumento legal de in- Mas não há dúvidas de que a tenta- tro momento para a insurreição.
surreição armada. Ao mesmo tempo, tiva de um complô militar e o cerco A Comuna também teve a possi-
nomeamos comissários (comunistas) do Teatro Alexandrina teriam sido bilidade de se apoderar dos regimen-
em todas as unidades militares, nos elementos alheios ao desenvolvimen- tos, inclusive daqueles formados por
arsenais militares, etc. A organização to dos acontecimentos que teriam camponeses que haviam perdido to-
militar clandestina executava as tare- provocado o desconcerto das massas. talmente a confiança e o respeito pelo
fas técnicas especiais e proporcionava Inclusive no Soviete de Petrogrado, poder e por seus comandantes. Con-
ao Comitê Revolucionário de Guerra em que nossa fração era majoritária, tudo, nada fez nesse sentido. A culpa
militantes de plena confiança para uma ação que se antecipasse ao de- não deve ser lançada às relações entre
as operações militares de grande im- senvolvimento lógico da luta não te- os camponeses e a classe operária e
portância. O essencial do trabalho de ria sido compreendida nesse momen- sim à estratégia revolucionária.
preparação e de realização da insur- to, sobretudo no seio da guarnição, O que pode acontecer nesse senti-
reição armada era feito abertamente, na qual ainda havia alguns regimen- do na Europa atual? Não é nada fácil
com um método e uma naturalidade tos que hesitavam e nos quais não se de prever. Contudo, levando em con-
que a burguesia, com Kerensky à ca- podia confiar, principalmente a cava- sideração que os acontecimentos se
beça, mal percebeu o que se passava laria. A Kerensky ter-lhe-ia resultado desenvolvem lentamente e que os go-
debaixo de seus próprios narizes. (Em muito mais fácil esmagar um complô vernos burgueses aprenderam bem a
Paris, o proletariado somente compre- inesperado para as massas que ata- lição, é de prever que o proletariado
endeu que era o dono da situação ime- car a guarnição, e ter-lhe-ia permiti- terá que superar grandes obstáculos
diatamente após sua vitória real, uma do consolidar-se muito mais em sua para ganhar a simpatia dos soldados
vitória que, por outro lado, não havia posição: a defesa de sua inviolabili- no momento preciso. Será necessá-
buscado conscientemente. Em Petro- dade em nome do futuro Congresso rio que a revolução realize um ata-
grado, foi o contrário. Nosso partido, dos Sovietes. A maioria do Comitê que hábil no momento adequado. O
com o apoio dos operários e da guar- Central rejeitou com razão o plano dever do partido é preparar-se para
nição, apoderou-se do poder, e a bur- de cerco à Conferência Democráti- isso. Justamente por essa razão de-
guesia, que passou uma noite bastante ca. A conjuntura havia sido avaliada verá conservar e acentuar seu cará-
tranquila, somente se deu conta à luz perfeitamente: a insurreição armada, ter de organização centralizada que,
do dia de que o governo se encontrava com um mínimo de derramamento dirigindo abertamente o movimento
já nas mãos de seus coveiros.) de sangue, triunfou precisamente no revolucionário das massas, é, ao mes-
No que dizia respeito à estratégia, dia que havia sido marcada, de forma mo tempo, um aparato clandestino
deram-se em nosso partido muitas di- prévia e aberta, para a convocação do para a insurreição armada.
vergências de opinião. 2º Congresso dos Sovietes. A questão da elegibilidade do co-
Como se sabe, parte do Comi- Contudo, essa estratégia não mando foi um dos motivos do confli-
tê Central declarou-se em opo- pode ser convertida em norma geral, to entre a Guarda Nacional e Thiers.
sição à tomada do poder, pois necessitou de condições específicas. Paris se recusou a aceitar o comando

40
Leon Trotsky

designado por Thiers. Varlin formu- a revolução seria esmagada pelo ini- privando-se por isso de um poderoso
lou imediatamente a reivindicação migo, que aprendeu a escolher seus centro dirigente revolucionário. Por
de que todos os comandos da Guarda comandantes durante séculos. Os mé- essa razão, foi esmagada.
Nacional, sem exceção, fossem elei- todos de democracia formal (a simples Podemos folhear página por pági-
tos pelos próprios guardas nacionais. elegibilidade) devem ser complemen- na toda a história da Comuna e encon-
Foi esse o principal apoio do Comitê tados e, em certa medida, substituídos traremos uma só lição: é necessária
Central da Guarda Nacional. por medidas de seleção de cima para a enérgica direção de um partido. O
Esta questão deve ser considerada baixo. A revolução deve criar uma es- proletariado francês se sacrificou pela
a partir de duas perspectivas: a polí- trutura composta de organizadores Revolução como nenhum outro o fez.
tica e a militar. Ambas estão relacio- experientes, seguros, merecedores de Mas também foi enganado mais que
nadas entre si, mas é necessário dife- uma confiança absoluta, dotada de outros. A burguesia o deslumbrou
renciá-las. A tarefa política consistia plenos poderes para escolher, designar muitas vezes com todas as cores do re-
em depurar a Guarda Nacional dos e educar o comando. Se o particula- publicanismo, do radicalismo, do so-
comandos contrarrevolucionários. O rismo e o autonomismo democrático cialismo, para melhor aprisioná-lo nas
único meio para conseguir isto era a são extremamente perigosos para a correntes do capitalismo. Por meio de
total elegibilidade, visto que a maioria revolução proletária em geral, são seus agentes, de seus advogados e de
da Guarda Nacional estava composta ainda dez vezes mais perigosos para seus jornalistas, a burguesia colocou
por operários e pequeno-burgueses o exército. Isto nos demonstrou o uma grande quantidade de fórmulas
revolucionários. Ainda mais, o lema exemplo trágico da Comuna. democráticas, parlamentares, autono-
da elegibilidade devia ser estendido O Comitê Central da Guarda Na- mistas, que não são mais do que gri-
também à infantaria. De um só gol- cional baseava sua autoridade na ele- lhões com os quais ata os pés do prole-
pe Thiers teria sido privado de sua gibilidade democrática. Mas quando tariado e que o impedem de avançar.
principal arma, a oficialidade con- teve necessidade de desdobrar ao má- O temperamento do proleta-
trarrevolucionária. Mas para realizar ximo sua iniciativa na ofensiva, sem a riado francês é como uma lava
este plano ao proletariado lhe faltava direção de um partido proletário per- revolucionária. Mas, por ora,
um partido, uma organização que deu o rumo e se apressou em trans- está coberta com as cinzas do
dispusesse de adeptos em todas as mitir seus poderes aos representantes ceticismo, que resultou de mui-
unidades militares. Em uma palavra, da Comuna, que necessitava de uma tos enganos e desencantos. Por
a elegibilidade, neste caso, não tinha base democrática mais ampla. E brin- essa razão, os proletários revo-
como objetivo imediato dotar os bata- car de eleições foi o grande erro nesse lucionários da França devem ser
lhões de comandos adequados, e sim momento. Mas, uma vez celebradas mais severos com seu partido e
de liberá-los do comando dependente as eleições e reunida a Comuna, teria denunciar sem desculpas toda
da burguesia. Teria funcionado como sido necessário que ela mesma criasse discrepância entre as palavras e
uma cunha para dividir o exército em um órgão que concentrasse o poder os fatos. Os operários franceses
duas partes, ao longo de uma linha de real e reorganizasse a Guarda Nacio- necessitam de uma organização
classe. Assim sucederam as coisas na nal. Mas não foi assim. Junto à Co- para a ação, forte como o aço,
Rússia na época de Kerensky, sobretu- muna eleita estava o Comitê Central, com dirigentes controlados pelas
do às vésperas de Outubro. cujo caráter eletivo lhe conferia uma massas em cada nova etapa do
Mas quando o exército se libera do autoridade política graças à qual po- movimento revolucionário.
antigo aparato de comando inevita- dia enfrentar àquela. Ao mesmo tem- Quanto tempo nos concederá a
velmente se produzem a fragilização po, via-se assim privado da energia e história para nos prepararmos? Não
da união em suas fileiras e a redução da firmeza necessárias nas questões o sabemos. Durante 50 anos a bur-
de seu espírito de combate. O novo puramente militares que, depois da guesia francesa manteve o poder em
comando eleito é freqüentemente bas- organização da Comuna, justificavam suas mãos, depois de ter erigido a
tante débil no terreno técnico-militar e sua existência. A elegibilidade, os mé- Terceira República sobre os cadáveres
no que diz respeito à manutenção da todos democráticos não são mais que dos comunardos. Àqueles lutadores
ordem e da disciplina. De forma que, uma das armas à disposição do prole- de 1871 não faltou heroísmo. O que
quando o exército se libera do velho tariado e de seu partido. A elegibilida- lhes faltou foi claridade de métodos e
comando contrarrevolucionário que de não pode ser de forma alguma um direção organizada e centralizada. Por
antes o oprimia, surge a questão de fetiche, uma panacéia contra todos os essa razão foram derrotados. Metade
dotá-lo de um comando revolucioná- males. É necessário combiná-la com de um século se passou antes que o
rio capaz de cumprir sua missão. E as designações. Mas, uma vez criada proletariado francês pudesse colocar
este problema não pode ser resolvido a Comuna, dever-se-ia reorganizar como meta a vingança pela morte dos
simplesmente através de eleições. An- toda a Guarda Nacional com mão comunardos. Mas agora intervirá de
tes que a grande massa de soldados firme, dotá-la de comando seguro forma mais firme, mais concentrada.
pudesse adquirir experiência suficien- e instaurar um regime disciplinar Os herdeiros de Thiers terão que pa-
te para selecionar seus comandantes, muito severo. A Comuna não o fez, gar a dívida histórica, integralmente.

41
Keynes está morto! Os reformistas
não o ressuscitarão
Antonio Erpice

As ideias de Keynes são hegemô-


nicas nas organizações do movimen-
to operário e da esquerda reformis-
ta1. Os partidos e sindicatos criticam
a austeridade e propõem políticas
redistributivas com a ilusão de que o
capitalismo pode voltar ao esplendor
dos anos 1960. Assim é com o plano
de investimento público proposto por
Mélenchon na França e com o progra-
ma do Partido Trabalhista de Corbyn
ou do Podemos na Espanha. O ex-mi-
nistro grego Varoufakis, a fim de sair
da crise e reformar a União Europeia,
propõe um New Deal europeu.
Dez anos após a crise mais impor-
tante que o capitalismo já experimen-
tou, os reformistas se limitaram às
críticas ao chamado neoliberalismo
ou ordoliberalismo2 alemão e sua in-
fluência na Europa. Uma abordagem
parcial e subalterna que serve somen-
te para confundir, considerando que
nessa frequência já foi possível du- John Maynard Keynes. Foto: National Portrait Gallery
rante algum tempo ouvir os governos
definidos como populistas e sobera- os primeiros anos da crise. Foi Roo- traria para a história como o prin-
nistas agitando demagogicamente a sevelt, chegado à Casa Branca em cipal campo de experimentação das
crítica à austeridade. 1933, quem se afastou da ortodoxia políticas keynesianas em tempos de
A ideia de que as organizações clássica em matéria econômica. Com crise.4 Foi de fato o economista bri-
de esquerda podem ter sua própria o New Deal ele lançou uma interven- tânico que sistematizou uma teoria
credibilidade dando indicações so- ção maciça para combater a queda que rompeu com a tradição clássica
bre como salvar o capitalismo diz dos preços na indústria e na agricul- e o laissez-faire e propôs um pa-
muito sobre a clareza necessária so- tura; ele instituiu uma política social pel ativo dos Estados para reagir à
bre este tema, a partir do contexto para apoiar os desempregados e os Grande Depressão.
em que as teorias keynesianas fo- pobres e criou empregos através do Keynes foi um expoente da elite in-
ram elaboradas. lançamento de obras públicas. telectual de Cambridge, trabalhou no
O New Deal, como políticas simi- Ministério do Tesouro e, no início do
Keynes e a crise de 1929 lares seguidas em vários países eu- pós-guerra, participou da delegação
ropeus, foi principalmente uma ten- americana à Conferência de Paris, a
A crise de 1929 e a Grande De- tativa de salvar o capitalismo de sua qual abandonou em protesto contra as
pressão atordoaram a maioria dos ruína. A intervenção direta do Esta- cláusulas de reparação impostas à Ale-
economistas. Não só não tinham sido do na economia foi um fato gene- manha, que ele considerava excessivas
capazes de prever o que ficaria na ralizado na década de 1930 (e não e impossíveis de sustentar. Para Keynes,
história como a maior crise do capi- apenas) e se manifestou de diferen- ao contrário dos economistas clássicos,
talismo, mas não tinham nenhuma tes maneiras tanto em governos de- pode haver casos de escassez de de-
teoria para lidar com ela. Quase to- mocráticos, como a Frente Popular manda. Em outras palavras, Keynes
dos eles argumentaram que o melhor na França, quanto em países como a criticou a Lei de Say, segundo a qual
a fazer era não fazer nada e esperar Alemanha nazista e a Itália fascista. a oferta sempre criaria uma demanda
que o equilíbrio se restabelecesse. Ainda que as ideias de Keynes e equivalente, o que implica a ausência
O presidente dos Estados Unidos, Roosevelt3 não coincidissem total- de fases de recessão e a tendência na-
Hoover, se agarrou a isso durante mente, o New Deal americano en- tural do capitalismo para o equilíbrio.

42
Antonio Erpice

do de 1929.6 Mais importante ainda,


entre 1937 e 1938 houve uma nova
e pesada recessão. Embora os keyne-
sianos tendam a mistificar os anos
1930, nenhuma das contradições do
capitalismo da época foi resolvida e
a década foi caracterizada por abso-
luta instabilidade econômica e polí-
tica. Ao contrário da crença popular,
não foram as políticas keynesianas
que tiraram os Estados Unidos da
crise de superprodução em que o ca-
pitalismo se encontrava.
Como explicou Trotsky: “A força
industrial, financeira e militar dos
Estados Unidos, a principal potência
capitalista do mundo, não consegue
assegurar o desenvolvimento da vida
econômica americana, mas, ao con-
trário, atribui à crise de seu sistema
social um caráter particularmente
maligno e convulsivo. Não se pode
encontrar ocupação nem para os bi-
lhões de dólares nem para os milhões
de desempregados! (...) As políticas
de New Deal e Good Neighbor [Boa
Vizinhança] foram as últimas tentati-
vas de retardar a explosão, mitigando
a crise social através de concessões e
acordos. Após a falência desta polí-
tica que engoliu dezenas de bilhões,
não restava nada para o imperialismo
americano a não ser recorrer ao mé-
todo do punho de ferro. Sob qualquer
pretexto e sob qualquer palavra de
Fila em cozinha comunitária de sopas durante a grande depressão - 1936. Foto: National Archives ordem, os Estados Unidos intervirão
neste tremendo confronto para man-
Segundo o economista britânico, política industrial e da regulação dos ter seu domínio mundial”.7
pelo contrário, o ponto de partida é mercados financeiros5. Estas medi- Foi o início da guerra que mudou
a demanda efetiva que determina a das, mesmo que feitas em déficit e radicalmente a situação e permitiu
produção e o emprego. Uma queda recorrendo à dívida pública, podem que os Estados Unidos reafirmassem
na demanda efetiva leva a uma di- movimentar a poupança não-investi- sua hegemonia sobre o Ocidente.
minuição na capacidade de produ- da do setor privado. Apoiando uma Claramente, a economia de guerra,
ção e, portanto, menos pessoas são das variáveis da demanda agregada primeiro com a produção de armas
empregadas do que seria possível, (consumos, gastos públicos e inves- e depois com a entrada no conflito,
ou seja, ocorre um equilíbrio de su- timentos) cria-se o que no keynesia- garantiu a intervenção do Estado e o
bemprego. Nesses casos, ao invés de nismo é chamado de efeito multipli- uso de instalações de produção além
esperar a tempestade passar, consi- cador, ou seja, um aumento adicional de todas as expectativas, com efeitos
derando a crise como um fenôme- da renda nacional maior do que os óbvios sobre a reabsorção dos desem-
no temporário, os governos devem custos das políticas implementadas. pregados. De 1939 a 1944, o produto
intervir diretamente para aumentar Apesar da relativa melhora, no nacional bruto nos EUA quase do-
o nível de investimento, apoiando a ano em que Keynes publicou a Te- brou, sendo o preço a carnificina que
demanda e o emprego. oria Geral do Emprego, dos Juros e todos nós conhecemos.
O Estado pode intervir através da Moeda, após quatro anos do New Foi a enorme destruição das for-
da política fiscal, que para os keyne- Deal, 17% da força de trabalho ame- ças produtivas causada pelo conflito
sianos é considerada o instrumento ricana ainda estava desempregada que criou as condições para o boom
prioritário, da política monetária, da e o Produto Interno Bruto era 95% econômico após a Segunda Guer-

43
Keynes está morto! Os reformistas não o ressuscitarão

ra Mundial e permitiu aos Estados o teórico ao qual se agarrar para unidas, estes efeitos não desapare­
Unidos financiar a reconstrução com poder realizar propostas compatí- ceram até 1958.
empréstimos e ajuda aos países eu- veis com o sistema e propor uma 3) O plano Marshall e outras
ropeus. Um contexto que fortaleceu versão do capitalismo purgado ajudas econômicas ajudaram na re­
as receitas de Keynes, que no final da de suas distorções mais óbvias. cuperação da Europa Ocidental.
Segunda Guerra Mundial se tornou No entanto, o keynesianismo foi 4) O enorme aumento dos inves­
um dos economistas mais influentes apoiado pelos partidos de direita e timentos na indústria.
do mundo. esquerda, tanto que mesmo o con- 5) O surgimento de novas indús­
servador Nixon veio a declarar, no trias: plásticos, alumínio, misseis,
O boom do pós-guerra e o “Estado período de aplicação máxima das eletrônica, energia atômica, com
keynesiano” políticas expansivas, que “somos seus subprodutos.
todos keynesianos”. 6) A crescente produção das novas
O período pós-guerra foi carac- Na realidade, foi o espetacular indústrias: produtos químicos, fibras
terizado por uma importante in- boom dos “trinta anos gloriosos”, sintéticas, borracha sintética, plásticos,
tervenção do Estado na economia. que provavelmente será lembra- o rápido aumento dos metais leves,
Na Itália, por exemplo, no final do como uma exceção irrepetível alumínio, magnésio, eletrodomésticos,
dos anos 1960, 30% da indústria na história do capitalismo, e não gás natural, eletricidade, construção.
e 70% dos bancos eram públicos e a hegemonia da escola keynesia- 7) A enorme quantidade de ca­
em diferentes níveis esse processo na que garantiu as políticas redis- pital fictício criado pelos gastos com
abrangia também outros países. tributivas. O enorme crescimento armamentos, que na Grã-Bretanha
O keynesianismo, após a Segunda dos lucros permitiu que uma parte e nos Estados Unidos representam
Guerra Mundial, não apenas se tor- pudesse ser usada para dar algu- 10% da renda nacional.
nou a teoria dominante, mas pas- mas migalhas aos trabalhadores. 8) Os novos mercados para bens
sou de uma resposta de emergência Também não deve ser esquecido de capital e produtos mecânicos
à crise para a correção permanente o lado político da história: o Es- criados pelo enfraquecimento do
do ciclo econômico. A ilusão de po- tado social desde seu início não é imperialismo nos países subdesen­
der controlá-lo era tal que muitas filho de um improvável capitalis- volvidos, o que proporcionou às bur­
pessoas (incluindo alguns autode- mo progressista com um rosto hu- guesias locais a oportunidade de de­
nominados marxistas) teorizavam mano, mas do medo da revolução. senvolver a indústria em uma escala
uma transformação histórica do Um dos elementos fundamentais maior do que no passado.
capitalismo, purgado de suas dinâ- daquela época foi justamente o 9) Todos esses fatores interagem
micas cíclicas e contradições. crescimento e o fortalecimento uns com os outros. O aumento da
O keynesianismo tornou-se a da classe trabalhadora e de suas demanda por matérias-primas, cau­
nova ortodoxia de uma época em organizações, o que deu origem a sado pelo desenvolvimento da indús­
que era possível garantir cresci- uma época de forte conflito. Entre tria nos países metropolitanos, por
mento econômico sem preceden- outras coisas, o papel da URSS e sua vez, afeta os países subdesenvol­
tes, ampliação, como nunca visto a divisão do mundo em dois blo- vidos e vice-versa.
antes, do estado social, um siste- cos proporcionou um forte impe- 10) O aumento do comércio,
ma de regulação dos mercados e dimento para a aceitação das de- particularmente de bens de capi­
presença da indústria nacionaliza- mandas dos trabalhadores. tal e maquinários, entre países ca­
da em alguns setores da economia, Em um jornal de 1960, o mar- pitalistas, resultante do aumento
especialmente naqueles onde não xista britânico Ted Grant escreveu: dos investimentos, é, por sua vez,
era possível garantir lucros a cur- “Quais são então as razões bási­ um estímulo.
to prazo ou onde havia uma forte cas para o desenvolvimento da eco­ 11) O papel da intervenção do
necessidade de modernização. O nomia do pós-guerra? Estado no estímulo à economia.8
compromisso keynesiano, haveria 1) O fracasso político dos esta­ Este último elemento certamen-
de se dizer, foi capaz de garantir linistas e dos social-democratas na te serviu para estender e prolongar
o crescimento dos salários e do Grã-Bretanha e na Europa Ociden­ o boom. O fator decisivo, entre-
consumo, mantendo a especula- tal criou o clima político para uma tanto, como o texto citado explica
ção sob controle e a inflação sob recuperação do capitalismo. mais adiante, foi o desenvolvimen-
controle. Foi nesse contexto, nos 2) Os efeitos da guerra, com a to de investimentos produtivos a
anos 1960, que a idéia de que o destruição dos bens de consumo fim de expandir e modernizar a
keynesianismo era uma política de e do capital, criaram um grande capacidade produtiva. No sistema
reforma em apoio aos trabalhado- mercado (a guerra tem efeitos se­ capitalista, de fato, os investimen-
res foi reforçada. melhantes, mas mais profundos, tos de capital são o principal motor
A esquerda reformista conse- a uma crise na destruição do ca­ do desenvolvimento e mesmo que
guiu assim encontrar em Keynes pital). De acordo com as nações o Estado controle parte da econo-

44
Antonio Erpice

mia, as leis fundamentais do capi- siana foi incorporada à chamada Keynes está de volta?
talismo permanecem as mesmas. síntese neoclássica e Keynes foi
As intervenções do Estado ob- demitido. Um esquema ao qual Com a eclosão da crise, a maio-
viamente tiveram um custo, com os mesmo os mais inescrupulosos e ria dos economistas keynesianos
orçamentos estatais tendendo cada oportunistas líderes reformistas tentaram uma vingança sobre seus
vez mais a ficar em defasagem e a se alinharam, passando com suas rivais, acusando a economia orto-
explosão da dívida pública desde armas e bagagens para o novo doxa de ser, por sua vez, respon-
os anos 70. Os Estados se financia- credo do capital. sável pela crise. Assim, mais uma
ram imprimindo papel-moeda, o Foi uma evidente inversão de vez os polos se inverteram, mas a
que provocou a explosão da infla- direção, mas só superficialmen- tentativa de propor políticas ke-
ção, acompanhada pela primeira te se pode afirmar que o papel ynesianas em grande escala caiu
vez por uma economia estagnada: do Estado na economia desa- em ouvidos moucos.
um quadro que não poderia existir pareceu completamente, como Alguns citam o “American Reco-
nas teorizações dos keynesianos.9A reclamam os keynesianos. Na very and Reinvestment Act” apro-
tentativa de controlar o capitalis- verdade, os gastos públicos nas vado por Obama em fevereiro de
mo transformou-se em seu oposto; últimas décadas continuaram a 2009, com seus 800 bilhões de
a crise de 1973 colocou novamen- crescer, assim como a dívida pú- investimento, como um exemplo
te à prova as receitas keynesianas, blica, tornando-se característica da política keynesiana, mas na re-
sem os resultados desejados. Em do capitalismo contemporâneo alidade economistas keynesianos
meados dos anos 70, o desempre- e de sua decadência. Obviamen- como Krugman e Stiglitz o descre-
go, que havia sido baixo nas déca- te, o que tem sido cortado são veram como insuficiente para res-
das anteriores, começou a crescer os gastos com o Estado social ponder à profundidade da crise. O
e as intervenções canônicas da e com o apoio aos rendimentos crescimento registrado nos Estados
escola keynesiana não tiveram os mais baixos. A interferência do Unidos nos últimos anos, mais do
efeitos esperados. O canto do cisne Estado tem estado inteiramente que depender das políticas keyne-
foi representado pelo fracasso de a serviço do máximo lucro para sianas, é resultado da exploração
Mitterrand na França e sua rendi- o capital privado. da classe trabalhadora cujos salá-
ção às políticas de austeridade em Precisamente por esta razão, rios estão estagnados e não cres-
1983, depois de ter tentado por al- o apelo por mais Estado e menos ceram desde 1997. A eleição de
guns anos colocar em prática seu mercado na economia por si mes- Trump é, além disso, a expressão
programa keynesiano. mo não significa nada, tampouco de uma profunda crise na socieda-
uma política de apoio à classe de americana e sua hegemonia em
A virada da década de 1980 trabalhadora, e só revela a ilu- nível internacional.
são daqueles que o propõem. Em Nem mesmo deste lado do
A eclosão da crise nos anos 1970 alguns países, incluindo a Itália Atlântico, mesmo que mais tarde
estilhaçou a hegemonia keynesiana, e o Japão, o Estado tem desem- do que nos Estados Unidos, falta-
que agora era acusada pela escola mo- penhado um papel decisivo no ram os estímulos. As instituições
netarista de ser responsável pela crise. desenvolvimento do capitalismo europeias intervieram em vá-
O roteiro se repetia ao contrário do e sua intervenção na economia rias ocasiões para salvar os ban-
que havia acontecido anteriormente. para apoiar a indústria privada cos, imprimindo dinheiro com o
Para a teoria neoclássica, a explosão tem sido uma constante de vá- “Quantitative Easing” para o valor
da inflação foi devida às tentativas rias formas. astronômico de mais de € 2 tri-
dos governos keynesianos de forçar o O capitalismo no Ocidente não lhões, sem que isso tivesse qual-
desemprego abaixo da “taxa natural”. tem mais visto crescimento igual quer efeito significativo. Em todo
A teoria monetarista foi obviamente ao dos “trinta anos gloriosos”. A caso, a questão central é que ne-
a melhor justificativa teórica dada à economia global nos anos 1980 e nhum país europeu com as atuais
classe dominante para atacar frontal- 1990 foi capaz de crescer devido taxas de crescimento, que nas últi-
mente os sindicatos e a classe traba- a uma combinação de fatores: a mas décadas são um terço das que
lhadora e tornar o mercado lucrativo. expansão do mercado na Rússia, existiam no boom do pós-guerra,
As condições econômicas tornaram Europa Oriental e China com sua pode arcar com uma verdadeira
o compromisso keynesiano não mais mão-de-obra barata, o aumento política keynesiana, sobretudo
possível. Um corolário dessa aborda- da exploração da classe trabalha- porque uma política deficitária
gem foi a privatização dos setores pú- dora após a derrota sofrida pelo aumentaria ainda mais o já eleva-
blicos da economia e a desregulamen- movimento trabalhista e o uso do endividamento dos Estados e o
tação dos sistemas financeiros. maciço do crédito que expandiu risco de calote sem uma real saída
No campo pragmático dos eco- artificialmente o mercado e adiou da crise. A experiência do Japão,
nomistas, parte da teoria keyne- a crise até o surto de 2007. em que durante anos todos os ti-

45
Keynes está morto! Os reformistas não o ressuscitarão

pos de tentativas de políticas de- aumento na propensão de poupar. produzir explorando ao máximo
ficitárias foram feitas, prova isso. O acúmulo excessivo de economias as forças produtivas, inundando
Até hoje, o único país que pode é na verdade para Keynes uma das o mercado com mercadorias, que
arcar com uma política keynesiana manifestações da recessão. A pre- inevitavelmente permanecem não
é a China, que lançou um plano ferência pela liquidez, que é um vendidas e o lucro não realizado.
sem precedentes de investimento dos sintomas de incerteza, coloca A incapacidade de transformar
público em infraestrutura, mas não o investimento em segundo lugar os bens produzidos em lucro é o
só isso. Eles também ativaram um para manter o dinheiro para fins principal elemento que causa a su-
plano para oferecer crédito fácil de precaução. Com o declínio dos perprodução e, portanto, a crise.
que corre o risco de aumentar as investimentos surge uma crise na A confiança do investidor, os “ani-
contradições da economia do país demanda efetiva e com ela ocorre mal spirits” e todas as motivações
com o aumento da dívida pública e também um colapso no consumo e idealistas e subjetivistas que en-
privada. O recurso ao crédito, em- no emprego. Toda a Teoria Geral contram espaço na teoria keyne-
bora tenha por enquanto salvado visa encontrar soluções para ga- siana são substituídos na teoria de
a economia chinesa, está produ- rantir que o nível de investimento, Marx por razões objetivas e mate-
zindo bolhas especulativas e corre que é o motor do crescimento eco- riais que explicam em profundida-
o risco de desencadear uma crise nômico, não entre em colapso. Os de as leis do capitalismo. Não se
mais profunda no futuro. principais remédios identificados trata de ter ou não confiança no
A partir de hoje, portanto, um em contextos de crise econômica futuro, mas da rentabilidade ou
retorno a Keynes é impossível, são dois: reduzir a taxa de juros e não do mercado, um processo que
ainda mais se com isso nos referi- aumentar os gastos públicos. Ke- Marx explicou no terceiro volume
mos, além do apoio à demanda e ynes argumentou que, utilizando de O Capital com a teoria da ten-
aos investimentos, uma política de esses dois instrumentos e através dência à queda da taxa de lucro. O
proteção social. da regulação do mercado, a hu- estímulo keynesiano pode ser útil
manidade garantiria, num perío- a curto prazo, mas por si só não é
Keynes, Marx e as razões da crise do razoável, um futuro sem crises capaz de resolver a crise: na ver-
e sem rentistas.12 dade, ninguém está disposto a in-
É paradoxal o sucesso de Ke- É fato que, segundo Keynes, vestir se já houver uma subutiliza-
ynes à esquerda, especialmente se seria possível alcançar o pleno ção das forças produtivas atuais.
considerarmos que o economista emprego, mas muitas vezes é si-
britânico foi um orgulhoso defen- lenciado o método sugerido para A esquerda revolucionária e a luta
sor dos interesses da burguesia.10 fazê-lo. Para o economista inglês, contra o capitalismo
E notável é a aversão de Keynes a na verdade, como existe uma liga-
Marx11 e sua luta contra os ideais ção entre salários reais e produ- Um setor dominante da burgue-
revolucionários e o bolchevismo. ção, o único remédio para garan- sia e das instituições que a repre-
Keynes e Marx compartilham a tir o pleno emprego é o corte dos sentam, a começar pela União Eu-
tese de que o sistema econômico salários reais. As razões das crises ropéia, apresentam a austeridade
capitalista é instável, no entanto, em Keynes permanecem dentro como inevitável. Isso do ponto de
as razões identificadas por ambos dos limites da economia clássica, vista de seus interesses de classe
são muito diferentes. na medida em que sua manifes- possui sua própria lógica, mas em
O capitalismo para Keynes é um tação é o produto de ineficiências nenhum dos países essas políticas
sistema econômico que pode ten- no sistema que podem ser reme- produziram os resultados deseja-
der para o pleno emprego (que do diadas. Os instrumentos keynesia- dos. Na Grécia, o ataque da Troika
ponto de vista marxista é uma uto- nos de política econômica estão, e a traição de Tsipras tornaram a
pia) e para a melhoria do bem-es- portanto, longe de ser concebi- operação bem-sucedida, mas o pa-
tar social para todos. No entanto, dos como medidas econômicas de ciente está morto.
essa tendência pode ser prejudica- apoio à classe trabalhadora. O massacre social que estão
da por um mau funcionamento do Para Marx, a crise não é o re- levando a cabo, o aumento es-
setor financeiro, o setor de rentis- sultado de uma falta de demanda, pantoso das desigualdades e os
tas. Os “animal spirits”, ou seja, a mas de uma superprodução. Ao ataques às condições de vida de
confiança no futuro dos investido- contrário da economia keynesia- milhões de pessoas demonstram
res, podem ser abalados por estas na, para Marx o coração do capi- o beco sem saída em que se en-
disfunções que criam instabilidade talismo não é representado pelo contra o capitalismo. A crise ob-
e, portanto, recessão. As crises ge- investimento, mas pela busca do viamente reduz os espaços para
ram uma contração na propensão lucro: isto é o que impulsiona os um novo compromisso social e
de investir por parte daqueles que capitalistas a investir. Para maximi- empurra a classe dominante a
possuem recursos monetários e um zar os lucros, os capitalistas devem aprofundar os ataques, mas em

46
Antonio Erpice

geral a recuperação é lenta e os já não existe e nunca mais volta- tirando a poeira de Keynes, mas
investimentos e a produtividade rá. São as condições materiais e a redescobrindo Marx. O rearma-
do trabalho permanecem baixos, falta de margens econômicas que mento ideológico e a delimitação
enquanto a burguesia não tem tornam a possibilidade de refor- do campo do ponto de vista de
fórmulas para apelar a fim de mar o capitalismo mais utópica classe serão fundamentais. A luta
sair da crise. hoje do que ontem. contra a austeridade deve passar
Neste contexto, o resgate do Uma nova esquerda da classe inevitavelmente por mobilizações
keynesianismo é pouco mais do trabalhadora não será capaz de em massa e um programa que vise
que um reflexo de uma época que responder à crise do liberalismo derrubar este sistema.

Notas
1. O debate sobre esse tema, embora reacendido com o surto da crise de 2008, não é novo. Ver “ A utopia keynesiana e a cri­
se orgânica do capital”, disponível no seguinte link: https://old.marxismo.net/crisi-economia/economia/crisi-ecomonica/
lutopia-keynesiana-e-la-crisi-organica-del-capitalismo.
2. Ordo-liberalismo, ou economia social de mercado, é uma escola econômica originada em Friburgo, na Alemanha, nos
anos 1930. O nome vem da revista Ordo, fundada pelo economista Eucken em 1940. Ao contrário do liberalismo clássico,
que considera o mercado como uma realidade autônoma na qual o Estado não deve intervir, o ordoliberalismo argumenta
que um papel ativo do Estado é necessário para garantir a máxima concorrência.
3. Aqueles que se opõem a Keynes tendem a ressaltar que Roosevelt era contra a idéia de gastos deficitários do Estado e
era um defensor, pelo menos em seus primeiros anos de mandato, de um orçamento equilibrado. Entretanto, essa crítica é
secundária em relação ao coração econômico do New Deal e ao papel do Estado na economia.
4. A partir do final de 1934, o Federal Reserve tornou-se o principal centro de influência keynesiana. Em 1938 um grupo de
economistas keynesianos se estabeleceu em Washington em torno do economista Lauchlin Currie. Sobre isto ver: A. Sweezy,
The Keynesians and Government Policy, 1933-1939, em The American Economic Review Vol. 62, No. 1/2 (Mar. 1, 1972),
pp. 116-124.
5. Para mais detalhes sobre esses aspectos, como também sobre outros abordados neste artigo, veja Luca Lombardi, “Il Ke­
ynesismo non può condurci fuori dalla crisi”, disponível no seguinte link: https://old.marxismo.net/economia/economia/
economia/il-keynesismo-non-puo-condurci-fuori-dalla-crisi.
6. Ver J. K. Galbraith, History of Economics, Milão 1988, pp. 216-246.
7. L. Trotsky, Obras Selecionadas, vol. 9, Roma 1997, p. 290.
8. T. Grant, The Long Red Thread, Ac Editoriale, Milão 2007, p. 452.
9. Na teoria keynesiana o desemprego deriva do baixo nível de demanda agregada enquanto a inflação é concebida apenas
em um mercado que atingiu o pleno emprego.
10. No ensaio “Sou um Liberal?” Keynes esclarece sua escolha de campo: “Devo me filiar ao Partido Trabalhista? À primei­
ra vista é mais sedutor, mas visto de perto isso apresenta grandes dificuldades. Para começar, é um partido de classe, e de
uma classe que não é a minha. Se tivesse que perseguir interesses sectários, eu apoiaria os meus. Quando se trata da luta
de classes propriamente dita, meu patriotismo local e pessoal (como o de qualquer outro, exceto por alguns poucos zelotas
relutantes) vai para o meu ambiente: serei influenciado pelo que me parece ser justiça e senso comum, mas a luta de classes
me encontra do lado da burguesia educada” (J. M. Keynes, La fine del laissez-faire e altriscritti, Turim 1991, p. 46).
11. Keynes, em uma carta à Sraffa do dia 5 de abril de 1932, escreveu: “Eu sinceramente tentei ler os volumes de Marx,
mas eu juro que não fui capaz de entender o que você encontrou neles e o que você espera que eu encontre! Eu não encontrei
uma única frase que tenha qualquer interesse por um ser humano dotado de razão. Para os próximos feriados, você deve
me emprestar uma cópia sublinhada do livro”. E de novo, “Mas os princípios do laissez-faire tiveram outros aliados além
dos manuais de economia. Deve-se reconhecer que estes princípios conseguiram entrar na mente dos filósofos e das massas
devido à má qualidade das correntes alternativas – por um lado o protecionismo, por outro o socialismo de Marx. Essas
doutrinas são, em última análise, caracterizadas não só e não tanto pelo fato de contradizerem a presunção geral a favor do
laissez-faire, mas também por sua simples fraqueza lógica. São ambos exemplos de um pensamento pobre e da incapacidade
de analisar um processo levando-o a suas conseqüências lógicas. [...] O socialismo marxista deve permanecer sempre um
mistério para os historiadores do pensamento; como uma doutrina tão ilógica e vazia poderia ter exercido uma influência
tão poderosa e duradoura sobre a mente dos homens e, através deles, sobre os acontecimentos da história” (J. M. Keynes,
The End of Laissez-Faire and Other Writings, cit., pp. 34-35).

47
A revolução gráfica do Maio
Francês de 1968
Daniele Chiavelli

França, 14 de maio de 1968.


Em Paris, a Sorbonne acaba de
ser reocupada por estudantes e
a cidade é atravessada por uma
manifestação oceânica: já come-
çou a greve geral que bloqueará
durante dias todo o país, fazendo
De Gaulle e o capitalismo francês
estremecerem. Na semana ante-
rior, barricadas e confrontos duros
entre estudantes universitários e
policiais inflamaram o distrito da
Sorbonne1. Não muito longe des-
sas ruas, um grupo de jovens, em
sua maioria artistas e estudantes,
decide ocupar o prédio da Rue Bo- Fig. 3
naparte, sede da École Nationale
Supérieure des Beaux-Arts (Escola
Nacional Superior de Belas Artes).
O edifício, com seus equipamentos estilizadas, cromaticamente homo- Os ativistas de Maio se movem em
e teares, logo foi utilizado como gêneas e, se necessário, tomadas outro âmbito: a sociedade deve ser
um laboratório popular a serviço como emblemas, quase sempre questionada e a unidade entre os
da mobilização. “Atelier Populaire acompanhadas de pequenos slo- sujeitos sociais em luta é um dos
oui – atelier bourgeois non” (ateliê gans ou trocadilhos que reforçam elementos que cria as condições
popular sim, ateliê burguês não) é o estilo icônico. É um esquema es- para poder transformá-la.
o slogan que aparece no muro da sencial que ganha vida com base No primeiro cartaz do Atelier
entrada do edifício. em uma necessidade em sintonia essa necessidade se refere aos tra-
É o início da experiência do Ate- com o propósito descrito: renovar balhadores e estudantes; o cartaz
lier Populaire, a tarefa é clara des- completamente o registro expressi- criado é composto de três pala-
de o início: “apoiar concretamente vo da propaganda política, visando vras: usines, universites e union
o grande movimento de trabalha­ transmitir contextos conflitantes e (fábricas, universidade e união),
dores grevistas que ocupam as fá­ mensagens de derrubada do sta- das quais a última é destacada. A
bricas contra o governo antipopular tus quo. Observando as impressões unidade é enfatizada ainda mais
de De Gaulle” é o que se encontra produzidas, nota-se imediatamen- na representação das três grandes
escrito nos primeiros documentos te a completa ausência de formula- letras iniciais “U” verticalmente
políticos2. Embora seja o ateliê de ções medidas ou retóricas, próprias dispostas quase que ligadas entre
Maio que ficará na história, não é a um quadro reformista e ligadas elas (Figura 1).
o único exemplo de escola de arte à compatibilidade do sistema, ca- Se levarmos em consideração
em apoio às lutas estudantis e dos racterísticas que são recorrentes na toda a produção, o tema da uni-
trabalhadores. Outros são ocupa- propaganda e nos cartazes das or- dade, principalmente entre os tra-
dos, em Paris e em outras cidades ganizações históricas de esquerda3. balhadores, muitas vezes se junta
da França, tornando-se oficinas ao que pode ser considerado a
autogeridas por ativistas do movi- perspectiva “primordial” do Ate-
mento. Mas o Atelier Populaire não lier: uma longa e contínua luta4.
se destaca apenas como o mais ati- Esse conjunto de fatores é evidente
vo, é o que faz a revolução no nível mesmo nos cartazes mais célebres.
comunicativo, colocando a serviço Os das figuras 2 e 3 são exemplos
da luta política um novo mode- diferentes: no primeiro o slogan
lo de cartaz. A arte gráfica desse “Foi dado o impulso para uma luta
novo modelo é caracterizada pela prolongada” acompanha a repre-
impressão em serigrafia de figuras Fig. 1 sentação de uma flecha, formada

48
Daniele Chiavelli

franceses e imigrantes unidos”, por votação, evitam-se muitos slogans


exemplo, foi projetado em conjunto ou projetos excessivamente sim-
com o comitê de greve das fábricas plistas e se torna explícita a opção
da Citroën (figura 4)5. de não assinar os cartazes, a não
Colocar esses aspectos em se- ser como um coletivo. Tudo isso
gundo plano, relegando-os a ele- é o coração da atividade (a partir
mentos secundários por nos con- do qual a linha política do Atelier
centrarmos exclusivamente na ganha vida). A fase de execução,
interpretação dos cartazes pro- por mais importante que seja, é
duzidos, não faz justiça a essa consequência direta6.
experiência e não nos coloca em O cartaz que no imaginário co-
condições de entender sua total letivo encarna o Dia do Maio fran-
imersão no processo revolucio- cês tem como protagonista o mais
nário em curso. famoso elemento gráfico, de forma
O Atelier Populaire, de fato, é simples e estilizada, nascido dessa
Fig. 2 antes de tudo um lugar de ativi- experiência: a fábrica (figura 5).
dade política: todos os dias há a Além da fábrica, vários locais
por um povo unido e indicando a assembleia geral, geralmente à de trabalho e categorias profis-
direção comum ao longo da qual a noite para permitir a mais ampla sionais tornaram-se protagonis-
mobilização deve continuar; no se- participação e análise diária dos tas de cartazes específicos graças
gundo cartaz um único corpo, for- eventos. Dentro do edifício é orga- à sua adesão maciça e feroz à
mado por figuras de trabalhadores nizada uma cantina para ativistas greve: maquinistas de transpor-
sem elementos divisórios e fundi- e um serviço de segurança é ativo te ferroviário e urbano, postiers
das entre si, parece determinado a dia e noite. (trabalhadores dos correios), co-
avançar enquanto afirma a vonta- A assembleia é aberta ao movi- merciantes, bateliers (transporta-
de de “continuar a luta”. mento, trabalhadores e militantes dores fluviais), trabalhadores da
A insistência com que é reafir- organizados acompanham os estu- construção civil, técnicos de rádio
mada a unidade como o caminho dantes e jovens artistas. A partir e TV estatais, pescadores e outros
comum de luta não é consequência dos fatos do dia e da situação polí- setores. Mesmo a mobilização dos
da inspiração de algum artista re- tica atual, a discussão se articulava paysans (camponeses) não é igno-
volucionário que dita a linha den- sobre o desenvolvimento das lutas rada (figuras 6 a 9).
tro do Atelier, mas é resultado da em andamento, sobre as declara- Mas a fábrica obviamente de-
elaboração coletiva e do método de ções de De Gaulle ou do governo, sempenha um papel central na
trabalho coletivo realizado desde o sobre a força repressiva posta em produção e na luta pela derrubada
início, é consequência da atividade campo. Com base na análise, são do sistema. Ela aparece repetida-
totalmente inserida na luta social e feitas propostas para projetos de mente nas impressões do Atelier,
das sólidas relações estabelecidas cartazes, a mensagem política é tornando-se um verdadeiro emble-
com a classe trabalhadora, até mais estabelecida e como transmiti-la ma da classe trabalhadora e de sua
do que com o movimento estudan- através de elementos gráficos e força. Nos dias em que a mobili-
til. O eficiente cartaz “trabalhadores palavras de ordem. Tudo é posto à zação se estendeu e uma onda de

Fig. 6 Fig. 8

Fig. 4 Fig. 5 Fig. 7


Fig. 9

49
A revolução gráfica do Maio Francês de 1968

ocupações dos locais de trabalho


envolveu todo o país, paralisando Fig. 12
todas as atividades e colocando-as
nas mãos dos grevistas, a represen-
tação desse ícone recebe uma pe-
quena e simbólica variação.
A eficácia da greve, na verdade,
não apenas muda qualitativamente
as relações de força entre a classe
trabalhadora e a classe dominada,
mas abre caminho para uma “nova
perspectiva” indefinida que, no
entanto, é retratada espelhando a Fig. 10 Fig. 11
fábrica em relação à sua represen-
tação habitual anterior (figura 10).
Na consciência de não querer
atribuir ao Atelier responsabili-
dades de tamanho exagerado na
liderança política do movimento,
a mensagem do cartaz “Sim/Fá-
bricas ocupadas” reflete implicita-
mente a contradição de fundo ao Fig. 14 Fig. 16
Maio francês. No momento em que Fig. 13
a produção está completamente Fig. 15
bloqueada e sob o controle da clas-
se trabalhadora, não há indícios do Em 10 de junho, contam-se pressão muito violenta: no dia 11
início de um caminho que resulte mais de 1 milhão de trabalhadores de junho, dois operários são mor-
no salto qualitativo realizado: há de braços cruzados8, mas a parce- tos por policiais (figura 16).
uma completa falta de elementos la que recusa o imediato “retorno O impulso revolucionário de
capazes de orientar os trabalhado- à normalidade”, continuando com Maio é assim sufocado, as ocu-
res para a tomada concreta do po- ocupações, piquetes e greves até o pações chegam ao fim, a fábrica
der, e nenhuma palavra de ordem fim, sofre severa repressão, como retorna a ser representada da ma-
para alcançar o governo popular é o caso dos trabalhadores da Re- neira clássica (não mais espelha-
(e, portanto, a mudança do siste- nault e da Peugeot. da) e no cartaz o texto “A deten-
ma) encontra espaço. A fábrica da Renault em Flins ção começa” é colocado sob o pé
Em tal estrutura, os slogans do (a 40 quilômetros da capital) é do policial (figura 17).
Atelier seguem a clássica luta até um dos pontos de referência para Enquanto o ícone da fábrica
o final, conforme emerge do cartaz os metalúrgicos em luta e para o encarna, em toda a produção do
“Apoiar as fábricas ocupadas para a movimento estudantil: a polícia Atelier, a classe social que é deci-
vitória do povo” (figura 11). chega à fábrica ordenando a reto- siva para a mudança do sistema,
A ausência de uma perspectiva mada imediata das atividades, ao a figura estilizada de De Gaulle,
reconduz a luta à esfera dos acor- que se seguem repetidos confron- considerado o principal adver-
dos contratuais. A responsabilidade tos e uma manifestação em apoio à sário, é usada sempre que possa
é, em primeiro lugar, das organiza- luta. “Trabalhar agora significa tra- ser sarcasticamente atacada e
ções tradicionais de trabalhadores: balhar com uma arma nas costas” desacreditada.
no final de maio, depois de chegar são as palavras de ordem do Ate-
a acordos sindicais para algumas lier contra a interrupção da greve
categorias, os líderes do sindicato (figuras 13 e 14).
CGT e do Partido Comunista Fran- Nessas mesmas horas em So-
cês promovem a retomada dos tra- chaux, cidade francesa na fronteira
balhos e escancaram as portas à com a Suíça, nas fábricas da Peu-
completa desorientação e progres- geot os grevistas da empresa auto-
siva desmobilização dos grevistas7. mobilística prosseguem o piquete,
“Ceder um pouco”, aceitan- mas seu isolamento, implicitamen-
do entendimentos com o outro te presente também no cartaz em
lado, corresponde à “capitula- que um único operário luta contra
ção total”, sublinha o cartaz do o leão da marca da empresa (figura Fig. 17
Atelier (figura 12). 15), abre o caminho para uma re-
50
Daniele Chiavelli

Fig. 19

Fig. 18 Fig. 20 Fig. 21 Fig. 22

É assim, por exemplo, quan- franceses)10. O efeito sobre o movi- formas, a mesma homogeneidade
do o general fala de reformas, mento foi tal que, nas universida- cromática, slogans análogos ou
definindo a luta dos estudantes des ocupadas ou nos laboratórios palavras de ordem idênticas, mas,
como “chie enlit”0 (“mijar na criados ad hoc, começou a ser im- sobretudo, a mesma carga disrup-
cama”) ou quando anuncia um presso material de propaganda no tiva e antissistêmica.
referendo sobre “participação” qual a referência ao modelo fran- Não se trata da mera necessidade
(figuras 18, 19, 20). cês é explícita. Assim, nas paredes de renovação cultural da propagan-
A resposta a um novo modelo de Bolonha, Turim e Milão, apa- da política. O que o movimento es-
gaullista de “associação entre ca- receram cartazes caracterizados tudantil, os coletivos e os grupos de
pital e trabalho” foi oportuna e a pelo registro expressivo do Ate- trabalhadores e estudantes tentaram
produção do cartaz foi imediata lier Populaire: os mesmos temas e trazer para a luta social é o exemplo
quando, em meados de junho, De de Maio: a unidade entre estudantes
Gaulle apareceu na TV e se definiu e trabalhadores e o papel da classe
como um anjo que, embora incom- trabalhadora na luta contra o siste-
preendido, salvara seu povo dos ma (figuras 23,24 e 25)11.
demônios (figuras 21, 22). De uma magnitude diferente é a
A onda de repressão, denun- influência sobre as organizações his-
ciada sistematicamente nos car- tóricas da esquerda, mesmo que seja
tazes, também chega à escola de necessária uma distinção entre par-
arte ocupada: o edifício que abri- tidos e sindicatos. Embora tenha en-
ga o Atelier é evacuado em 27 de trado na imaginação de ativistas de
junho. No mês e meio de ativida- base de toda a esquerda, a revolução
de, somam-se 350 cartazes e, nas Fig. 23 comunicativa não conseguiu seduzir
fases mais intensas, a produção a liderança do PCI (Partido Comu-
diária ultrapassava 2 mil cópias9. nista Italiano): a linguagem daquele
Enquanto isso, além das fronteiras modelo não era muito semelhante à
francesas, a difusão dessa expe- “via italiana para o socialismo”, às
riência nos movimentos de 1968 “reformas estruturais” e às outras
acabava de começar. Fig. 24 palavras de ordem que distinguiam
a linha do partido12. Uma forte ti-
OS EFEITOS SOBRE O MOVIMENTO midez em relação a esse esquema
DO 1968 ITALIANO disruptivo surgiu também naqueles
Fig. 25 cartazes, produzidos pelas seções lo-
Uma representação da “Revolta cais do partido, que mostravam uma
de Maio” através de uma revolu- ligação com a iconografia de Maio.
ção comunicativa, é assim que os Esse é o caso do cartaz produzi-
cartazes foram vistos pelos jovens do pela seção bolonhesa do PCI em
protagonistas do 1968 italiano. 1969 para anunciar o festival pro-
Em muito pouco tempo, publica- vincial da Unidade (figura 26).
ções, livros e revistas começam a Fig. 26 “Os manifestantes ferrenhos
reproduzir les affiches (os cartazes [presentes nos trabalhos do Atelier

51
A revolução gráfica do Maio Francês de 1968

Populaire] foram transformados em dos Metalúrgicos de Turim, deter-


um povo genérico com bandeiras – minada a manter o controle da-
entre os quais também se podia re­ quela fortaleza dos trabalhadores,
conhecer as famílias e as crianças – recorreu fortemente ao modelo ex-
que lotavam as estruturas do centro pressivo do Atelier17.
de exposições para ouvir os discursos O contraste que existe entre
de seus líderes. Os gráficos, portan- a Federação dos Trabalhadores
to, foram totalmente desvalorizados Metalúrgicos (FLM), nascida em
em relação ao original, tanto na 1972 da união da Federação dos
mensagem como no layout geral”, Empregados Operários Metalúrgi-
salienta o historiador Gambetta13. cos (FIOM), da Federação Italiana
Trata-se de uma reelaboração dos Metalúrgicos (FIM) e da União
gráfica que, embora filtre forte- Italiana dos Trabalhadores Me-
mente “a radicalidade excessiva” talúrgicos (UILM) e estruturada
do modelo parisiense, não será a partir dos conselhos de fábrica,
levada em consideração pelo es- de um lado e do outro os Comitês
critório central de propaganda do Unitários de Base (CUB)e setores
PCI, pelo menos no período revo- da esquerda revolucionária18 tam-
lucionário de dois anos e no perí- bém se expressa no nível da pro-
odo imediatamente seguinte. Nos dução gráfica (figura 27).
anos 1970, na verdade, nenhum O cartaz “Agnelli l’Indochina
cartaz nacional da esquerda tra- ce l’hai in officina” (“Agnelli, você
dicional, assim como dos partidos tem o Vietnã na sua fábrica”) é
de centro e de direita, foi inspira- obra do CUB Fiat Mirafiori (1973).
do nos franceses. Foi somente na Fig. 27 A mensagem é diferente nos
década seguinte que esses gráfi- cartazes produzidos pela FLM:
cos, agora já utilizados em abun- de Turim (e muito marginalmente além de denunciar a agressividade
dância, marcaram a comunicação sobre a Câmara de Trabalho local). e a falta de razoabilidade do ou-
dos partidos tradicionais14. A batalha travada em Turim tro lado, os temas que frequente-
Completamente diferente é a é crucial16: frente ao processo de mente emergem são referentes a
abordagem e o condicionamento radicalização dos trabalhadores, a contratos, reformas ou desenvolvi-
sofridos por aquelas organizações Fiat – posto avançado do capitalis- mento econômico19.
de extrema esquerda que se forma- mo italiano e ponto de referência Se por um lado a revolução
ram no calor da luta social, entre para toda a classe trabalhadora – se expressiva do Atelier Populaire,
1968 e 1969. Além de se apossarem torna o grupo industrial no qual o com suas mensagens de ruptura e
desse novo esquema expressivo, choque entre os sindicatos históri- antissistema, provocam uma rup-
elas se baseiam – de forma mais ou cos e a extrema esquerda emergen- tura na imaginação coletiva do
menos sistemática – em imagens e te se dá da maneira mais amarga. movimento, por outro lado os sin-
palavras de ordem. Entre essas or- A direção e o controle das mobili- dicatos de massa tradicionais não
ganizações, a Lotta Continua (Luta zações são decisivos para manter hesitam em usar, quando neces-
Contínua) dá um passo adiante. A ou tentar ganhar hegemonia sobre sário, aquele estilo visual novo e
organização orientada por Adriano o movimento operário nacional. perturbador para fortalecer a ma-
Sofri, de fato, nasce (e se promo- Por essa razão, o ponto de virada nutenção de seu papel na ordem
ve) como uma organização funda- realizado pelos líderes sindicais na social inalterada em que estão (e
da sobre a prática da luta e não só capital piemontesa é decisivo. Ali pretendem permanecer) inseridos.
retoma em seu nome (tornando-a o “Outono Quente” se caracteriza A linguagem da propaganda de-
uma prática e um elemento estra- pela recuperação das organizações sempenha assim, em uma fase de
tégico) o slogan principal dos car- históricas: a permeabilidade às de- mobilização e radicalização, um
tazes franceses, mas constrói sua mandas da base e a atitude conci- teste decisivo para as organizações
própria propaganda, pelo menos liadora em relação aos delegados e tradicionais de sua capacidade de
na fase inicial, assumindo esse pa- conselhos de fábrica permitem que recuperação e adaptação aos im-
trimônio iconográfico como uma os sindicatos nacionais levem a li- pulsos vindos da base e colocados
referência de identidade15. derança das mobilizações na Fiat em campo. Depreciar ou ignorar
Essa escolha bem definida teria para longe da Lotta Continua. Tal essa capacidade constitui um erro
uma repercussão, que continuaria reviravolta também se deu através para qualquer vanguarda revolu-
nos anos seguintes, sobre os sindi- do apoio da propaganda renovada cionária que tenha como objetivo
catos tradicionais de metalúrgicos e, nos anos seguintes, a Federação a derrubada do sistema.

52
Daniele Chiavelli

Notas:
0. Nota de tradução: O termo francês chienlit significa tradicionalmente um baile de máscaras, mas foi uti­
lizado por Charles de Gaulle como trocadilho para chie em lit, que significa literalmente “cocô na cama”. O
presente texto foi escrito originalmente em italiano e nele utilizou-se a palavra piscialetto, que significa al­
guém que faz xixi na cama.
1. Um estudo e análise aprofundados dos acontecimentos do mês de maio francês pode se iniciar a partir
dos artigos “1968: o ano da revolução” de Barbara Areal, www.marximo.net/fm126/fm126-ins-maggio68.
htm; “A revolução francesa de maio de 1968”, de Alan Woods, www.marxismo.net/index.php/teoria-e-prassi/
storia-delle-rivoluzioni/318-la-rivoluzione-francese-del-maggio-1968-prima-parte; “O significado de maio de
68”, de Francesco Giliani, www.marxismo.net/index.php/teoria-e-prassi/storia-delle-rivoluzioni/380-il-sig­
nificato-del-maggio-68
2. O documento integral é apresentado – em sua língua original – no volume “Atelier Populaire présenté par
lui-meme. 87 affiches de mai juin 1968”, Usines Universités Union Edition, coleção “Bibliothèque de Mai”,
Paris, 1968, p. 10.
3. Veja: Augusto Pancaldi, “I manifesti della rivolta di Maggio”, Editori riuniti, Roma, 1968 ; William Gam­
betta, “I muri del lungo ‘68. Manifesti e comunicazione politica in Italia”, Derive Approdi, Roma, 2014.
4. As digitalizações de várias dezenas de affiches estão disponíveis na Biblioteca Digital da Bibliothèque Natio­
nale de France no portal gallica.bnf.fr. Reproduções dos cartazes podem ser encontradas no portal gallica.bnf.
fr: “Atelier Populaire présenté par lui-meme”, cit.; A. Pancaldi, “I manifesti dela rivoltadi Maggio”, cit.; Vasco
Gasquet, “Les 55 affiches de Mai 68”, Aden, Bruxelles, 2007; “Les affiches de Mai 1968 ou l’immagination
graphique” editado por Alain Gourdon, Bibliothèque Nationale Editeur, Paris, 1982.
5. Reportado em “Atelier Populaireprésenté par lui-meme”, cit., pp.
6. Além do volume “Atelier Populaire présenté par lui-meme”, veja o artigo de Gervereau Laurent. “Les af­
fiches de ‘mai 68’”, www.persee.fr/doc/mat_0769-3206_1988_num_11_1_403849 e a entrevista “L’Atelier
Populaire de l’ex-Ecoledes Beaux-Arts. Entreti en avec Gérard Fromanger”, www.persee.fr/doc/mat_0769-
3206_1988_num_11_1_403852; ambos em: “Matériaux pour l’histoire de notre temps”, n°11-13, 1988.
“Mai-68: Les mouvements étudiants en France et dans le monde”.
7. Após a rejeição dos Acordos de Grenelle pelos trabalhadores, os líderes sindicais embarcaram no caminho
de acordos separados, rompendo a frente da luta: setores de energia, têxteis, camponeses, trabalhadores ferro­
viários, trabalhadores postais e todas as outras categorias voltaram gradualmente ao trabalho após consultas
sobre os sucessivos acordos. As consultas são realizadas sob pressão policial direta e são marcadas por vários
incidentes, como é também reconhecido pela liderança da CGT, ver Georges Sèguy, “Il Maggio 68”, Editoririun­
ti, Roma, 1974, p. 121.
8. Alguns dias antes, um grupo de estudantes, professores e militantes políticos ocupa a sede do Sindicato
Nacional dos Professores lançando um apelo para a continuação da greve até a derrubada do poder gaullista.
A este respeito, em G. Sèguy, “Il Maggio 68”, cit., p... 126, lemos: “Uma vez que a rádio deu publicidade sus­
peita a um autoproclamado ‘Comitê Nacional de Greve Provisório’ que visa relançar a greve geral, o dirigente
confederal [da CGT] declara: ‘Qualquer pedido de retomada da greve geral que, nas circunstâncias atuais, não
tem justificativa deve ser considerado como uma provocação perigosa, uma vez que só pode servir aos inimigos
da classe trabalhadora e da democracia’”.
9. “L’Atelier Populaire de l’ex-Ecole des Beaux-Arts. Entretien avec Gérard Fromange”, cit., pp.
10. Além do volume de A. Pancaldi, “I manifesti dela rivolta di Maggio”, cit., veja as publicações da revista
mensal Quindici no verão de 1968.
11. Ver W. Gambetta, “I muri del lungo ‘68”, cit., pp. 29-31.
12. Para uma análise das mobilizações de 1968-1969 e um balanço político relativo, ver “In difesa del mar­
xismo” n. 2: “1968 - 69 Un biennio rivoluzionario”, A.C. Editoriale, Milão, 2000.
13. W. Gambetta, cit., p. 30.
14. Ibidem
15. Para um estudo aprofundado da estratégia política d aLotta Continua, além de “In difesa del marxismo” n.
2, cit.; ver Luigi Bobbio, “Storiadi Lotta Continua”, Edizioni Feltrinelli, Milão, 1988, na p. 17 há um trecho do
artigo “Una premessa alla discussionesu Lotta Continua”, que apareceu no jornal homônimo em 8 de outubro
de 1972; ele diz: “Nossa concepção da teoria revolucionária se contrapunha à elaboração livresca dessa teoria,
e via na prática social, na capacidade de permanecer dentro das lutas da classe explorada, o ponto de partida
para a reflexão teórica, e não o contrário”.
16. É assim para os sindicatos de massa, para o movimento dos trabalhadores, para as organizações de extre­
ma esquerda, incluindo a LottaContinua. Em L. Bobbio, “Storiadi Lotta Continua”, cit., p. 18, lemos: “Mas o
que é decisivo para definir a natureza e a própria existência da Lotta Continua é o encontro no verão de 1969

53
A revolução gráfica do Maio Francês de 1968

[dos quadros vindos do movimento estudantil e do Potere operaio toscano] com os trabalhadores das linhas
Mirafiori que se tornaram o ponto central de referência política da Lotta Continua”.
17. Vários cartazes produzidos pela FLM de Turim podem ser visualizados no portal do Museu de Design de
Zurique (www.emuseum.ch).
18. Enquanto A vanguardia operaia, em 1973, recusa qualquer hipótese de trabalho político dentro dos sin­
dicatos (ver Apêndice 2 - Em defesa do Marxismo n. 2, cit.). ), a Lotta Continua oficializa, com não poucas
dificuldades, sua volta para os delegados e para os conselhos de fábrica, mas “embora o novo curso sobre os
delegados seja oficialmente sancionado [pela I Convenção dos Trabalhadores, realizada em Turim em 14-15
de abril de 1973], a Lotta Continua nunca conseguirá desenvolver sistematicamente a batalha nos Conselhos;
em parte pelas condições objetivas, em parte pelos limites internos à autocrítica” (L. Bobbio, cit., pp, p. 121).
19. Os cartazes “Ritornoallanormalità” (Retorno à normalidade), de dezembro de 1972, e “Cedereun poco
vuol dire perdere molto “ (Ceder um pouco significa perder muito), de janeiro de 1973, referem-se à renovação
do acordo contratual que foi alcançado em abril de 1973. O cartaz “Emigrazione sfruttamentore pressione
questa è laviolenza Fiat” (Emigração, repressão, exploração: essa é a violência da Fiat)é de fevereiro de 1973.

54
Nahuel Moreno, revisionismo e
adaptação na Guerra das Malvinas
Michel Silva e Serge Goulart

Advertência

Este texto não tem por objetivo abrir ou realizar polêmica alguma com a miríade de organizações saídas da
crise internacional do morenismo. Isso não nos interessa. Seu objetivo é exemplificar e restabelecer o método
e o conteúdo da luta pela Frente Única Anti-imperialista nos países atrasados, dominados e oprimidos pelo
imperialismo, países que nunca fizeram ou completaram uma revolução burguesa de fato e, portanto, nunca
se alçaram à altura de seus senhores, os países capitalistas imperialistas. A questão da Frente Única não é uma
questão menor para os revolucionários marxistas.
Esta questão apareceu pela primeira vez em 1921, com a Carta Aberta, de Paul Levi, dirigente do PC ale-
mão, dirigida ao partido da Social-democracia, o SPD, propondo a constituição de um governo operário co-
mum, sob certas circunstâncias. Esta questão, a Frente Única Operária, seria desenvolvida extensivamente no
3º e 4º Congresso da Internacional Comunista. Já a questão da Frente Única Anti-imperialista foi tema do 2º
Congresso da IC,tratando do que se conhece como “Teses do Oriente”, que falava das colônias e semicolônias,
do lugar da burguesia e da atitude dos comunistas frente à opressão imperialista, às burguesias nativas e à
necessidade da luta pela libertação nacional ligada à luta pela revolução proletária.
Assim, este texto tem como objetivo principal ajudar os ativistas revolucionários a compreender o verda-
deiro método do marxista na sua luta para realizar a unidade daclasse, construir a organização revolucionária
e ajudar a classe trabalhadora a tomar o poder. A política de Nahuel Moreno levada durante a guerra das
Malvinas é um exemplo gritante do que não se deve fazer e uma demonstração que os esquemas, os clichês e
a repetição de fórmulas esterilizadas não servem para a construção da organização revolucionária, nem para
ajudar o movimento operário a avançar, e muito menos para se chegar à uma revolução vitoriosa.
Nosso objetivo é ajudar a educar os militantes revolucionários da causa da humanidade, o socialismo, a
entender o verdadeiro método do bolchevismo de combate na luta de classes.

A Guerra das Malvinas do os britânicos, é um arquipélago de cidadãos britânicos com taxas re-
no Atlântico Sul com 778 ilhas. Foi siduais de chilenos (cerca de 8%).
Há 39 anos, em 2 de abril de ocupada por britânicos, espanhóis e Por que, então, a ditadura militar
1982, a ditadura argentina ocupou franceses em diversos momentos, até argentina resolve ocupar as ilhas e
militarmente as ilhas Malvinas, o que que, praticamente abandonada, foi provocar uma guerra com um país
equivalia a declarar guerra contra o entregue pelo governo de Buenos Ai- imperialista como a Grã-Bretanha?
Reino Unido. res a um criador de gado alemão, em A ditadura militar, encabeçada
As ilhas Malvinas, segundo os 1823. Em 1832 os britânicos ocupa- por uma Junta Militar, cujo principal
argentinos, ou Falklands, segun- ram outra vez as Malvinas, integran- general era Jorge Rafael Videla, que
do-as ao Reino Unido, e, a partir de se estabeleceu em 24 de março de
1833, as ilhas foram colonizadas por 1976, implantou o terror na Argenti-
uma população predominante de es- na e matou e desapareceu com mais
coceses e galeses. Mais tarde vieram de 30 mil pessoas, sendo de longe
escandinavos, franceses e espanhóis. uma das ditaduras mais sanguinárias
Desde então, todos os governos ar- das Américas.
gentinos, de Juan Manoel Rosas a Pe- Em 1982, agora comandada pelo
ron, entre outros, reivindicam as ilhas general Leopoldo Fortunato Galtieri,
como pertencentes à Argentina. a ditadura já vivia seus estertores. O
Por mais de um século a empresa medo desaparecera, as mobilizações
britânica Falkland Islands Company ressurgiram e as greves se amplia-
dominou as ilhas e desenvolveu a vam. Os partidos se reagrupavam e
criação de ovelhas e a produção de se manifestavam. Os sindicatos se en-
lã, que era vendida para o Reino chiam de atividade de base.
Unido. Do ponto de vista econômi- Quando Galtieri inicia sua aven-
co, as Ilhas Malvinas nunca tiveram tura com a invasão das Malvinas a
importância, tendo sido diversas ve- Junta Militar estava completamente
zes abandonadas. Do ponto de vista desacreditada. A economia estava
Localização das Malvinas no Atlântico Sul populacional, é predominantemente passando por sérias dificuldades, o

55
Nahuel Moreno, revisionismo e adaptação na Guerra das Malvinas

desemprego crescia e a taxa de infla- pensou que estas negociações secre- te-americana de convencer a Grã-Breta­
ção atingia 150%. Em julho de 1981 tas eram uma prova de que o Reino nha que não havia retrocesso possível e
uma greve geral paralisou a Argenti- Unido nada faria contra a ocupação. que devia aceitar o eixo tal qual estava
na, exigindo “Pão e Trabalho”. Como se a Grã-Bretanha, a outrora levantado; intensificar os contatos com
Em 30 de março de 1982, três rainha dos mares do mundo, fosse su- a União Soviética, China e países da Eu­
dias antes da invasão às Malvinas, a portar publicamente a humilhação de ropa Oriental em uma ação dirigida a
CGT realizou outra greve geral e ma- ser despojada de territórios que con- prever a consideração do problema no
nifestações em todo o país. Essas mo- siderava seus por um país dominado, âmbito das Nações Unidas”.
bilizações foram recebidas com uma semicolonial, dirigido por um general Era, portanto, um plano sem pé,
brutal repressão, o que não impediu que praticamente não tinha exército, nem cabeça, que não considerava a
que as massas ocupassem a Plaza de nem marinha e nem aviação militar. possibilidade da reação militar bri-
Mayo, em frente à Casa Rosada, pa- Em 1979, Margaret Thatcher no- tânica, tratando o conflito como um
lácio presidencial argentino, desde meara Nicholas Ridley como vice- enfrentamento entre duas potencias
onde o “gorila” Galtieri teve que ou- -chanceler e enviou-o à Buenos Aires. equivalentes. E, pior ainda, tinham
vir a imensa manifestação, que exigia O vice-chanceler propôs uma solução a certeza de contar com o apoio, ou,
o fim da ditadura militar e o apare- ao estilo Hong Kong, em que a Grã- ao menos, com a neutralidade sim-
cimento com vida dos desaparecidos. -Bretanha transferiria as ilhas para a pática dos EUA. Esta ideia, típica de
A polícia cercou a praça e, com Argentina, mediante o arrendamento quem só vê o mundo até a fronteira
brutalidade, dispersou os trabalha- do território por um período que po- de seu próprio bairro, se apoiava no
dores, deixando cerca de cem feri- deria oscilar entre 25 e 99 anos. Con- fato de que, desde o início do sécu-
dos e mais de duas mil pessoas pre- tudo, essa proposta não vingou, afinal lo 20, os EUA vinham trabalhando,
sas, entre elas dirigentes da CGT e o os parlamentares britânicos se senti- e deslocando, o imperialismo inglês,
Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Perez ram insultados em sua soberania. que dominou a Argentina após sua
Esquivel. Essa repressão provocou independência política formal.
uma ainda maior onda de greves, A trama secreta O general Galtieri, era um medí-
que assesta um golpe quase mortal ocre, típico oficial das Forças Arma-
na ditadura cambaleante. Assim, as negociações saíram do das argentinas, “que há pelo menos
No Brasil a ditadura estava sendo palco e continuaram nos camarins, 40 anos fazem a seleção inversa dos
atirada ao solo pelas grandes gre- especialmente quando a situação seus quadros, incorporando exata­
ves operárias, iniciadas em 1979. O econômica da Grã-Bretanha se dete- mente aqueles que, por falta de espí­
contexto também foi marcado pelo riorou, e Thatcher já enfrentava sé- rito crítico, de falha na formação po­
surgimento do PT e pela reanimação rios problemas políticos internos, que lítica, passam pelos sucessivos filtros
sindical, que levaria à fundação da desaguou na greve geral dos minei- até chegar ao posto de general” (Mar-
Pró-CUT e, depois, da CUT, em 1983. ros contra o fechamento das minas, tinez, 1983). E, como os EUA prepa-
Então, o general Galtieri, no co- que durou mais de um ano. raram, organizaram, coordenaram e
mando da ditadura, resolve fazer Segundo o livro “A trama secreta”, apoiaram publicamente o golpe que
uma “jogada de mestre”,para se sal- de Cardoso, Kirschbaum e Van der estabeleceu a ditadura sob controle
var,tentando coesionar a população Kooy (1983), a chamada “Directiva da Junta Militar, Galtieri,que chegou
sob sua batuta, apelando ao naciona- Estratégia Militar” (DEMIL), o plano ao poder contando totalmente com
lismo, com base em uma reivindica- de tomada das ilhas, elaborado pela o apoio dos Estados Unidos, imagi-
ção histórica da Argentina, e invade junta militar, abrangia: “Uma negocia­ nava que seu dono estaria com ele
as Ilhas Malvinas. Essa era, na verda- ção bilateral muito intensa com Grã­ e não com seu “inimigo”, pois, para
de, sua última tentativa de afastar a -Bretanha para convencer o governo de o cérebro desses “gorilas”, a inva-
ameaça de uma situação revolucioná- Sua Majestade do “fato consumado” são das Malvinas serviria, também,
ria na Argentina. seria acompanhada por concessões aos aos interesses norte-americanos no
O general calculou que o Reino britânicos que iam desde indenizações Atlântico Sul. Isso tudo quando era
Unido não faria nenhum esforço pe- a Falkland Island Company e aos isle­ claro o apoio mútuo internacional
las ilhas e seus 3 mil habitantes, já nhos que desejarem emigrar, até ofe­ entre Estados Unidos e Grã-Breta-
que os havia abandonado à própria recimento de uma estreita cooperação nha, entre outras coisas, por seus
sorte havia tanto tempo. econômica com empresas britânicas interesses comuns na OTAN.
Hoje em dia sabe-se inclusive que que quiserem explorar com a Argentina O resultadoda declaração de
o governo britânico estava, naquele o petróleo da contra austral e a pesca guerra ao império britânico foi um
momento, secretamente negociando de crustáceos; envolver os Estados Uni­ desastre militar e político que enter-
a entrega das ilhas para a Argentina. dos nas negociações [...]; trabalhar com rou de vez a ditadura. Galtieri caiu,
O general Galtieri, provavelmente os países do mundo ocidental, especial­ sendo substituído por outro gene-
com o cérebro turvado pelo sangue mente os do Mercado Comum Europeu, ral, Reynaldo Bignone, que tratou
de 30 mil mortos e desaparecidos, para que contribuíssem com a ação nor­ de elaborar uma Lei de Autoanistia,

56
Michel Silva e Serge Goulart

para impedir que militares fossem to esquemático e cheio de fórmulas pergunto de que lado do conflito a clas­
julgados pelos seus crimes, declarou rasteiras, Moreno estava tão contente se trabalhadora deve estar? Eu respon­
oficialmente mortos todos os desapa- de fazer uma FUA (que terminaria do pessoalmente por mim – nesse caso
recidos e decretou a destruição dos com uma revolução dirigida por ele eu estaria do lado do Brasil ‘fascista’
arquivos que comprometiam a dita- próprio, naturalmente), que não con- contra a Grã-Bretanha ‘democrática’.
dura. Em setembro de 1983, foram seguiu perceber que foi a ditadura Por quê? Porque o conflito entre eles
eleitos presidente, senadores e de- militar, com seus 30 mil mortos, que não será uma questão de democracia
putados através de eleições gerais e, atacou o império britânico. Moreno ou fascismo. Se a Inglaterra fosse vi­
em 6 de dezembro de 1983, a Junta não conseguiu entender que Galtieri toriosa, ela colocaria outro fascista no
Militar assinou a ata de sua dissolu- manobrava com o nacionalismo ar- Rio de Janeiro e um duplo jugo sobre o
ção. Esses generais acabaram todos gentino para tentar salvar a ditadura Brasil.Se o Brasil ao contrário vences­
presos, e Videla morreu no cárcere. que destruiu sindicatos, partidos e as se, isso iria dar um poderoso impulso à
liberdades democráticas. consciência nacional e democrática do
Uma estranha Frente Única O PST publicou um manifesto país e levar à derrubada da ditadura
onde afirmava: “Como socialistas, de Vargas. A derrota da Inglaterra iria
Seria isto apenas uma história a como anti-imperialistas e como ar­ ao mesmo tempo dar um golpe ao im­
mais do ocaso de uma ditadura se gentinos reiteramos nossa decisão de perialismo britânico e dar um impulso
não houvesse passado coisas mui- participar com todas as nossas forças ao movimento revolucionário ao prole­
to curiosas no movimento operário e com a maior energia no esforço e na tariado britânico”.
argentino e em especial numa orga- luta que o povo argentino deve realizar A interpretação apresentada por
nização chamada PST, dirigida por para rechaçar a agressão imperialista, Moreno e seu partido pretende asso-
Nahuel Moreno. qualquer que seja o terreno em que a ciar a guerra com a Inglaterra a uma
Essa conjuntura acabou provo- luta se desenvolva e qualquer que se­ luta de “libertação nacional”, aos
cando uma situação bastante curiosa, jam os riscos que ela implique. Essa moldes do que havia acontecido na
em que a ditadura estava prestes a firme posição se mantém e se manterá América Latina ou mesmo na África. A
cair, mas uma parcela do trotskismo acima das insuperáveis diferenças que ocupação das Malvinas pelos ingleses
argentino desenvolveu uma estranha nossa corrente mantém com o Gover­ pouco ou nenhum impacto teve sobre
tática revolucionária que... apoiava a no Militar” (Partido Socialista de los a vida dos argentinos, levando-se em
falsa guerra da ditadura, ou seja, aju- Trabajadores, “El mandato de la hora: conta que a sua relação com a popu-
dava a sustentar o regime. derrotar al invasor”, 1982). O mani­ lação da Argentina era quase inexis-
O Partido Socialista dos Traba- festo do PST chamava ainda “todos os tente. E há que se levar em conta que
lhadores (PST), então dirigido por seus militantes, simpatizantes e traba­ nunca houve a reivindicação dos mo-
Nahuel Moreno (de quem o PSTU- lhadores em geral, a mobilizar-se para radores do arquipélago de ser parte
até hoje se reivindica herdeiro), não a defesa armada da soberania nacio­ integrante da Argentina. Portanto, não
entendeu absolutamente nada das nal” (Partido Socialista de los Traba- há possibilidade de aproximar o de-
afirmações do 2º Congresso da In- jadores, “El mandato de la hora: der- bate sobre as Malvinas com questões
ternacional Comunista sobre a luta rotar al invasor”, 1982). nacionais como a das antigas colônias
contra o imperialismo nos países do- Espantosamente Moreno e seus ca- da Ásia, africanas, ou mesmo com a
minados. Não entendeu, igualmente, maradas convocam os militantes a par- da Catalunha, na atualidade. Um dos
a explicação de Trotsky de que, frente ticipar de uma guerra pela “defesa ar- elementos centrais na atitude a tomar
à invasão da Abissínia, atual Etiópia, mada da soberania nacional”, que era, sobre a questão nacional, que pode
pela Itália fascista de Benito Mussoli- na verdade, uma aventura assassina, inclusive levar à separação territorial,
ni, era preciso apoiar Haile Selassié, no meio do Atlântico Sul, contra uma com apoio dos marxistas, sempre foi
mesmo que ele fosse um monarca re- das mais poderosas marinhas e aviação a atitude e a disposição da população
acionário, pois tratava-se da agressão militar do mundo. E, falando, cinica- em questão. Essa sempre foi a postura
de um país imperialista contra um mente, de uma “agressão imperialista”, de Lenin e Trotsky sobre a questão. Por
país atrasado e dominado. que ocorrera há mais de 150 anos! isso os bolcheviques foram capazes de
Moreno, que se dedicou anos a O texto deixa em segundo plano a apoiar a separação da Ucrânia. No
revisar o marxismo e esterilizar seu luta de classes. Para construir seu ar- caso das Malvinas não se manifestava
conteúdo, cobrindo-se sempre com gumento, o PST citava, também, uma na população a vontade de pertencer,
uma fraseologia supostamente revo- famosa passagem de Trotsky: “No ou reivindicar, a Argentina.
lucionária, entendeu que havia che- Brasil reina agora um regime semifas­
gado a hora de uma Frente Única cista [o regime de Vargas, nota dos au­ Embrulhando a realidade
Anti-imperialista (FUA) junto com a tores], que cada revolucionário apenas
ditadura de Galtieri contra o imperia- pode ver com ódio. Vamos supor, contu­ Para Moreno, a guerra entre Ar-
lista governo de sua majestade britâ- do, que amanhã a Inglaterra entre em gentina e Inglaterra abriria uma situ-
nica. Desenvolvendo seu pensamen- um conflito militar com o Brasil. Eu te ação revolucionária, afinal faria com

57
Nahuel Moreno, revisionismo e adaptação na Guerra das Malvinas

que os trabalhadores se chocassem lítica econômica de Martínez de Hoz. A delegação internacional de More-
com o imperialismo. Dizia Moreno, Em 1981 ocorreu a recessão aberta, no em apoio à guerra dos gorilas ar-
em seu balanço sobre a guerra: “A que durou até a Guerra das Malvinas. gentinos
mobilização de massas começou con­ O produto sofreu uma queda líquida,
tra o imperialismo inglês, continuou os salários reais caíram e o desemprego Ricardo Napurí, na época da
contra o yanqui, estreitou laços com os aumentou, enquanto novas desvalori­ Guerra das Malvinas senador perua-
povos latino-americanos, e, por último, zações e corridas financeiras se sucede­ no eleito pelo POMR e que, em mar-
ante a vergonhosa capitulação, termi­ ram, o endividamento público externo ço de 1982, fusiona sua fração com o
nou enfrentando o próprio Galtieri e a continuou a aumentar e a capacidade PST, da corrente de Nahuel Moreno,
ditadura em geral” (Nahuel Moreno, de pagamento se deteriorou constan­ e se tornouum dos dirigentes da sua
“1982: Comienza La Revolución”, temente. Em meados de 1981, o endu­ corrente internacional, conta numa
maio de 1983). Para o esquema men- recimento do sistema bancário inter­ entrevista concedida a Mario Her-
tal construído por Moreno, tudo era nacional jogou a Argentina à beira da nández (especial para ARGENPRESS.
simples e linear: aguerra significava inadimplência” (Artigo publicado, em info), 30 anos depois da guerra, que
que os trabalhadores fariam uma 1997, na revista Razón y Revolución). participou de uma delegação inter-
experiência com sua burguesia e, A coalizão burguesa que havia nacional à Argentina para apoiar a
diante do avanço de sua luta anti-im- apoiado o golpe de 1976 e sustenta- aventura da ditadura militar.1
perialista, veriam que os governan- do sua política contrarrevolucionária Em seu livro “Pensando a América
tes argentinos eram subservientes, começava a se desintegrar. Desde o Latina. Crônicas autobiográficas de
exemplificado, entre outras coisas, início de 1981, as principais organi- um militante revolucionário”,Napu-
no fato de que a ditadura não levou zações patronais argentinas, como a rí diz que sua presença na Argentina
a guerra até o fim e optou por nego- Sociedade Rural e a União Industrial, “durante o conflito das Malvinas per­
ciar sua rendição.O primeiro erro de protestavam publicamente contra mitiu promover o primeiro ato público
Moreno éa tentativa de fazer passar a situação de crise enfraquecendo a durante a ditadura, que foi realizado
em 1983 uma falsa ideia da realidade Junta Militar. A Igreja, comprometida pelo Partido Socialista dos Trabalhado­
para cobrir sua política de adaptação inteiramente com a ditadura desde o res (PST)”. “Foi uma consequência do
e capitulação frente às manobras da seu início, sentiu a tempestade que se apoio do meu país. O governo militar
ditadura,caindo no conto do “nacio- aproximava e começou a emitir docu- argentino foi forçado a fazer algumas
nalismo” dos generais a serviço do mentos críticos. concessões. Nahuel Moreno, o líder
governo imperialista dos EUA. Expressão disso foi a criação da máximo do PST, exilado na Colômbia,
O fato é que a burguesia argen- “Multipartidária”, que reuniuos prin- capturou a situação e instruiu o Dr. En­
tina nunca apoiou a guerra. Desde cipais partidos burgueses e que apoiou rique Broquen, advogado de direitos hu­
1980, o plano econômico do ministro as manifestações convocadas contra a manos, de família de militares, embora
Martinez de Oz afundava a economia ditadura militar, evidentemente que marxista e de esquerda, a organizar o
argentina e, no início de 1982, o qua- sempre sob as bandeiras de “início apelo ao ato a pretexto das Malvina, re­
dro era de uma quebradeira geral de da transição para a democracia” ou, alizado no bairro do Congresso”.
empresas, desemprego e inflação. como dizia o episcopado argentino, Ricardo Napurí explica, ainda, que
Segundo Alberto Bonnet, profes- da “reconciliação nacional”. o Peru apoiou a Argentina na guerra
sor da Universidade de Buenos Aires Portanto, a ditadura se encontra- das Malvinas com mísseis Exocets,
(UBA) e editor da revista acadêmi- va em fase terminal, antes mesmo da aviões Mirages e instrutores militares:
ca Cuadernos del Sur (1985-2005), guerra. Moreno, buscando fórmulas “A primeira coisa a destacar é que a ini­
“A política econômica de Martínez de e clichês que economizassem a ca- ciativa partiu das Forças Armadas, que
Hoz conduziu a uma corrida financei­ pacidade e o esforço de elaboração e tinham um vínculo histórico com seus
ra aberta com o fechamento do BID construção, não entendia nada do que pares argentinos”. Vínculo histórico
no início de 1980 e seguida da fuga se passava na consciência das mas- entre ditadores militares são bem co-
de depósitos em direção ao dólar e a sas e principalmente de sua vanguar- nhecidos. Até 1980, o Peru viveu a di-
consequente pressão sobre o câmbio da mais combativa. Assim, teve que tadura militar de Morales Bermúdez,
atrasado. A garantia oficial sobre os passar a vergonha histórica de estar que tomou o poderem 1975, através
depósitos dizimou as reservas do Ban­ apoiando a falsa guerra nacionalista de um golpe sangrento contra seu
co Central e aumentou drasticamente a da ditadura cambaleante, que matara ex-chefe, o também militar e ditador
dívida pública, enquanto as taxas de ju­ 30 mil militantes operários e jovens, desde 1968, Juan Velasco Alvarado.
ros continuaram subindo e os devedores enquanto as massas agarravam a pa- Nada como ação entre pares no inte-
entraram em insolvência. As diretrizes lavra de ordem das “Madres de Mayo” resse do progresso e da humanidade!
cambiais predeterminadas da “tablita” e gritavam, nas greves e nas ruas, que: Se entende que Napurí tenha gra-
começaram a ser modificadas arbitra­ “As Malvinas são argentinas, mas os ves problemas de memória quando
riamente, encerrando, assim, de forma 30 mil desaparecidos também!” e “Vai fala que o primeiro ato público du-
caótica, a segunda e última fase da po­ acabar a ditadura militar!” rante a ditadura foi organizado pelo

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Michel Silva e Serge Goulart

PST, mas a realidade é que, desde foi até as Malvinas, portanto, num A ditadura vai acabar
1980, já se realizavam manifestações apoio público e total à aventura re-
de rua e, em julho de 1981, a CGT acionária da Junta assassina, porque Galtieri estava tentando preparar
realizou uma Greve Geral com mani- não teve a possibilidade. um clima de “guerra nacional” publi-
festações massivas. Napurí sabe bem E prossegue Napurí, narrando camente, desde 19 de março, quando
de tudo isso, mas há gente que perde sua cruzada nacionalista fracassada, um comerciante argentino chamado
o senso de realidade quando se trata “Quando mais tarde, no Peru, se conhe­ Constantino Davidoff, em acordo com
de alavancar seu próprio prestígio e ceram as intenções da ditadura argen­ a Junta Militar, sob a aparência de uma
vaidade pessoal. Mas, o mais impor- tina, novamente se confundiu se cabia operação comercial, desembarcou com
tante, aqui, é que Napurí reafirma a denunciá-la ou o resgate das ilhas. Lá alguns de seus trabalhadores e hasteou
política de Nahuel Moreno de Frente apresentei outra moção parlamentar a bandeira nacional argentina em Puer-
Única com a ditadura. que mereceu as felicitações do governo to Leith, uma das Ilhas Geórgias do Sul.
Ele prossegue, na mesma entre- alfonsinista (Já no governo de Ricardo Imediatamente a marinha e o governo
vista: “Tampouco se disse que as maio­ Alfonsín, em 1983, nota dos autores) britânico reagiram. Foi, de fato, o co-
res mobilizações da América Latina onde dizia que o ódio aos militares e meço do plano maluco.
ocorreram no Peru. Milhares e milha­ à ditadura não podia deixar de lado o Enquanto Moreno revisava o pro-
res de pessoas saíram em todas as ci­ problema central que preocupa todos os grama do marxismo sobre a questão
dades. Toda a esquerda, que era muito países latino-americanos que em nosso nacional e a Frente Única Anti-impe-
forte na época, e os movimentos sociais território não podem fazer colônias rialista, ou seja, as “Teses do Oriente”,
deram-lhe o conteúdo da reivindicação de países imperialistas”. Aqui Napurí do 2º Congresso da Internacional Co-
soberana. A intenção dos militares ar­ chega às raias do cinismo e da hipo- munista e do “Programa de Transição”,
gentinos era manter o poder, mas isso crisia ao afirmar que “mais tarde, no as massas apontavam o dedo em riste
não anula a questão da soberania que Peru, se conheceram as intenções da na cara dos governantes assassinos
a Argentina reivindica neste momento ditadura argentina...”, como se não pró-imperialistas e prosseguiram suas
por meios pacíficos”. Outra vez um estivessem claras desde o início, para greves e manifestações até por abaixo
mundo paralelo se apresenta. qualquer militante que se reclamava o regime odiado.
As mobilizações no Peru de que do trotskismo. E, mesmo quando se Não custa repetir: a forma de ra-
fala Ricardo Napurí só aconteceram questionava abertamente “se cabia ciocinar de Morenocoloca em segundo
a partir das provocações da ditadura denunciá-la (a guerra da ditadura ar- plano a experiência que os trabalha-
argentina, em 19 de março, e após o gentina, nota dos autores) ou (defen- dores vinham tendo com os ditadores
início da guerra. Assim, dificilmente der, nota dos autores) o resgate das nos anos anteriores, diante da perse-
se pode falar da “questão da sobera­ ilhas”, Napurí, dirigente internacional guição à oposição política, doataque às
nia que a Argentina reivindica neste morenista, não hesita em defender liberdades democráticas e do avanço
momento por meios pacíficos”. sua vergonhosa política. Isto só prova da exploração capitalista. Os trabalha-
Napurí também conta como se deu o rasteiro pensamento deste homem dores não precisavam de uma análise
sua atividade e sua ida à Argentina e da política oportunista de Moreno. esquemática e simplista como a ela-
para hipotecar solidariedade à guerra Uma última lembrança desta borado por Moreno para desenvolver
da Junta Militar: O Peru também viveu operação internacional de Moreno. uma consciência anti-imperialista,
esse debate. Inicialmente, o Congresso Napurí, em sua entrevista, conta que afinal era algo conhecido por todo-
peruano era neutro e eu, como senador, na delegação internacional organi- so alinhamento dos ditadores com os
deveria liderar, junto com outros par­ zada por Moreno também estava Estados Unidos. Os trabalhadores não
lamentares, a mudança para o apoio presente o deputado venezuelano precisariam lutar ao lado de seus algo-
à soberania argentina. Por esse motivo, Alberto Franceschi, então dirigente zes para saber que não poderiam ter
liderei uma delegação à Argentina, pois máximo do PST (Morenista, nota qualquer confiança neles, ou melhor,
fui eu quem propôs a moção, que mais dos autores), da Venezuela, e que para entender que eles eram incapazes
tarde foi traduzida em um documento ficaria famoso, mais tarde, por ser de levar adiante qualquer forma de re-
de apoio de várias páginas. o principal deputado de direita, na sistência contra o imperialismo
Napurí explica: Fui recebido pelo Assembleia Constituinte, liderando Mas, se os trabalhadores não de-
vice-chanceler argentino porque Costa o combate, junto com toda a reação veriam estar ao lado de sua burguesia
Méndez não estava na época. Como burguesa pró-imperialista, contra no embate com a Inglaterra criado
eu era um ex-aviador e jornalista, Hugo Chávez. Este homem passou artificialmente pela ditadura, o que
eles me propuseram viajar para as a ser tão odiado pelas massas que deveriam defender os trotskistas?
Malvinas, mas como a guerra teve teve que finalmente fugir por uma Segundo Ted Grant, “os marxistas
um curso negativo, não pude fazê-lo”. janela do edifício da Constituinte e, devem explicar que as contradições
Aqui se deve entender “curso nega- desmoralizado, abandonou a políti- dialéticas em nível nacional e interna-
tivo da guerra” por desastre militar ca e refugiou-se em suas terras no cional provocaram esta guerra. É ne-
total, evidentemente. Napurí só não interior da Venezuela. cessário explicar pacientemente como

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Nahuel Moreno, revisionismo e adaptação na Guerra das Malvinas

esta guerra não serve aos interesses do imperialismo”(Nahuel Moreno, o governo de Margaret Thatcher.
povo argentino, nem do povo britâni- “1982: Comienza La Revolución”, Moreno optou por uma postura
co, nem dos habitantes das Malvinas” maio de 1983). nacionalista, contribuindo para
(Ted Grant, “La crisis de las Malvinas”, Em outras palavras, segundo enfraquecer não apenas a luta dos
maio de 1982). Alan Woods comple- Moreno, era correto mentir aos trabalhadores argentino, como
ta esse raciocínio, apontando que “a trabalhadores, orientando-os a também dos ingleses.
guerra foi reacionária, uma guerra uma espécie de trégua em rela- Esse tipo de política elabora-
imperialista por parte da Grã-Breta- ção à burguesia e aos ditadores, da por Moreno se coloca comple-
nha e o dever dos marxistas britânicos caso isso garantisse a abertura de tamente contra o que ensinaram
era se opor a sua própria burguesia. uma situação revolucionária na Lenin e Trotsky sobre aslutas
Por sua vez, os marxistas argentinos Argentina. Moreno evita explicar dos trabalhadores. Os revolu-
tinham o dever de opor-se à bur- que não seria preciso nada disso, cionários não devem dizer para
guesia argentina e a seus agentes da afinal, antes mesmo da guerra, a os trabalhadores aquilo que é
Junta” (Alan Woods, “Las Malvinas: ditadura estava em uma profunda mais fácil, ou que possa garantir
el socialismo, la guerra y la cuestión crise e a classe operária se levan- o resultado mais rápido, mas o
nacional”, fevereiro de 2004). tava contra o regime, ou seja, não que pode efetivamente mobilizar
A única política revolucionária, havia a necessidade de um confli- suas lutas e organização e fazer
na Argentina daquele momento, to bélico para que se abrisse uma avançar sua consciência no sen-
se expressou, brilhantemente, na situação revolucionária. tido da revolução.
palavra de “As Malvinas são Argen- Naquela conjuntura, o anti-im- Não resta dúvida de que a en-
tinas, mas os desaparecidos tam- perialismo enraizado entre os tra- trada da ditadura argentina na
bém! Abaixo a ditadura militar!”. balhadores poderia ter sido mobi- guerra levaria a um colapso do
Qualquer outro caminho, como o lizado para derrotar de uma vez regime, sendo totalmente equi-
buscado por Moreno, não passava por todas os ditadores que vinham vocada a política morenista de
de oportunismo, adaptação e capi- massacrando a população do país, fomentar o retrocesso do nível de
tulação frente à ditadura. expulsado assim também o impe- consciência dos trabalhadores fa-
Na política desenvolvida ao longo rialismo, que tinha nos ditadores zendo frente única com a ditadura
do processo, Moreno, como sempre, seus principais representantes. Ao numa guerra cujo objetivo era en-
optou porbuscar um atalho no cami- mesmo tempo, os revolucionários torpecer a consciência das massas
nho para atingir as massas. Agia de argentinos poderiam ter constru- que estavam pondo abaixo a di-
forma oportunista, pois sabia que a ídos laços com os trabalhadores tadura. Essa guerra tentava levar
derrocada da ditadura estava próxi- ingleses no sentido de reforçar o os trabalhadores a acreditar que
ma e que o desgaste o governo em internacionalismo proletário, com estavam defendendo sua nação
uma guerra seria fatal para o regi- vistas a somar forças para derrotar contra o imperialismo, quando, na
me. Mas, em vez de trabalhar para verdade, estavam servindo de bu-
tirar a terra debaixo dos pés da dita- cha de canhão numa guerra que
dura, isolá-la ainda mais e a empur- não era deles.
rar para o abismo, Moreno caiu na Quem não vê a luta real entre
manobra da falsa guerra. as classes e o movimento mole-
Ainda afirmava, depois de guer- cular da revolução, quem se guia
ra: “O conjunto destes elementos pelos movimentos dos aparelhos
levaram a definir a etapa da guerra e não pelas necessidades reais das
como uma situação revolucionária, massas, acaba, assim, se adaptan-
porque ali se combinou uma crise do e capitulando. A única manei-
virtualmente total do regime mili- ra de combater coerente e conse-
tar e do conjunto das instituições quentemente é guiando-se pelas
da burguesia, incluindo as Forças necessidades imediatas e históri-
Armadas e os partidos políticos, cas da classe operária, de seu mo-
com a irrupção ofensiva, revolucio- vimento real e não o imaginado
nária, da classe operária e do povo por iluminados e oportunistas, e
em uma imensa mobilização geral ter confiança na classe operária
unificada em torno de um eixo po- e no programa revolucionário do
lítico revolucionário: a derrota do Marcha “Paz Pan y Trabajo”. Foto: Hasenberg-Quaretti marxismo, do bolchevismo.

Notas:
1.(http://pabloraulfernandez.blogspot.com/2012/04/entrevista-ricardo-napuri-30-anos-de-la.html)

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